Title: Á Ilha da Madeira
Author: José Ramos Coelho
Release date: December 4, 2008 [eBook #27413]
Language: Portuguese
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Ramos-Coelho
Á Ilha da Madeira
LISBOA
Empreza do «Occidente»
1898
Ao nauta que do mar tempestuoso
Vem dos baldões asperrimos cansado,
Tu te mostras, ó ilha feiticeira,
Como, depois de somno fadigoso
De horriveis pezadellos,
Um dia delicioso,
Todo alegria e festa e raios bellos,
Um claro dia pelo sol doirado.
Se isto é hoje d'est'arte,
O que seria d'antes,
Quando te desvendaste a vez primeira
Da nevoa e do mysterio em grande parte
Á vista dos pasmados navegantes!
Que, não bastando ainda estar perdida
No meio do oceano,
Por seculos dos homens escondida
Em recondito arcano,
Tu, qual donzella candida e medrosa,
Que do banho sahisse,
E a nudez, vergonhosa,
De alvo cendal cobrisse,
Em manto de neblina te embuçavas:
E até do mar, que ás plantas te gemia,
E até do proprio sol, que te queria,
A virgem formosura recatavas.
Porêm chegou o dia
Pelo Eterno marcado,
Em que, apezar d'esquiva,
Te rendeste captiva
Do sol da nossa gloria á viva chamma,
Ao generoso brado
Do grande Henrique de perpetua fama,
Quando, assim como do Sinai o monte,
Sagres de raios coroou a fronte,
E, desmedido pharo,
Ao marinheiro ignaro
Fez dissipar as trevas do horizonte.
Pandas as brancas velas,
Atravessadas pela cruz de Christo,
Eis no liquido argento
As fortes, portuguezas caravellas
Correm ao sopro do inconstante vento.
Assim na edade-media a Europa ha visto,
Assignalados por egual emblema,
Passarem os guerreiros
Á Asia, para em rabido combate
De annos e annos inteiros
Dar ao sagrado tumulo o resgate.
É o mesmo o nosso thema:
A fé; tambem o oriente procuramos,
E, como elles, tambem a amiga espada,
A par da cruz, intrepidos levamos
A uma outra cruzada.
Ruem os furacões; troam os ares;
É plumbeo o céo; das lobregas entranhas,
Quaes liquidas montanhas,
Volvem-se em desespero os torvos mares.
Pelas ondas corridos,
Os pequenos baixeis tragam a morte,
Já quasi submergidos;
Porêm não desanima a gente forte.
Invoca a soberana potestade,
Que a protege de ha muito, e a praia ignota,
Na escura cerração da tempestade,
Compadecida, lhe dirige a rota.
Alçando as mãos a Deus, inda molhadas
Das ondas salitrosas,
A maritima turba lh'agradece
As terras deparadas,
As vidas tanto a pique assim poupadas,
Com palavras piedosas,
E murmura esta prece:
Senhor, se, como outrora do teu povo
Os passos pelo ermo encaminhaste,
A este porto santo nos guiaste,
Dá-nos, dá-nos ainda um signal novo,
Outro maior signal de teus favores;
Teus filhos tambem somos;
Ás asperas fadigas,
Ao bravo pego, ás armas inimigas
Por ti só, pela patria nos expomos;
Faze que esta primeira descoberta,
Que o dom d'esta ilha esteril e deserta
Seja seguido d'outros dons melhores.
Dizem; abaixam da cerulea altura
Os olhos; e, ao baixal-os, de repente
Vêem longe sahir de nevoa escura,
Que mais e mais se torna transparente,
Uma visão da phantazia ardente?
De um monte a sobranceira catadura?
Eia; ao mar; o Senhor nos presta ouvidos;
Temos fé que é verdade essa apparencia,
Não devaneio apenas dos sentidos.
É da sua clemencia
Quem sabe se o signal; ao mar corramos.
Bradam; soltam ao vento a larga vela;
Já chegam; já de todo a alva neblina
Aqui, ali, se esvae ou se adelgaça,
E mostra, meio occultos, com mais graça,
Flores, verdura, emmaranhados ramos,
Uma terra tão bella,
Que mais semelha apparição divina,
Ou cahida do céo fulgida estrella.
Assim aos denodados portuguezes
Appareceste, ó ilha da Madeira,1
Para os avigorares nos revezes;
Assim aos olhos de Noé outrora,
Depois das grandes aguas,
Appareceu o arco da alliança,
Entre elle e Deus, o iris da bonança,
Que do diluvio o confortou nas maguas.
Sim, tu foste a esperança,
Que Deus, á nossa empreza favoravel,
Nos amostrou para nos dar alentos,
E, atravez do luctar dos elementos,
Cumprirmos nosso fado incomparavel.
D'aqui, cheios de arrojo, nós partimos,
E d'Asia, e d'Africa e do Novo Mundo
Em grande parte as plagas descobrimos,
E pelo pégo fundo
Em roda o globo co'os baixeis medimos.
Como és bella! Da Grecia conhecida,
Tu serias de Venus a morada,
Ou fôra, ao ver-te assim do mar sahida,
A nascença de Venus fabulada.
Ficara a téla dos Jardins d'Armida,
Sendo feita por ti, mais bem pintada,
E a descripção da Ilha dos Amores
Realçariam mais os teus primores.
Todos, á uma, os povos te namoram;
Mas a todos te mostras insensivel.
Embalde os filhos de Albion te exoram,
Te chamam Flor do Oceano immarcescivel.
Nossos antigos os primeiros foram;
Por outrem nos deixar não te é possivel.
Do céo, dos mares e de Deus á face
De nós comtigo se firmou o enlace.
Por seres tão fiel, tão portugueza
Mais ainda te estimo, ilha formosa;
Mas por laço diverso anda a ti presa
Minh'alma: da existencia trabalhosa
Com risos esmaltaste-me a tristeza,
Na quadra, embora amarga, descuidosa
Da passada, inexperta juventude,
Quando uns dias viver em ti eu pude.
E agora que de ti me tem distante
O logar e dos annos a carreira,
Phantaziu-te ainda mais brilhante,
Vejo-te mais ainda feiticeira,
Que me recorda teu florir constante
A minha primavera passageira,
A minha tão querida mocidade,
E és para mim um echo, uma saudade.
Lisboa 1808.
1 Só por conveniencia poetica se tornou aqui immediatamente successivo ao descobrimento da ilha de Porto Santo o da ilha da Madeira, quando, segundo a opinião mais assente, foram distanciados um do outro pelo espaço de alguns mezes, se não de um anno.