Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 11 (de 12)
Author: Camilo Castelo Branco
Release date: February 27, 2009 [eBook #28206]
Most recently updated: January 4, 2021
Language: Portuguese
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BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
NOITES DE INSOMNIA
OFFERECIDAS
A QUEM NÃO PÓDE DORMIR
POR
Camillo Castello Branco
PUBLICAÇÃO MENSAL
N.º 11—NOVEMBRO
LIVRARIA INTERNACIONAL DE |
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ERNESTO CHARDRON 96, Largo dos Clerigos, 98 PORTO |
EUGENIO CHARDRON 4, Largo de S. Francisco, 4 BRAGA |
1874
PORTO
TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
68—Rua da Cancella Velha—62
1874
BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
NOITES DE INSOMNIA
SUMMARIO
O ultimo carrasco, pelo exc.mo snr. visconde de Ouguella — O desastroso fim de Damião de Goes — A menina perdida — O heroe da ilha Terceira — O nariz — João Baptista Gomes — Auto da fé... a rir
Para mim a sepultura é santa; são santas as fundas agonias humanas, ainda quando associadas ao crime.
A. HERCULANO.
Si l'on demande comment, avec de pareils sentiments, j'ai pu remplir si longtemps les horribles fonctions qui m'étaient échues en partage, je n'ai que ceci à répondre: qu'on vacille bien jeter les yeux sur la condition dans laquelle j'etais né... C'est le testament de la peine de mort par le dernier bourreau.
Mémoires des Sanson par H. SANSON,
ancien executeur des hautes œuvres de la cour de Paris.
Felizmente a civilisação do seculo arrancou do nosso codigo esse negro artigo da pena de morte, e esta conquista da illustração, que a tenaz perseverança da philosophia alcançou gloriosa, depois d'uma porfiada lucta, já não póde retrogradar em Portugal, e parabens[6]me dou a mim mesmo de não estar já ameaçado de commetter homicidios, e de sentir gotejar sobre a minha cabeça, n'estes meus já bem cançados dias, o sangue, que uma lei draconiana fazia espadanar no cadafalso.
Historia (inedita) de Luiz Antonio Alves dos Santos—O NEGRO, ultimo executor de justiça em Portugal.
A pena de morte será executada na forca pelo executor da justiça criminal, em lugar publico, com o acompanhamento da confraria da Misericordia, se a houver no lugar, e dos ministros da religião, que o condemnado professar: assistirá o escrivão dos autos para n'elles dar fé do cumprimento da sentença. Nas quarenta e oito horas marcadas no artigo antecedente, se ministrarão ao condemnado todos os soccorros da religião, e os mais que por elle forem requeridos.
(Art. 1203 da Reforma judicial novissima, decretada em 21 de maio de 1841).
O meu quarto, o meu antro, a minha jaula tinha quinze passos de comprido e seis de largura. Era tão limitado o recinto que nos achavamos face a face—o carrasco e eu.
A primeira impressão que senti, ainda mal, porque se traduziu em factos—arrependi-me depois—foi recuar e esconder as mãos nos bolsos.
Na lei, que ordenava o homicidio, é que eu não devia tocar. Era para com o juiz, que[7] proferia a sentença, para com o jury, que condemnava, e para com o ministerio publico, que requeria, que eu devia guardar estas reservas e cuidados.
Para com o executor—não.
Este era o instrumento, era o cumplice, era a força physica, era a machina brutal, inconsciente, estupida e passiva. Era a forca, era a guilhotina, era o patibulo, era o cadafalso, era o pelourinho, era a gargalheira, era o potro, era o equuleo, era a cruz do supplicio—era finalmente o verdugo, o algoz e o saião. Era o carrasco.
Para com elle, o meu instincto de repulsão era um absurdo.
Toca-se nas rodas dentadas d'uma machina qualquer—quando postas em movimento, se o operario n'um momento de irreflexão e de imprudencia se aproxima d'ellas—despedaçam-no, esmagam-no. A roda é um agente: obedece impassivel ao impulso da diretriz, do motor.
E, aliás, ninguem despreza a roda, ninguem a reputa aviltante, ninguem a insulta.
Que mais vale o carrasco, para que o legislador lhe legasse o desprezo e a consciencia da sua infamia?
O movimento de repulsão, que actuou em mim, não fôra tão rapido que o não observasse Luiz Negro.[8]
Observou.
Vi rebentar uma lagrima nas palpebras avermelhadas do velho. Rolou-lhe, depois, deslisando na concavidade das rugas, que lhe sulcavam as faces, e foi em espiral, mansamente, gota a gota, perder-se-lhe na espessura das barbas.
Conheci a affronta e corrigi-a sem detença. Estendi-lhe a mão. Apertou-a o carrasco com uma alegria convulsiva. Havia não sei que traços de gratidão desenhados n'aquella physionomia franca e aberta. Parece-me têl-os ainda impressos na memoria, para remorso eterno da minha consciencia.
«Posso apertar-lhe a mão com desafogo», exclamou elle, com uma voz surda e rouca. Senti-a primeiro no coração antes de me entrar nos ouvidos. «Felizmente, nos abysmos da minha profunda desgraça, resta-me uma consolação...» Hesitou. Depois proseguiu: «consolação unica, que me alumia a existencia, e mitiga os pezares que me vão n'alma: as minhas mãos estão puras, tenho-as immaculadas da forca, não arroxearam jámais, com a soga, a garganta dos padecentes—não derramaram nunca o sangue das victimas que a lei sem respeito pela vida humana, e a que por escarneo chama justiça, obriga outro nomem a derramar.
«Venho, aqui, para o conhecer. Não tenho[9] por costume procurar presos. Nem os busco, nem lhes fallo. Mas sei que é adversario da pena de morte; quiz vêl-o face a fece. Era justo que o carrasco e o homem de lei conversassem em intima convivencia. Estamos em presença um do outro: escutar-nos-hemos reciprocamente.»
E ao passo que Luiz Negro se exprimia assim, perguntava eu a mim mesmo—quantas mãos mais polluidas, menos nobres, menos dignas e menos puras teria eu apertado na minha vida.
Assim como Talleyrand, se Talleyrand era—não me falhando a memoria—asseverava, que a palavra fôra dada ao homem para mentir, tenho para mim que os respeitaveis e acreditados luveiros da nobre cidade de Lisboa foram nascidos e educados, para nos evitarem o contacto de mãos, que nos podem contagiar com estes virus paludosos, que por ahi vão medrando á sombra de magnificas protecções.
Quando o carrasco proferia as ultimas palavras, que acabo de narrar, chegava o meu almoço, trazido por um criado, e acompanhado por outro, que tem sido para mim como o Caleb de Ravenswood, descripto por Walter Scott. Em seguida appareceram amigos meus, trazidos ao Limoeiro pelo desejo de me acompanharem nas horas, em que, sendo-lhes permittida[10] a entrada, eu me achava mais só.
Sentaram-se em torno da mesa. Luiz Negro almoçava comnosco. Fallavamos de tudo. Ignoravam todos o mister do meu novo hospede. Viam um homem avançado em annos, envolto n'um casaco escuro que tinha fórmas de tunica, silencioso, calado e triste, comendo sem nos interromper a nós que esqueciamos as grades, os ferrolhos e os guardas—e arrastados pela nossa imaginação peninsular nem sequer pensavamos no governo.
Fui sempre um conspirador assim—em que pese esta modesta confissão minha ao illustre e meritissimo juiz do processo.
Não direi os nomes dos meus amigos, n'este jovial almoço, com receio de os denunciar ás iras, e aos instinctos odientos dos consules actuaes. Receio que lhes abram assento no santo officio regenerador.
A conversação ia cortada em dialogos cheios de vida, recamados de originalidade e opulentos na elegancia do dizer e na facilidade da phrase. Poderia parecer uma academia litteraria, se não fosse uma enxovia.
Vivia eu, então, n'um carcere que me dizem ter sido morada de Diogo Alves nas vesperas do seu supplicio.
As paredes, se não conservavam tradições de taes luctas legaes, guardavam, pelo menos, os vermes, que formam o apanagio e arrhas d'estes[11] lugubres esponsaes com as nossas cadeias.
Ao terminarmos a nossa refeição, quando o fumo dos cigarros e charutos começava a ennovelar-se em densas espiraes, velando-nos as faces, disse para os meus amigos e alegres convivas, que me penitenciava alli d'um erro grave, erro de lesa polidez, porque os tivera, por tão largo espaço e em tão intima convivencia, com pessoa para elles desconhecida, sem os apresentar, conforme ordenam e exigem as demoradas pragmaticas e minuciosas etiquetas britannicas.
Ninguem o conhecia. Só eu.
Enchi-me d'animo e terminei assim:
«Meus senhores, tenho o prazer de lhes apresentar o carrasco.»
Houve um silencio profundo. Parecia que um d'estes tremendos cataclysmos, de que só a natureza tem o segredo, se desencadeára em torno de nós.
As minhas palavras reboaram como o choque d'uma pilha voltaica—faltavam-lhes, apenas, as chispas eletricas.
A sensação foi grande. Não era temor, não era medo, não era susto, que contagiára d'esta sorte todos os meus amigos. Era repulsão. Sentiam-se todos inficionados d'este contacto. Parecia que haviam respirado os gazes deleterios, os fluidos mephyticos d'algum charco paludoso.[12]
E todavia diante de nós estava um homem, feito á imagem de Deus, segundo rezam as piedosas lendas biblicas. Estava um irmão nosso, um filho da mesma raça, nascido na mesma patria, educado na mesma religião de amor e de perdão, e fóra a lei e os seus levitas, que o haviam convidado, constrangido ou subornado, a exercer as cruentas e sinistras funcções d'aquella magistratura de sangue.
Venerar e respeitar os authores das monstruosas carnificinas, que se appellidam em phrase composta e decorosa «pena de morte» desprezando, ao mesmo tempo, o mandante e forçado executor de uma penalidade absurda e irreparavel, pareceu-me sempre um contrasenso abjecto, um preconceito irrisorio, uma aberração torpe e villã. O pudor deslocado não é virtude: ou é hypocrisia ou imbecilidade.
Achei sempre muito mais racional a doutrina de De Maistre. Divinisava quasi o carrasco, elevava-lhe o mister á altura de sacerdocio. Bem haja elle. Pelo menos era logico, consequente e audaz. As situações definidas teem a severidade do raciocinio, a coragem dos dogmas que enunciam, o supremo valor e a immensa lealdade de aceitarem francamente as consequencias fataes e necessarias dos seus actos.
Em épocas d'uma triste cobardia moral,[13] escólas que formulam as suas doutrinas, sem tergiversações nem receios, merecem o respeito de todos nós; porque qualquer que seja o absurdo dos principios existe, pelo menos, alli, a fé viva que os escuda e defende.
Mas nas escólas dos doutrinarios ou conservadores modernos qual é o credo ou symbolo do seu programma politico e social?
Vejamos.
Explica-o Littré por fórma tal que me tira o desejo de o dizer:
«Não é só a França—é a Europa inteira que se acha dividida em tres escólas politicas: a escóla retrograda, a escóla revolucionaria e a escóla estacionaria ou conservadora. Buscam todos um d'estes tres balsões. E cada um se liga e enfileira ou ás instituições do passado ou trabalha para a sua destruição ou busca, n'um equilibrio—physica e moralmente impossivel—um ponto de apoio, no encontro d'estas duas forças oppostas.»
As resultantes, n'estas absurdas combinações de forças, são as catastrophes.
A escóla estacionaria, rigorosamente fallando, não tem doutrina sua. Existe, medra e espreguiça-se no seio d'estas convulsões sociaes, aceitando os principios da revolução, cujas consequencias repelle, e dobra-se, curva-se e sujeita-se ás conclusões da escóla retrograda, ao ultimatum da sua doutrina reaccionaria—simulando,[14] aliás, um profundo horror pelos seus principios. Não é um systema esta evolução do seu procedimento—é um expediente, que vive da impotencia a que por mais d'uma vez as outras duas escólas se teem reduzido. E ha tanta verdade n'estes confrontos, que vemos os conservadores, arrastados pelo medo—terror panico dos espiritos timoratos e dos homens enriquecidos á sombra das revoluções—mergulharem até ao lôdo das escólas retrogradas, como em busca d'um local recondito e mysterioso onde possam esconder e occultar os seus haveres. O pavor produz estas allucinações. Como se o passado podesse encobrir o trabalho accumulado para o futuro!
Luiz Negro era um homem intelligente. Percebeu que eu queria levantal-o, alli, deixando a responsabilidade da sua profissão áquelles que lh'a deram, e que, em seguida, o desprezavam tambem.
Ergueu-se, olhou-nos a todos quando se achou de pé, e confesso que nos dominou.
O patibulo, que é um lugar elevado, deve ter fascinações e delirios deslumbrantes, como os teem os thronos, as eminentes funcções do estado, e a cadeira gestatoria dos pontifices e santos padres. Para alguma cousa deve servir estar mais alto do que os outros homens.
Foi n'uma montanha—rezam assim as[15] piedosas chronicas do Nazareno—que Satanaz quiz tentar Jesus.
O carrasco, no meio de nós, fitando-nos a todos—com um olhar profundamente triste, que era o resumo d'uma existencia horrivel—possante, herculeo e espadaúdo como um gladiador dos circos da Roma pagã—era mais do que um homem: era um phantasma.
A alegria esvahiu-se. Era tão profundo e completo o silencio, que o zumbido d'um insecto qualquer ter-nos-hia parecido uma convulsão medonha no globo que habitamos.
Já a mim mesmo me reprehendia eu d'esta apresentação inopportuna.
Luiz Negro mediu-nos a todos com um olhar profundo e scintillante. Havia o que quer que era de feroz e sinistro nos primeiros lampejos d'aquella vista penetrante. Depois amorteceu-se. Em seguida as lagrimas rebentaram-lhe por entre as palpebras, a ferocidade diluiu-se-lhe n'aquelle imperceptivel chôro, e momentos mais tarde havia um olhar de mansidão e de ternura a expandir-se, com uma meiguice extraordinaria, por sobre nós.
Desapparecera o carrasco. Estava o homem.
«Metto-vos mêdo? Faz-vos pavor a minha presença? Não ha razão nem motivo para tanto. De mim sei dizer e posso assegurar que estou livre de odios e de ruins paixões contra[16] quem quer que seja. Tenho no meu coração um thesouro inesgotavel de perdões—ainda mesmo para aquelles que me acarretaram os infortunios da minha vida.»
Continuava o silencio.
Luiz Negro proseguiu:
«Sou christão. Aprendi, portanto, a perdoar nas lições do Divino Mestre. Elle—que levantou a dignidade do homem com o seu proprio martyrio.
«Quebrou as algemas da escravidão do mundo antigo para implantar, na terra, a liberdade, a igualdade e a fraternidade—trindade augusta d'esta religião d'amor.
«Ao visconde hei de eu contar largamente a minha vida. Hei de dar-lhe a narração escripta do triste fado da minha existencia. Quem, como eu, só espera do sepulchro—da valla, direi melhor—o silencio e o repouso, não pretende nem quer illudir ninguem.
«Retiro-me. Sinto-me aqui de mais. Apavora a minha presença com o sinistro nome que me deram.»
Devo dizel-o: estenderam-se-lhe todas as mãos. Nem uma só houve, que se esquivasse a este signal de pura cordialidade com que os homens se buscam e apreciam.
Ao cerrar da porta, ouvi que me dizia: «Até ámanhã.»
Este «ámanhã» seria a sua historia.[17]
Ao passo que o carrasco descia os setenta e sete degraus, que conduziam á minha jaula, fiquei eu isolado e silencioso no meio dos meus amigos.
Perguntava a mim mesmo o que tinha ganho a sociedade, nas suas cruezas e ferocidades, ainda depois da inquisição.
Havia ao menos—alli—a logica brutal das feras, havia os instinctos felinos d'aquelle tribunal catholico. E nós a recebel-os e a apertar-lhes a mão—aos successores, e filhos dilectos d'estas infamias! E nem sentimos as chispas de fogo, as gotas de sangue, os gemidos de tantas victimas!
Muito podia e muito póde a reacção!
Diga-o Pelletan.
A inquisição não tinha só jurisdicção sobre a vida humana: não lhe escapava a propria morte. Assim como a hyena na ferocidade dos instinctos levantava, cavando, a terra dos cemiterios, assim ella, a inquisição, desenterrava os ossos dos suspeitos posthumos, escavava, nas vallas, a podridão dos cadaveres dos impios, fabricava, com esqueletos, heresiarchas e herejes, interrogava gravemente os espectros, queimava-lhes os detrictos, e as cinzas arremeçava-lh'as ao vento.
Fica entendido, que os bens—pelo confisco—não os entregava aos herdeiros.[18]
E com todo este apparato affectava ares e modos de suprema beatitude.
Havia cheiro de santidade em todo o seu procedimento.
Começava por si. Chamava-se a santa fé. Era a prisão a santa casa, o seu tribunal o santo officio, a sua policia a santa irmandade, o sambenito a sua libré, e para mostrar que em tudo seguia a phrase evangelica, proferia palavras d'uma mansidão ineffavel. Quando estorcia e quebrava os membros da victima, do paciente pela tortura, chamava a este hediondo facto: interrogar com bondade—benigniter. Ao condemnar á fogueira, acrescentava logo com doçura evangelical, que applicava a pena mais suave: pœna clementissima. Ao inscrever a sentença de morte, no seu registro funerario, designava o compendio d'estes horriveis morticinios, pelo nome de livro de vida: liber vitæ. Se entregava o padecente ao carrasco, em vocabulo tão amoravel que parecia absolvição, dizia que o relaxava: relaxare; e, quando, finalmente, o condemnado ia a caminho do supplicio escrevia, com letras d'ouro, na sua seraphica bandeira, a palavra misericordia!
A inquisição era dôce, suave e meiga na fórma, como o são todas as medonhas infamias e todas as fundas hipocrisias.[19]
Conta-se do crocodilo, que imita, nos juncaes, os gemidos infantis da criança que se afoga, para arrastar os corações generosos a acudir-lhes e devoral-os.
No baixo imperio, quando as sociedades se estorciam, nas mais baixas e degradantes vasas de cynismo, de hediondez e d'abjecção, a polidez das fórmas era inimitavel e soberanamente cortez. Custava a conter na memoria as classificações, tão adjectivadas, dos mais ignobeis e crapulosos misteres palacianos. Rezavam as chronicas, estatuiam diariamente os rescriptos dos principes, determinavam os decretos imperiaes as designações de illustrissimos e eminentissimos senhores—applicadas e votadas estas grandezas—se grandezas ha, n'esta torpe nomenclatura—á escoria dos eunuchos e dos devassos das aulas regias.
Todos estes vocabulos iam envoltos na podridão e na torpeza da mais vil malvadez, e no lôdo aviltante, e vasa immunda e mephytica dos escravos, levantados, sem crenças e sem fé.
Vieram depois os barbaros.
Vieram bem.
Sahirão agora do quarto estado?
Talvez.
A raça latina carece d'uma nova transformação.
D'onde virá?[20]
Aviltada, corroida, podre e corrupta em França, na Italia e em Portugal, olha a medo para a Hespanha. Estremece de susto e pavor ao encarar os delirios d'um povo que parece barbaro, e que faz esforços sobrehumanos, para se regenerar e tomar assento nas ágapes das civilisações, modernas.
Poderá concluir e completar esta transformação?
Não posso nem quero crêr na aniquilação dos povos da familia latina.
Nós somos a expressão mais perfeita da raça indo-europêa.
Assim como, em 1789, a nobreza devassa, leviana e egoista preparou o engrandecimento da burguezia, assim, tambem, os gravissimos e repetidos echos d'esta classe estão apressando e dando vida ao futuro indestructivel do quarto estado—á regeneração da nossa raça pelo povo.
Seria longo estudar, aqui, as numerosas causas da decadencia e da fatal destruição, que vão gangrenando, sem elixir reparador, a nobreza, o clero e a classe media.
Um dia o povo escreverá a historia de todas estas podridões.[21]
Os meus amigos sahiram pouco depois do carrasco.
Esperei ancioso pelo dia seguinte.
Na solidão da cadeia, entregue por tão longas horas da tarde e da noite ao silencio e á reclusão, ignorando a sorte que me esperava, e os planos que forjaram os meus inimigos, buscava todas as distracções, que o acaso ou a sorte me depararam, para sahir do torpôr moral e da tristeza profunda que me ia n'alma.
As horas corriam tão lentas e vagarosas, que me aconteceu, por vezes, esperar, com prazer, os momentos em que os guardas vinham, no silencio da noite, correr-me os ferros da minha janella, para se confirmarem e terem a certeza de que eu não tentava fugir. Sorria-me sempre a este acto nocturno e solemne da minha vida de prisioneiro d'estado.
VISCONDE DE OUGUELLA.[22]
Não era boa pessoa. Tinha talento, fazia chronicas de reis, escrevia em variados assumptos; mas era mordacissimo, deslinguado, e desluzia as gerações dos seus inimigos com a injustiça propria da sua malquerença.
D. Antonio de Athayde, conde da Castanheira, e valido de D. João III, foi um dos fidalgos mais aggravados.
Uma satyra appareceu na côrte por aquelle tempo, precisamente no anno 1554. Um homem vestido de frade a entregou pessoalmente ao rei.
Diogo de Paiva de Andrade (Memorias ineditas) refere assim o caso:
Um frade capucho, ou, como tambem se disse, pessoa que vestiu aquelle habito, procurou com grande empenho fallar a D. João III, que estava no paço da Ribeira, em occasião que se recolhia a dormir a sesta; e, pelo esforço que fazia em se lhe dar recado, se deu parte a el-rei; o qual mandou entrar o frade. Este se queixou extraordinariamente de um regulo que havia na sua terra, pedindo a sua alteza[23] desaggravasse o opprimido povo; e, acabando de fallar, se retirou, entregando-lhe um papel. Abriu el-rei o papel; e, vendo que era uma satyra contra o conde da Castanheira, D. Antonio de Athayde, ordenou logo fossem em busca do frade; e, por maiores diligencias que se fizeram, não foi possivel encontral-o. Este papel guardou el-rei na sua guarda-roupa, d'onde o pôde haver Damião de Goes que, copiando-o, o deixou junto a um nobiliario, que tinha escripto das familias d'este reino, e d'aqui teve origem, sem fundamento, a seita puritana; porque, depois de descompôr o conde na figura e nos costumes, o infamou na familia, nas seguintes quadras:
Mestre João sacerdote,
de Barcellos natural,
houve de uma moura tal
um filho de boa sorte.
Pero Esteves se chamou;
honradamente vivia;
por amores se casou
com uma formosa judia.
D'este (pois nada se esconde)
nasceu Maria Pinheira,
mãi da mãi d'aquelle conde
que é conde da Castanheira.
Em outro lanço das Memorias, Diogo de Paiva, reportando-se novamente a este caso que estrondeou n'aquella época, acrescenta:[24]
Damião de Goes, bem conhecido n'este reino por seus escriptos, foi grande inimigo de D. Antonio de Athayde, 1.º conde da Castanheira, e valido de D. João III; porque apparecendo em palacio a celebre satyra contra o mesmo conde, que deu causa á murmuração de Maria Pinheira, Damião de Goes a ajuntou a um nobiliario que tinha escripto;—sabendo-o o conde, o esperou na rua Nova de Lisboa uma noite, e lhe deu com um pau. Augmentou-se de parte a parte a inimizade; e, achando-se D. Antonio de Athayde na casa da India uma manhã, como vedor da fazenda, e Damião de Goes como feitor de Flandres, que havia occupado, ahi se travaram de razões, e o conde lhe deu com umas luvas na cara.
A satyra, que D. João III releu muitissimas vezes, e outras tantas fechou no contador dos seus papeis particularissimos, devia de ser acerba para o vingativo conde, e mortalmente funesta para Damião de Goes.
O leitor, sem duvida, deseja vêl-a, porque, se a não viu manuscripta, com certeza a não encontrou ainda impressa. As tres quadras trasladadas por Diogo de Paiva são as unicas apenas conhecidas dos leitores de genealogias; mas o mordaz poema comprehende sessenta e quatro quadras.
Por não empecer á curiosidade, dou primeiro[25] o traslado da satyra; hão de vêr depois outras cousas importantissimas no caso.
QUE SE MANDARAM DAR A EL-REI D. JOÃO III POR UM FRADE DE SANTO ANTONIO, DOUS ANNOS ANTES DA SUA MORTE, E AS TINHA NA SUA GAVETA, E AS LIA ALGUMAS VEZES, E AS MANDOU QUEIMAR POR MANOEL DE S. THIAGO NO DIA QUE VEIO DA MISERICORDIA, TRES DIAS ANTES DO SEU FALLECIMENTO QUE FOI A 22 DE JUNHO DO ANNO DE CHRISTO DE 1557.
1
Deus sabe que esconder
a minha tenção não posso;
e, por seu serviço e vosso,
digo quanto aqui disser.
2
Se sobre isto o dessirvo,
com a clemencia que sóhe,
como a vassallo e captivo,
que o ama, me perdoe.
3
Um poeta dos latinos
a um seu amigo escrevia:
«Já agora a terra cria
homens maus e pequeninos.!»[26]
4
Como que, com a idade
tudo cança e nos esquece,
afóra só a maldade,
que esta sempre prevalece.
5
Homens bons de muito ser
n'esta terra haver sohia;
ainda os ha; mais haveria,
se os deixassem viver.
6
Os que mettem pelos portos
mercadorias defezas,
com que os mortos são mortos
e os vivos são suas prezas,
7
Esses no reino metteram
mentiras e judiarias,
baixezas e hypocrisias
que toda esta terra encheram.
8
E tanto quê, mór valia
tem já isto em Portugal
que droga, cravo e tincal,
nobreza e cavallaria.[27]
9
Mas de um, que tudo pende[1],
vos direi, senhor, um pouco,
em que me tenhaes por louco;
que Deus calar me defende.
10
Pois dá brado sem cessar—
diz Izaias—e canta;
como trombeta, levanta
tua voz sem descançar.
11
E elle, que tudo é, tudo
nos salva pela tenção!
Vêr eu tanta perdição
me faz fallar, sendo mudo.
12
E eu, com esta ousadia,
o direi, porém com febre,
que em sua physionomia
vereis melhor que tem lebre.
13
Convenho no que se diz:
Dês que o mundo se criou,
aquelle a quem Deus bem quiz
no rosto lh'o amostrou.[28]
14
Após isto, no cabello,
na sombra tão infernal;
de estopa de ruim pello
nunca se fez bom sayal.
15
As sobrancelhas hirsutas
maiores que abebedouro,
no meio da testa justas,
signal é de mau agouro.
16
Olheiras por meio rosto,
olhos tristes, embaciados,
risinhos falsos, sem gosto,
pensamentos esfaimados.
17
Esfaimados de cobiça,
de soberba e de inveja,
de quantos males atiça
quem todo o mundo deseja.
18
Esfaimado de suspeitas,
enganos e falsidades,
e palavras contrafeitas
onde nunca entrou verdade.[29]
19
Esfaimado por lançar
o reino e terra a perder,
o preço, a honra, e o ser
dos que são para estimar.
20
Esfaimado e esfaimado
por acabar de roubar
honra, fazenda e estado
de quem isto lhe foi dar.
21
Ente do seu parecer,
nas obras do tanta perda,
parentesco deve ter
co' ladrão da mão esquerda.
22
É um sem fundo, adverso
da direita e do envez,
em ser ruim e perverso
da cabeça até aos pés.
23
Do qual ousei affirmar,
a um seu (ninguem se espante)
pardelhos e calcanhar
são mores que por diante.[30]
24
São de ladrão calcanhares,
dizem todos a uma voz,
faz com ratos nos altares
mais lavoura que na foz.
25
Té quando, pois, durará,
Senhor, tão cruel engano,
sortido em tanto damno,
trinta e tres annos ha!
26
Ponhamos em termos isto,
vejamos quem tem razão,
seja juiz Jesus Christo
em quem não ha suspeição.
27
Vossa alteza que achou
n'este homem feito empelado,
que assim se apoderou
de si e do seu estado?
28
Entregues á sua vontade
d'onde dependem as leis,
tudo podem dar os reis,
salvo sua liberdade.[31]
29
Este, tudo tem de vós,
com que se fez soberano,
ingrato, cruel tyranno,
a Deus, a vós e a nós.
30
Este, a mais sobre todos,
este credes desde a...[2]
este tem comvosco os modos
de D. Alvaro de Luna.
31
Senhor, que engano é este?
como não fugis d'este homem
de que tantos outros morrem
por ser o seu mal de peste?
32
Que só dous, tres dias, dura
qualquer outro em vossa graça,
logo de vós a rechaça
sua levação[3] sem cura.
33
Não podem ser todos maus;
elle só é virtuoso,
sendo, á fé, falso raposo
todo cheio de desvaus(?).[32]
34
Faz quanto se lhe antoja;
e diz, quando adoece:
«Quem me visita, me enoja,
Quem o não faz me aborrece.»
35
Olhai lá pelo virote!
Amaes-lhe os cabellinhos?
Criai-lhe bem os filhinhos,
governai por este norte.
36
Em qualquer outra pessoa
passára isto por graça;
que quem não tem cousa sua,
ponha os seus bofes na praça.
37
Malditos sejam os pais
que geraram tão má cousa,
de que todos dão mil ais,
e nenhum fallar não ousa!
38
Por terem reconhecido
ser de vós apoderado,
como Deus é adorado,
como o diabo é temido.[33]
39
Dai ao demo este diabo,
dai este diabo ao demo!
Não é bom, não vol-o gabo,
de governalho e de remo.
40
Não se lhe sabe virtude,
não viu leão nem pelejou,
nem mortos resuscitou,
dos vivos tolhe a saude.
41
Pois que milagres são estes,
que siso, que discrição,
pois que assim lhe concedestes
o da vossa jurisdicção?
42
Se elle fôra sisudo
e discreto em seus modos,
não governára elle tudo,
e mais com dolo de todos.
43
É da gloriosa lei,
que a todos nós ensina,
imigo, e de Deus e Rei
ante quem todos malsina.[34]
44
Se vos tem amor ou não,
não é texto de Hipocrás;
as obras vol-o dirão,
não cureis dos seus salás[4]
45
que são figuras, e basta,
villãs reverenciaduras
com que vos caçou e arrasta
por nossas desaventuras.
46
Que o criado verdadeiro
que tem verdadeiro amor,
mais que o seu, e primeiro,
sente o mal de seu senhor.
47
Nos conselhos, vossa alteza
em elle sómente crê;
sendo tudo na grandeza
da perdição que se vê.
48
Por seu conselho casou
a princeza em Castella[5];
vêde como Deus livrou
este vosso reino d'ella.[35]
49
Por seu conselho deixastes
quatro lugares aos mouros[6];
verdade é que poupastes
com isso grandes thesouros.
50
Mas por seu procurador
poz Deus boas contraditas,
que não fizessem mesquitas
nos templos do Salvador.
51
Ao duque poz suspeição;
que sempre em tudo procede
por ser parente d'Abrahão
e tambem de Mafamede.
52
Que como homem antigo
parece que lhe sabia
a sua genealogia,
que é esta que aqui digo:
53
Mestre João sacerdote,
de Barcellos natural,
houve de uma moura tal
um filho de boa sorte.[36]
54
Pero Esteves se chamou,
honradamente vivia,
por amores se casou
com uma formosa judia.
55
D'este (pois nada se esconde)
nasceu Maria Pinheira,
mãi da mãi d'aquelle conde,
e sua avó verdadeira[7].
56
Vêde se era bem provada
esta sua suspeição;
mas não aproveita já nada
onde sobeja a affeição.
57
E com juiz tão suspeito,
mal inclinado, teimoso,
desalmado, cubiçoso,
todos perdem seu direito.
58
Farto trabalho receio
lhe faz tal sentença dar:
christão e sisudo meio
para o meu aproveitar.[37]
59
Antepor a Deus fazenda
receio, e maior trabalho;
nunca já será atalho
mas rodeio sem emenda.
60
Veja isto vossa alteza
nas cousas que tal causaram,
pois que todas se dobraram
e muito mais a pobreza
61
E como, para poupar
gastos, se faz a tal obra,
Ai! da nação que sossobra,
e dobra-se o individar.
62
Em os taes conselhos vãos
verá o mais a que veio;
nascerão mil de um receio
de mouros aos bons christãos.
63
O trabalho era d'além
em meritoria guerra;
agora, a além e áquem,
em todo o mar e na terra.[38]
64
Vós, senhor, não tenhaes
pouca culpa n'este feito;
peço-vos tudo gemaes
sempre dentro em vosso peito.
O author da satyra era o proprio Damião de Goes, que ajuntára a copia ao seu nobiliario; e o portador d'ella a D. João III fôra um familiar do conde da Portella, inimigo do conde da Castanheira. Assim m'o assevera o padre D. Manoel Caetano de Sousa, aquelle doutissimo theatino, cujas 289 obras em varias linguas catalogou o conde da Ericeira, no livro intitulado Bibliotheca Sousana[8].
Entre os manuscriptos que tenho do insigne academico está a satyra copiada com mais razoavel orthographia da que Damião de Goes interpozera na genealogia do conde da Castanheira.
Formosa, lhe chama elle. A mim me não quiz parecer cousa para mediana admiração. A escóla de Sá de Miranda não póde gabar-se de mui notavel alumno no engenho de Damião de Goes; todavia, mais como documento historico,[39] e pouquissimo como modelo de poesia, a considero dignissima da publicidade.
O esclarecido possuidor da satyra invectiva contra Damião de Goes alcunhando-o de detrahidor de alheios creditos. Eis a textual exprobração do clerigo:
Tudo isto continha aquella formosa satyra de que se não sabem mais que as coplas 53, 54 e 55, as quaes malicia e inveja encommendaram mais á memoria por encerrarem em si falta que se transfunde na posteridade quando não é tão falsamente imposta como n'este caso. Cheias andam as Memorias dos genealogicos de argumentos que convencem de falta aquella impostura; aos quaes eu só acrescento que não quero maior prova de sua falsidade do que vêr aquellas coplas, entre tantas tão maledicas, que dizem de um só homem, e tão grande como aquelle conde foi, tantos defeitos que não cabem em tantos homens vis e facinorosos; e vêr que nas coplas 9, 10 e 11, quer o author com pouco respeito ás divinas escripturas attribuir a impulsos do Espirito Divino os que só são effeitos do espirito maligno que sem duvida levaria comsigo ao inferno o author das coplas, se elle antes de morrer se não desdissesse como se affirma que desdisse. E Deus que é summamente justo quer que aquelle mesmo conde, cuja descendencia, n'esta satyra, se emprehendeu[40] infamar, tivesse uma mui esclarecida descendencia, cheia de varões insignes em santidade, letras, armas, dignidades ecclesiasticas e seculares as maiores que se podem conseguir em Portugal, como sabem os que tem menos que mediana noticia das familias d'este reino, na qual sempre os mais sisudos tiveram estas coplas por falsidade[9].
Damião de Goes, em favores ou desfavores genealogicos, não era extremamente consciencioso. Quando recolheu das suas illustradas viagens, procurou Antonio Carneiro, secretario de estado d'el-rei D. João III, e entregou-lhe um papel em que demonstrava que a sua familia d'elle secretario descendia do duque de Mouton, de França, que aportuguezado dizia «Carneiro». O ministro sorriu-se de zombaria á destampada lisonja, lançou o papel, sem o abrir, ao brazido de uma chaminé, e disse a Damião de Goes:—«Contento-me com que os meus descendentes contem como[41] progenitora a honra com que procuro viver sendo util ao rei e á patria.»
Antonio Carneiro bem sabia que não procedia dos Moutons. Era natural do Porto, e de familia honrada. Foi a Lisboa por dependencia que tinha de Pedro Fernandes de Alcaçova, escrivão da fazenda d'el-rei D. João II. Pedro Fernandes tanto se lhe affeiçoou que, além do prompto despacho, o convidou a ficar na côrte, empregando-o no expediente do seu officio. Como Antonio Carneiro fosse o encarregado de levar a despacho real o sacco dos papeis, n'estas idas ao paço, deu trela ao coração, e requestou D. Brites de Alcaçova, filha do seu protector, e dama da rainha. Casou-se com ella a furto; mas, publicado o delicto, foram ambos degredados para a ilha do Principe. Decorridos annos, as reiteradas supplicas da desterrada commiseraram o coração do pai. Veio Antonio Carneiro para o reino com sua mulher, e logo se habilitou para secretario do despacho universal de D. Manoel, revelando-se politico sagacissimo. Semelhantes honras lhe concedeu D. João III, e com ellas o senhorio da ilha do Principe, onde havia gemido degredado e pobre. Morreu aos 86 annos de idade, deixando larga descendencia.
Se leram Damião de Goes, e a Inquirição de Portugal, estudo biographico de Lopes de Mendonça, ou sequer a summariada noticia[42] que escreveu o snr. Innocencio Francisco da Silva, sabem que o adversario do conde da Castanheira, denunciado pelo padre Simão Rodrigues, foi preso como lutherano nos carceres da inquisição, d'onde o mandaram penitenciar-se em reclusão austera no mosteiro da Batalha.
Concluido o prazo da expiação, quando já orçava pelos setenta annos, transferiu-se a sua casa.
Um dia—diz o snr. Innocencio, atido ao testemunho de memorias contemporaneas—o velho chronista d'el-rei D. Manoel foi encontrado morto, quer de accidente apopletico, quer assassinado por domesticos ou estranhos.
D. Manoel Caetano de Sousa refere que a maledicencia heraldica de Damião de Goes não despontára com a velhice, antes se afiára mais na pedra do rancor aos que elle suspeitava seus inimigos. O segundo conde da Castanheira, desforrando-se dos velhos e renovados ultrajes a Maria Pinheira, mandou criados seus moêrem com saccos de arêa o ancião no pateo de sua mesma casa; e de modo se houveram, que Damião de Goes apenas teve forças que o arrastassem á cama, onde se desprendeu da vida, e mormente da lingua que tantos trabalhos lhe custára.
Esta relação do theatino Sousa encontrei eu confirmada em um Nobiliario de Pinheiros,[43] que pertence ao meu joven e illustrado amigo Vicente Pinheiro de Mello e Almada, filho do primeiro visconde de Pindella, e tambem descendente de D. Maria Pinheira.
Concluo rogando aos barões do meu conhecimento que me não façam moêr com saccos de arêa, se eu alguma vez lhes lembrar a tripeça dos avós. Eu lhes asseguro que, em suppostos casos, levo mais em vista nobilital-os que envilecêl-os pelo honrado trabalho de seus avoengos. Ainda assim, não está no meu animo—diga-se verdade—comparar ss. exc.as aos condes da Castanheira, nem confrontar-me a mim com Damião de Goes. Todos nós somos mais ou menos sapateiros nos baronatos e nas sciencias.
[1] Principia a desancar o valído.
[2] Palavra inintelligivel.
[3] Tumor.
[4] Zumbaias.
[5] D. Isabel. Casou com o imperador Carlos V, em 1525.
[6] Safi e Azamor foram abandonadas á mourisma em 1524. Em seguida, perdemos Arzilla.
[7] Que é conde da Castanheira, variante de Diogo de Paiva.
[8] D. Manoel Caetano de Sousa nasceu em 1658, e falleceu em 1734.
[9] A casa da Castanheira passou ao segundo marquez de Cascaes por herança de sua prima D. Anna d'Athayde, ultima condessa da Castanheira, fallecida no meiado do seculo XVII. Na casa de Cascaes succedeu a de Niza. E em ambas succederam o defunto snr. José Maria Eugenio e outros que medraram quando a casca do mundo antigo se poz do envez, e as heras absorveram a seiva dos troncos.
Em novembro de 1873 chegou a Braga uma senhora, que as suas criadas negras e o seu escudeiro inglez chamavam baroneza.
Vi-a no Hotel dos dous amigos. Figurava trinta annos, ou pouco mais. Feições fortes, duras; mas bonitas d'esta belleza rija das camponezas da Maia. Garbosa sem delicadeza[44] nem a flexura da casta flebil e fina. Mulher a valer. Era o ideal de um morgado de Cabeceiras de Basto, que vestisse o seu ideal com os musculos e feitios da mulher menos corpulenta que a femea do elephante.
Entendi-me com o escudeiro inglez, ácerca de sua ama.
Viera do Brazil em agosto d'aquelle anno. Era viuva do barão de... Ipiranga—supponha-se que era de Ipiranga; mas não era. Quanto mais verdadeiros são os contos, mais forçosa e urbana é a mentira.
—É portugueza ou brazileira?—perguntei ao inglez.
—É portugueza.
—Que faz em Braga esta senhora? veio vêr o Bom-Jesus do Monte?
—Não, senhor. Anda a procurar a mãi; disse-m'o a sua criada grave.
—A procurar a mãi em Braga?! Como foi isso? Perdeu-se aqui a mãi, ou...
—Não sei como foi—volveu o escudeiro.
N'este comenos, entrou no hotel um meu amigo, que foi conduzido á sala, onde a baroneza tocava piano melancolicamente. Deteve-se algum tempo. Esperei-o, e perguntei-lhe que romance era aquella mulher.
—Um romance, com toda a certeza.
—É certo que esta baroneza procura a mãi?
—É, e encontrou-a.[45]
—Então...—acudi eu tão incommodado com a escuridade d'aquelle caso como se me faltassem ao respeito, não m'o communicando previamente e em quatro palavras.—Então como é isso? A mãi quem é? onde estava a mãi? como se perdeu a mãi? como se encontrou a mãi?...
—Se a tua impaciencia consente, conversaremos de espaço—objectou o meu amigo;—mas peço á tua sofrega curiosidade que se contenha até á noite. Vou d'aqui ao recolhimento da Tamanca procurar um velha chamada Anna de Jesus, que é mãi d'esta baroneza. Já sabes quem é a mãi, onde está a mãi, como se encontrou a mãi. Depois te direi como se perdeu...
—A dita mãi? Pois até logo. Confio em ti.
*
* *
Reduz-se a poucas linhas tudo que o sujeito me disse. A baroneza nascera em uma aldeia, visinha do Porto, á beira-mar, chamada Nevogilde. Seu pai era official-calafate; sua mãi era filha de um agricultor remediado. Os paes amaram-se, e propagaram extra-matrimonium, como diz o snr. professor e historiador Viale, quando dá noticia dos filhos bastardos dos reis. O artista safou-se para o Brazil. A menina ficou com sua mãi, que a teve comsigo[46] até aos quatro annos, vestindo-a e alimentando-a com aceio e abundancia, em quanto lhe durou o producto de uns grossos cordões de ouro, que herdára d'uma parenta. Seus paes expulsaram-na de casa, e obrigaram-na a esconder-se com o escandalo da filha em outra aldeia proxima de Leça.
Quando se lhe exhauriram os recursos, Anna de Jesus foi servir para o Porto, deixando Amelia aos cuidados de uma gente pobre, a quem entregava mensalmente os seus salarios; porém, como não bastassem á alimentação da filha, resolveu entregal-a aos parentes do pai, que eram proprietarios em Mathosinhos.
Isto dizia a baroneza que lh'o referira o marido; mas não sabia contar como a levaram de Leça para o Pará, quando tinha seis annos. Lembrava-se de ter sido apertada nos braços de um homem, que fôra a bordo, e lhe chamára filha; que esse homem a levára para um collegio allemão, d'onde nunca mais sahira, senão aos dezoito annos para casar com um negociante rico, pardo e velho, que, ao depois, se fez barão.
Acrescentava que via seu pai no dia 1 de cada mez e que nunca lhe perguntára por sua mãi. E, por lh'o referir o marido, soubera que seu pai a não levava a casa, porque era marido de uma riquissima mulata, velha e doente,[47] de quem esperava herdar tudo, a não intervir entre elles algum caso que irritasse o genio ferocissimo da esposa. Mais dizia a baroneza que a mulata acabou os seus dias antes de acabar a paciencia do marido, e o instituira herdeiro; mas, como lhe tinha empeçonhado o sangue, pouco lhe sobrevivera o viuvo. D'onde resultou ficar Amelia opulenta herdeira, sob a tutela do paraense que a fez sua mulher. Concluiu, finalmente, a baroneza, mostrando ao meu amigo de Braga dous numeros do Periodico dos Pobres, do Porto, de agosto de 1845, os quaes ella encontrára nas gavetas de seu pai, e d'onde inferira o pouco que sabia do seu nascimento, e se lhe afervorára o filial desejo de procurar sua mãi, e afortunar-lhe os ultimos annos, se ella, por ventura de ambas, existisse.
Mostrou-me o meu amigo os dous numeros do Periodico dos Pobres, que diziam assim:
«MENINA PERDIDA.—No dia 31 de julho pelas 8 horas da noite appareceu batendo a uma porta na rua de Sant'Anna, freguesia de Mathosinhos, uma linda menina, de idade de 4 annos, branca, bem nutrida, cabello louro liso, com uma trança de perto de um palmo, olhos grandes azues, vestido curto de cassa riscada de vermelho, guarnecido de trancelim; calça de paninho branco com dous[48] entremeios de renda; saia de paninho, e outra de baeta de algodão; collete de atacador de linho; chapéo de papelão coberto de sêda verde; sapatos de duraque cinzento acoturnados com botões ao lado, meia comprida de linha, ligas de fitas de nastro cosidas nas meias;—diz chamar-se Amelia, e que a mãi se chamava Anninhas, a qual vivia com um snr. Antonio. Esta criança foi vista ás 6 horas da tarde na estrada de Mathosinhos na companhia d'uma mulher de mantilha e vestida de preto, e um individuo de pouca idade vestido de calça e jaqueta azul e boné.
«Estes individuos haviam convidado uma mulher para levar a criança ao collo até Mathosinhos; como elles fossem ficando muito para traz, dando a entender desejarem livrar-se da criança, a mulher desconfiou d'alguma cilada, e os obrigou a tomarem conta da criança. Convidaram então um rapaz a quem prometteram 50 reis, o qual a levou ao collo, até que, vendo-se de repente abandonado dos ditos individuos, a deixou no lugar indicado e fugiu. A criança diz que a sua casa é perto do rio; que continuadamente via barcos; que ia aos banhos com a mãi; que fugia para a ponte do rio; e que o snr. Antonio ralhava; que brincava com outra menina que morava no andar de baixo, chamada Julia, a qual tinha bonecos para brincar, etc. Suppõe-se que tinha[49] sido furtada a seus paes, ou por elles abandonada, e por isso se publica este facto para conhecimento de quem pertencer; a criança está em poder do actual administrador do concelho de Bouças em Mathosinhos.»
Até aqui o numero de 3 de agosto. Segue o numero de 6:
«No dia immediato áquelle em que a menina foi encontrada, achou-se atraz da parede n'um campo uma trouxa de roupa de criança, e uma carta; foi tudo apresentado ao administrador do concelho, que pelo seu conteúdo descobriu a historia d'aquelle acontecimento, os nomes dos paes e parentes, etc. Era remettida pela mãi aos parentes do pai, por este se achar ausente no Brazil, e pela falta de meios que ella tem para se sustentar, acrescendo achar-se enferma. Parece que os parentes a não quizeram receber, e que o rapaz que a conduzia, voltando ao lugar da estrada de Mathosinhos d'onde havia deixado os individuos que lh'a haviam entregado, não os encontrou, e, temendo comprometter-se, a lançou n'um campo com a trouxa e fugiu.
«O administrador do concelho obrigou a familia do pai, residente em Leça, a tomar conta d'ella, o que teve lugar no dia 3 do corrente á noite, em quanto se não descobre onde[50] pára a mãi para se verificar até que ponto sejam verdadeiros os factos de que se faz menção n'aquella carta. Varias pessoas teem querido tomar conta da menina; porém isto não tem podido ter lugar em vista do que fica exposto, e porque os parentes do pai estão em circumstancias de podêl-a sustentar.
«Consta ultimamente que a mãi fôra para Braga, chama-se Anna de Jesus Lima, tem sido criada de servir em algumas casas d'esta cidade.»
Na margem do jornal, onde está escripto: «diz chamar-se Amelia, e que a mãi se chamava Anninhas, a qual vivia com um snr. Antonio»—o pai da baroneza, sublinhando o nome appellativo Antonio, escrevera umas palavras que estavam cancelladas e inintelligiveis. O mesmo succedia mais abaixo, no ponto em que se diz: «que fugia para a ponte do rio, e que o snr. Antonio ralhava.» Parece que este «Antonio», commentado á margem, explicava o silencio do marido da mulata a respeito da mãi de Amelia. Eu não sei nada positivo a tal respeito, nem formei ainda opinião com que possa alumiar a vereda de ulteriores pesquizas.[51]
*
* *
O que sei é que no recolhimento da Tamanca existia, desde 1855, Anna de Jesus, como criada de uma velha fidalga que para alli entrára em 1834, obrigada pela moral que a condemnára a expiar na clausura uns amores de gran vilta para seus avós. Sei mais que Anna de Jesus sahiu do convento sem verdadeiramente saber a razão porque sahia, pois lhe disseram que ia tratar com os seus parentes a restituição da legitima que lhe haviam extorquido. Que foi recebida no quarto da baroneza para quem olhou com respeitoso assombro vendo-a coberta de velludo e pelliças de varios feitios. E que, ao vêr-se abraçada por aquella senhora, rodeada de pretas, e lhe ouvira pronunciar a palavra mãi, perdera os sentidos, e os recobrára, dizendo extravagancias. Finalmente, como a felicidade não faz endoudecer ninguem—para se não parecer com a desgraça—Anna de Jesus, remoçada, alegre até ás lagrimas, e a cuidar sempre que a sua vida era um sonho, foi para o Pará com sua filha, tão angelica, tão santa que lhe perdoou o desamparal-a do seu amor de mãi, por onde lhe adveio o acaso mais amparador da riqueza, que somma 1:000 contos, 500 da mulata do pai, e 500 do marido mulato.
E mais nada.[52]
Cypriano, Ciprião ou Scipião. O leitor conhece o valente governador da ilha Terceira, o portuguez intransigente com Castella, o partidario inflexivel de D. Antonio, prior do Crato, que reinou uma hora em Santarem, outra hora em Setubal, a derradeira hora entre a plebe de Lisboa. Onde elle reinou deveras foi no coração e na consciencia dos seus raros amigos.
Os historiadores portuguezes chamam Cypriano ao heroe dos Açores; os francezes chamam-lhe Scipião, nobilitando-o, por analogia do nome e dos feitos, com o general romano. Nas Provas da Historia genealogica da casa real leio Ciprião. Elle mesmo a si se chamava Scipião, para não desfazer no glorioso nome que Henrique IV lhe dava, e Philippe II tambem, como ironia ou como lisonja[10].
Procedia de estirpe illustre, não tanto como[53] diz uma neta de seu irmão Sebastião Gomes de Figueiredo. Esta neta é mad. Gillot de Sainctonge, que, em 1696, publicou a Histoire secrete de Dom Antoine Roy de Portugal, tirée des memoires de Dom Gomes Vasconcellos de Figueiredo. Engrandece a poetiza franceza a prosapia de sua mãi com a costumada ignorancia dos francezes quando entendem comnosco. Diz que Jean, fils de Pierre, le Justicier, roy de Portugal, épousa Marie fille de Martin Alfonse Tello, & d'Aldonze de Vasconcellos sœur de la reine Eleonor, femme de Ferdinand.
Que mixtiforio ahi vai!
Se Aldonsa (ou Dulce) de Vasconcellos podesse ser irmã de Leonor Telles, nem assim Scipião de Figueiredo procederia, por Vasconcellos, d'essa linhagem.
O pai de Scipião era de Alcochete. Chamou-se Sebastião Gomes de Figueiredo: casou com D. Antonia Fernandes de Vasconcellos, filha do bispo de Lamego, D. Fernando de Menezes, que morreu arcebispo de Lisboa, e dotou a filha com o prazo de Velloso, doação riquissima em direitos reaes.
Teve cinco filhos o genro do bispo. O primogenito, Duardos de Figueiredo, era representado em 1716 por Nicolau de Tovar e Vasconcellos, sargento-mór de batalha. O segundo, Scipião, doutorou-se em direito canonico[54] imperial, e foi mandado governar a ilha Terceira, não por D. Antonio, como diz o historiador Rebello da Silva[11], mas por D. Sebastião, como diz o proprio prior do Crato na carta latina ao papa Gregorio XIII, em 1583. Teve um filho illegitimo, que se chamou Constantino. O prior do Crato inscreve-o no rol dos amigos que o seguiram no desterro. Ignoro o destino do filho de Scipião. Os outros irmãos do governador da Terceira chamaram-se Ruy, que ficou no reino bem aconchavado com os Philippes; D. Brites, que casou com um Ribeiro Soares; e Sebastião, de quem darei ampla noticia, avô de mad. de Sainctonge, ou Sainct'Onge, como se escreve modernamente.
A porção mais estafadora d'este escripto conclue aqui.
*
* *
Quando chegou á Terceira a noticia da acclamação do prior do Crato, Scipião proclamou-o rei,[55] sem lhe discutir a illegitimidade.
Era portuguez D. Antonio? Era. Logo era legitimo como D. João I, o filho de Thereza Lourenço.
Rei castelhano é que elle não queria. Morrer na defeza da sepultura não pisada pelo sapato ferrado do hespanhol—cahir em terra ensanguentada, mas portugueza—valia tanto como um triumpho para o faccionario do filho da Pelicana.
A onça de Castella afrontára o leão na sua caverna. Elle surgiu fóra, e espedaçou-a. A ilha Terceira era inexpugnavel com tal caudilho na vanguarda de alguns bravos fanatisados pelo heroismo de seu chefe, e talvez atemorisados pelo terror das suas cruezas com os partidarios de Hespanha.
Philippe II, em outubro de 1581, mezes depois que D. Pedro Valdez voltára derrotado dos Açores, tentou pela segunda vez a fidelidade de Scipião de Figueiredo, enviando de Lisboa á ilha Terceira Gaspar Homem com uma carta de seu proprio punho. Na brandura das insidiosas expressões, reçumbra o aviltamento a que descia o parricida castelhano para haver á mão o unico baluarte de D. Antonio. Calcule-se com que rancoroso disfarce Philippe II não offereceria perdão e mercês ao indomito governador, que apenas lhe deixára[56] vivos cincoenta soldados, e nem um só dos officiaes aguerridos como D. Diogo Valdez e D. Luiz de Baçan.
Dizia assim a carta de Philippe[12]:
Doutor Scipião de Figueiredo, eu el-rei vos[57] envio saudar. Não podendo deixar de crêr de vós que cumprireis com a obrigação que tendes a meu serviço, e ao bem d'essa ilha, e ao que particularmente vos toca, me parece encommendar-vos isto mesmo que de vós confio, que fazendo-vos assim como é de crêr, não sómente vos perdôo as culpas passadas, mas que folgarei de vos fazer mercê quanto serviço que de vós n'isto espero, para que se escusem os grandes damnos d'essa ilha, e dos moradores d'ella, e seu povo; indo sobre ella o apercebimento que tenho mandado fazer de gente, navios e munições, como tudo largamente vos dirá quem vos esta minha carta dará.—Escripta em Lisboa a 14 de outubro de 1581.
O governador respondeu com alguma intermissão de tempo:
Vi a carta que V. M. me mandou por Gaspar Homem, na qual me dizeis que não podeis deixar de crêr de mim que cumprirei com a obrigação que tenho a vosso serviço, ao bem d'esta ilha, e ao que particularmente me toca. Prouvera a Deus que tivera V. M. lembrança da em que estaes aos reis de Portugal, e principalmente ao serenissimo infante D. Luiz, que com seus vassallos e pessoa sempre em guerras ajudou ao imperador vosso pai; porque nem as fizereis contra o reino levantado com el-rei D. Antonio seu filho, offendendo tanto a Deus Nosso Senhor nos estragos de honras, vidas e fazendas,[58] que causastes no meu, e nem os portuguezes verdadeiros seus vassallos deixariamos de vos servir como a rei christão, e a quem sempre amou a nação portugueza, mas como V. M. se esqueceu de tão devida razão, e da do sangue pelo muito parentesco que tendes com os reis de Portugal, nem a V. M. lhe cabe querer que eu o sirva, como vassallo, nem a mim convém obedecer como subdito. Esta ilha, e moradores d'ella são de el-rei D. Antonio a quem juraram por seu rei e natural senhor, assim pela successão do reino lhe pertencer, e o povo d'ella o ter eleito, como por a cidade, e camara de Lisboa isso escrever. As razões e justiça que para isso havia não posso eu crêr que V. M. não as tenha muitas vezes passadas pela memoria; e ainda que outras não houvera mais que a eleição do povo que n'este reino por muitos actos tem direito de nomear rei (faltando descendentes adquiridos) bastára entrar V. M. n'elle com mão armada, estando em litigio, para ainda que tivereis muita justiça perderdes todo o vosso direito; mas em Deus confio que tudo ha de tornar ao estado, que nem V. M. por occupar o alheio perca sua alma, nem o que está por ora usurpado deixe de vir ao poder do seu dono. Não me tenha V. M. por atrevido, mas julgue-me por desinteressado; e prouvera a Deus que os reis tiveram homens livres, e pouco ambiciosos em seus conselhos;[59] porque nem el-rei D. Antonio chegára aos termos que o pozeram tamanhas traições, nem V. M. a perigo de perder o seu, e pôr em risco toda a christandade. Coitado d'aquelle que ha de dar conta no final juizo das honras, mortes, fazendas de tantos, da liberdade, e gosto da vida; porque para quem se perdeu não haverá arrependimento que baste em satisfação, por se lhe acabar o tempo. Se V. M. bem cuidar na hora da morte que vos espera, e quantos males n'ella se vos hão de representar, e as penas que, pelo que tendes em Portugal feito eternamente haveis de ter, e justamente haveis de padecer, lembrando-vos quão perto estaes de se vos acabar tudo, ah! como dareis uma volta tão grande ao passado porque tudo se vos ha então de ser presente! Quanto melhor vos fôra estar em vossos reinos pacifico, vossos vassallos quietos, amado de todos os reis christãos, e servido de todos os seus, que com o que tendes feito em Portugal! não sómente os christãos, mas todas as nações infieis vos terão intrinseco odio. Cuidai quantos innocentes matastes com o vosso exercito: cuidai nas honras das viuvas, e donzellas roubadas, e nos gemidos que ante a divina justiça estão pedindo vingança de vós. Lembre-vos quantas casadas ao adulterio forçadas são apostatadas! os templos de Deus que profanaram, as religiosas que deshonraram, a servidão em que pozestes os moradores de Portugal, e finalmente[60] tudo o que n'elle causastes que Deus tem tomado á sua conta, e toma-vol-a com rigorosa justiça; como por um reino que mais que todos do mundo nobilitou dando-lhe as suas sagradas chagas, com que nos redimiu, por armas, que foi signal e penhor de nunca o desamparar. As cousas que padecem os moradores d'esse affligido reino, bastavam para vos desenganar, que os que estão fóra d'esse pesado jugo quereriam antes morrer livres, que em paz sujeitos. Nem eu darei aos moradores d'esta ilha outro conselho, porque não perca minha alma, nem minha honra, que trocarei quantas vidas tivera, e pudera possuir por morrer leal a meu rei que jurei, porque um morrer bem é viver perpetuamente; d'aqui me vem ter mais conta com perseverar até o fim da vida n'esta lealdade, que temer os vossos apercebimentos de gente, navios, e munições com que V. M. na sua me ameaça; porque confiando em Deus que peleja por nós, para os navios está o mar, e portos d'esta ilha apparelhados, para as munições as fortalezas e trincheiras e muitos poços para metter n'elles toda gente que nos vier buscar, a quem se não perdoará, pelos males que resultam de perdões. Não me ponha V. M. culpa, por que jurei a D. Antonio por meu rei e senhor, e de defender esta corôa; que tambem fizera o mesmo por vós se vos tivera jurado (posto que não com tanto gosto) porque basta ser rei portuguez:[61] e, se a desventura me chegasse a estado que ficasse com vida sujeito, e, por fazer o que devo, me mandassem matar, perdendo a vida pelo senhor rei D. Antonio, então a ganhava, e tambem não perderia a memoria de minha lealdade, nem se perderia a fama da vossa crueza, e sem justiça. Eu não sirvo a el-rei D. Antonio por interesse (posto que d'elle se podiam esperar maiores mercês que de nenhum outro rei) mas sirvo com a pureza de minha obrigação de que resulta não me moverem mercês promettidas, que foi o laço em que cahiu Portugal; porque fóra do que devo nenhuma cousa me poderá mover a troco de vender a honra, e lealdade que não tem preço nem ha nenhum que eu tanto estime; lição que a muitos fidalgos esqueceu. Nosso Senhor leve a V. M. para o seu reino e restitua o de Portugal ao seu amado rei o snr. D. Antonio como os verdadeiros e leaes portuguezes desejamos.
D'esta muito nobre, e sempre leal cidade de Angra, ilha Terceira de Jesus Christo.
SCIPIÃO DE FIGUEIREDO DE VASCONCELLOS,
governador da ilha dos Açores.
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Este lance de patriotismo não impediu que a fidelidade de Scipião fosse suspeita a D. Antonio, por insinuações de perfidos, se é bem[62] provada a seguinte pagina de Rebello da Silva:
«Os detractores não descançavam, porém, e a fim de offuscarem o animo do prior reproduziam as accusações, asseverando que Figueiredo principiava a vacillar, pintando-o inclinado aos jesuitas, contrafeito na lealdade, e disposto a restituir a liberdade aos presos politicos. Concluiam, por fim, que o corregedor se entendia secretamente com os castelhanos. D. Antonio, se não deu inteiro credito a estas vozes, tambem não cortou, como devia, os enredos pela raiz, e chamando Cypriano de Figueiredo para seu lado, feriu nos brios e no conceito o homem que acabava de lhe conservar a Terceira. Desconfiado e voluvel, facil em esquecer os serviços, mas lembrado e resentido dos aggravos, justificou mesmo na desgraça em varios lances a nota de ingrato. Na pequena côrte de proscriptos, que o rodeava, só Diogo Botelho, alma de todos os conselhos, viveu exceptuado da desattenção com que feriu os portuguezes, que tinham sacrificado patria, bens e posição para o seguir. Faltou-lhe sempre a magnanimidade, realce do infortunio, porque tanto engrandece na prosperidade, como serve de quilate e de timbre na desgraça aos caracteres heroicos.
«Abrindo os ouvidos ás queixas contra Figueiredo, e preferindo para o substituir no[63] governo da ilha a Miguel da Silva, nomeado conde de Torres-Vedras, o pretensor, punido pela má escolha, praticou uma acção injusta, e commetteu um grande erro. As honras vãs, de que assim mesmo se não mostrou prodigo com Cypriano de Figueiredo, na idéa de lhe adoçar o que havia de cruel e de iniquo n'este golpe, não apagaram de certo no peito do honrado cavalleiro a nodoa de se vêr immolado á calumnia. Offendido na lealdade, e quasi injuriado publicamente pelo triumpho concedido aos adversarios, Figueiredo calou a affronta, e veio encerrar junto do principe, no desterro, a carreira, que abrira, abraçando uma causa vencida, e rejeitando as promessas de Philippe II, insinuadas pelo principe de Eboly[13].»
Descreio que D. Antonio escutasse as intrigas, e afrouxasse na confiança do seu validissimo amigo. Na carta latina que escreveu a Gregorio XIII, em 1583, avalia d'esta maneira o defensor da Terceira: «... entre outros, está o egregio doutor em direito canonico imperial, integerrimo governador, em nome de el-rei D. Sebastião nas ilhas Terceiras; do qual, incorrupto a promessas e lisonjas para que entregasse as praças que lhe haviam sido confiadas, confiscou-lhe os bens como costuma, apossou-se d'elles;[64] e, sem embargo este constantissimo fidalgo manteve o povo em sua fé e promessa e deveres, foi quem primeiro, n'estes nossos tempos, domou os castelhanos com gloriosa victoria, e grangeou nome de capitão e fidelissimo governador e tal soldado se mostrou aos inimigos que muito é reluzam n'elle a um tempo esplendor de letras e grandeza militar.
Acresce que Scipião de Figueiredo é, juntamente com Diogo Botelho, testamenteiro de D. Antonio, e mais que todos os seus amigos, recommendado á gratidão de seus filhos. O testemunho de Sebastião de Figueiredo, irmão do valente defensor da Terceira, insurge-se tambem contra a calumnia, nas memorias que sua neta, mad. de Sainctonge publicou: Dom Antoine qui croioit qu'il ne donneroit pas peu d'affaire a Philippe, s'il conservait ses Isles, ne pouvait se lasser de louer le courage de Scipion; il avait une si forte passion de le voir, qu'il eut l'imprudence de lui écrire de le venir trouver, pour se rejuir avec lui de sa victoire, et de laisser le soin de son gouvernement à Manuel da Silva qu'il lui envoyoit qui etoit une personne de confiance. Voila ce qui fit croire à ceux qui ne jugent des choses que par les aparances que Dom Antoine se défioit de lui...[14].[65]
Se é aceitavel o testemunho dos contemporaneos, alliviemos a memoria do prior do Crato d'esse imputado crime de ingratidão ao homem que deixou, na carta a Philippe, o mais energico testemunho de patriotismo, n'aquella vergonhosa conjunctura em que tantissimos fidalgos chatinaram a consciencia.
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Scipião de Figueiredo assistiu, em 1595, ao trespasse do quasi mendigo D. Antonio. Pobremente viviam todos os amigos que o rodeavam. A pensão que Henrique IV lhe esmolava deprehende-se qual seria da mobilia do prior do Crato, inventariada por sua morte[15]. Essa mesquinha pensão continuou-a o rei em beneficio dos filhos e amigos de D. Antonio, consoante a carta, enviada de Lião, a Scipião de Figueiredo:
Seigneur Scipion de Figueredo, j'ay porté le regret que je devois de la mort de mon feu cousin le roi de Portugal, pour la perte que j'ay faite d'un bon amy, et je seray toûjours aussi prompt á faire paraitre á l'endroit de ses serviteurs, la bonne volonté que je lui portois;[66] comme j'ay de déplaisir et de compassion de vôtre infortune; j'ay apris par vos lettres, quil vous a fait executeur de son testament, avec le sieur de Diogo Botheillo, il ne pouvoit faire un meilleur choix, car je m'asseure que vous vous acquiterez fidellement de ses dernieres volontez.
J'écris á ceux de mon conseil des finances, de payer ce qui étoit du de la pension du dit roy, jusqu'à la fin de la presente année, dans lequel tems étant sur les lieux, je réglerai et ordenneray ce que je pourray faire à l'avenir pour mon cousin Dom Christolphe son flls, et auray à plaisir de gratifier tous ceux de sa famille en ce qui me sera possible, et vous en particulier, aux occasions qui se presenteront, priant Dieu, seigneur Scipion de Figueredo, qu'il vous ait en sa sainte et digne garde.
Ecrit á Lion, le vingt de septembre, mil cinq cent quatre vingt quinze.
Transpira d'esta carta a bonissima alma de Henrique IV a favor de um principe que tragava as penurias a que não foi estranho o filho de Joanna d'Albret. Aquelle tempo ainda elle não era marido de Maria de Medicis, que lhe permittiu contar com o almoço seguro e um gibão sem remendos. Quem diria que tão nobre e querida alma se iria a Deus, quando o corpo se estorcia debaixo do punhal de Ravaillac! Menos infeliz e menos[67] amado, morrêra tranquillamente o proscripto Antonio, graças a Henrique III que o defendeu do sicario duque de Mercœur, bisavô da rainha portugueza Maria Francisca Isabel de Saboya[16].
Scipião despendeu com D. Antonio e seus filhos os bens que adquirira na governação da ilha Terceira.
Falla-se de um brilhante que o prior do Crato empenhára por quarenta mil libras, na mão de mr. du Harley Sancy, um dos mais pecuniosos fidalgos de Paris, de quem depois houve mais sessenta mil libras, por trespasse completo da joia (proximamente 18:000$000—o producto total do brilhante). A pedra preciosa era do neto d'el-rei D. Manoel ou de Scipião? Mad. de Sainctonge refere a passagem de modo que nos persuade ser do amigo de D. Antonio: Scipion Vasconcelles de Figueredo avoit déjà vendu pour lui (D. Antonio) tout ce qu'il avoit apporté de son gouvernement, et avoit engagé un diamant d'un prix inestimable pour quarente mille livres, à Monsieur de Sensy qui étoit si honnête-homme qu'il lui donna encore vingt-mille écus voyant qu'il n'etoit pas[68] en état de le retirer. Parece dizer que o proprietario do diamante era Scipião de Figueiredo[17]. Esta pedra, considerada quanto aos quilates, o oitavo diamante conhecido, foi depois empenhada por du Sancy, em Metz. Um hebreu d'aquella cidade emprestou dinheiro para pagar aos suissos de Henrique III, revolucionados por falta de pagamento. O proprio du Sancy cahiu em apuros, por 1605, e vendeu a pedra a Sully que a comprou por 150:000 escudos em nome do rei. Não sei que mãos percorreu o diamante. Em 1870 foi vendido em Calcutta, por ordem da princeza Demidoff, originaria da Russia, e aparentada com a familia Bonaparte[18].[69]
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Em 1586, tinha Scipião comsigo em Paris um irmão de vinte e cinco annos, lá conhecido por D. Gomes de Vasconcellos, que por alli se andava estadeando a sua pobreza e inutilidade. Pediu Scipião a Catharina de Medicis que lhe empregasse o irmão no exercito do marechal de Brissac. A rainha-mãi escreveu a favor de Sebastião de Gomes a affectuosa carta que sua neta publica a pag. 162 da Histoire secrete, etc.
Poucos mais vestigios restam de Scipião de Figueiredo até 1601. N'este anno Maria de Medicis recommenda-o encarecidamente ao gran-duque de Toscana, por carta escripta de[70] Lion, em 10 de janeiro. Ahi lhe expõe que o seu protegido vai a Italia pour aucunes siennes affaires. Não é possivel rastrear os negocios particulares de Scipião em Italia. O pretendente era já morto desde 26 de agosto de 1595. Póde ser que o testamenteiro de D. Antonio ainda conspirasse a favor dos filhos.
Não sei se se demorou muito em Italia. Sabe-se que, na volta, foi morar nos arrabaldes de Paris em uma aldeia chamada Les Fontaines, perto de Lagny, d'onde ia a miudo visitar o filho de seu defunto amo, D. Christovam de Portugal, que vivia em Paris bastante descuidado dos seus interesses e honra[19]. Poucos annos viveu em Les Fontaines soccorrendo os portuguezes expatriados com a pensão que lhe dava o rei. Ahi morreu, depois de 1606, e foi sepultado no proximo mosteiro dos Agostinhos. O rei continuou a dar a pensão aos commensaes de Scipião, reservando em beneficio de D. Gomes seiscentas libras annuaes, uns 110$000 reis pouco mais ou menos.
Ora este D. Gomes tem sua historia, longa e arrastada, porque morreu em idade de noventa e sete annos, reinando já em Portugal D. João IV.[71]
Se o leitor póde esforçar a sua paciencia, e dar-me relevante prova de que os estudos serios, grossos e profundos lhe são agradaveis, leia até ao fim o que eu lhe vou contar, muito pela rama, do irmão do heroe da Terceira.
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D. Gomes, soldado valoroso e aventureiro, que expunha a vida na perspectiva da morte ou da fortuna, sahiu de uma das suas batalhas com uma perna quebrada e o rosto desfigurado por um gilvaz que lhe esbrucinára parte do nariz.
Quando se levantou curado das feridas, e se viu no espelho, trespassou-se-lhe a alma de tamanha paixão que esteve nos colmilhos da morte. Il pensa mourir de chagrin de se voir si different de ce qu'il avoit été—diz sua neta mad. de Sainctonge.
A fealdade pungia-o tanto quanto elle era caroavel de damas, galanteador bemquisto, e famoso no bom successo das suas empresas amorosas.
Como allivio de seus males, alistou-se de novo na milicia de Luiz XIII. Affrontou a morte com desesperado menospreço de si mesmo, e vingou apenas ajuntar novas cicatrizes á gloria das outras, que o não resguardaram da pobreza nos tristes dias de nonagenario.[72]
Voltando a Paris, foi acolhido por D. Christovão, filho do defunto prior do Crato, que o estimava em extremo.
Quando orçava pelos sessenta annos, Sebastião Gomes de Figueiredo, que tinha a maior no coração o que lhe minguava no nariz—orgão importante da cara humana, segundo a opinião do diccionarista Couto Guerreiro—apaixonou-se por uma menina parisiense, formosa, illustre e pobre, com a sobrecarga de espirituosa.
E casaram—o que foi mau; e tiveram tres filhos—que foi peor.
Dous morreram; a mãi tambem morreu aos dezoito annos de casada, deixando-lhe uma galante menina de quartorze annos, conhecida na boa sociedade por mademoiselle de Vasconcellos.
D. Gomes era pobre, e o futuro da filha torturava-lhe o coração paternal. A estas penas acresceu a da morte do seu amigo D. Christovão, em 1638, em cuja parcimoniosa mesa elle tinha certo o talher.
Porém, n'esta noite da desgraça alvorejou uma aurora de esperança.
Em 1640 foi acclamado rei portuguez. Sebastião Gomes, com bom fundamento, imaginou-se chamado á patria e reintegrado nos bens que Philippe II lhe confiscára.
Assim que chegou a Paris D. Francisco[73] de Mello, primeiro embaixador de D. João IV, Gomes de Vasconcellos apresentou-se-lhe. O embaixador abraçou o ancião, dizendo que não esperava encontrar n'este mundo um irmão do heroico Scipião de Figueiredo, cujo nome ainda soava em Portugal gloriosamente. Perguntou-lhe o velho se seria licito esperar que el-rei de Portugal lhe permittisse voltar á patria e apossar-se dos seus bens. Respondeu D. Francisco de Mello que era illicito duvidar da justiça e probidade d'el-rei. Grandes jubilos no seio d'aquella pobre familia!
Escreveu o embaixador para o reino aos seus amigos mais conjuntos do monarcha. Todos, á uma, lhe responderam que o rei faria justiça.
Pactuaram logo sahirem juntos para Portugal; mas como D. Francisco tivesse um filho enfermo, demorou-se; e, quando o filho convalescia, teve de seguir o rei de França a Compiegne, e deixou o filho entregue aos cuidados de Gomes de Vasconcellos.
O rapaz tinha vinte e dous annos, era até certo ponto aparvalhado, fôra educado portuguezmente, não tinha a minima pratica de sala, e não sabia palavra da lingua franceza.
Com o fim de o recrear nos desalentos da convalecença, Gomes de Figueiredo levou-lhe a casa a filha, que era bella, e mais algumas amigas de mademoiselle Vasconcellos—moças[74] garridas, buliçosas, desenxovalhadas, francezas desde as plumas até ao talão—cousas gentilmente satanicas que se pareciam tanto com as damas de Lisboa como elle com os estouvados de Paris.
Assim que lhe entraram ao quarto, o rapaz, que as não percebia, contemplou-as com a mais sincera cara de tolo, não obstante ser prevenido da visita. Il ne laissa pas de paroître déconcerté—diz mad. de Sainctonge, a filha da gentil Vasconcellos—elles en attribuerent la cause au peu d'habitude qu'il a voit de voir des femmes.
Mas habituou-se logo; o amor ensinou-lhe tudo, sem excepção do francez. Por essa occasião lhe disse o velho:
—Este modo de viver francez deve ser estranho a um moço de paiz onde os homens não tem a menor convivencia com as senhoras.
—Gosto d'estes costumes! exclamou o rapaz.
De quem elle já gostava muito era da menina Vasconcellos; mas a paixão que o apanhou de salto não impediu que elle se mostrasse portuguez de lei, mandando pôr na mesa bocêtas de dôce nacional para regalar as meninas, e por signal que o avantajaram ás confeiteiras francezas: bassins de confitures séches beaucoup plus belles que celles qu'on fait en France—diz a citada historiadora.[75]
O convalecente deu logo alta, e transfigurou-se.
Bailes, merendas, passeios campestres, lyrismo, conjugação dos verbos regulares e irregulares de parçaria com as pequenas, revelações, confidencias, leituras de novellas, etc. Em resumo, D. Francisco de Mello, quando voltou a Paris, não conhecia o filho, de gordo, de folgazão, de peraltice, e até d'uns vislumbres de poeta pelo ar provençal com que fallava das graças das francezas, e particularmente de mademoiselle Vasconcellos.
Amavam-se e projectavam voltar juntos e casados a Portugal. Assim o tinham decidido em sorrisos de mutua e louca felicidade n'um baile em que o moço, toda a noite, valsára com a noiva. Mais il ne prevoioit pas que la France seroit son tombeau, escreve a snr.ª de Sainctonge. Ao sahir d'esse baile, aconchegando do seio o ramilhete da adorada menina, constipou-se, e morreu de uma pleuresia seis dias depois.
Sobre este infortunio outro maior.
N'estes dias, appareceu em Paris um neto de D. Antonio, D. Luiz de Portugal. Este sujeito, que não degenerava dos vicios do avô e do pai, ainda, dous annos antes (1639) escrevêra uma carta a João Caramuel, defensor dos direitos de Castella ao throno portuguez, confessando a legitimidade de Philippe[76] III, e offerecendo o seu braço na defeza da usurpação. A carta corria impressa, já em Portugal era conhecida, e o leitor póde vêl-a nas primeiras paginas do in-folio intitulado Philippus Prudens.
Pois não obstante este villanissimo testemunho da sua indignidade, ousou D. Luiz apresentar-se ao embaixador portuguez, encarregando-o de perguntar a D. João IV se poderia voltar á patria, e á posse dos bens de seus avós.
D. Francisco de Mello fez a pergunta a D. João IV que respondeu d'est'arte: «Perguntas d'essa natureza não se fazem.»
Mas, como D. João IV soubesse que Sebastião Gomes de Vasconcellos vivia amigavelmente com o neto de D. Antonio, recusou tambem recebel-o em Portugal; e, quanto á restituição dos bens, disse que não podia tiral-os ás pessoas a quem Philippe II os dera, porque se considerava obrigado a premiar os filhos d'essas pessoas, dos quaes fôra bem servido na sua acclamação.
A resposta era infame porque não era sincera; e, ao mesmo tempo, injuriava os que haviam trahido a patria, recebendo como paga os bens dos Vasconcellos, e injuriava os filhos d'esses traidores que tambem atraiçoaram a casa de Hespanha que lhes enriquecera os avós e os paes.[77]
Sebastião Gomes supportou corajosamente este golpe, que ainda não devia ser o ultimo. Um dos seus amigos mais valedores era um residente que D. João IV mandára a França: Manoel Fernandes Villa-Real. Aproveitemos a descripção de mad. Sainctonge qual ella ouvira de sua filha: C'etoit un homme d'un agreable commerce; il n'avoit rien dans l'humeur de ceux de sa nation; son esprit étoit d'un caractere à le faire beaucoup d'amis; aussi tous les gens de qualité et de bon goût se faisoient un plaisir de le voir; on étoit charmé de son air ouvert et de ses manieres aisées; tous ses dehors etoient d'un parfaitement honnête homme et on ne pouvoit le connoitre sans l'estimer[20].
Manoel Fernandes de Villa Real tinha casado em Rouen com a filha de um portuguez opulento, israelita, escapulido ao santo officio. O residente de D. João IV não era—diga-se verdade—mais sincero christão que seu sogro.
Em compensação era intelligentissimo. Tinha escripto, em defeza dos direitos de seu rei, o Anti-Caramuel, que o leitor conhece. Era poeta. Fazia versos francezes, que o leitor encontra em uma collecção de elegias á Memoria da snr.ª D. Maria de Athayde. Como illustrado, ria-se dos sermões bordalengos do padre[78] Francisco de Santo Agostinho de Macedo, prégados nos pulpitos de Paris, com descredito nacional. Censurava as baixezas que o mesmo ex-frade praticava, agenciando dinheiros com torpes pretextos. Era um homem de bem, quanto póde sêl-o um incircumciso, como o leitor e eu.
Quem o denunciára de judaisante para Portugal fôra o padre Macedo, attribuindo-lhe simultaneamente a redacção de uns papeis enviados ao cardeal Richelieu, e adversos a D. João IV.
De repente, é chamado Manoel Fernandes á presença do rei de Portugal. Contristou-se na hypothese de que ia ser substituido, depois de tão briosamente haver procedido no serviço d'el-rei. Os sustos de Sebastião Gomes anteviram mais negro desenlace. Aconselhou-o o ancião que não viesse a Portugal, pois era casado e rico em França, e tinha inimigos conjurados a perdêl-o.
Não o demoveram o amigo, a esposa e os filhos.
Partiu, quando Sebastião Gomes dizia á filha: «Elle se arrependerá; mas tarde.» Figueiredo sabia que o seu amigo era christão-novo; mas esta denominação terrivel tanto lhe confragia a alma que nem á filha a denunciou.
D'ahi a pouco tempo, o novo residente, que[79] voltou a Paris, levou a triste nova de que Manoel Fernandes Villa-Real estava nos carceres da inquisição processado como judeu, e não muito depois soube que o seu amigo fôra condemnado á morte de garrote, e queimado no dia 10 de outubro de 1652[21].
Alquebrado pela decrepidez, Sebastião Gomes ainda achou um amigo no residente que substituira Manoel Fernandes.
Era aquelle Duarte Ribeiro de Macedo cujas cartas impressas o meu leitor illustrado conta em o numero dos seus mestres de bem escrever. Nos braços d'elle, e de sua filha—esposa de um cavalheiro illustre, pai da escriptora de Sainctonge—expirou o irmão do heroe da Terceira, aos noventa e sete annos de idade.
Que recordações revoluteariam n'aquella alma! Que synopse de immensas angustias! Como veria elle desdobrarem-se noventa annos de recordações, desde a infancia de D. Sebastião, através da catastrophe de Alcacer, dos heroismos dos Açores, dos sessenta annos de esforços vãos contra a pobreza amparado[80] pela honra do nome portuguez, e por fim... morrer alli, ás sopas de estranhos, porque D. João IV lhe dissera:
«Morre de fome, que eu não vou tirar os teus bens aos filhos dos que venderam a patria!»
[10] Assim subscreve a approvação do testamento de D. Antonio, e assigna uma carta a Philippe II que ao diante se lerá.
[11] Historia de Portugal... t. II, pag. 602. D. Antonio nomeou Scipião de Figueiredo conde de S. Sebastião—accessorio que nenhum escriptor menciona, senão Caramuel (Philippus Prudens, pag. 302), que tratou com singular benevolencia os partidarios de D. Antonio, por entender que nenhum contrapeso faziam na balança em que Philippe III, em 1689, no ultimo anno do seu reinado, mandava pesar os seus direitos.
[12] A carta e resposta de Scipião de Figueiredo possuimol-as na collecção de Ineditos de D. Manoel Caetano de Sousa. Nos historiadores apenas encontramos noticia perfunctoria de haver sido tentado o suborno do governador pelo principe de Eboly.
Estas cartas foram impressas em uma apologia de D. Antonio, escripta por Scipião de Figueiredo contra D. João de Castro. Na duvida em que estão os bibliophilos sobre a authoridade d'essa apologia decide João Caramuel no seu Philippus Prudens, etc. pag. 171 e 172, na lista dos authores que escreveram a favor de D. Antonio: Cyprianus de Fuigueredo... sed Scipio... publicavit Epistolam, quã notas facit Philippo II, caussas quibus movebatur ut individuus comes non desereret ipsum Antonium, cui ab annis pluribus in honor e maximo servievat. Édidit etiam Apologiam pro Antonio contra D. Joannem de Castro, olim ex Antonianis, etc.
O titulo do livro que o cisterciense Caramuel denomina «apologia» é Reposta que os tres estados do reino de Portugal, a saber Nobreza, Clero e Povo, mandaram a D. João de Castro, sobre um discurso que lhes dirigiu sobre a vida e apparecimento d'el-rei D. Sebastião (s. l.), 1603, 8.º Diz o snr. Innocencio que entre pag. 75-80 está a carta que este dirigiu a Philippe II. Não sei se alli se encontra a carta que Philippe lhe enviou por Gaspar Homem. Este livro é um dos rarissimos da livraria portugueza.
[13] Historia de Portugal, l. c.
[14] Histoire secrete de Dom Antoine roy de Portugal, pag. 101.
[15] Veja tom. II das Provas da Historia genealogica da real casa portugueza, pag. 537 e seg.
[16] Veja a Lettre du roy Henry III au duc de Mercueur (sic) a pag. 120 da Histoire secrete de Dom Antoine, por mad. de Sainctonge.
[17] Diversifica da primeira importancia da pedra a outra menor que lhe dá a escriptora franceza. Mr. Edouard Fournier extrahiu a noticia das Memoires de l'Estoile por Lenglet Dufresnoy. Veja Un prétendant portugais au XVIme siecle, par Edouard Fournier. Paris, 1852.
[18] Parece que D. Antonio já em Londres, no anno de 1582, empenhára ou vendera um brilhante de mais quilates. No Museu Britannico, Bibliot. Cottoniana, fol. 295. Nero, B. I. ha um diamante que o S. F. F. de la Figanière descreve assim:
«Carta, em inglez, do proprio punho de lord Burghley, dirigida á rainha Isabel, na qual, em conformidade das ordens que lhe haviam sido transmittidas pelo conde de Leicester, dá a sua opinião sobre o destino que deveria ter o grande diamante de D. Antonio (prior do Crato), o qual estava em poder do mesmo conde, como penhor pelo dinheiro emprestado a D. Antonio por certos negociantes inglezes, que instavam muito pelos seus creditos, julgando lord Burghley, que, em attenção ao seu grande valor, seria conveniente que a rainha embolsasse os ditos negociantes, ficando com o diamante como penhor da quantia emprestada, etc. Esta carta tem apenas indicado o anno de 1582. Consta de uma pagina. Lord Burghley pede desculpa da carta que envia á rainha por soffrer muito da perna, e haver-se-lhe exigido resposta immediata. Com effeito parece antes um borrão do que uma carta que se dirigia a uma soberana.»
A venda do outro diamante em Paris é posterior alguns annos.
[19] Em um dos proximos numeros darei noticia laboriosamente averiguada dos descendentes de D. Antonio.
[20] Obra cit., pag. 234 e seg.
[21] A pag. 182 e seg. do romance intitulado Olho de vidro vem integralmente publicada a sentença da inquisição. Nos Manuscriptos addicionaes do Museu Britannico, n.º 15:170, fl. 243 v. ha um soneto de Manoel Fernandes Villa-Real escripto no carcere do santo officio. (Figanière, Catalogo, pag. 284).
Na poesia moderna tem adquirido bastante importancia o nariz.
E, posto que a época vá muito de idealismo, repara-se mais nas ventas que nas faculdades moraes dos personagens epicos.
É certo que o nariz tem servido para formar maximas e aphorismos no regimen social, na sciencia chamada ethica—sciencia de que ninguem falla desde que a educação da mocidade passou a tisica com apparencias de hydropica.
Tudo esdruxulo.
Do nariz inferiram os observadores certos signaes de qualidades do espirito, e formaram anexins e regras que ainda vigoram, e já vem dos gregos, os quaes tambem tiveram nariz—(nira), por anagramma nari.[81]
Em portuguez, ha muito proloquio sobre nariz e ventas.
Camões, querendo indicar a alegria na rubidez de um nariz a reçumar bom sangue agitado pelo jubilo, cantou em termos altos:
Tem vermelho o sangue do nariz.
«Ter cabellos na venta».
«Dar com as ventas n'um sedeiro».
«Não ver um palmo adiante do nariz».
Conhecem tudo isto.
«Nariz de cêra»—a musa dos tribunos, a inspiração dos prégadores, a rhetorica dos romancistas.
«Senhor do seu nariz». Nem sempre. Ás vezes os poetas fazem-nol-o propriedade sua.
«Nariz de palmo e meio»—imagem que exprime a embaçadella—ou, á franceza—o desapontamento. Exemplo: o leitor, no fim d'este bonito trabalho.
«Chegar-lhe a mostarda ao nariz», etc.
O cão tambem collabora nasalmente n'estas analogias: «É sebo em nariz de cão».
*
* *
Em cima, disse eu que o nariz tem adquirido bastante importancia na poesia moderna.
Justifica-me um brilhante livro, que está no coronal das modernas publicações.[82]
É A morte de D. João, do snr. Guerra Junqueiro, uma verdadeira flôr entre os espinheiros da nossa charneca litteraria.
D. João VIII, em sonho, os phantasmas das mulheres que desgraçára. Algumas
... que foram lirios juvenis,
Já carcomidas pelas larvas frias,
Caminhavam sem olhos, sem nariz.
Reduzido a miseravel histrião e cornaca de ursos e dromedarios, D. João
Possuia um nariz vermelho, incendiado.
Não era de certo o nariz vermelho, acceso pelo jubilo, de que falla o Camões.
Mais abaixo, o mesmo D. João, no deplorativo dizer do snr. Guerra Junqueiro,
Cheirava muito a alho
E tinha no nariz verrugas biliosas.
Elle mesmo, o escalavrado amante de Imperia, exclama:
Tornou-se-me o nariz esqualido purpureo
Por causa das paixões e do ultra-romantismo.
Faz pena o diabo do homem!
E, para fecho de desgraça, quando está nas ultimas,
O seu nariz purpureo
É uma esponja de carne a distillar mercurio.[83]
Por onde se vê que a poesia moderna tira grande partido do nariz, já cortando-o, já alongando-o, umas vezes enverrugando-o, outras vezes esponjando mercurio d'elle, consoante lhe convém.
Não é completamente novo isto.
Em Portugal houve sempre esta mania de fazer litteratura nas ventas das pessoas dotadas d'esse orgão com saliencias extraordinarias.
No fim do seculo XVII, galhardeavam grandemente os poetas n'esse genero. Eu, entre os meus papeis, tenho um poema consagrado a um nariz, em que não havia verrugas nem azougue; mas sim uma grandeza magestosa e limpa. Veja o leitor se acha graça a isto:
A UM NARIZ GRANDE
Tratava de encarecer-vos;
porém logo (ó caso estranho!)
vos achei, nariz, tamanho,
que não pude comprehender-vos.
Que sois nariz tão fatal,
em ser comprido, e ser grosso,
que n'um reconcavo vosso
se escondeu um arraial.
Alguem vos chama infinito;
mas eu, que em razão me fundo,
as quatro partes do mundo
sei que são vosso districto.[84]
Pareceis cá baluarte
dos chinas, bem que o venceis,
e com Deus vos pareceis,
porque estaes em toda a parte.
E um velho da Saxonia
diz vos viu mui grande espaço
servir, nariz, de compasso
da torre de Babylonia.
Mas affirma quem se humana
mais nas vossas maravilhas,
que tendes as trinta milhas
da ponte do Guadiana.
Que sejaes, senhor nariz
tão comprido e tão fatal,
que já cá de Portugal
cheiraes na Arabia Feliz.
Que sois o farol do Egypto
que toma de mar a mar,
se se póde comparar
finito com infinito.
E jurou certo moderno
(não diga elle algum desmancho)
que podeis servir de gancho
que tire as almas do inferno.
E que, se nos horisontes,
nariz, vós nascereis d'antes,
escusaram os gigantes
de pôr montes sobre montes.
Bem podeis, senhor nariz,
estar onde mais quizerdes;
mas, se ao sol vos pozerdes,
fareis logo ser sol-criz.[85]
A vós, nariz, o gran monte
do Parnaso se assemelha;
pareceis arco da velha
que toma todo o horisonte.
E dizem quatro juizes,
segundo a sentença diz,
que tiram de vós, nariz,
a massa dos mais narizes.
Inda que estar queiraes só,
vos verão, em que vos pez,
que tamanho Deus vos fez
como a escada de Jacob.
E assenta certo moderno,
no que acerta, quanto a mim,
que sois sem principio e fim,
e que sois, nariz, eterno.
Ao arraial do Maluco
daes n'uma venta estalagem;
e podereis dar passagem
de Lisboa a Pernambuco.
Para que el-rei se desvela?
Se el-rei quer estar seguro,
ponha-vos, nariz, por muro
entre este reino, e Castella.
A vós só, nariz, se deu
pena eterna, e gosto eterno;
que tendes posto no inferno
um pedaço, outro no céo.
Ha no mundo narigote,
ha nariz, e narigão,
houve nariz de Sansão,
e nariz de D. Quixote.[86]
Sois nariz archi-potente,
porque só vós assombraes
do Occidente, onde estaes,
os narizes do Oriente.
D'onde, nariz, presumi
chamar-vos gran narigão;
porque sei que ha ahi gran Cão,
que ha gran turco, e gran Sophi.
Se não se póde alcançar
nunca a medida do mundo,
nem nunca ao mar se achou fundo,
vós, nariz, sois mundo e mar.
Parece, quando espirraes,
(cousa para o mundo nova!)
Eolo que sahe da cova
com todos os ventos mais.
Eras bom n'uma fronteira;
que d'essas ventas o vento
é pelouro mais violento,
que de bombarda, e roqueira.
Outros, encontrando a fé,
dizem atrevidamente
que em vós se salvou mais gente
que na arca de Noé.
E em fim sois, porque conclua,
nariz tão mal ensinado,
que vos viram cavalgado
então nos cornos da lua.
Do sol dizem que enfiava;
da lua, que então gemia;
e do céo, que estremecia
co'o peso que sustentava.[87]
Sois mór que a serra da Estrella;
porque eu vi por uma venta
vossa, na maior tormenta,
passar um navio á vela.
Esse rosto deshumano
onde pôr-vos o céo quiz,
chama-se cento-nariz,
como o outro centimano.
E de quem n'elle vos pôz
saber me dera gran gosto,
se andaes vós, nariz, no rosto,
ou se o rosto anda em vós.
Bem que o rosto é cousa rara
de maneira que só diz
tal cara com tal nariz
e tal nariz com tal cara.
Da limpeza foreis centro,
se vós deixareis entrar
cem mil homens, a limpar
as furnas, que lá vão dentro.
Mas ser sujo não me espanto;
pois jámais vos assoastes,
nariz, porque não achastes,
linho que abrangesse a tanto.
Para a India uma nau ia,
eis que um peixe se levanta
no mar, de grandeza tanta,
que a nau á vela cobria.
Eram tudo paroxismos
na nau, tudo estremecer,
quando lhe mandam fazer
por um padre os exorcismos.[88]
Mandou-lhe n'este comenos
o bom padre, que a nau deixe,
e o que criam que era peixe,
era o demo, quando menos.
Entrou-me no pensamento
mandar-vos exorcismar,
sómente por alcançar
se sois nariz, se portento.
Que nariz não pareceis;
e, pelo rosto em que estaes,
a nariz assemelhaes,
e no rosto não cabeis.
Salvo, nariz, se sois tal,
e de tão má condição,
que ides comer ao Japão,
e purgaes em Portugal.
Etc. etc.
Posto isto, em quanto o leitor boceja nos preliminares de um agradavel somno, apresso-me a dizer-lhe que não está no meu animo detrahir nem menoscabar a seita poetica, a hoste da Idéa Nova em que o snr. Guerra é o alferes da bandeira. Gosto do nariz de D. João; e, quanto ás verrugas biliosas e á distillação de licôr de Van-Swieten, prefiro estes narizes pôdres das pessoas afflictas aos narizes de cêra dos litteratos.[89]
Conhecem perfeitamente o famoso author da Nova Castro.
Seria opprobrio desconhecerem o poeta portuense, honrado na Allemanha ha trinta annos, desde que Alexandre Wittich traduziu a tragedia de Ignez.
João Baptista Gomes, filho de outro de igual nome e appellido, foi guarda-livros no Porto. Casou com uma formosa menina, D. Anna Benedicta Gomes. Morreu na flôr da idade em 20 de dezembro de 1803. Nos braços da sua viuva—que contava vinte e quatro annos—deixou uma menina, D. Thereza Benedicta que veio a ser esposa do dr. José Machado de Abreu, que morreu barão de S. Thiago de Lordello.
A viuva do poeta felleceu em 1844, aos sessenta e seis annos de idade. A bisneta do author da Nova Castro, D. Maria Ismenia de Abreu, ainda vive, casada com o snr. Guilherme Francisco de Almeida e Silva, coronel de cavallaria. O dr. José Machado de Abreu, reitor da universidade e barão de S. Thiago[90] de Lordello, contrahiu segundas nupcias. A exc.ma baroneza, que enviuvou na flôr dos annos, casou com o snr. conselheiro Adriano de Abreu Cardoso Machado, tão notavelmente respeitado nas boas letras, como na politica militante, á qual não chamo tambem boa, para me forrar a contendas com os que militam na politica diversa.
João Baptista Gomes, ainda em fevereiro do anno em que morreu, levado de generosa inspiração, escreveu um Elogio aos cidadãos do Porto, concorrentes a um beneficio destinado a suavisar a desgraça dos presos. Foi o Elogio recitado no real theatro do Principe na noite de 16 de fevereiro de 1803. Esta poesia inedita não é talvez a unica reliquia desconhecida d'aquella forte, dado que inculta intelligencia, da qual Garrett escreveu: Atalhou-o a morte em tão illustre carreira, e deixou orphão o theatro portuguez, que de tamanho talento esperava reforma e abastança. Por ventura, no espolio de sua viuva, se encontrariam as paginas soltas da historia dos seus reciprocos amores, e, talvez, as fatidicas tristezas da morte que empeceu ao desabotoar das vergonteas d'aquella poderosa phantasia. Como quer que seja, desde que João Baptista Gomes se extinguiu, raras vezes as honras posthumas lhe enverdeceram a gloria na lembrança dos vivos, nem alguem se lembrou de[91] lhe estremar os ossos sepultados na igreja de S. Francisco.
No Elogio aos portuenses, ha versos de profundo sentimento, de elevado conceito, e dos mais condimentados com as especies arcadicas d'aquelle tempo.
Queiram-lhe bem os portuenses ao seu poeta, e inscrevam mais este nome no numero dos que, depois de cantarem duas ou tres primaveras, quebraram a lyra na pedra do sepulcro. Que mysterio haverá n'esta ceifa da morte, n'este golfão que tantos cerebros grandes e ardentes dissolve na leiva dos cemiterios?—Coelho Lousada, Evaristo Basto, Soares de Passos, Arnaldo Gama, Ernesto Pinto de Almeida, Guilherme Gomes Coelho, e ainda hontem o maximo entre os melhores, Guilherme Braga!...
*
* *
João Baptista Gomes, dez mezes antes de se arrancar não sei se ás alegrias, se ás amarguras da existencia, pedia esmola para os encarcerados, e deixava aos seus portuenses talvez os derradeiros sons da sua harpa.[92]
Dizia assim:
Louvores á virtude aos céos aprazem:
Nas aras da verdade puro incenso
Respeitosa tribute a humanidade
A quem da humanidade os males pungem,
A quem aos males da indigencia acode;
Com piedosa mão, mão generosa,
Da macilenta face ao desgraçado
O pranto enxuga, que a penuria arranca.
Sensiveis cidadãos, porção mimosa,
D'alta prole de Luso esmalte, e gloria,
Meus hymnos relevai, que aos vates cumpre
Honrar a quem dá honra á especie humana:
Beneficas acções, que almas transportam,
Por desafogo d'alma applausos pedem.
Na sinuosa habitação do crime,
Nas pavorosas, lobregas masmorras,
Onde fome, e nudez (oh dôr!) outrora,
As miserandas victimas ralavam;
Onde o estridor horrisono dos ferros,
D'imprecações, de pragas, de blasphemias
Era, não sem razão, acompanhado;
Alli onde animados esqueletos
Bradavam pelo jus, que á vida tinham,
Em quanto justo oraculo de Themis
Castigo aos crimes seus não arbitrava;
E os descarnados braços, d'entre os ferros
Famintos estendendo as mãos escassas,
Com lamentosa voz, parco alimento,
Quasi desfallecendo em vão pediam;
Alli, onde impio throno a morte alçára,
Tem agora seu throno a humanidade.
Amavel, divinal beneficencia,
Dos céos emanação, innata ao homem,
Lei filha da razão, que a natureza
Indelevel gravou no peito humano![93]
Só tu fazes heroes, só tu distingues
Os entes racionaes das brutas feras.
Cobraste, ó natureza, os teus direitos,
Desaffrontada estás. Exulta, ó patria!
Na estancia destinada ao crime, á infamia,
Inconcusso padrão teus beneficios
Fabricado já tem á gloria tua.
Os carceres contempla, e goza o fructo
Das acções, que praticas generosa,
Em louvores trocadas as blasphemias;
Co'a justiça abraçada a humanidade;
Abundancia frugal alenta os tristes,
Que inerte esquecimento abandonára
Nas garras da penuria, e dos flagicios:
Como se não bastasse aos desgraçados
Do crime o peso, o peso dos remorsos,
Da justa punição a idéa horrivel!
Quem ha que delinquente ser não possa?
E ha de auxilio negar-se aos delinquentes?
Os culpados não deixam de ser homens:
E á compaixão dos homens tem direito,
Compaixão, não esteril, prestadia.
A bem da humanidade taes dictames
Leu em seu coração heroe prestante;
De honrosa instituição motor ditoso,
Com seu sopro accendeu piedoso incendio
Em corações dispostos á piedade:
Liberaes á porfia generosos,
Sobeja caridade exercem todos.
Oh dadiva do céo! alma sublime,
Que recto, imparcial punindo os crimes
Pranteias compassivo os criminosos,
E ao culpado infeliz auxilio prestas,
Aligeiras seu mal, a mão lhe estendes,
Que invergavel d'Astrea a vara empunha,
Illustre... Mas que faço? o teu preceito,
Tua nobre modestia me prohibe[94]
Teu nome proferir porém debalde:
Mesmo entre ferros o profere o afflicto,
Que de lisonja vil não é suspeito;
Perenne gratidão aos astros manda
O nome teu, que impresso em nossos peitos,
Transmittido será de paes a filhos!...
Mais quizera dizer, dissera pouco
Por muito, e muito, que dizer podesse:
Custa ao vate conter d'alma os transportes:
Mas silencio m'impões, silencio guardo.
O meu benevolente mestre e amigo, o snr. Innocencio Francisco da Silva, alludindo ao que se escreveu no n.º 10 das Noites de insomnia, a respeito do infeliz e talentoso José Anastacio da Cunha, diz-me o seguinte: A proposito, occorreu-me offerecer-lhe o papel junto, copia de outro que possuo ha bons quarenta annos. É uma noticia assás circumstanciada e divertida do auto da fé, em que sahiram penitenciados o mallogrado professor da universidade e seus companheiros. Se acaso v. entender que a narrativa agradará a alguns leitores das NOITES, póde dar-lhe ahi as honras da publicidade, etc.[95]
Segue o curioso papel que, a meu vêr, é a photographia das cousas e das pessoas d'aquelle tempo, avultando á primeira luz do painel o cardeal da Cunha, inquisidor geral:
Noticia presencial do auto da fé a que presidiu o cardeal da Cunha em 11 de outubro de 1778.
«Meu pai tinha grangeado, não sei como, a amizade, e era muito da obrigação d'esse cardeal inquisidor geral, que na vespera do auto da fé, em que sahiu José Anastacio com os outros seus companheiros, veio a nossa casa e recommendou a meu pai, que ao outro dia, para boa doutrina e exemplo, mandasse seu filho assistir a esse acto de religião: «venha o rapaz (disse o tonto); venha cedo; que almoçará commigo, e depois tambem lhe darei de jantar.» Assim m'o encommendou o meu velho, quando n'esse dia me recolhi a casa, e não tive eu mais remedio senão apresentar-me ao outro dia na casa triste, aonde cheguei a tempo de vêr levantar-se da cama o alarve do inquisidor, que enceroulou os seus calções largos, e esfregando os olhos, bocejando, e fazendo[96] cruzes na bocca, me levou para a mesa do almoço, que nos foi servido de café com leite e as torradas competentes. D'ahi abalamos para a capella da inquisição, aonde foi a minha boa fortuna o ficar assentado junto a um frade de S. Domingos, homem com menos de meia idade, mas de juizo inteiro, segundo o mostrou no discreto e gracioso motejo, que fez de quanto se passou n'aquella santa e religiosa feira da ladra. Tivemos missa inteira, e depois tivemos sermão, que bem fôra o ter sido partido por todos os dias do anno, por o muito que nos enfadou com um sem numero de sandices o prégador. Quando as este vasava do sagrado almofariz, não escapavam ellas ao meu visinho, que para mim se voltava, dizendo admirado: «arre! e como é eloquente o prégador!» E tambem, quando ao lêr da sentença, os réos, segundo o chavão e formulario do santo officio, foram alcunhados de deistas, atheistas, herejes, scismaticos, etc., o bom do meu visinho, pondo os olhos no céo com grande compunção, dizia: «Jesus Maria! Que gente tão ruim!... Atheistas e deistas ao mesmo tempo!... E ainda com mais o trambolho de herejes e scismaticos!... Valha-nos Deus com tantos peccados!» Todavia, a gravidade e recolhimento discreto desamparou a esse bom frade, assim como a maior parte da companhia, quando se leu a sentença, havendo[97] por intervallos uma assuada geral de gargalhadas, rompida por os fidalgos, que assistiam de familiares. Quem não havia rir? Entre os cargos, que se faziam aos réos, entrava o de que nos dias d'abstinencia deitavam postas de vacca em baldes d'agua, d'onde tiravam a carne com um gancho, e a chamavam pescada, que mandavam guisar para o jantar! Entre os mais graves capitulos era o que se fazia ao réo João Manoel d'Abreu, o qual, perguntado—qual tinha por mais violento, o fogo do inferno ou o do purgatorio? Respondeu: O do purgatorio. E instado por a razão de o julgar assim, tornou a responder: porque o do purgatorio, além de queimar as almas, tem a força de aguentar as panellas de tantos mil frades e clerigos, que d'ahi vivem. Sonora gargalhada, que retumbou por toda a capella, com grande escandalo dos padres tristes.
José Anastacio, com todos os mais penitenciados, tinham velas de cêra amarella nas mãos[22]; estavam todos com o semblante carregado[98] e melancolico, senão o major de artilheria de Valença, que se estava sorrindo; e, acontecendo pôr os olhos nos d'um conhecido seu, logo lhe fez uma cortezia com o brandão de cêra, por o modo, que o faria com a espada, se estivesse mandando uma parada. Emfim, acabou-se a farça; sahiram d'ahi os penitenciados para os lugares de suas reclusões, e nós para o abundante jantar, que nos deu o cardeal. Quando assentados á mesa, voltou-se elle para mim, e começou a me admoestar por esta maneira: Então, snr. V... viu vm.ce a piedade e misericordia da santa inquisição? Veja como deu castigo brando a tamanhas culpas! Porém, isso foi por a primeira vez; que se tornarem a delinquir, não hão de ficar assim. A isto respondi eu—que me parecia deviam os penitenciados ser mais d'uma vez perdoados; porque, perguntando Pedro a seu divino Mestre, quantas vezes se havia perdoar ao peccador; se deveria ser até sete[99] vezes, Christo lhe respondera: não só sete vezes, mas sete vezes setenta; pelo que (continuei eu) multiplique v. exc.ª sete por setenta, ou 70 por 7, e achará a conta de 490 vezes, que se deve perdoar ao peccador, e d'ahi se a inquisição quizer seguir a doutrina da Escriptura, ainda aos que foram agora penitenciados se deve 489 vezes o perdão. A este tempo estava um dominicano, frei José da Rocha, grande valido do cardeal, por traz d'elle, fazendo-me signaes para que não continuasse o discurso; e para esse frade, como para arbitro e qualificador, se voltou o cardeal: hui! oh frei José! Aquillo que diz este rapaz vem lá na Escriptura? Depois d'algum empacho, respondeu o frade: Isso lá vem por algum modo, como v. exc.ª sabe melhor do que eu; mas, para que é agora acarretar a Escriptura para o jantar? O que se agora ha mister é refeição corporal, e não espiritual. Ficou com a decisão um pouco turvado o cardeal, mas logo, dando maior pinote, poz termo á questão dizendo: Pois se isso vem lá na Escriptura, nós cá é outra cousa. E como isto disse, foi entrando pela sopa.»
[22] A côr amarella é de reprovação, e a usavam os inquisidores nas velas e sambenitos dos penitenciados, talvez por ser d'essa côr a tunica, que sempre em todas as pinturas se dá a Judas traidor, assim como n'ellas a S. João sempre se deu a tunica verde. D'ahi vem talvez a côr das fitas e capellos na faculdade de medicina, a qual era antigamente a menos nobre das faculdades em a nossa universidade, e por isso seguida, por a mór parte dos que o povo infamava com o titulo de christãos-novos. Todavia, já nós conhecemos época, em que a côr amarella andou mais em moda, que a de purpura, e foi em França, legisladora de modas e vestidos; pois quando ahi nasceu por 1811 ou 1812 um filho a Bonaparte, foi tão geral em todos a alegria, que para solemnisar tão feliz acontecimento, todas as senhoras trajavam de côr do excremento do menino. Oh francezes!...
FIM DO 11.º NUMERO