Title: Panegyrico de Luiz de Camões
Author: J. M. Latino Coelho
Release date: June 27, 2007 [eBook #21950]
Language: Portuguese
Original publication: Lisboa: Typographia da Academia, 1880
Credits: Produced by Pedro Saborano. (produced from scanned images
of public domain material from Google Book Search)
Em 9 de junho de 1880
PELO
SECRETARIO GERAL
LISBOA
TYPOGRAPHIA DA ACADEMIA
1880
Senhores.--Quando o viajante, ao cursar as ermas e dilatadas planicies, onde entre o Eufrates e o Tigre, em seculos remotos floreceram as grandes e conquistadoras monarchias asiaticas, collossos na amplitude e no poder, revoca á mente scismadora as magnificas memorias d'aquelles soberbissimos imperios, encontra em redor de si a aridez e a solidão. Mas as ruinas monumentaes dos antigos e majestosos edificios nos logares hoje desertos, onde outr'ora pompearam as cidades babylonias e assyrias, lhe estão ainda ensinando com a mudez eloquente das ruinas venerandas, a imagem da grandeza que passou.
Tudo é pequeno e transitorio n'este mundo, excepto a humanidade, a cadêa ininterrupta, por onde as successivas gerações umas ás outras vão transmittindo, accrescentado, o thesouro da commum civilisação.
Nascem, crescem, avigoram-se, florecem, decaem, e sepultam-se para sempre no tumulo da historia as nações e os heroes, por mais procéras e giganteas, que o destino lhes talhasse a estatura e as proporções.
Quando, após os esplendidos triumphos,--que em sua comparação, bem poderam envergonhar de pequenas e obscuras as celebradas conquistas e expedições dos povos dominadores na antiguidade,--volvemos os olhos para o que fomos, e caimos na contemplação do que de tanto poderio hoje nos resta, o espirito lastimado pela ingrata confrontação se entristece e se lamenta, de que passasse tão veloz a edade heroica de Portugal. Como ao viandante solitario nos plainos da Mesopotamia, parece-nos que sómente em volta se nos deparam saudosas e melancolicas as memorias do glorioso imperio portuguez.
Onde está Ceuta, em cujas muralhas o rei cavalleiroso e os seus esforçados paladinos, renovando com melhor fortuna e discrição o antigo duello entre a christandade e o islamismo, hastearam seguramente o estandarte portuguez? Onde está Arzilla, e Tanger, e Azamor, e Mazagão? Dentro d'aquelles muros, cujas pedras são ainda hoje insignes testemunhos do heroico valor de Portugal, resôa apenas o seu nome, envolto na penumbra da gloria e do terror. Onde está Malaca, em cujos padrões ainda vivem as façanhas de Affonso de Albuquerque? Onde Cochim, onde Meliapor, onde Bombaim? Onde este vasto littoral, em cujas abras e enseadas as naus e os galeões de Portugal, ao som das horrisonas bombardas dictavam a lei ás temerosas gentilidades? Onde está a India, que Portugal, a custo de façanhas inauditas, navaes e bellicosas, abriu ao tracto e ao commercio das nações occidentaes? Onde está a India? Oh! não repitamos a lastimosa interrogação, que nos pode ouvir, animada por um momento de redivivo e heroico patriotismo, aquella ossada gloriosa do immortal navegador, que hontem fomos depositar no grandioso monumento, consagrado aos nossos descobrimentos pelo rei emprehendedor. Onde estão os archipelagos, a que nós demos nome e senhorio? Onde estão esses mares procellosos e afastados, onde as quinas passeavam triumphantes, fazendo do Oriente mais remoto o feudo de Portugal? Aonde? aonde? Pisam extranhos mais felizes, não mais bravos, as terras que para a Europa soubemos conquistar. De todo o immenso imperio portuguez já não ha a circundar-nos mais do que melancolicas ruinas. Mas n'esta solidão ainda ha para confortar-nos e engrandecer-nos uma voz eloquentissima, que resume nos seus magicos accentos a altivez e a gloria de Portugal.
Já não tendes, portuguezes, a India, nem Ormuz, nem Malaca, nem Ceylão. Nem ao menos vos deixaram como padrão aquelle cabo Tormentorio, cujas borrascas temerosas vos não entibiaram, que não fosseis adiante ensinar á indolente christandade os caminhos tenebrosos do Oceano. Não são vossos os dominios materiaes. Embora. N'aquelles mesmos territorios, onde agora florecem e dominam extrangeiros moradores, lá está sempre o vosso nome. É d'elles o que é da terra, mas é vosso unicamente o que se não pode aniquilar, porque é incorporeo e immortal. É d'elles a riqueza, o poder, o senhorio. Mas será sempre vossa a gloria. Partindo aventurosos e resolutos desde os ultimos confins da Europa occidental, cursastes os oceanos ainda virginaes, onde tomastes o ronco estridor das tempestades pelo hymno triumphal das esplendidas victorias. Abristes as portas do Oceano, e dissestes ás demais nações da Europa: «Despertae da somnolencia medieva, e entrae após os meus navegadores.» A velha christandade phantasiava o mundo nos fabulados portulanos. E vós, estendendo aos vossos pés a terra inteira, como se fôra ainda pequeno mappa, estudastes a geographia, sulcando as linhas nas aguas com as vossas quilhas venturosas, entalhando-as na terra com o ferro vencedor.
Isto diz, mas em carmes inspirados e em divinas modulações, o immortal cantor dos feitos patrios. É a voz da gloria, que resôa perpetuamente, vibrada pela tuba do maximo poeta e do mais ardente e devotado portuguez. São os Lusiadas. É o Camões.
Quando pronuncía um portuguez o nome do Camões, a admiração e o orgulho de contar como seu natural o grande epico, é o maximo elogio. E n'esta occasião, em que festivamente celebra Portugal ao seu poeta, quando o povo, estreitando os vinculos da patria em volta do seu mais illustre e benemerito cantor, está pagando em publica e solemne apotheose, a homenagem do seu culto ao altissimo engenho portuguez, parecera temeridade, quasi diriamos sacrilegio, o buscar encarecer a gloria do Camões. Seria como accender pallidas lucernas para que appareça fulgindo mais esplendido o sol meridiano. E, senhores, se levanto n'este momento a minha voz, perdida e abafada no côro unisono das acclamações universaes, é porque assim o ordenou a Academia, mais zelosa na veneração ao épico immortal do que feliz na eleição do orador.
Não espereis da minha voz um panegyrico, porque só farei em breves termos a commemoração de um grande nome. No meio do fervoroso enthusiasmo, com que a cidade de Lisboa, e as demais povoações de Portugal, solvem após tres seculos na escassa e tardia moeda que lhe é dado dispender, o preço das altiloquas estrophes, quando os arcos triumphaes, os prestitos solemnes, os hymnos melodiosos, os bellicos tropheos, as bandeiras multicores, as deslumbrantes illuminações annunciam publicamente que revive, como o symbolo da patria, o nome do seu cantor, a nação, como que expiando nobremente a culposa indifferença das passadas gerações, entalha n'estes honrosos monumentos o nome de quem teceu de luz a heroica narração dos feitos patrios. A Academia, associando-se a esta liturgia nacional em honra do poeta, poz-me na mão o cinzel, e prescreveu-me que n'um recanto d'este marmore, onde Portugal insculpe agora a sua e a gloria do cantor, eu deixe tambem gravado o nome do Camões.
Fazer o elogio do Camões é tecer o panegyrico da patria. E é sempre grato a um portuguez o encomiar a Portugal.
Nós temos, os portuguezes, um singular e raro privilegio. Somos nós entre os modernos povos europeus o que tem um poema verdadeiramente nacional, um poema, cujos cantos são as façanhas da nação enaltecidas pela mais florida e opulenta phantasia, modeladas nas fórmas da epopéa. Celebram outras gentes a fecundos e altissimos engenhos, cujos reflexos luminosos, transcendendo os ambitos da patria, estão doirando e ennobrecendo a litteratura universal. Mas nenhum povo tem como o portuguez um d'estes felicissimos espiritos, que são ao mesmo passo o genio da nação, e o genio da poesia, e em cujas obras respire ao mesmo tempo a patria e a humanidade, a gloria privativa de um só povo, e o destino commum de uma inteira civilisação. O Dante é immortal, mas o seu poema é inspirado pelo mysticismo e a vingança. Immortal é o Tasso, mas a sua epopéa é a novella cavalleirosa, que se enreda e desenlaça em redor dos sacros muros da triste Jerusalem. Immortal é Shakespeare, mas a sua musa, que penetra e descobre as mais occultas fibras do humano coração, é mais cosmopolita do que fadada a conglobar a gloria dos bretões. Immortal é Cervantes, mas a figura entre sublime e comica do seu heroe, é mais do que o symbolo da Hespanha, é a personificação da humanidade, como abstrusa e paradoxal composição de loucura e heroicidade. Immortal é o Camões, mas é immortal para os seus, immortal para os extranhos. Para os seus, porque em versos admiraveis divulgou as empresas, em que foram protagonistas. Immortal para os extranhos, porque os feitos, que reconta, são o berço onde incubou fecunda a novissima civilisação.
Manda a Europa, ainda então adormecida para as longas e trabalhosas expedições, manda a Portugal que marche na vanguarda. Eram tenebrosos, impervios, procellosos os mares, onde nenhum baixel se tinha aventurado. Entrevia-se o Oriente como a quasi fabulosa região, d'onde vinham magnificadas pela creadora phantasia os encantos e as maravilhas. Era a terra das ardentes especiarias e das drogas perfumadas, a fecunda matriz dos diamantes e das perolas. Os seus thesouros aguçavam o desejo ás gentes occidentaes. Era como o paraiso da cubiça para esta velha Europa, já cansada da sua gleba mais esteril que os ridentes vergeis orientaes. Todos anhelavam porque se descobrissem faceis os caminhos, para que a todos fosse commoda a peregrinação dos tractos lucrativos e das fructuosas mercancias. Pois vá adiante Portugal e explore as sendas indomesticas d'aquella terra de profana promissão. Vá adiante circumnavegando briosa e perseverante as inhospitas margens africanas. Engolfe-se nos mares tempestuosos e descubra as ilhas viridentes, onde as arvores por centenares de seculos, na perpetua solidão das suas florestas, haviam ramalhado sem temer a hacha assoladora do colono, onde os passarinhos, dominando sem rival, cantavam indolentes os amores, pendurando nas vergonteas os seus ninhos, sem recear que a mão do homem as viesse descobrir e profanar. Entrem os portuguezes, esta guarda avançada, estes heroicos batedores da nova civilisação, entrem na sombria, ignota e espessa escuridão das terras e das costas africanas, entrem resolutos com as suas proas mal seguras nas bahias, nas abras, nas aguadas. Vão nas suas aventurosas singraduras administrando pelo nome portuguez o baptismo da civilisação ás selvaticas paragens, que descobrem, e assignalando com padrões a possessão e o dominio. Pairem com os primeiros e mais felizes navegadores nas aguas revoltosas do cabo Tormentorio, onde a Africa, semelhante ao ferro agudo e penetrante de uma azagaia immensa, está ferindo inexoravel o coração do Oceano. Sejam infatigaveis na aventura, intrepidos no perigo, inabalaveis na ousadia, heroicos nas provações, indomitos nos contrastes da fortuna. Avancem de cada vez mais um estadio na róta, que traçaram. Abram nos mares desconhecidos a propria estrada, que vão descortinando e percorrendo. Operem maravilhas de sciencia cosmographica e prodigios de estoica paciência e milagres de valor e galhardia. Deixem atraz o cabo temeroso e em fragillimos baixeis vão singrando aventureiros o Oceano Indico. Aportem finalmente á celebrada terra oriental, e a principio hospedes e forasteiros, venham a ser em breve termo os altivos dominadores d'aquelles florentissimos imperios, agora avassallados e sujeitos ao jugo portuguez. D'ali bracejem as extensas vergonteas do descobrimento e da conquista até ás mais apartadas e mysteriosas regiões. Entre a Europa escudada com o nome de Portugal na China e no Japão. Vá lustrando nos portuguezes galeões os mais remotos archipelagos. Deixe memorada na gloria dos seus feitos e nos nomes portuguezes dos logares a passagem triumphal d'este povo pequeno na extensão, gigante nos seus brios. Partindo do ultimo Occidente, de exiguo e infantil feito gigante, confranja nos seus braços de ferro o globo inteiro. Dissipe com o seu arrojo incontrastavel as neblinas, que escondiam o Oceano, e rompa animoso e irresistivel o veo mysterioso, que encobria a face da terra. Aponte ali aos que na sua assombrosa variedade a desconheciam, as divisões e as fronteiras das terras e das aguas, como um amoravel preceptor, arrancando o envoltorio, que tinha recatado um globo geographico, ensina ao alumno pueril e curioso, as linhas que delimitam os continentes e os mares. Diga finalmente á Europa entre assombrada e invejosa: «A terra, que tu sonhaste, era a terra fabulosa, a terra debuxada nas descripções phantasiosas dos antigos e nos mappas mentirosos da edade média. A terra, que eu te dou, é a terra qual outr'ora saíu das mãos da natureza para o homem primitivo, qual sae agora das minhas mãos para o homem civilisado. É a terra, de que os antigos apenas conheceram uma nesga, de que Alexandre, nas suas tão famigeradas expedições, soube apenas tanto como a mais tarda e preguiçosa das minhas galés, talvez menos que o mais frouxo dos meus aventureiros. A terra, que vós conheceis, é a terra de Ptolomeu e de Strabão, a terra dos que não a viram, mas sonharam. Esta, que vos dou, é a terra de Vasco da Gama, de Pedro Alvares Cabral, de Fernão de Magalhães, de João da Nova, a terra, de que para vós tomamos posse, como os primeiros que em todas as direcções a soubemos percorrer e navegar.»
A Europa, ouviu, estremeceu, levantou-se e invejou. As páreas copiosas dos nossos descobrimentos, os despojos opimos das nossas expedições, os fructos sasonados das nossas conquistas, tudo lhe deitámos generosos no regaço. Para nós guardámos o que se não pode alienar: as glorias e os laureis. Démos-lhe tudo o que havia de terrenal e de mundano. Recatámos como thesouro inestimavel o que as nossas empresas memoraveis tiveram de espiritual, quasi divino. Á semelhança do honrado e brioso cavalleiro, que, com mais cicatrizes que veneras, no outono da sua existencia gloriosa, pendurando na panoplia a espada reluzente e o murrião abolado nas requestas sanguinosas, deixa que tudo lhe arrebate a má fortuna, mas não cede ou vende a extranhos as insignias memoraveis, esculpidas como brazão e stemma gentilicio na face do seu broquel.
Quando as glorias portuguezas são chegadas á brilhante culminação, quando principia a resfriar o ardor primevo das empresas memoraveis, quando é necessario colher na phase momentanea do seu maximo esplendor a heroicidade portugueza, e como que photographal-a, ainda viva, recente, luminosa, apparece o Camões na terra de Portugal.
O Camões é ao mesmo tempo a eloquente voz da posteridade, e a grandiosa resurreição dos tempos heroicos de Portugal. A sua penetrante visão intellectual descobre com a perfeição dos seus contornos immortaes as figuras, sobre que se concentra mais viva e mais brilhante a purissima luz da vida nacional. A sua previdencia admiravel adivinha que veem perto os tempos calamitosos, em que a patria para morrer como Cesar com a grave e severa alteza dos heroes, precisará de cingir-se na purpura da sua antiga majestade, e compor-se e adereçar-se nas soberanas vestiduras da sua gloria. Virão épocas escassas, em que extranhos arrogantes hão de buscar descingir-lhe o gladio refulgente, desvestir-lhe a loriga impenetravel, e murchar-lhe na fronte os loiros immortaes. Tudo poderão emprehender. Mas o Camões, o soldado brioso das guerras africanas e indiaticas, o portuguez, que amou a patria acima da mulher, e a mulher acima da fortuna, o poeta que emulou nos antigos a belleza e a correcção, aos modernos superou no sentimento, ali está colligindo e ordenando nos versos varonis de uma epopéa nacional, as memorias da terra em que nasceu.
Será na carta da Asia a India portugueza um ponto apenas, mas um ponto como estes que, em noites de serena atmosphera e de melancolica e tepida escuridade, estão brilhantemente scintillando, e esculpindo no ceo a distancias infinitas o seu vivo e eterno resplendor.
Perdemos em grande parte a dominação e o imperio n'aquelles immensos territorios, onde outr'ora fluctuara, symbolo de empresas temerarias e felicissimas victorias, a bandeira de Portugal. Mas ninguem nos pôde nunca pleitear a gloria de as ter primeiro descoberto e avassallado. Que importa ao nome portuguez, que d'esse vasto e opulento senhorio não restem quasi já senão memorias?
Cada povo tem na sequencia historica a sua funcção, no grande e vario drama da civilisação o seu papel. Uns em cada momento na evolução da humanidade são protagonistas e heroes, a outros cahem no complemento e execução da obra commum, officios mais modestos, mas não menos necessarias attribuições. É o principio harmonico e fecundo da divisão do trabalho applicado á cooperação mutua das nações, no empenho de fundir e aperfeiçoar a civilisação no decurso das edades. E d'este modo a noção da patria individual se esconde na penumbra da humanidade.
A nossa missão não era a de grangear para nós o mundo, mas sim de o sujeitar e descobrir. Fomos com a espada os missionarios da velha Europa, enviados a correr os primeiros lances, e affrontar os perigos, a que ninguem ousara então metter o peito resoluto. A gloria de descobrir é maior e mais duravel que a de fruir e dominar. A grandeza épica dos nossos feitos immortaes, mais se aprimora e abrilhanta n'esta abnegação e desapego, com que dos fructos das empresas sobrehumanas deixámos aos extranhos o proveito, para nós tomámos a gloria por salario. Dos grandes e magnificos descobrimentos, com que se accrescenta e se melhora a civilisação intellectual e a humana condição, não ficou enfeudada a propriedade exclusiva na geração e na familia dos gloriosos inventores. Kepler interrogando os ceos e os planetas, rebeldes e indomaveis até ali, clausurando-os no encerro perpetuo das suas orbitas ellipticas, vinculou o seu formoso descobrimento no morgado commum da humanidade. Os segredos, que o espirito de Newton soube roubar á mysteriosa natureza, doou-os generoso á sciencia cosmopolita e á civilisação universal. O telegrapho electrico transmitte o pensamento, sem que esteja agora recatado como cioso monopolio na familia ou na raça dos seus engenhosos descobridores. A locomotiva passeia sibilando pelo mundo, sem que antes do seu curso impetuoso esteja esperando a venia e o signal de quem primeiro a ideou e construiu. Assim tambem da terra que lustrámos nas suas mais afastadas e escondidas regiões. A gloria de a revelar á Europa cubiçosa, vale mais que a vaidosa satisfação de chamar nosso o que primeiro que ninguem soubemos procurar e descobrir.
Das nossas aventurosas navegações e das nossas empresas bellicosas nasceu em grande parte o movimento operado na Europa desde o seculo XV. Tornámos possivel a sciencia moderna, que era truncada e imperfeita antes que ensinassemos as gentes européas a interrogar a natureza, e a descortinar as maravilhas e os segredos de inhospitas paragens, de mares desconhecidos, de um firmamento novo, onde brilham, escondidas aos antigos, novas e extranhas constellações. Revelámos a fórma do nosso globo, a configuração dos continentes, a continua successão do Oceano, a mudança e a condição dos varios climas. Patenteámos as riquezas innumeraveis da natureza organica, nos seus typos disseminados pela immensa vastidão das terras e dos mares. Atámos novamente os vinculos já rotos e perdidos entre a nossa civilisação e a nossa historia, e a historia e as civilisacões dos povos orientaes. Com as nossas maravilhosas aventuras fizemos uma patria gloriosa e impozemol-a á admiração de todo o mundo, mas acabámos empresa ainda maior, porque fizemos tambem a nova humanidade, congraçando e tornando umas das outras conhecidas as raças e as familias, que viviam pelos ambitos da terra sem liame e sem commercio fraternal.
D'esta prodigiosa Renascença, em que a moderna christandade tornou a viver no espirito e no genio da antiguidade, fomos nós os mais activos e fecundos cooperadores. A outros coube a gloria de comprehender primeiro e divulgar as formosas manifestações da intelligencia e da imaginação entre os antigos; de recompor as estatuas, onde o ideal quasi se confundia com o divino, de reconstruir os sumptuosos monumentos, de evocar das ruinas o mundo classico, e ao bafejo da paciente erudição fazel-o resurgir na apparencia da sua eterna belleza e perfeição. Mas em quanto os outros recompunham a antiguidade, nós mais audazes e felizes do que elles, alcançavamos completal-a e corrigil-a, penetrar onde ella não chegou, e tornar mil vezes mais intensa a sua luz, enfeixando com ella a que em remotas e sobrehumanas excursões se reflectiu na lamina das espadas gloriosas, e nas colubrinas e bombardas dos nossos galeões.
Fizeram elles o renascimento do passado, dispertando-o do seu tumulo. Nós fomos acordar o futuro das nações no berço onde nasce a aurora. Fizeram elles resurgir as tradições da Grecia e Roma. Nós fizemos nascer e avigorar-se o espirito da humanidade.
Os outros fizeram a sciencia da antiguidade, acurvados nos pulverulentos manuscriptos e nas reliquias já truncadas da arte, da sciencia e da poesia. Nós fizemos a doutrina, que se accumula navegando e combatendo, a perigosa erudição, que se compra com sangue derramado, e enlaçámos aos loiros da sciencia as palmas triumphaes.
Para entalhar no bronze da epopéa os feitos que resumem a vida nacional, nasceu Camões.
Quem era? D'onde veiu? Onde nasceu? Onde passou a puericia? Onde aprendeu na adolescencia os dois amores, que lhe exalçaram o espirito, cravando-lhe de espinhos o coração,--o amor da patria, que elle idolatrou mais que ninguem,--o amor da mulher, que mais do que nenhum poeta lyrico elle soube divinisar?
A vida do Camões é em quasi todos os seus successos uma lenda, ou um mysterio. Do poeta conhecemos perfeitamente o aspecto, em que se volta para nós e para a patria. Ignoramos quasi inteiramente o que se occulta nas escuras profundezas do coração e da existencia individual. É como estes resplendentes corpos celestes, de quem apenas rastreamos a luz e o esplendor, sem ao certo comprehender o que está por baixo da luminosa superficie. Contemplamos no Camões reflectida com toda a sua clara intensidade a vida nacional. Acostumámo-nos a vêr e admirar no seu espirito a imagem heroica do povo portuguez. Os loiros, que lhe exornam a fronte, são tambem os laureis que enramaram em seus triumphos a patria, quando era gloriosa e invejada. A sua alma é a alma da nação. No seu poema não respira apenas o estro de um cantor, palpita o coração de Portugal. É preciso que haja o que quer que seja de vago, impessoal e indeciso n'esta figura grandiosa, que tem á cinta o proprio gladio da nação, e desfere no seu plectro, não os sons da sua propria inspiração, mas os hymnos collectivos entoados por todo um povo á sua grandeza e á sua gloria. O Camões não é apenas um poeta, é um côro triumphal, em que as vozes de muitas gerações, na propria saudação dos seus heroicos feitos, se conglobam nos accentos de uma voz predestinada.
São mal delineados, nebulosos, os contornos biographicos do Camões. Não se sabe ao certo quando nasceu, porque n'estas imagens e personificações da vida nacional, é bem que nos possamos illudir, suppondo que andaram largos tempos voejando antes que começassem a luzir. Ignora-se a terra em que nasceu. Em Lisboa? Em Coimbra? Em Santarem? Ninguem o pode á justa discriminar. E é bem que assim acontecesse, para que nenhuma povoação se possa gloriar, de que o poeta lhe pertence a melhor titulo do que a toda a patria, que illustrou. Perguntam-nos onde o Camões viu a primeira luz? Respondemos e basta: Em Portugal. Que nos importa discernir se era vulgar ou generoso o sangue do poeta? Os monarchas da intelligencia não carecem de tronco e dynastia. Não tem pelo espirito nem antecessores nem descendentes. Não releva o inquirirmos d'onde veem, já que sabemos aonde vão. Nascem da humanidade e vão para a gloria. Nascem do pó terreno e mundanal e caminham luminosos á divina immortalidade. Sabemos do Camões que foi soldado valentissimo entre os mais esforçados e briosos; sabemos que foi a mais subida intelligencia em nossa terra, o primeiro épico moderno. Sabemos que alcançou conciliar em harmonica união as graças e formosuras da mais solta e inventiva imaginação, com as doutrinas mais severas da sciencia no seu tempo. Sabemos que em Africa militou, para que seguisse em tudo as mesmas sendas, por onde a gloria portugueza transitara. Sabemos que invejas, e malquerenças, e damnadas tenções, como elle diz, lhe mesclaram na vida aos jubilos e aos extasis da nativa inspiração, as tristezas e os opprobrios da existencia amargurada. Sabemos que amou extremosamente. E como poderia esta alma de eleição clausurar-se na solidão do sentimento, sem repartir o estro e a paixão entre a patria e a mulher? Sabemos que padeceu asperos desterros e carceres de affronta e provação. E como poderia esta luz intensissima do engenho ferir, sem os offender e offuscar, os olhos dos seus ingratos contemporaneos, que não buscassem afrouxal-a e desluzil-a, já que não a podiam apagar? Sabemos que na India provou a forte espada nos recontros e a estoica impavidez nos lances das armadas e nos perigos das tormentas. Sabemos que a pobresa foi a socia inseparavel do seu viver aventureiro. E que genio já houve em Portugal antigamente, que não tivesse a penuria por contrapeso aos thesouros immortaes da sua gloria? Sabemos que na China exerceu modesto officio, e que a fortuna ao Camões lhe destinou que para não perecer á fome, rebaixasse o divino talento de poeta ao prosaico e rude officio de exactor. Sabemos que a patria o desamparou nos annos derradeiros, atirando-lhe á mão, quasi estendida á caridade, a esmola do poder. Sabemos que morreu, quando a patria descaía no sepulchro, porque elle era a voz da patria, o ultimo suspiro da nação agonisante, e era bem que se extinguisse, quando Portugal jazia amortalhado no manto de cavalleiro, tendo em redor do seu esquife as figuras sinistras e irónicas dos seus desapiedados conquistadores. Sabemos que os seus ossos jazeram até hontem esquecidos n'um desvão do convento de Sant'Anna, até hontem, em que por nobre e patriotica impulsão da nossa Academia, lhe pagámos--inanimado--na solemne apotheose, o que--vivo--os seus contemporaneos lhe negaram em pão e em conforto. Sabemos que deixou o seu nome intimamente vinculado ao nome e á propria existencia da nação. Sabemos que os Lusiadas os entalhou o brio portuguez com a espada nas mais distantes e ingratas regiões, e os imprimiu com o rasto das suas quilhas temerarias na face do Oceano e no dorso das tempestades, e o Camões os trasladou a versos immortaes, diffundindo no mundo pelo genio o que Portugal já tinha divulgado pelo immenso pregão do seu valor.
O Camões é a patria coroada de poeticos laureis. Os Lusiadas são a estatua da nação, cinzelada pelo escopro do maior engenho portuguez. Glorifiquemos, pois, cada vez mais a epopéa e o cantor. Veneremos com elle o nosso passado glorioso. Mas como estes destemidos argonautas, que elle celebrou, os quaes se não ficavam inertes e parados após as mais felizes singraduras, nem cifravam a sua honra em descobrir apenas o cabo de Boa Esperança, volvamos o sentimento nacional aos tempos que já foram, e o espirito moderno ás eras do porvir: ao passado, para que d'elle possamos aprender o amor da patria, a tenaz perseverança nas empresas mais difficeis; ao futuro, para que honrando o poeta nas suas mais largas e videntes aspirações, possamos completar as nossas glorias pelo caminho que a fortuna nos consente e nos deixou. Fizemos a epopéa sublime, traduzida pelo Camões na divina linguagem do seu estro. Façamos hoje a epopéa mais modesta da liberdade, da sciencia e do trabalho.