The Project Gutenberg eBook of Robur, o Conquistador This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Robur, o Conquistador Author: Jules Verne Translator: Christovam Ayres Release date: May 11, 2020 [eBook #62101] Most recently updated: October 18, 2024 Language: Portuguese Credits: Produced by Júlio Reis, Leonor Silva and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ROBUR, O CONQUISTADOR *** [Illustration: JULIO VERNE VIAGENS MARAVILHOSAS ROBUR O CONQUISTADOR] OBRA PREMIADA PELA ACADEMIA DAS SCIENCIAS DE FRANÇA ROBUR, O CONQUISTADOR POR JULIO VERNE TYPOGRAPHIA DA COMPANHIA NACIONAL EDITORA 309, Rua da Rosa, Lisboa 1890 GRANDE EDIÇÃO POPULAR DAS VIAGENS MARAVILHOSAS AOS MUNDOS CONHECIDOS E DESCONHECIDOS JULIO VERNE ROBUR, O CONQUISTADOR TRADUCÇÃO DE CHRISTOVAM AYRES Escriptor e Jornalista [Illustration] LISBOA COMPANHIA NACIONAL EDITORA Successora de DAVID CORAZZI e JUSTINO GUEDES SÉDE: 40, Rua da Atalaya, 52, Lisboa FILIAES: Porto, Praça de D. Pedro, 127, 1.º 38, Rua da Quitanda, Rio de Janeiro 1890 VIAGENS MARAVILHOSAS de VERNE Edição de luxo, papel superior, illustrada com todas as gravuras da edição franceza Preço em moeda forte dos volumes publicados: _Da terra á lua_, 1 vol. com 43 grav. 3.ª edição $900 _A roda da lua_, 1 vol. com 44 grav. $900 _A volta do mundo em 80 dias_, 1 vol. com 58 grav. 2.ª edição 1$000 _AVENTURAS DO CAPITÃO HATTERAS_: 1.ª parte, _Os inglezes no polo norte_, 1 vol. com 135 grav. 1$100 2.ª parte, _O deserto de gelo_, 1 vol. com 135 grav. 1$100 _Cinco semanas em balão_, 1 vol. com 76 grav. 1$100 _Aventuras de tres russos e tres inglezes_, 1 vol. com 54 grav. $900 _Viagem ao centro da terra_, 1 vol. com 55 grav. 1$000 _OS FILHOS DO CAPITÃO GRANT_: 1.ª parte, _America do sul_, 1 vol. com 72 grav. 1$100 2.ª parte, _Australia Meridional_, 1 vol. com 45 grav. 1$100 3.ª parte, _Oceano Pacifico_, 1 vol. com 48 grav. 1$100 _VINTE MIL LEGUAS SUBMARINAS_: 1.ª parte, _O homem das aguas_, 1 vol. com 54 grav. 1$000 2.ª parte, _O fundo do mar_, 1 vol. com 60 grav. 1$100 _A ILHA MYSTERIOSA_: 1.ª parte, _Os naufragos do ar_, 1 vol. com 52 grav. 1$100 2.ª parte, _O abandonado_, 1 vol. com 53 grav. 1$100 3.ª parte, _O segredo da ilha_, 1 vol. com 50 grav. 1$100 _MIGUEL STROGOFF_: 1.ª parte, _O correio do czar_, 1 vol. com 46 grav. 1$000 2.ª parte, _A invasão_, 1 vol. com 46 grav. 1$000 _O PAIZ DAS PELLES_: 1.ª parte, _O eclipse de 1860_, 1 vol. com 52 grav. 1$000 2.ª parte, _A ilha errante_, 1 vol. 53 grav. 1$000 _A cidade fluctuante_, 1 vol. 42 grav. 1$000 _As indias negras_, 1 vol. 42 grav. 1$000 _HEITOR SERVADAC_: 1.ª parte, _O cataclismo cosmico_, 1 vol. com 50 grav. 1$100 2.ª parte, _Os habitantes do cometa_, 1 vol. com 50 grav. 1$100 _O doutor Ox_, 1 vol. com 59 grav. 1$100 _UM HEROE DE QUINZE ANNOS_: 1.ª parte, _A viagem fatal_, 1 vol. com 46 grav. $900 2.ª parte, _Na Africa_, 1 vol. com 45 grav. 1$000 _Galera Chancellor_, 1 vol. 50 grav. 1$100 _Os quinhentos milhões da Begun_, 1 vol. com 45 grav. 1$000 _Atribulações d’um chinez na China_, 1 vol. com 45 grav. 1$000 _A CASA A VAPOR_: 1.ª parte, _A chamma errante_, 1 vol. 51 grav. 1$000 2.ª parte, _A resuscitada_, 1 vol. com 44 grav. 1$000 _A JANGADA_: 1.ª parte, _O segredo terrivel_, 1 vol. com 43 grav. $900 2.ª parte, _A justificação_, 1 vol. com 53 grav. $900 _A escola dos Robinsons_, 1 vol. com 45 grav. 1$000 _AS GRANDES VIAGENS E OS GRANDES VIAJANTES_: 1.ª parte, _A descoberta da terra_, 2 vol. com 116 grav. 2$200 2.ª parte, _Os navegadores do seculo XVIII_, 2 vol. com 114 grav. 2$200 3.ª parte, _Os exploradores do seculo XIX_, 2 vol. com 103 grav. 2$200 _O raio verde_, 1 vol. com 44 grav. 1$000 _KERABAN O CABEÇUDO_: 1.ª parte, _De Constantinopla a Scutari_, 1 vol. com 51 grav. $900 2.ª parte, _O regresso_, 1 vol. com 50 grav. $900 _A Estrella do Sul_, 1 vol. 65 grav. 1$100 _Os piratas do Archipelago_, 1 vol. com 51 grav. 1$000 _MATHIAS SANDORF_: 1.ª parte, _O pombo correio_, 1 vol. 34 grav. $900 2.ª parte, _Cabo Matifoux_, 1 vol. com 36 grav. $900 3.ª parte, _O passado e o presente_, 1 vol. com 35 grav. $900 _O naufrago do Cynthia_, 1 vol. com 25 grav. 1$000 _O bilhete de loteria n.º 9:672_, 1 vol. com 39 grav. $900 _Robur o conquistador_, 1 vol. com 44 gravuras. 1$000 _NORTE CONTRA SUL_: 1.ª parte, _O odio de Texar_, 1 vol. 42 grav. $900 2.ª parte, _Justiça!_ 1 vol. 43 grav. $900 _O caminho da França_, 1 vol. com 40 grav. $900 _DOIS ANNOS DE FERIAS_: 1.ª parte, _A escuna perdida_, 1 vol. com 44 grav. $900 2.ª parte, _A colonia infantil_, 1 vol. com 44 grav. $900 _FAMILIA SEM NOME_: 1.ª parte, _Os filhos do traidor_, 1 vol. com 44 grav. $900 2.ª parte, _O padre Johann_, 1 vol. com 37 gravuras. $900 [Illustration: Nenhum dos dois adversarios ficou ferido] ROBUR, O CONQUISTADOR CAPITULO I DE COMO A GENTE SABIA E A GENTE IGNORANTE SE VIA EM EGUAES EMBARAÇOS Pum!... pum! Os dois tiros de pistola partiram ao mesmo tempo. Uma vacca, que passava a uns cincoenta passos, recebeu uma das balas no espinhaço. E no emtanto ella nada tinha que ver com a questão. Nenhum dos dois adversarios ficou ferido. Quem eram esses cavalheiros? Não se sabe; e, comtudo, teria sido essa, de certo, a occasião de fazer chegar os seus nomes á posteridade. Tudo que se pode dizer é que o mais velho era inglez, o mais novo americano. Quanto a indicar o sitio em que o inoffensivo ruminante, que acabava de ser morto, pastava o seu ultimo punhado de herva, nada mais facil. Era sobre a margem direita do Niagara, a pequena distancia da ponte pensil que liga a margem americana á margem canadiana, tres milhas abaixo das quédas d’agua. O inglez avançou então para o americano: —Continúo a sustentar que era o _Rule Britannia!_ disse elle. —Não era! replicou o outro. Era o _Yankee Doodle!_ Ia recomeçar a disputa, quando uma das testemunhas, de certo no interesse do gado inoffensivo, interveiu dizendo: —Admittamos que era o _Rule Doodle_ e o _Yankee Britannia_, e vamos almoçar! Este accôrdo entre os dois cantos nacionaes da America e da Gran-Bretanha, foi acceite com geral satisfação. Americanos e inglezes, seguindo a margem esquerda do Niagara, foram sentar-se á mesa do hotel de Goat-Islandia, um terreno neutro entre as duas cataratas. Como estão em presença dos ovos quentes e do presunto tradicionaes, do rost-beef frio; conserva de pickles incendiarios, e catadupas de chá, capazes de fazer inveja ás celebres cascatas, não os importunemos. E, além d’isso, é pouco provavel que se torne a falar n’elles n’esta narrativa. Qual d’elles tinha razão? O inglez ou o americano? Sería difficil dizer. Em todo o caso, aquelle duello mostra quanto os espiritos estavam exaltados, não só no novo, mas tambem no antigo continente, a proposito de um phenomeno inexplicavel, que, havia um mez, a todos trazia os miolos a arder. ... _Os sublime dedit cœlumque tueri_ disse Ovidio para a maior honra da humanidade. Com effeito, desde que o homem apparecêra sobre a terra, nunca se olhára tanto para o céo. Ora, precisamente, durante a noite anterior, uma trombeta aerea soltára as suas notas metallicas através do espaço, por sobre essa porção do Canadá, situada entre o lago Ontario e o lago Erié. Uns haviam ouvido o _Yankee Doodle_, outros o _Rule Britannia_. D’ahi essa disputa de anglo-saxões que terminou por um almoço no Goat-Island. Talvez, afinal, não fôsse nem um nem outro d’esses cantos patrioticos. Mas o que para todos era fora de duvida, é que esse som extranho tinha de particular o parecer que descia do céo á terra. Sería uma trombeta celeste, soprada por algum anjo ou archanjo? Não seriam antes alegres aeronautas, que tocavam o sonoro instrumento de que a Fama faz um uso tão ruidoso? Mas não! Não se via nem balões nem aeronautas. Era um phenomeno extraordinario que se dava nas altas zonas do céo, phenomeno cuja natureza e origem se não podia conhecer. Hoje era por sobre a America, quarenta e oito horas depois sobre a Europa; oito dias mais tarde, na Asia, por sobre o Celeste Imperio. Decididamente, se a trombeta que assignalava a sua passagem não era a do juizo final, que trombeta podia ser? D’ahi, em todos os paizes, reinos ou republicas, uma certa inquietação que era mistér acalmar. Se ouvisseis na vossa casa algum ruido extranho e inexplicavel, não tratarieis logo de indagar a causa d’esse ruido; e, se a pesquiza não désse resultado, não abandonarieis a casa para ir para outra? Sim, decerto. Mas aqui, a casa era o globo terrestre. Não havia meio de a deixar pela Lua, Marte, Venus, Jupiter, ou outro qualquer planeta do systema solar. Era portanto necessario descobrir o que se passava, não no vacuo infinito, mas nas zonas atmosphericas. Com effeito, não ha ruido sem que haja ar; e se um ruido se produzia,—o da famosa trombeta,—é porque o phenomeno se dava no meio de uma camada de ar, cuja densidade vae sempre diminuindo e que não se extende a mais de duas em volta do nosso espheroide. Como era natural, milhares de jornaes se apoderaram da questão, trataram-n’a, nas suas diversas formas, esclareceram-n’a ou obscureceram-n’a, referiram factos verdadeiros ou falsos, sobresaltaram ou tranquillisaram os seus leitores,—no interesse da venda da folha,—apaixonaram finalmente as massas. A politica cahiu por terra, e nem por isso os negocios andaram peior. Mas o que era então? Consultaram-se os observatorios do mundo inteiro. Mas para que serviam os observatorios, se nada sabiam responder a esse respeito! Se os astronomos que desdobram em duas ou em tres as estrellas que estão a cem mil milhares de leguas, não eram capazes de reconhecer a origem de um phenomeno cosmico, no raio de alguns kilometros apenas, para que serviam os astronomos? De modo que não se faz idéa da quantidade de telescopios, de oculos, de binoculos, de monoculos, de oculos de vêr ao longe, que estavam apontados para o céo, e de olhos que estavam applicados á ocular dos instrumentos, de todos os alcances e de todas as grossuras, durante essas bellas noites de verão. Talvez centenas de mil, pelo menos. Dez vezes, vinte vezes mais que de estrellas se contam a olho nú na atmosphera celeste. Não! Nunca um eclipse, observado simultaneamente em todos os pontos do globo, attrahíra tanto a attenção. As observações responderam, mas de um modo insufficiente. Cada qual deu a sua opinião, mas diversa. D’ahi uma guerra intestina no mundo douto, durante as ultimas semanas de abril e as primeiras de maio. O observatorio de Paris guardou uma grande reserva. Nenhuma das secções se pronunciou. Na repartição de astronomia mathematica não se tinham dignado observar; na das operações meridianas nada se tinha descoberto; na das observações physicas nada tinham notado; na da meteorologia nada haviam entrevisto; e, finalmente, na dos calculos nada haviam concluido. Pelo menos a confissão era franca. A mesma franqueza houve da parte do observatorio de Montsouris, na estação magnetica do parque Saint-Mur. O mesmo respeito pela verdade na repartição das longitudes. Decididamente, francez quer dizer “franco„. A provincia foi um pouco mais affirmativa. Talvez na noite de 6 a 7 de maio tivesse apparecido um clarão de origem electrica, cuja duração não tinha passado de vinte segundos. No Pico-do-sul aquelle clarão mostrára-se entre as nove e as dez da noite. O observatorio meteorologico do Puy-de-Dôme tinha-o apanhado entre a uma hora e as duas da manhã; no Monte Ventoux, na Provença, entre as duas e as tres horas; em Nice, entre as tres e as quatro; finalmente, em Semnoz-Alpes, entre Anney, o Bourget e Leman, no momento em que a aurora dourava o zenith. Evidentemente não eram para desprezar estas observações em globo. Era fora de duvida que aquelle clarão fôra observado em diversos pontos,—successivamente—no intervallo de algumas horas. Portanto ou elle se produzia em alguns, em uns poucos de fócos, percorrendo a atmosphera terrestre, ou então, se era devido a um fóco unico, é porque esse fóco podía mover-se com uma velocidade que devia alcançar pelo menos duzentos kilometros por hora. Mas quem é que vira ainda, durante o dia, uma cousa tão anormal na atmosphera? Ninguem! Pelo menos havia-se ouvido a trombeta alguma vez, através as camadas aereas? Mas nem o minimo som se sentíra entre o erguer e o pôr do sol. No Reino Unido causou isto uma grande perplexidade. Os observatorios não chegaram a um accôrdo. Greenwich não se entendia com Oxford, apesar de ambos estarem de accôrdo em que “não havia nada„. —Illusão optica! dizia um. —Illusão acustica! respondia outro. E sobre isso disputavam. Em todo o caso, illusão. No observatorio de Berlim, no de Vienna, a discussão ameaçava trazer complicações internacionaes. Mas a Russia, na pessoa do director do observatorio de Ponlkowa, provou-lhes que tinham ambos razão;—isso provinha do ponto de vista em que se collocavam para determinar a natureza do phenomeno, impossivel em theoria e possivel na prática. Na Suissa, no observatorio de Sautis, no cantão de Appenzel, no Righi, no Cabris, nos postos de Saint-Gothard, de S. Bernardo, do Julier, do Simplon, de Zurich, da Somblick nos Alpes tyrolezes, deram prova de uma extrema reserva, a respeito de um facto que ninguem poude nunca contestar,—o que era muito razoavel. Mas na Italia, nas estações meteorologicas do Vesuvio, no posto do Etna, installado na antiga _Casa Inglese_, em Monte Cavo, os observadores não hesitaram em admittir a materialidade do phenomeno, attendendo a que haviam podido vêl-o, um dia, sob o aspecto de uma pequena voluta de vapor, e uma noite sob o aspecto de uma estrella cadente. Mas o que era afinal de contas, ninguem o sabia absolutamente. Com effeito aquelle mysterio começava a fatigar os homens de sciencia, emquanto que continuava a apaixonar, a assombrar mesmo, os humildes e os ignorantes, que teem constituido, constituem e continuarão a constituir a maioria, a immensa maioria, graças a uma sabia lei da natureza. Os astronomos e os meteorologistas teriam portanto renunciado a occupar-se d’elle se, na noite de 26 para 27, o observatorio de Kantokeino, no Finmark, da Noruega, e na noite de 28 para 29, o de Isfjord, em Spitzberg,—norueguezes por um lado e suecos por outro, não tivessem chegado a um accôrdo sobre o seguinte:—no meio de uma aurora boreal tinha apparecido uma especie de grande ave, ou monstro aereo. Se não fôra possivel determinar a sua estructura, pelo menos era fora de duvida que destacava de si corpusculos que detonavam como bombas. Na Europa bem quizeram não pôr em duvida esta observação das estações de Finmark e do Spitzberg. Mas o que pareceu mais phenomenal em tudo isto, foi que os suecos e os norueguezes pudessem chegar a um accôrdo sobre um ponto qualquer. Riram-se da pretendida descoberta em todos os observatorios da America do sul, no Brazil ou no Perú como em la Plata, nos de Australia, em Sydney ou em Adelaide, como em Melbourne. E o riso americano é dos mais communicativos. Um unico chefe de estação meteorologica se apresentou com uma opinião affirmativa n’este ponto, apesar de todos os sarcasmos a que a sua solução podia dar origem. Foi um chinez, o director do observatorio de Zi-Ka-Wey, erigido no meio de uma vasta planicie, a menos de dez leguas do mar, com um horisonte immenso, banhado de ar puro. —Pode ser, disse elle, que o objecto de que se trata seja unicamente um apparelho aviatorio, uma machina volante! Pura zombaria! Mas se as controversias tinham sido vivissimas no Antigo Continente, imagine-se o que seria n’essa porção do continente novo, de que os Estados Unidos occupam o mais vasto territorio. Um Yankee, como se sabe, não hesita no caminho a seguir; opta por um e geralmente pelo que vae directamente ao fim. De modo que os observatorios da Federação americana não hesitaram em se pronunciarem. Se não atiraram com os oculos á cara uns dos outros, é que teriam de os substituir na occasião em que mais necessidade tinham de se servirem d’elles. N’esta questão tão controversa, as observações de Washington, no districto de Columbia, e no de Cambridge, no Estado de Duna, foram de encontro ás de Ann-Arbor, no Michigan. O objecto da disputa não versou sobre a natureza do corpo observado, mas sobre o instante preciso da observação, porque todos pretendiam tel-o visto na mesma noite, á mesma hora, no mesmo minuto, no mesmo segundo, embora a trajectoria do mysterioso mobil não occupasse senão uma mediocre altura acima do horisonte. Ora do Connecticut ao Michigan, do Duna ao Colombia, a distancia é assaz grande para que essa dupla observação, feita ao mesmo tempo, pudesse ser considerada impossivel. Dudley, na Albania, no Estado de Nova York, e West Point, da Academia militar, desmentiram os seus collegas por meio de uma nota que dava a ascenção recta e a declinação do tal corpo. Mas reconheceu-se mais tarde que aquelles observadores se tinham enganado com o corpo, observando um bolide que não fizera mais do que atravessar a camada média da atmosphera. Portanto aquelle bolide não podia entrar em questão. Além d’isso como é que aquelle bolide podia tocar trombeta? Quanto a esta trombeta, em vão buscaram lançar a sua ruidosa fanfarra á conta de illusões acusticas. Nem os ouvidos, nem os olhos enganavam. Tinham visto, tinham ouvido perfeitamente. Na noite de 12 para 13 de maio,—noite sombria,—os observatorios de Yale-College, na Eschola scientifica de Scheffield, tinham podido transcrever alguns compassos de uma phrase musical, em ré maior, a quatro tempos, que dava, nota por nota, rythmo por rythmo, o estribilho do _Chant du Départ_. —Bem! responderam os chocarreiros, é uma orchestra franceza que toca no meio das camadas aereas. Mas gracejar não era responder. É o que fez notar o observatorio de Boston, fundado pela _Atlantic Yron Works Society_, cujas opiniões sobre questões de astronomia e de meteorologia começavam a constituir lei no mundo scientifico. Interveio então o observatorio de Cincinnati, creado em 1870 sobre o monte Lookout, graças á generosidade do sr. Kilgoor, e tão conhecido pelas suas medidas micrometricas das estrellas duplas. O seu director declarou, na mais completa boa fé, que havia o quer que fôsse; que um objecto qualquer se mostrava, em tempos assaz proximos, em diversos pontos da atmosphera, mas que sobre a natureza d’aquelle objecto, as suas dimensões, a sua velocidade, a sua trajectoria, era impossivel dizer nada. Foi então que um jornal, cuja publicidade é numerosa, o _New York Herald_, recebeu de um assignante a seguinte communicação annonyma: “Está ainda na lembrança de todos a rivalidade que trouxe em conflicto, ha alguns annos, os dois herdeiros da Begum de Ragginahra: esse doutor francez Sarrasin, na cidade de Franceville, e o engenheiro allemão Herr Schultze, na cidade de Stahlstadt, situadas ambas na parte sul do Orégon, nos Estados Unidos. “Tambem se não devem ter esquecido que, no intuito de destruir Franceville, Herr Schultze lançou um formidavel apparelho que devia cahir sobre a cidade franceza e anniquilal-a de um só golpe. “Ainda menos se terão esquecido de que esse apparelho, cuja velocidade inicial, ao sahir da bôcca do canhão monstro, fôra mal calculada, foi levado com rapidez superior a dezeseis vezes a dos projectis ordinarios,—isto é, cento e cincoenta leguas por hora,—que não tornou a cahir sobre a terra e que, passado a estado de bolide, circula e deve circular eternamente em volta do nosso globo. “E porque não será esse o corpo em questão, cuja existencia se não pode negar„? Muito engenhoso era este assignante do _New York Herald_. E a trombeta?... Não levava trombeta o projectil de Herr Schultze! Portanto todas essas explicações não explicavam nada, todos esses observadores observavam mal. Restava comtudo a hypothese proposta pelo director de Zi-Ka-Wey. Mas a opinião de um chinez!... Não se imagine que o publico do Antigo e Novo Mundo acabou por se cançar. Não! as discussões continuaram cada vez mais, sem chegarem a um accôrdo. E comtudo, houve um praso de espera. Passaram-se alguns dias, sem que o objecto, bolide ou qualquer outro, fôsse visto, sem que nenhum som de trombeta se ouvisse no ar. Teria o corpo cahido n’algum ponto do globo, onde fôsse difficil encontrar-lhe os vestigios,—no mar por exemplo? Jazeria nas profundezas do Atlantico, do Pacifico, do Oceano Indico? O que dizer a este respeito? Mas, entre 2 e 9 de junho, uma serie de factos novos se deram, cuja explicação, só pela existencia de um phenomeno cosmico, seria impossivel. Em oito dias, os hamburguezes, na ponta da Torre de S. Miguel; os turcos, no mais alto minarete da Santa Sophia; os ruennezes, no extremo do Munster; os americanos, sobre a cabeça da sua estatua da liberdade, á entrada do Hudson, e no fuste do monumento de Washington, em Boston; os chinezes, no vertice do templo dos Quinhentos Genios, em Cantão; os indios, no 16.º pavimento da pyramide do templo de Tanjur; os San-Prietrini, na cruz de S. Pedro de Roma; os inglezes, na cruz de S. Paulo de Londres; os egypcios no angulo agudo da grande pyramide de Gizeh; os parisienses, nos pára-raios da torre de ferro da exposição de 1889, da altura de tresentos metros, puderam ver uma bandeira a fluctuar em cada um d’estes pontos difficilmente accessiveis. E essa bandeira era um panno preto, semeado de estrellas, com um sol de ouro no centro. CAPITULO II DE COMO OS MEMBROS DO WELDON-INSTITUTE DISPUTAM ENTRE SI, SEM CHEGAREM A UM ACCORDO —E o primeiro que disser o contrario ... —Serio!... Pois dil-o-hão, se vier a proposito dizer! —E mesmo apesar das suas ameaças!... —Tome conta nas suas palavras, Bat Fyn! —E nas suas, Uncle Prudent! —Sustento que o helice não deve ficar na parte detraz! —Tambem nós sustentamos! tambem nós! responderam cincoenta vozes, confundidas n’um som unisono. —Não!... Deve ficar na parte de deante. —Na parte de deante! responderam cincoenta outras vozes, com um vigor não menos notavel. —Nunca chegaremos a um accôrdo! —Nunca! Nunca! —Então para que serve disputar? —Não é disputar!... é discutir! Ninguem tal diria, ao ouvir as replicas, as objurgatorias, as vociferações, que enchiam a sala das sessões, havia um bom quarto de hora. É verdade que aquella sala era a maior do Weldon-Institute, o club mais celebre, entre todos, estabelecido em Walnut Street, em Philadelphia, Estado de Pensylvania, nos Estados Unidos da America. Ora na vespera, na cidade, a proposito da eleição de um acendedor de gaz, houvera manifestações publicas, meetings ruidosos, troca de pancadaria de parte a parte. D’ahi uma effervescencia que não estava ainda serenada, e d’onde provinha talvez aquella sobreexcitação manifestada pelos membros do Weldon-Institute. Comtudo não passava de uma reunião de “balonistas„ discutindo a questão ainda palpitante,—mesmo n’aquella épocha,—da direcção dos balões. Passava-se isto n’uma cidade dos Estados Unidos, cujo desenvolvimento fôra ainda mais rapido que o de Nova York, de Chicago, de Cincinnati, de S. Francisco,—uma cidade maior que Berlim, Manchester, Edimburgo, Liverpool, S. Petersburgo, uma cidade, finalmente, que conta hoje cêrca de um milhão e duzentas mil almas, e passa por ser a quarta cidade maior do mundo, depois de Londres, Paris, e Nova York. Philadelphia é quasi uma cidade de marmore, com casas em grande estylo, e estabelecimentos publicos sem rivaes. O mais importante de todos os collegios de Nova York é o collegio Girard, e está em Philadelphia. A maior ponte de ferro, é a ponte lançada sobre o rio Schuylkill, e está na Philadelphia. O mais bello templo da Franco-Maçonaria, é o templo Maçonico, que está em Philadelphia. Finalmente, o maior club dos adeptos da navegação aerea está em Philadelphia. E vamos visital-o n’esta noite de 12 de julho, que lhe acharemos algum interesse. N’essa grande sala agitavam-se, moviam-se, gesticulavam, falavam, discutiam, disputavam—e todos de chapéo na cabeça,—uns cem balonistas, sob a auctoridade de um presidente, ajudado por um secretario e por um thesoureiro. Não eram engenheiros de profissão; eram simples amadores de tudo que diz respeito á aerostatica, mas amadores façanhudos, e particularmente inimigos dos que desejam oppôr aos aerostatos os apparelhos “mais pesados que o ar„, machinas volantes, navios aereos e o mais. Nada era para admirar que essa boa gente nunca chegasse a encontrar a direcção dos balões, quando o presidente nem sequer lograva dirigil-os a elles proprios. Aquelle presidente, bem conhecido em Philadelphia, era famigerado. Chamava-se Uncle Prudent. Prudent, pelo seu nome de familia. Quanto ao qualificativo Uncle, não era para admirar na America, onde se pode ser tio sem ter sobrinho nem sobrinha. Tio, entre elles, como n’outras partes se chama pae, a determinadas pessoas que nunca exerceram a missão da paternidade. Tio Prudent era uma personagem importante, e a despeito do seu nome, era citado pela sua ousadia. Riquissimo, o que não faz mal a ninguem, mesmo nos Estados Unidos. E como não havia de ser rico, se possuia uma grande parte das acções do Niagara Falls? Fôra n’aquella occasião fundada uma sociedade de engenheiros, em Buffalo, para explorar as cataratas. Excellente negocio. Os sete mil e quinhentos metros cubicos que o Niagara verte por segundo, produzem sete milhões de cavallos a vapor. Aquella fôrça enorme, distribuida por todas as officinas estabelecidas n’um raio de quinhentos kilometros, dava annualmente uma economia de quinhentos milhões de francos, cuja uma parte entraria nas caixas da sociedade e em particular nas algibeiras de Uncle Prudent. Além d’isso era solteiro, vivia modestamente, tendo por unico pessoal domestico o seu creado Frycollin, que aliás não merecia estar ao serviço de um homem tão audacioso. Ha d’estas anomalias. Está claro que Uncle Prudent tinha amigos, visto ser rico; mas tinha tambem inimigos, por ser presidente do club, e entre esses inimigos contava todos os que invejavam essa situação. Entre os mais encarniçados, deve-se citar o secretario do Weldon-Institute. Era Phil Evans riquissimo tambem, porque dirigia a _Walton Watch Company_, importante armazem de relogios, que fabrica por dia quinhentos movimentos mechanicos, e lança no mercado productos comparaveis aos melhores da Suissa. Phil Evans poderia passar por um dos homens mais felizes do mundo e mesmo dos Estados Unidos, se não fôra a situação de Uncle Prudent. Como elle, tinha quarenta annos; tinha como elle uma saude a toda a prova; como elle uma audacia indiscutivel; como elle, pouco desejo de trocar as vantagens certas do celibato pelas duvidas do casamento. Eram dois homens talhados para se comprehenderem, mas que não se comprehendiam; e ambos de uma extrema violencia de caracter; um a quente, o Uncle Prudent; outro a frio, Phil Evans. E como é que Phil Evans não fôra nomeado presidente do club? Os votos tinham-se dividido por egual entre Uncle Prudent e elle. Vinte vezes se procedeu ao escrutinio, e vinte vezes não se podéra estabelecer a maioria nem por um nem por outro. Situação embaraçosa, que poderia durar mais que a vida dos dois candidatos. Um dos membros do club propoz então um meio de se dividirem os votos. Foi Jem Cip, o thesoureiro de Weldon-Institute. Jem Cip era um vegetariano convicto, ou por outra, um d’esses leguministas, dos que proscrevem todo o alimento animal e liquidos fermentados, meio brahmanes, meio mussulmanos; um rival dos Niewman, dos Pitman, dos Ward, dos Davie, que teem illustrado a seita d’esses maniacos inoffensivos. N’esta occorrencia, Jem Cip foi sustentado por um outro membro do club, William T. Forbes, director de uma grande officina, onde se fabríca a glucose, tratando os trapos por meio do acido sulfurico, o que permitte fazer assucar com pannos velhos. Era um homem bem posto, esse Wiliam T. Forbes, pae de duas encantadoras raparigas: miss Dorothéa, chamada Doll, e miss Martha, chamada Mat, que davam o tom na melhor sociedade de Philadelphia. Resultou pois, da proposta de Jem Cip, apoiado por Wiliam T. Forbes e alguns outros, que se resolveu nomear o presidente do club por meio do “ponto médio„. Com effeito este modo de se fazer a eleição podia ser applicado em todos os casos em que se tratava de eleger o mais digno; e grande numero de americanos de bom senso pensavam já em o empregar para a nomeação do presidente da Republica dos Estados Unidos. Sobre dois quadrados de uma completa brancura, fôra traçada uma linha preta. O comprimento de cada uma d’estas linhas era mathematicamente o mesmo, porque fôra determinado com tanta exactidão como se se tratasse da base do primeiro triangulo n’um trabalho de triangulação. Feito isto, os dois quadros eram expostos no mesmo dia no meio da sala das sessões; os dois concorrentes muniam-se cada um de uma agulha muito fina e caminhavam simultaneamente para o quadro que lhes estava destinado. Aquelle dos dois rivaes que pregasse a agulha mais ao meio da linha, seria proclamado presidente do Weldon-Institute. É claro que a operação devia ser feita de repente, sem hesitações, sem tacteamentos, unicamente pela firmeza da vista. Ter o compasso no olho, segundo a phrase popular. Uncle Prudent espetou a sua agulha, ao mesmo tempo que Phil Evans a sua. Depois tomou-se a medida, afim de decidir qual dos concorrentes se approximára mais do ponto médio. Oh! prodigio! Tal fôra a precisão das operações que as medidas não deram differença sensivel. Se não era precisamente o meio mathematico da linha, era tão pouco sensivel o afastamento entre as duas agulhas, que parecia ser o mesmo nas duas. D’ahi grande embaraço na assembléa. Felizmente um dos membros, Truk Milnor, insistiu por que as medidas fôssem de novo tomadas por meio de uma regua graduada pelos processos da machina micrometrica do sr. Perreaux, que permitte dividir o millimetro em quinhentas partes. Esta regua, que dá quinze centesimos de millimetro traçados com uma lasca de diamante, serve para verificar as medidas, e tendo-se lido as divisões por meio do micrometro, obtiveram-se os resultados seguintes: Uncle Prudent approximára-se do ponto médio menos de seis quinze centesimos de millimetro, Phil Evans menos de nove quinze centesimos. E ahi está porque Phil Evans não ficou senão secretario do Weldon-Institute, emquanto que Uncle Prudent foi proclamado presidente do club. Uma differença de tres quinze centesimos de millimetro foi o sufficiente para que Phil Evans votasse a Uncle Prudent um d’esses odios que, por serem latentes, não são menos ferozes. N’aquella épocha, depois das experiencias tentadas no ultimo quartel do seculo XIX, a questão dos balões dirigiveis não deixára de fazer alguns progressos. As barquinhas munidas de helices propulsivos, suspensas em 1852 aos aerostatos de forma alongada de Henry Giffard, em 1872, aos de Depuy de Lome, em 1883, aos de Tissandier Irmãos, em 1884, aos dos capitães Krebs e Renard, haviam dado certos resultados que era necessario ter em consideração. Mas se estas machinas, immersas n’um meio mais pesado do que ellas, manobrando sob o impulso de um helice, obliquando com a linha de vento, servindo-se mesmo de uma brisa contraria para voltar ao seu ponto de partida, eram d’esse modo realmente “dirigidas„, não tinham podido conseguir este resultado senão graças a umas circumstancias extremamente favoraveis. Em vastos recintos fechados e cobertos, perfeitamente! N’uma atmosphera serena, muito bem! Com um vento brando de cinco a seis metros por segundo, ainda vá! Mas a verdade é que nada de positivo se obtivera. Contra um vento de moinho, de oito metros por segundo, aquellas machinas ficariam pouco mais ou menos estacionarias; contra uma brisa fresca,—dez metros por segundo,—caminhariam para traz; vinte e cinco a trinta metros por segundo, seriam arrebatadas como uma penna; no meio de um furacão, quarenta e cinco metros por segundo, correriam talvez o risco de serem espedaçadas; finalmente com um d’esses cyclones que chegam a mais de cem metros por segundo, não ficaria um pedaço! Era portanto sabido que, mesmo depois das experiencias tão faladas dos capitães Krebs e Renard, se os aerostatos dirigiveis tinham ganho uma certa velocidade, era justamente o necessario para se manterem contra uma simples brisa. D’ahi a impossibilidade de usar praticamente, até então, d’esse modo de locomoção aerea. Seja como fôr, ao lado d’este problema da direcção dos aerostatos, isto é, dos meios empregados para lhes dar uma velocidade propria, a questão dos motores tinha feito progressos incomparavelmente mais rapidos. Ás machinas a vapor de Henry Giffara, ao emprego da fôrça muscular de Depuy de Lome, tinham-se substituido a pouco e pouco os motores electricos. Ás baterias de bichromato de potassa, formando elementos montados em tensão, os srs. Tissandier Irmãos deram uma velocidade de quatro metros por segundo. As machinas dynamo-electricas dos capitães Krebs e Renard, desenvolvendo uma fôrça de doze cavallos, imprimiram uma velocidade de seis metros e cincoenta, termo médio. E então, n’esse caminho á busca do melhor motor, os engenheiros e especialistas da electricidade tinham procurado approximar-se cada vez mais d’esse desideratum que se pode chamar “um cavallo de vapor n’uma caixa de relogio„. De modo que a pouco e pouco os effeitos da pilha, de que os capitães Krebs e Renard tinham guardado silencio, eram ultrapassados e, depois d’elles, os aerostatos tinham podido servir-se de motores, cuja ligeireza ia crescendo ao par da sua fôrça. Havia portanto já com que animar os adeptos que acreditavam na utilisação dos balões dirigiveis. E, no entanto, quantos espiritos lucidos se negavam a admittir esta utilisação! Com effeito, se o aerostato encontra um ponto de apoio no ar, pertence a esse meio em que está todo immerso. Em taes condições como é que a sua massa, que dá tanto flanco ás correntes da atmosphera, poderia fazer frente a ventos médios, por mais poderoso que fôsse o seu propulsor? Era a eterna questão, mas esperavam resolvel-a empregando apparelhos de grandes dimensões. Ora acontecia que, n’esta lucta de inventores á busca de um motor poderoso e leve, os americanos se tinham approximado cada vez mais do _desideratum_. Um apparelho dynamo-electrico, baseado no emprego de uma pilha nova, cuja composição era ainda um mysterio, tinha sido comprado ao seu inventor, um chimico de Boston até então desconhecido. Calculos feitos com o maior cuidado, diagrammas levantados com a maior exactidão, demonstravam que com aquelle apparelho, actuando n’um helice de dimensão conveniente, se poderia obter deslocamentos de dezoito a vinte metros por segundo. Na realidade, sería magnifico! —E não é caro! tinha accrescentado Uncle Prudent, entregando ao inventor, em troca do seu recibo em forma, o ultimo maço dos cem mil dollars em papel, com que lhe pagavam o seu invento. Immediatamente, o Weldon-Institute puzera mãos á obra. Quando se trata de uma experiencia que pode ter alguma utilidade prática, o dinheiro sae de boa vontade das algibeiras americanas. Os fundos affluem sem que mesmo seja necessario constituir uma sociedade por acções. Tresentos mil dollars,—o que faz a somma de quinhentos mil francos,—vieram ao primeiro appello amontoar-se nos cofres do club. Os trabalhos começaram sob a direcção do mais celebre aeronauta dos Estados Unidos, Harry W. Tinder, immortalisado pelas suas tres ascensões, entre mil: uma durante a qual subira a doze mil metros, mais alto que Guy-Lussac, Coxwell, Sivel, Crocé-Spinelli, Tissandier, Glaisher; a outra, durante a qual atravessára toda a America, de Nova York a S. Francisco, indo muitas centenas de leguas além dos itinerarios de Nodar, dos Godard, e de tantos outros, não falando n’esse John Wise que tinha feito mil cento e cincoenta milhas de S. Luiz ao condado de Jefferson; a terceira, finalmente, que terminára por uma quéda horrorosa de mil e quinhentos pés, á custa de uma simples escoriação no pulso direito, emquanto que Pilatre de Rozier, menos feliz, por ter cahido apenas de setecentos pés, ficára morto de um só golpe. No momento em que esta historia começa, podia-se dizer que o Weldon-Institute entrava abertamente no assumpto. Nos estaleiros de Turner, na Philadelphia, extendia-se um enorme aerostato, cuja solidez ia ser experimentada, comprimido o ar sob uma forte pressão. Este era o que, entre todos, merecia o nome de balão monstro. Com effeito, quanto media o _Gigante_ de Nadar? Seis metros cubicos. Quanto o balão Giffard, da Exposição de 1878? Vinte e cinco mil metros cubicos, com dezoito metros de raio. Comparem estes tres aerostatos com a machina aerea do Weldon-Institute, cujo volume era de quarenta mil metros cubicos, e comprehenderão que Uncle Prudent e seus collegas tinham algum direito para se encherem de orgulho. Não sendo esse balão destinado a explorar as altas camadas da atmosphera, não se chamava _Excelsior_, qualificativo muito querido dos americanos. Não! chamava-se simplesmente o _Go a head_,—o que quer dizer:—“Ávante„—e não lhe restava mais do que justificar o seu nome, obedecendo a todas as manobras do seu capitão. N’aquella épocha, a machina dynamo-electrica estava quasi completamente concluida, segundo o systema cujo privilegio fôra adquirido pelo Weldon-Institute. Podia-se contar que antes das seis semanas, o _Go a head_ largaria vôo através do espaço. Como vimos, todas as difficuldades da machina não estavam ainda removidas. Muitas sessões tinham sido consagradas a discutir, não a forma do helice, nem as suas dimensões, mas a questão de saber se seria collocado atraz do apparelho, como haviam feito os Irmãos Tissandier, ou adeante, como haviam feito os capitães Krebs e Renard. Inutil é accrescentar que, n’aquella discussão, os partidarios dos dois systemas tinham chegado a vias de facto. O grupo dos “adeantistas„ egualava em numero o grupo dos “atrazistas„. Uncle Prudent, cujo voto teria de preponderar no caso do empate, Uncle Prudent, educado na eschola do professor Buridan, não tinha chegado ainda a pronunciar-se. D’ahi a impossibilidade de se entenderem, a impossibilidade de pôrem o helice no seu logar. Isso podia durar muito tempo, se o governo não entreviesse. Mas nos Estados Unidos, como se sabe, o governo não gosta de se entremetter nas questões particulares, nem no que lhe não diz respeito, e n’isso tem toda a razão. Estavam as cousas n’esse ponto, e aquella sessão de 13 de junho ameaçava não acabar ou antes acabar no meio do mais espantoso tumulto; tanto as injurias respondiam a injurias, os sôccos ás injurias, as bengaladas aos sôccos, os tiros de revolver ás bengaladas, quando ás oito e trinta e sete se produziu uma diversão. O porteiro do Weldon-Institute, frio e tranquillo como um policia no meio das tempestades de um meeting, approximára-se da mesa da presidencia, e entregára-lhe uma carta. Esperava pelas ordens que a Uncle Prudent lhe conviesse dar. Uncle Prudent fez resoar a trombeta de vapor, que lhe servia de campainha presidencial, porque nem o sino de Kremlin lhe bastaria. Mas o tumulto não diminuiu por isso. Então o presidente descobriu-se, e um meio silencio se obteve, graças áquella medida extrema. —Uma communicação! disse Uncle Prudent, depois de tomar uma enorme pitada, da caixa de rapé que nunca o largava. —Fale! fale! responderam noventa e nove vozes, por um acaso uniformes n’este ponto. —Meus caros collegas, um extrangeiro pede para ser recebido na sala das nossas sessões. —Nunca! responderam todas as vozes. —Deseja provar-nos, ao que parece, respondeu Uncle Prudent, que acreditar na direcção dos balões é acreditar na mais absurda das utopias. Um grunhido acolheu esta declaração. —Que entre! Que entre! —Como se chama esse singular personagem? perguntou Phil Evans. —Robur, respondeu Uncle Prudent. —Robur!... Robur!... Robur!... rugiu a assembléa em pêso. E se o accôrdo se fizera tão rapidamente sobre aquelle nome singular, é porque o Weldon-Institute esperava poder descarregar sobre aquelle que o usava o seu exaspero a trasbordar. A tempestade tinha-se apasiguado um instante, pelo menos na apparencia. Porque, como é que uma tempestade podia acalmar n’um povo que as envia ás duas ou tres por mez, para a Europa, sob forma de borrascas? CAPITULO III DE COMO UM NOVO PERSONAGEM NÃO TEVE NECESSIDADE DE SER APRESENTADO, POIS SE APRESENTOU ELLE PROPRIO —Cidadãos dos Estados Unidos da America, eu chamo-me Robur, e sou digno d’este nome. Tenho quarenta annos, embora não pareça ter mais de trinta; tenho uma constituição de ferro, uma saude a toda a prova, uma notavel fôrça muscular, um estomago que pareceria excellente, mesmo no mundo dos abestruzes. Isto quanto ao physico. Todos o escutavam. Sim! Os turbulentos ficaram de repente estupefactos com o inesperado d’aquelle discurso, _pro facie sua_. Sería um louco ou um mystificador? Seja como fôr, o facto é que impunha e se impunha. Nem o mais leve sopro se sentia agora n’aquella assembléa, onde havia pouco se desencadeava a tempestade. A calma após o marulhar das ondas. Além de que Robur parecia bem ser o homem que elle dizia. Estatura mediana, geometricamente quadrado de tronco,—de modo que formava, por assim dizer, um trapesio regular, cujo maior dos lados parallelos era formado pela linha das espaduas. Sobre esta linha, e presa por um pescoço robusto, uma enorme cabeça espheroidal. A darmos razão ás theorias da analogia, com que animal se parecia elle? Com um touro; mas um touro de physionomia intelligente.—Olhos que á menor contrariedade se tornavam incandescentes, e, por cima, uma permanente contracção do musculo sobreciliar, signal de extrema energia. Cabellos curtos, um tanto crespos, com reflexos metallicos, como sería um topete em palha de ferro. Amplo peito, que se erguia e se abaixava com movimentos de folle. Braços mãos, pernas, pés, tudo digno do tronco. Nem sombra de bigode, nem suissa: uma larga barba de marinheiro, á americana, o que deixava ver os encontros da queixada, cujos musculos masseters deviam ter uma fôrça formidavel. Calculou-se,—e o que se não tem calculado?—que a pressão de uma mandibula de crocodilo vulgar pode attingir quatrocentas atmospheras, quando a do cão de caça, de grande estatura, não desenvolve mais de cem. Chegou-se mesmo a estabelecer a seguinte fórmula: se um kilo de cão produz oito kilos de fôrça masseterica, um kilo de crocodilo deve produzir doze. Pois bem:—um kilo do sobredito Robur devia produzir pelo menos dez. Estava portanto entre o cão e o crocodilo. De que paiz vinha então aquelle notavel typo? É o que sería difficil dizer. Entretanto elle exprimia-se correntemente em inglez, sem aquella accentuação um tanto arrastada que distingue os Yankees da Nova Inglaterra. Continuou nos seguintes termos: —Agora quanto ao moral, respeitaveis cidadãos. Tendes deante de vós um engenheiro cujo moral não é inferior ao seu physico. Não tenho medo de ninguem. Tenho uma fôrça de vontade que jámais cedeu a nenhuma outra. Deante de um fim a que eu me propuzesse, em vão a America toda, em vão o mundo inteiro se colligariam para impedir que eu o realisasse. Quando tenho uma idéa, entendo que a devem partilhar, e não supporto contrariedades. Insisto n’estes pormenores, respeitaveis cidadãos, porque é necessario que me conheçaes a fundo. Entendem talvez que eu falo demasiadamente em mim. Não importa! E agora reflecti antes de me interromperem, porque vim no proposito de vos dizer cousas que não terão talvez o dom de vos ser agradaveis. Um ruido de resaca começou a espalhar-se pelas primeiras bancadas da assembléa,—signal de que o mar não tardaria a tornar-se tempestuoso. —Fale, digno extrangeiro,—limitou-se a dizer Uncle Prudent, que se continha com esforço. E Robur falou como d’antes, sem se preoccupar com o auditorio. —Sim! Bem sei! Depois de um seculo de experiencias sem resultado, de tentativas inuteis, ha ainda espiritos mal equilibrados que se obstinam em acreditar na direcção dos balões. Imaginam que um motor qualquer, electrico ou outro, pode ser applicado ás suas pretenciosas geringonsas, que offerecem tamanho flanco ás correntes atmosphericas. Imaginam que podem ser senhores de um aerostato, como se é senhor de um navio na superficie das aguas. Pois pelo facto de alguns inventores, por um tempo calmo, conseguirem, quer obliquar com o vento, quer subir com uma brisa ligeira, significa isso que se torna prática a direcção de apparelhos aereos mais leves que o ar? Deixem-se d’isso! Sois aqui uns cem que acreditando na realisação dos vossos sonhos, lançaes, não á agua, mas ao ar, milhares de dollars. Pois bem! isso é luctar com o impossivel! Cousa singular! deante d’esta affirmação, os membros do Weldon-Institute não tugiram nem mugiram. Ter-se-hiam tornado tão surdos, quanto pacientes? Guardariam reserva, a vêr até onde se atrevia a ir esse audacioso contradictor? Robur continuou: —Um balão!... quando para obter um aligeiramento de um kilogramma, é necessario um metro cubico de gaz! Um balão, que tem a pretensão de resistir ao vento com o auxilio do seu mechanismo, quando o impulso de um forte vento na véla de um navio não é inferior á fôrça de quatrocentos cavallos; quando se viu, ao oéste da ponte de Tay, que o furacão exercêra uma pressão de quarenta kilos por metro quadrado! Um balão! quando jámais a natureza construiu sobre esse systema nenhum ser que vôe, que esteja munido de azas como as aves, ou de membranas como certos peixes e certos mammiferos!... —Mammiferos?... exclamou um dos membros do club. —Sim! o morcego, que vôa, se me não engano! Porventura o meu interruptor ignora que esse volatil é um mammifero, e já se viu alguma vez fazer uma omelette com os ovos do morcego? Com isto o interruptor recolheu as suas futuras interrupções, e Robur continuou com a mesma desenvoltura: —Mas quer isto dizer que o homem deva renunciar á conquista do ar, a transformar os costumes civis e politicos do velho mundo, servindo-se d’esse admiravel meio de locomoção? Não! E do mesmo modo que elle se tornou senhor dos mares, com o navio, por meio do leme e da véla, da roda e do helice, do mesmo modo se tornará senhor do espaço atmospherico por meio de apparelhos mais pesados do que o ar, porque é necessario ser-se mais pesado do que elle, para se ser mais do que elle forte. D’esta vez a assembléa explodiu. Que descarga de gritos partindo de todas as bôccas, dirigidas contra Robur, como outros tantos canos de espingarda ou guellas de canhão! Pois não precisava de resposta aquella verdadeira declaração de guerra, lançada no campo dos balonistas? Não era a lucta que ia começar entre o “Mais ligeiro„ e o “Mais pesado que o ar„? Robur nem pestanejou. Com os braços cruzados sobre o peito, esperava corajosamente que o silencio se restabelecesse. Uncle Prudent, com um gesto, ordenou que o fogo cessasse. —Sim, continuou Robur. O futuro é das machinas volantes. O ar é um ponto de apoio solido. Imprima-se a uma columna d’este fluido um movimento ascensional de quarenta e cinco metros por segundo, e um homem poderá manter-se na sua parte superior, se as solas dos seus sapatos medirem uma superficie de um oitavo de metro quadrado apenas. E se a velocidade da columna fôr elevada a noventa metros, poderá caminhar a pés nús. Ora fazendo fugir, sob as hastes de um helice, uma massa de ar com aquella rapidez, obtem-se o mesmo resultado. O que Robur estava dizendo era o que antes d’elle tinham dito todos os partidarios da aviação, cujos trabalhos deviam, lentamente, mas com um effeito seguro, conduzir á solução do problema. Cabe aos srs. de Ponton d’Amécourt, de La Landelle, Nadar, de Luzy, de Louvrié, Liais, Béléguic, Moreau, irmãos Richard, Babinet, Jobert, du Temple, Salives, Penaud, de Villeneuve, Gauchot e Tatin, Michel Loup, Edison, Planavergne e tantos outros finalmente, a honra de haverem propagado idéas tão simples! Abandonadas e tornadas a adoptar muitas vezes, não podiam deixar de triumphar um dia. Aos inimigos da aviação, que pretendiam que a ave não se sustem senão pelo facto de aquecer o ar com que se entufa, a resposta não tardou. Pois não haviam provado que uma aguia, que pesasse cinco kilos, teria de se encher de cincoenta metros cubicos d’esse fluido quente, só para se suster no espaço? Foi o que Robur demonstrou, com uma logica innegavel, no meio da vozearia que se levantava de todos os lados. E como conclusão, eis as phrases que elle lançou á cara dos balonistas: —Com os vossos aerostatos, nada podereis, a nada chegareis, não vos atrevereis a cousa alguma. O mais intrepido dos vossos aeronautas, John Wise, apesar de ter já feito uma travessia aerea de mil e duzentas milhas acima do continente americano, teve de renunciar ao seu projecto de atravessar o Atlantico. E depois, não vos atrevestes a avançar um passo, um só, n’esse caminho. —Meu caro senhor, disse então o presidente, que se esforçava por estar tranquillo, não se esqueça do que disse o nosso immortal Franklin, quando appareceu o primeiro _montgolfière_, no momento em que o balão ia nascer. “Não passa de uma creança, mas ha de crescer„. E cresceu ... —Não, presidente, não! Não cresceu ... Engordou apenas ... o que não é a mesma cousa. Era um ataque directo aos projectos do Weldon-Institute, que havia decretado, sustentado, pago a construcção, de um aerostato monstro. De modo que em breve se cruzaram na sala propostas do seguinte teor, bem pouco tranquillisadoras: —Abaixo o intruso! —Expulsem-n’o da tribuna!... —Para lhe provar que é mais pesado que o ar! E muitas outras. Mas não passavam de palavras; não chegavam a vias de facto. Robur impassivel, poude ainda exclamar; —O progresso não pertence aos aerostatos, cidadãos balonistas, mas aos apparelhos volantes. O passaro vôa, e não é um balão, é um machinismo!... —Sim! vôa, exclamou o fogoso Bat T. Fyn, mas vôa contra todas as regras da mechanica! —Sério! respondeu Robur, encolhendo os hombros. E continuou: —Depois que se estudou o vôo dos pequenos e grandes voadores, esta idéa simplicissima prevaleceu:—é que basta imitar a natureza, porque ella nunca se engana. Entre o albatrós que a voar dá com as azas dez vezes por minuto, entre o pelicano que dá setenta ... —Setenta e uma! disse uma voz zombeteira. —E a abelha que dá cento e noventa e duas, por segundo ... —Cento e noventa e tres! exclamaram, continuando a zombar. —E a môsca vulgar que dá tresentas e trinta ... —Tresentas e trinta e meia! —E o mosquito que dá milhões ... —Não ... milhares de milhões! Mas Robur não interrompeu a sua demonstração. —Entre estes diversos vôos ... —Oh! vae uma grande differença! replicou uma voz. — ... entre estas divergencias ha a possibilidade de encontrar uma solução prática. No dia em que o sr. Lucy poude consignar que um escaravelho, esse insecto que não pesa mais de duas grammas, podia com um pêso de quatrocentas grammas, isto é, duzentas vezes o seu pêso, o problema da aviação estava resolvido. Além d’isso, estava demonstrado que a superficie da aza decresce relativamente, á medida que vão augmentando a dimensão e pêso do animal. D’ahi chegou-se a imaginar e a construir mais de sessenta apparelhos ... —Que nunca puderam voar! exclamou o secretario Phil Evans. —Que voaram e continuaram a voar, respondeu Robur, sem se desconcertar. E quer lhes chamem streophoros, helicopteros, orthoptheros; quer, á imitação do que fizeram com respeito á palavra _navis_, tirando d’ella a palavra nave ou navio, queiram deduzir o seu nome de _avis_, o caso é que se chega ao apparelho cuja invenção deve tornar o homem senhor do espaço. —Oh! o helice! observou Phil Evans. Mas a ave não tem helice ... que nos conste! —Tem! respondeu Robur. Como o demonstrou o sr. Penaud, de facto a ave torna-se helice, e o seu vôo é helicoptero. De modo que o motor do futuro é o helice ... “D’un pareil maléfice, _Saint Hélice_, preservez-nous„!... cantarolou um dos assistentes que, por acaso, tinha de cór este estribilho do _Zampa_ de Herold. E todos se puzeram a cantal-o n’umas taes intonações, que deviam ter feito estremecer o compositor no seu tumulo. Depois, quando as ultimas notas se perderam n’um espantoso charivari, Uncle Prudent, aproveitando de um momento de socego, entendeu dever dizer: —Cidadão extrangeiro, até aqui temol-o deixado falar sem o interromper ... Ao que parece, para o presidente do Weldon-Institute, aquelles gritos, aquellas réplicas, aquelles desconchavos, não eram mais do que simples troca de argumentos. —Comtudo, continuou elle, lembrar-lhe-hei que a theoria da aviação está de antemão condemnada e rejeitada pela maior parte dos engenheiros americanos e extrangeiros. Um invento que tem no seu passivo a morte de Sarrassin Volant, em Constantinopla, a do monge Voador em Lisboa, a de Letur em 1852, a de Groof, em 1864, sem contar com as victimas de que me não lembro, quando mais não fôsse que o mythologico Icaro ... —Esse systema, respondeu Robur, não é mais condemnavel do que esse cujo martyrologio contém os nomes de Pilatre de Rozier, em Calais, de madame Blancard, em Paris, de Donaldson e Grimwood, que cahiram no lago Michigan, de Sivel e de Crocé-Spinelli, d’Eloy e de tantos outros que se não podem esquecer. Era uma resposta “du tac au tac„, como se diz em esgrima. —Além de que, continuou Robur, com os vossos balões, por mais aperfeiçoados que sejam, não podeis obter uma velocidade verdadeiramente prática. Levareis dez annos a dar a volta ao mundo, quando uma machina volante o poderá fazer em oito dias! Novos gritos de protesto e de negação, que duraram tres grandes minutos, até ao momento em que Phil Evans poude tomar a palavra. —Meu caro sr. aviador, disse este, o senhor que acaba de nos encarecer os beneficios da aviação, já porventura “aviou„ alguma vez? —Sim, senhor! —Já fez a conquista do ar? —Talvez! —Hurrah pelo Robur, o Conquistador! exclamou uma voz ironica. —Pois sim, senhores! Robur, o Conquistador! acceito esse nome e hei de usal-o, porque tenho direito a elle. —Permitta-me que duvidemos! exclamou Jem Cip. —Meus senhores, continuou Robur, com o sobr’olho franzido, quando venho discutir seriamente uma cousa seria, não admitto que me respondam com desmentidos, e eu gostava de saber o nome do meu interruptor. —Chamo-me Jem Cip ... e sou legumista ... —Cidadão Jem Cip, respondeu Robur, eu sabia que os legumistas teem geralmente os intestinos mais longos que os dos outros homens, pelo menos uma boa toeza. Pois já é bastante; e não me obrigue a extendel-os ainda mais, começando primeiro pelas orelhas ... —Ponham-n’o a andar! —Para o meio da rua! —Para fora d’aqui! —A lei de Lynch! —Torçam-n’o em forma de helice!... O furor dos balonistas chegára ao cumulo. Tinham-se levantado todos, e rodeavam a tribuna. Robur desapparecia no meio de uma floresta de braços que se agitavam, como se fôssem soprados pela tempestade. Em vão a trombeta a vapor soltava notas no ar, por sobre a assembléa. N’essa tarde, a Philadelphia podia ter julgado que o fogo devorava um dos seus quarteirões, e que toda a agua da Scheylkill-river não bastava para o extinguir. De repente, fez-se no tumulto um movimento de recúo. Robur, tirando as mãos das algibeiras, extendia os punhos para as primeiras filas d’aquelles obstinados sujeitos. N’esses punhos tinha dois _boxes_ á americana, que são revolvers ao mesmo tempo, e aos quaes basta a pressão dos dedos para os fazer disparar: verdadeiras metralhadoras de algibeira. N’isto, aproveitando não só a hesitação dos assistentes, mas tambem o silencio que acompanhára aquella hesitação: —Decididamente, disse elle, não foi Americo Vespucio quem descobriu o Novo Mundo; foi Sebastien Cabot! Não sois americanos, cidadãos balonistas! Não passaes de comedian ... No mesmo instante, quatro ou cinco tiros se dispararam no ar. Não feriram ninguem. No meio do fumo, o engenheiro desapparecia; e quando o fumo se dissipou não se encontrou vestigio algum de Robur! Robur, o Conquistador, tinha desapparecido, como se algum apparelho aviatorio o tivesse levado pelo ares. CAPITULO IV DE COMO A PROPOSITO DO CREADO FRICOLLIN O AUCTOR PROCURA REHABILITAR A LUA É claro que mais de uma vez, em consequencia de discussões tempestuosas, ao sahir das sessões, tinham os membros de Weldon-Institute enchido de clamores a Walnut-street e as ruas adjacentes. Mais de uma vez os habitantes d’aquelle quarteirão se tinham justamente queixado d’aquellas tumultuosas discussões que os iam perturbar até nos proprios domicilios. Mais de uma vez, finalmente, os _policemens_ tinham tido de entrevir para assegurar o transito dos que passavam, na maior parte muito indifferentes á questão da navegação aerea. Mas, antes d’aquella noite, nunca o tumulto tomára taes proporções, nunca as queixas tinham sido mais bem fundadas, nunca a intervenção da policia fôra mais necessaria. Comtudo os membros do Weldon-Institute tinham uma certa desculpa. Nunca haviam esperado que os viessem atacar na sua propria casa. Áquelles obsecados pelo “mais ligeiro que o ar„ um, não menos obsecado pelo “mais pesado„, tinha dito cousas muito desagradaveis. Depois, no momento em que o iam tratar como elle merecia, eclipsára-se. Ora, isto clamava por uma vingança. Para deixar impunes taes injurias, era preciso não ter sangue americano nas veias! Filhos de America, tratados como filhos de Cabot! Pois não era um insulto, tanto mais que cahia certo,—historicamente? Os membros do club correram pois, em grupos, á Walnut-street, depois ás ruas vizinhas, e depois pelo bairro dentro. Dispertaram os habitantes. Obrigaram-os a deixarem revistar as suas casas, contentando-se com indemnisal-os, mais tarde, dos prejuizos feitos á vida privada de cada qual, que é particularmente respeitada entre os povos de origem saxonia. Em vão porém se desenvolveram todas aquellas balburdias e buscas. Robur não foi encontrado em parte alguma. Nem um vestigio d’elle! Tivesse partido no _Go a Head_, o balão do Weldon-Institute, e não sería menos facil achal-o! Depois de uma hora de pesquizas, tiveram de renunciar, e os collegas separaram-se, mas procurando extender as suas indagações por todo o territorio da dupla America, constituida pelo Novo Continente. Pelas onze horas restabelecêra-se no bairro o socego. Philadelphia ía agora poder afundar-se n’um bom somno, que é o privilegio incontestavel das cidades que teem a felicidade de não serem industriaes. Os diversos membros do club não pensaram senão em ir cada qual para sua casa. Para nos não referirmos senão a alguns dos mais salientes, William T. Forbes, foi para os lados da sua grande trapeira de assucar, onde miss Dol e miss Mat lhe haviam preparado o chá, assucarado com a sua propria glucose, Truck Milnor tomou o caminho da sua fabrica, cuja bomba de fogo arfava dia e noite n’um dos bairros mais afastados. O thesoureiro Jem Cip, publicamente accusado de ter uma toeza menos de intestinos, do que comporta a machina humana, foi para a casa de jantar, onde o esperava uma ceia vegetal. Dois dos mais importantes balonistas,—dois apenas,—pareciam não pensar em entrar nos seus domicilios tão depressa. Tinham aproveitado o ensejo para conversar com mais acrimonia ainda. Eram os irreconciliaveis Uncle Prudent e Phil Evans, o presidente e o secretario do Weldon-Institute. Á porta do club, o creado Fricollin esperava Uncle Prudent, seu amo. Pôz-se a seguil-o, sem se importar com o assumpto que trazia em disputa os dois collegas. É por euphemismo que o verbo “conversar„ foi empregado para exprimir o acto a que se entregavam o presidente e o secretario do club. A verdade é que elles disputavam com uma energia que tinha origem n’uma antiga rivalidade. —Nada! nada! repetia Phil Evans. Se eu tivesse tido a honra de presidir ao Weldon-Institute, nunca, oh! nunca se teria dado um tal escandalo! —O que teria então feito, se tivesse tido essa honra? perguntou Uncle Prudent. —Teria cortado a palavra a esse insultador publico, antes mesmo d’elle ter aberto a bôcca! —Parece-me que para cortar a palavra a alguem, é preciso primeiramente tel-o deixado falar. —Não na America, senhor! não na America! E n’esta troca de recriminações mais azedas do que dôces, os dois personagens enfiavam pelos caminhos que cada vez os afastavam mais de sua casa; atravessavam bairros cuja situação os obrigava a fazer um longo desvio. Fricollin seguia-os sempre; mas não se sentia tranquillo por ver seu amo metter-se por caminhos já desertos. Com effeito, a escuridão era profunda, e a lua, no seu crescente, começava apenas a “fazer os seus vinte e oito dias„. Fricollin olhava pois para a direita e para a esquerda, a vêr se sombras suspeitas o espiavam. E de facto, elle julgou vêr cinco ou seis grandes diabos que pareciam não os perder de vista. Instinctivamente, Fricollin approximou-se de seu amo; mas por cousa alguma d’este mundo elle se atreveria a interrompel-o no meio de uma conversação, da qual lhe podiam provir alguns arranhões. Emfim, o acaso fez com que o presidente e o secretario do Weldon-Institute, sem pensar em tal, se dirigissem a Fairmont Park. Alli no mais acceso da disputa, atravessaram a Schuylkill-river, sobre a famosa ponte metallica; encontraram apenas alguns transeuntes retardatarios, e acharam-se afinal no meio de vastos terrenos, uns que se desenvolviam em pradarias immensas, outros ensombrados de magnificas e frondosas arvores, que fazem d’aquelle parque um dominio unico em todo o mundo. Alli mais assaltaram o pobre Fricollin os seus terrores e com muito mais razão porque as cinco ou seis sombras tinham seguido atraz d’elle, pela ponte de Schuylkill-river. De modo que tinha as pupillas dos olhos tão dilatadas que se alargavam até á circumferencia da iris. E ao mesmo tempo, todo o seu corpo mirrava, retrahia-se, outros como se fôsse dotado d’aquella contractibilidade peculiar a certos moluscos e animaes articulados. É que o creado Fricollin era um perfeito poltrão. Um verdadeiro negro do sul, com uma cabeça de estupido, n’um corpo de magrisella. Da edade precisa de vinte e um annos, nunca fôra escravo, nem mesmo de nascença; mas não valia mais por isso. Cheio de caretas, guloso e preguiçoso, era sobretudo de uma cobardia ideal. Estava, havia tres annos, ao serviço de Uncle Prudent. Cem vezes o tinham querido pôr a andar; porém haviam-n’o conservado com medo de vir um outro peior. Mas, fazendo parte da vida de um amo sempre mettido nas mais atrevidas empresas, Fricollin devia encontrar muitas occasiões em que a sua cobardia era sujeita a grandes provações. Mas tinha compensações:—ninguem lhe ralhava muito pela gulodice nem pela preguiça. Ah! Fricollin, se tu pudesses lêr no futuro! Porque é que Fricollin não havia de ter ficado em Boston, ao serviço de certa familia Sueffel, que estando para fazer uma viagem á Suissa tinha renunciado a ella por causa dos tremores de terra? Pois não era essa a casa que convinha a Fricollin, de preferencia á de Uncle Prudent, onde a temeridade estava na ordem de todos os dias? Emfim, elle lá estava, e seu amo tinha acabado por se habituar aos seus defeitos. Além de que, elle tinha uma qualidade. Apesar de ser negro de origem, não falava negro, o que é para se ter em consideração, porque nada é mais desagradavel do que esse odioso calão em que tanto se abusa do pronome possessivo e dos infinitivos. Portanto fica bem assente que o creado Fricollin era um poltrão, e, como se costuma dizer, “poltrão como a lua„. Ora, a proposito d’isso, é de justiça protestar contra esta comparação insultante para a loura Phebéa, a dôce Selena, a casta irmã do radioso Apollo.—Com que direito se ha de accusar de cobardia um astro que, desde que o mundo é mundo, encarou sempre de frente a terra, sem nunca lhe voltar as costas? Seja como fôr, áquella hora, cêrca da meia noite, o crescente da “pallida calumniada„ começava a desapparecer no poente, atraz das altas ramagens do parque. Os seus raios, coando por entre os ramos, punham alguns arabescos no chão. A parte superior do arvoredo parecia assim menos sombria. Isso permittiu a Fricollin lançar um olhar ainda mais indagador. —Brrr! Lá estão ainda, os patifes! Decididamente, veem approximando! Não se poude conter mais, e dirigindo-se ao seu amo: —Master Uncle! disse elle. É assim que elle o tratava, e que o presidente do Weldon-Institute queria que elle o tratasse. N’aquelle momento a contenda entre os dois rivaes estava no auge. E como elles se mandavam passear mutuamente, a mesma intimação foi feita brutalmente a Fricollin. E ao mesmo tempo que os dois falavam, mettendo-se á cara um do outro, Uncle Prudent embrenhava-se cada vez mais através dos prados desertos de Fairmont-Park, afastando-se cada vez mais da Schuylkill-river, e da ponte que era necessario alcançar de novo, para entrar na cidade. Achavam-se os tres no meio de um arvoredo, cujas copas eram illuminadas pelos derradeiros clarões do luar. No fim do arvoredo abria-se uma larga clareira, vasto campo oval, admiravelmente disposto para as luctas de um _ring_. Nenhum accidente de terreno obstaria alli ao galopar de um cavallo, nenhuma arvore interceptava a vista do espectador, ao longo de uma pista circular de algumas milhas. E comtudo, se Uncle Prudent e Phil Evans não estivessem absortos na sua discussão, se tivessem olhado com certa attenção, não teriam encontrado a clareira com o seu aspecto habitual. Seria um estabelecimento de farinhas, que tivesse sido montado na vespera? Com effeito, assim parecia, pelo conjuncto de moinhos de vento, cujas azas, immoveis n’aquelle momento, gesticulavam na sombra. Mas nem o presidente nem o secretario do Weldon-Institute tinham notado n’esta extranha modificação na paizagem do Fairmont-Park. Fricollin tão pouco o reparou. Parecia-lhe que os ladrões se approximavam, se juntavam, como no acto de darem o golpe. Tinha um terror convulso; os membros paralysados, os cabellos hirtos,—emfim estava no ultimo grau do terror! Comtudo, mesmo com as pernas a tremer, e a dobrarem-se-lhe, teve fôrça para exclamar mais uma vez: —Master Uncle!... Master Uncle! —Eh! o que é que queres afinal? perguntou Uncle Prudent. Talvez Phil Evans e elle não desgostassem de descarregar a sua colera, sovando de grande o infeliz Fricollin. Mas não tiveram tempo, como este não teve tambem para responder. Um assobio se ouviu no bosque. No mesmo instante accendia-se no meio da clareira como que uma estrella electrica. Era decerto um signal, e sendo assim, é porque chegára o momento de se realisar alguma violencia. Em menos tempo que seria preciso para o pensar, seis homens surgiram do bosque; dois lançaram-se sobre Uncle Prudent, dois sobre o creado Fricollin,—estes ultimos demasiados, evidentemente, porque o negro era incapaz de se defender. O presidente e o secretario do Weldon-Institute, apesar de surprehendidos por aquelle ataque, quizeram resistir. Não tiveram para isso nem tempo, nem fôrças. Em alguns segundos, era-lhes posta uma mordaça na bôcca, uma venda nos olhos; e, vencidos, ligados, eram levados rapidamente através da clareira. O que podiam elles pensar senão que se tratava d’essa raça de gente pouco escrupulosa que não hesita em despojar os transeuntes retardatarios, no fundo dos bosques! Nada d’isso succedeu, porém. Nem mesmo lhes apalparam as algibeiras, apesar de Uncle Prudent trazer sempre comsigo alguns milhares de dollars em papel. Em resumo, um minuto depois d’esta aggressão, sem que uma unica palavra se trocasse entre os aggressores, Uncle Prudent, Phil Evans e Fricollin sentiam que os punham cautelosamente no chão, não sobre a herva da clareira, mas n’uma especie de sobrado que gemeu com o pêso d’elles. Alli foram postos ao lado um do outro. Uma porta se fechou sobre elles. Depois, o ranger de uma lingueta na fechadura, fez-lhes vêr que estavam prisioneiros. Fez-se então um ruido continuo, como que um fremito, um _frrr_, onde os _rrr_ se prolongavam até ao infinito, sem que outro nenhum som se pudesse perceber no meio d’aquella noite tão calma. * * * * * Que alarme, no dia seguinte, em Philadelphia! Desde as primeiras horas se soube o que se tinha passado na vespera, na sessão do Weldon-Institute: o apparecimento de um mysterioso personagem, um tal engenheiro Robur,—Robur, o Conquistador!—a lucta que elle parecia querer travar contra os balonistas, e depois a sua desapparição inexplicavel. Mas outra cousa foi quando toda a cidade soube que tambem o presidente e o secretario do club tinham desapparecido durante a noite de 12 para 13 de junho. Que de pesquizas em toda a cidade e seus arredores! Mas inutilmente. Os jornaes de Philadelphia, depois os da Pensylvania, depois os da America inteira, apoderaram-se do assumpto e explicaram-n’o de mil maneiras, das quaes nenhuma devia vir a ser verdadeira. Sommas consideraveis foram promettidas por meio de annuncios e cartazes, não só a quem encontrasse os respeitaveis individuos que haviam desapparecido, mas a quem pudesse dar qualquer indicio que lhes descobrisse a pista. Nada se conseguiu. Se a terra se abrisse para os tragar, o presidente e o secretario do Weldon-Institute não estariam mais eliminados da face da terra. Os jornaes do governo pediram que o pessoal da policia fôsse augmentado consideravelmente, visto que taes attentados podiam repetir-se contra os melhores cidadãos dos Estados Unidos,—e tinham razão ... É verdade que a opposição pediu que esse pessoal fôsse licenciado por inutil, visto que taes attentados se podiam repetir, sem que fôsse possivel encontrar os vestigios dos seus auctores,—e tambem não deixava de ter razão. Em summa, a policia continuou sendo o que era, o que será sempre no melhor dos mundos, que não é perfeita nem conseguirá sêl-o. CAPITULO V DE COMO FOI CONCEDIDA UMA SUSPENSÃO DE HOSTILIDADES ENTRE O PRESIDENTE E O SECRETARIO DO WELDON-INSTITUTE Com uma venda nos olhos, uma mordaça na bôcca, os pés e as mãos ligados com uma corda, era impossivel verem, falarem, moverem-se. Não era portanto cousa que tornasse acceitavel a situação de Uncle Prudent, de Phil Evans e do creado Fricollin. Além d’isso, não saber quem eram os auctores de um tal rapto, nem para onde os haviam atirado como meros fardos n’um comboio de bagagens; ignorar onde estavam, a que destino estavam reservados, era caso para desesperar o mais paciente da especie ovina, e sabemos que os membros do Weldon-Institute não eram precisamente carneiros na paciencia. Dada a sua violencia de caracter, imagina-se facilmente em que estado devia achar-se Uncle Prudent. Em todo o caso Phil Evans e elle deviam pensar que lhes seria difficil tomar assento no dia seguinte á mesa da presidencia do club. Quanto a Fricollin, com os olhos vendados, a bôcca tapada, era-lhe impossivel pensar fôsse no que fôsse. Estava mais morto do que vivo. Durante uma hora, não se modificou a situação dos prisioneiros! Ninguem os veiu visitar nem dar-lhes a liberdade de movimento e de palavra, de que tanto necessitavam. Estavam reduzidos a suspiros abafados, a exclamações soltas através as mordaças, a sobresaltos de peixes fora d’agua. O que isto indicava de colera muda, de furor concentrado, ou, para melhor dizer, reprimido, é facil de comprehender. Após estes infructiferos esforços, permaneceram algum tempo inertes. E então como lhes faltasse o sentido da vista, procuraram deduzir pelo sentido do ouvido algum indicio do que fôsse esse estado inquietador de cousas. Em vão procuravam, porém, surprehender outro ruido além do interminavel e inexplicavel _frrr_, que parecia envolvel-os n’uma atmosphera arrepiante. Comtudo deu-se o seguinte: Phil Evans, procedendo com serenidade, conseguiu alargar a corda que lhe prendia os pulsos. Depois desatou a pouco e pouco o nó; os dedos escorregaram uns por sobre os outros, as mãos tomaram o seu natural desembaraço. Esfregando-as fortemente, restabeleceu-se a circulação impedida pelos ligamentos. Um instante depois, Phil Evans tinha tirado a venda dos olhos, arrancado a mordaça da bôcca, cortado as cordas com a fina lamina do seu “bowie-knife„. Um americano que não traga sempre na algibeira o seu _bowie-knife_, não é americano. Além de que, se Phil Evans conseguira poder mover-se e falar, não conseguira mais nada. Não via cousa alguma, pelo menos n’aquelle instante. A escuridão era completa. Comtudo uma certa claridade filtrava por entre uma especie de setteira aberta na parede, a uns seis ou sete pés de altura. Houvesse o que houvesse, a verdade é que Phil Evans não hesitou um instante em libertar o seu rival. Alguns golpes de _bowie-knife_, bastaram para cortar os nós que lhe atavam os pés e as mãos. Immediatamente Uncle Prudent, que estava já meio enraivecido, erguendo-se sobre os joelhos, arrancou a venda e a mordaça, e depois, com voz estrangulada: —Obrigado! disse. —Não!... Não ha motivo para agradecimentos, respondeu o outro. —Phil Evans? —Uncle Prudent? —Aqui já não ha o presidente e o secretario do Weldon-Institute; já não ha adversarios. —Tem razão, respondeu Phil Evans. Estão apenas dois homens que teem de se vingar de um terceiro, cujo attentado exige severas represalias. E esse terceiro ... —É Robur!... —É Robur! Foi um ponto em que os dois ex-concorrentes se acharam no mais completo accôrdo. A este respeito não havia a receiar nenhuma controversia. —E o seu creado? observou Phil Evans, indicando Fricollin, que soprava como uma phoca. Temos de o desprender. —Ainda não, respondeu Uncle Prudent. Massar-nos-ha com as suas jeremiadas, e temos mais que fazer do que queixar-nos. —O que é, Uncle Prudent? —Libertarmo-nos, se fôr possivel. —E mesmo que o não seja. —Tem razão, Phil Evans; mesmo que o não seja! Quanto a duvidar um instante que esse rapto devesse ser attribuido ao tal extranho Robur, isso não podia passar pela idéa do presidente e do seu collega. Com effeito, se fôssem simples e honrados ladrões, depois de lhes ter roubado relogios, joias, carteiras, bolsas de dinheiro, tel-os-hiam atirado ao fundo do Scheylkill-river, com uma punhalada na garganta, em vez de os encerrar no fundo de ... De que?—Grave questão, na realidade, que convinha illucidar, antes de começar os preparativos de uma evasão com algumas probabilidades de exito. —Phil Evans, continuou Uncle Prudent, quando sahimos d’aquella sessão, em vez de trocarmos amabilidades, de que não falâmos mais, teria sido melhor não sermos tão distrahidos. Se tivessemos ficado nas ruas de Philadelphia, nada d’isto teria acontecido. Evidentemente esse Robur imaginára o que se ia passar no club; previu a colera que a sua attitude provocante ia levantar; tinha collocado á porta alguns d’esses bandidos, para lhe prestarem auxilio. Quando deixámos a rua Walnut, aquelles esbirros espiaram-nos, seguiram-nos, e quando nos viram imprudentemente mettidos pelas avenidas de Fairmont-Park, fizeram-nos esta partida. —De accôrdo, respondeu Phil Evans. Sim, fizemos muito mal em não irmos directamente para as nossas casas. —Anda-se sempre mal em não andar bem! respondeu Uncle Prudent. N’esse momento, um longo suspiro se ouviu no canto mais obscuro da cellula. —O que é? perguntou Phil Evans. —Nada! Fricollin que sonha. E Uncle Prudent continuou: —Entre o momento em que fomos agarrados, a alguns passos da clareira, e o momento em que nos metteram n’este reducto, não decorreram mais de dois minutos. E’ portanto evidente que elles nos não arrastaram para além de Fairmont-Park ... —E se o tivessem feito, teriamos sentido um movimento de translação. —De accôrdo, respondeu Uncle Prudent; portanto é fora de duvida que estamos mettidos dentro de um vehiculo,—talvez uma d’essas grandes carroças do campo, ou um carro de saltimbancos ... —Evidentemente! Se fôsse um barco amarrado ás margens da Schuylkill-river, conhecer-se-hia pelos balanços produzidos pela corrente. —De accôrdo, completamente de accôrdo, repetiu Uncle Prudent; e entendo que, já que estamos ainda na clareira, é agora o momento preciso de fugirmos, esperando encontrar mais tarde esse Robur ... —E fazer-lhe pagar caro este attentado á liberdade de dois cidadãos dos Estados Unidos da America! —Caro ... muito caro! —Mas quem é esse homem? D’onde veiu? É um inglez, um allemão, um francez?... —É um miseravel, e tanto basta! respondeu Uncle Prudent. E agora mãos á obra! E os dois, de mãos extendidas, os dedos abertos, apalparam então as paredes do compartimento, a vêr se encontravam uma juncção ou uma fenda. Nada! Tambem nada a respeito da porta! Estava hermeticamente fechada e seria impossivel arrombar a fechadura. Seria preciso fazer um buraco e safarem-se por elle. Restava saber se os bowie-knifes poderiam furar as paredes, se as suas folhas não se embotariam ou se partiriam n’aquelle trabalho. —Mas d’onde vem este fremito que passa? perguntou Phil Evans, muito surprehendido com aquelle _frrr_ continuo. —De certo que é o vento, respondeu Uncle Prudent. —O vento? Pareceu-me que até á meia noite estivera tudo tranquillo. —Evidentemente, Phil Evans. Não sendo o vento, o que queria que fôsse? Phil Evans, abrindo o melhor ferro do seu canivete, procurou furar a parede, junto da porta. Talvez não fôsse preciso mais do que um buraco, para a abrirem por fora, se a porta estivesse apenas no fecho, ou se a chave tivesse ficado na fechadura. Alguns minutos de trabalho não tiveram outro resultado além de fazer bôccas na folha, partir-lhe a ponta, e transformal-a em serra de mil dentes. —Não entra, Phil Evans? —Não. —Estaremos nós, por acaso, n’uma cellula de folha de ferro? —Nada, Uncle Prudent. Estas paredes, quando se lhes bate, não produzem nenhum som metallico. —N’esse caso é madeira rija? —Nem ferro, nem madeira. —Então o que é? —É impossivel dizel-o; mas, em todo o caso, é uma substancia em que o aço não pode entrar. Uncle Prudent, n’um impeto de colera, fez juras, bateu com o pé no sobrado sonoro, emquanto com as mãos procurava estrangular um Robur imaginario. —Tranquillise-se, Uncle Prudent, tranquillise-se! Tente agora pela sua vez. Uncle Prudent tentou, mas o bowie-knife não poude entrar na parede, que mal conseguiu riscar com as suas melhores laminas, como se ella fôsse de crystal. Portanto toda a fuga tornava-se impraticavel, admittindo mesmo que pudesse ter sido tentada, aberta que fôsse a porta. Tiveram de se resignar, por momentos, o que não é para um temperamento yankee, e de esperar tudo do acaso, o que naturalmente repugna a espiritos eminentemente praticos. Mas não o fizeram sem objurgatorias, palavrões e invectivas violentas contra Robur, o qual não devia ser homem que se commovesse, a deduzir do pouco que elle de si tinha revelado em presença do Weldon-Institute. Comtudo Fricollin começou por dar demonstrações nada equivocas do seu mal estar. Porque sentisse ou dôres no estomago, ou caimbras no corpo, estorcia-se de um modo lastimoso. Uncle Prudent julgou dever acabar com aquella gymnastica, cortando as cordas que ligavam o negro. Talvez se arrependesse; porque foi immediatamente uma lamentação interminavel, em que os esgares do espanto se misturavam com os soffrimentos da fome. Fricollin não soffria mais pelo cerebro do que pelo estomago. Era difficil dizer a qual d’estas duas visceras devia mais o negro o que estava padecendo. —Fricollin! exclamou Uncle Prudent. —Master Uncle!... Master Uncle!... respondeu o negro entre dois lugubres gemidos. —É possivel que estejamos condemnados a morrer de fome n’esta prisão. Mas estamos resolvidos a não succumbir senão quando tivermos exgottado todos os meios de alimentação, capazes de prolongar a nossa vida ... —Comer-me? exclamou Fricollin. —Como se faz sempre a um negro em taes circumstancias!... Portanto Fricollin, trata de te fazeres esquecer ... —Ou então, Fricollin, fazemos-te em _fricassé_, accrescentou Phil Evans. E, muito a serio, Fricollin teve medo de ser utilisado para a prolongação de duas existencias, bem mais preciosas que a sua. E limitou-se a gemer _in petto_. Comtudo o tempo ía decorrendo, e toda a tentativa para forçar a porta ou a parede tornára-se infructifera. De que era essa parede, impossivel fôra reconhecer. Não era metal, não era madeira, não era pedra. Além d’isso, o sobrado da cellula parecia feito da mesma substancia. Batendo-se com o pé, tinha um som particular, que Uncle Prudent não poude classificar entre os sons conhecidos. Outra observação: por baixo, aquelle sobrado parecia soar no vacuo, como se não estivesse em contacto directo com o chão da clareira. Sim! o inexplicavel _frrr_ parecia acariciar-lhe a face superior. Tudo isso não era tranquillisador. —Uncle Prudent? disse Phil Evans. —Phil Evans? respondeu Uncle Prudent. —Parece-lhe que a nossa cellula tenha mudado de sitio? —Nada! não me parece! —Comtudo, por occasião de sermos encarcerados, e nos primeiros momentos, pude notar distinctamente o fresco cheiro da herva e o olor rezinoso das arvores do parque. Agora, por mais que eu aspire o ar, parece-me que todos aquelles cheiros desappareceram ... —De facto ... —Como explica isso? —Expliquemol-o da maneira que quizermos, Phil Evans, excepto pela hypothese de que a nossa prisão tenha mudado de sitio. Repito, se estivessemos dentro de um carro ou de um barco a deslisar sobre as aguas, tel-o-hiamos sentido. Fricollin soltou então um longo gemido, que poderia ter passado pelo seu ultimo suspiro, se não se lhe seguissem outros. —Quero acreditar que esse Robur não deixará de nos mandar em breve comparecer á sua presença, continuou Phil Evans. —Assim o espero! exclamou Uncle Prudent. E hei de então dizer-lhe ... —O que? —Que depois de ter começado como um insolente, acabou como um cobarde. N’esse momento Phil Evans observou que o dia principiava a despontar. Um clarão, embora vago, filtrava-se através a estreita setteira, aberta na parte superior da parede, do outro lado da porta. Deviam pois ser proximamente quatro da manhã, porque é a essa hora que no mez de junho e n’aquella latitude o horisonte de Philadelphia se esclarece com os primeiros raios da manhã. Comtudo, quando Uncle Prudent fez soar o seu relogio de repetição,—obra prima que provinha da propria officina do seu collega,—elle não indicou mais de tres e um quarto, apesar do relogio não ter parado. —Curioso! disse Phil Evans. Ás tres e um quarto devia ainda ser noite. —Talvez então o meu relogio se tivesse atrazado ... respondeu Uncle Prudent. —Um relogio da _Walton Watch Company!_ exclamou Phil Evans. Fôsse como fôsse, era de facto o dia que despontava. A pouco e pouco a setteira ía-se destacando em claro na escuridade da cellula. Comtudo, se a aurora surgia mais cedo do que permittia o 41.º parallelo, que é de Philadelphia, não vinha com essa rapidez nas latitudes baixas. Nova observação de Uncle Prudent a esse respeito, novo phenomeno inexplicavel. —Podiamos talvez trepar até á setteira, observou Phil Evans, e procurar vêr onde estamos? —Talvez, respondeu Uncle Prudent. E dirigindo-se a Fricollin: —Vamos, Fricollin, arriba! O negro levantou-se. —Põe-te de costas contra essa parede, continuou Uncle Prudent, e, Phil Evans, queira subir ás costas d’esse rapaz, emquanto eu o seguro, para que elle não furte o corpo. —De muito bom grado, respondeu Phil Evans. Um instante depois, com os pés em cima dos hombros de Fricollin, tinha os olhos á altura da setteira. A setteira estava fechada, não com um vidro lenticular, como o de uma vigia de navio, mas com um vidro simples. Apesar de não ser muito espesso, não deixava vêr nada a Phil Evans, cujo raio visual estava excessivamente limitado. —Pois parta o vidro, que talvez possa assim vêr melhor. Phil Evans deu uma forte pancada com o cabo do seu bowie-knife sobre o vidro, que produziu um som argentino, mas não se partiu. Segunda pancada, ainda mais violenta. O mesmo resultado. —Bem! exclamou Phil Evans. Vidro que se não parte! Com effeito, era preciso que aquelle vidro fôsse de um que é temperado pelos processos do inventor Siemens, pois, apesar de golpes repetidos, permaneceu intacto. O espaço porém já então estava assaz esclarecido para que o olhar pudesse extender-se para fora, pelo menos no limite do campo de visão cortado pela moldura da setteira. —O que vê? perguntou Uncle Prudent. —Nada. —Pois nem um macisso de arvoredos? —Não. —Nem a copa dos arvoredos? —Nem isso. —Não estamos portanto no centro da clareira? —Nem na clareira, nem no parque. —Divisa pelo menos tectos de casas, ou o cimo dos monumentos? disse Uncle Prudent, cujo desapontamento, mesclado de furor, ía crescendo. —Nem tectos nem cimos. —Pois então, nem um pau de bandeira, nem o campanario de uma egreja, nem a chaminé de uma officina? —Nada mais do que o espaço! N’esse mesmo momento abria-se a porta da cellula, e apparecia um homem. Era Robur. —Honrados balonistas, disse elle, com voz grave, tendes agora a liberdade de ir para onde quizerdes ... —Livres! exclamou Uncle Prudent. —Sim ... dentro dos limites do _Albatrós_! Uncle Prudent e Phil Evans precipitaram-se para fora da cellula. E o que viram? A duzentos ou tresentos metros abaixo d’elles, a superficie de um paiz que elles em vão procuravam reconhecer! CAPITULO VI AQUILLO POR QUE NÃO SERIA MAU QUE PASSASSEM OS ENGENHEIROS, OS MECHANICOS E OUTROS SABIOS Em que épocha deixará o homem de rastejar cá em baixo, para viver no azul e na paz do céo? A esta pergunta de Camillo Flammarion, é facil a resposta: será na épocha em que os progressos da mechanica tiverem permittido que se resolva o problema da aviação. E dentro em uns annos,—como é de prever,—uma utilisação mais pratica da electricidade conduzirá á solução do problema. Em 1783, muito antes dos irmãos Montgolfier terem construido o primeiro balão do seu nome, e o physico Charles o seu, alguns espiritos aventurosos tinham sonhado a conquista do espaço por meio de apparelhos mechanicos. Os primeiros inventores não tinham pois pensado em apparelhos mais ligeiros do que o ar,—o que a physica do seu tempo não permittia imaginar. Era aos apparelhos mais pesados que elle, ás machinas volantes, feitas á imitação da ave, que pediam a realisação da locomoção aerea. Fôra precisamente o que fizera esse doido do Icaro, filho de Dedalo, cujas azas, prezas com cera, cahíram ao approximarem-se do sol. Mas sem remontar até os tempos mythologicos, sem falar de Archytas de Tarento, encontra-se já nos trabalhos de Dante de Perusa, de Leonardo de Venci, de Guidotti, a idéa de machinas destinadas a moverem-se no meio da atmosphera. Dois seculos e meio mais tarde, os inventores começam a multiplicar-se. Em 1742, o marquez de Racqueville fabríca um systema de azas, ensaia-as por sobre o Sena, e cae partindo um braço. Em 1768, Paucton concebe a idéa de um apparelho de dois helices suspensivo e propulsivo. Em 1781, Meerwein, architecto do principe de Bade, construe uma machina de movimento orthopedico, e protesta contra a direcção dos aerostatos, que acabavam de ser inventados. Em 1784, Launoz e Bienvenu fazem manobrar um helicoptero, movido por molas. Em 1808 ensaios de voar pelo austriaco Thiago Degon. Em 1810, uma brochura de Denian, de Nantes, onde são estabelecidos os principios do “Mais pesado que o ar„. Depois, de 1811 a 1840, estudos e invenções de Berblinger, de Vigual, de Sarti, de Dubochet, de Cagniard de Latour. Em 1842, vem o inglez Henson com o seu systema de planos inclinados e helices movidos a vapor; em 1845, Cossus e o seu apparelho de helices ascensionaes; em 1847, Camillo Vert e o seu helicoptero com azas de pennas; em 1852, Letur com o seu systema de pára-quedas dirigivel, cuja experiencia lhe custou a vida; no mesmo anno, Miguel Loup, com o seu plano escorregadio, munido de quatro azas girantes; em 1853, Béléguic e o seu aeroplano, movido por helices de tracção, Vaussin-Chardannes com o seu _papagaio_ livre e dirigivel, Georges Cauley com os seus planos de machinas volantes, providas de um motor de gaz. De 1854 a 1863, apparece José Plinio, com privilegio para muitos systemas aereos, Breant, Carlingford, Le Bris, Du Temple, Bright, cujos helices ascensionaes giram em sentido inverso, Smythias, Panafieu, Crosnier, etc. Finalmente, em 1863, graças aos esforços de Nadar, é fundada em Paris uma sociedade do “Mais pesado que o ar„. Alli os inventores põem em experiencia machinas, das quaes algumas teem já privilegio: de Pouton de Amécourt e o seu helicoptero a vapor, de la Landelle e o seu systema de combinações de helices com planos inclinados e pára-quedas, de Louvrié e o seu aeroscapho, de Eesterno e a sua ave mechanica, de Groof e o seu apparelho de azas movidas por alavancas. O impulso estava dado; os inventores inventam, os calculadores calculam tudo que deve tornar pratica a locomoção aerea. Bourcart, Le Bris, Kaufmann, Smyth, Stringfellou, Prigent, Danjard, Pomés e de la Pause, Moy, Pinaud, Jobert, Hureau de Villeneuve, Achenbach, Garapon, Duchesne, Dauduran, Parisel, Dienaide, Melkisff, Forlamini, Brearey, Tatin, Dandrieux, Edison, uns com azas ou helices, outros com planos inclinados, imaginam, criam, fabricam, aperfeiçoam as suas machinas volantes, que estarão prestes a funccionar no dia em que um motor de fôrça consideravel, e de uma ligeireza excessiva, lhes fôr applicado por algum inventor. Desculpem esta nomenclatura um pouco longa. Pois não era preciso mostrar todos estes graus da escala da locomoção aerea, no alto da qual apparece Robur o Conquistador? Sem os tacteamentos, as experiencias dos seus antecessores, poderia o engenheiro conceber um apparelho tão perfeito? Não decerto! E se elle só tinha desdens para os que teimavam em buscar a direcção dos balões, tinha em alta estima todos os partidarios do “Mais pesado que o ar„, inglezes, americanos, italianos, austriacos, francezes,—francezes sobretudo, cujos trabalhos, aperfeiçoados por elle, o tinham levado a crear, e depois a construir esse engenho volatil, o _Albatrós_, lançado através das correntes da atmosphera. —Pigeon vole! exclamava um dos persistentes adeptos da aviação. —Havemos de vir a andar por sobre o ar, como andâmos por sobre a terra! respondêra um dos seus mais encarniçados partidarios. —Á locomotiva segue-se a aeromotiva! bradára o mais ruidoso de todos, que embocava as trombetas da publicidade para despertar o velho e o novo mundo. De facto nada está mais assente do que ser o ar um ponto de apoio resistentissimo. Uma circumferencia de 1 metro de diametro, formando pára-quéda, pode não só moderar uma descida no ar, mas tambem tornal-a isochroma. É o que se sabia. Sabia-se egualmente que, quando a velocidade de translação é grande, o trabalho da gravidade varía approximadamente na razão inversa do quadrado da distancia d’aquella velocidade e torna-se quasi insignificante. Sabia-se ainda, que quanto mais o pêso de um animal volante augmenta, menos augmenta proporcionalmente a superficie alada necessaria para o sustentar, embora os movimentos que elle deva fazer sejam mais lentos. Um apparelho de aviação deve, pois, ser construido de modo a utilisar estas leis naturaes, a imitar a ave, “esse typo admiravel da locomoção aerea„ disse o dr. Marcy, do Instituto de França. Em summa, em tres especies se resumem os apparelhos que podem resolver esse problema. 1.º Os helicopteros ou espiraliferos, que não são mais do que eixos verticaes. 2.º Os orthopteros, engenhos que tendem a reproduzir o vôo das aves. 3.º Os aeroplanos, que não são, a bem dizer, mais do que planos inclinados, como o papagaio, mas rebocados ou impellidos por helices horisontaes. Cada um d’estes systemas tem tido, e tem ainda hoje partidarios decididos que a nada cedem n’este ponto. Comtudo Robur, por muitas considerações, havia rejeitado os dois primeiros. É fora de duvida que o orthoptero, ave mechanica, apresenta certas vantagens. Os trabalhos, as experiencias de M. Renaud, em 1884, o provaram. Mas, haviamos dito, era preciso não imitar servilmente a natureza. As locomotivas não foram copiadas das lebres, nem os navios a vapor dos peixes. Ás primeiras puzeram-lhes rodas, que não são pés; aos segundos helices, que não são barbatanas. E não andam peor por isso. Pelo contrario. Além de que, sabe-se porventura o que dá mechanicamente o vôo das aves, cujos movimentos são extremamente complexos? Pois o dr. Merey não suspeitou que as pennas se entreabriam, ao levantar-se a aza, para deixar passar o ar, movimento difficil de produzir-se com uma machina artificial? Por outro lado, era fora de duvida que os aeroplanos haviam dado alguns bons resultados. Os helices que oppõem um plano obliquo á camada aerea, era o meio de produzir um trabalho de ascensão, e pequenos apparelhos experimentados provavam que o pêso disponivel, isto é, aquelle de que se pode dispôr além do pêso do apparelho, augmenta com o quadrado da velocidade. Havia n’isso grandes vantagens,—superiores mesmo ás dos aereostatos submettidos a um movimento de translação. Apesar d’isso Robur tinha pensado que o que ha de melhor era tambem o que ha de mais simples. Tambem os helices,—“santos helices„, com que tinham atirado á cara de Weldon-Institute, tinham bastado a todas as necessidades da sua machina volante. Uns travavam o apparelho suspenso no ar, os outros rebocavam-n’o em condições maravilhosas de velocidade e de segurança. Com effeito, theoricamente, por meio de um helice de passo sufficientemente curto, mas de uma superficie consideravel, como o dissera o sr. Victor Tatur, se poderia “levando as cousas ao extremo„, levantar um pêso indefinido com a minima fôrça. Se o orthoptero (bater de azas das aves) se eleva apoiando-se unicamente no ar, o helicoptero eleva-se ferindo-o obliquamente com os ramos do seu helice, como se subisse por um plano inclinado. Verdadeiramente estas são azas de helices. O helice caminha necessariamente na direcção de um eixo. Se o eixo é vertical, desloca-se verticalmente; se é horisontal, desloca-se horisontalmente. Todo o apparelho voador do engenheiro Robur consistia n’estes dois movimentos. Eis a descripção exacta do que se pode dividir em tres partes essenciaes: a plataforma, os engenhos de suspensão e de propulsão, e as machinas. Plataforma.—É uma verdadeira ponte de navio, com prôa em forma de espora, tendo 30 metros de comprimento e quatro de largura. Por baixo uma especie de concha, solidamente construida, contendo os apparelhos destinados a produzir a potencia mechanica, o deposito das munições, os utensilios, o armazem geral para provisões de toda a especie, inclusivè agua de bordo. Em volta da ponte, alguns postes de madeira, cobertos de uma rede de ferro, supportam um anteparo com corrimão. Á sua superficie estão os compartimentos destinados, uns ao alojamento do pessoal, outros ás machinas. Nos compartimentos centraes funcciona a machina que põe em acção todos os apparelhos de suspensão, nos da frente a machina do propulsor de deante; no de traz a machina do propulsor correspondente,—ficando cada machina em separado. Do lado da prôa, na primeira divisoria, estão a officina, a cozinha, o posto dos tripulantes. Do lado da pôpa, nos ultimos compartimentos, estão dispostos muitos beliches, entre outros, o do engenheiro, uma casa de jantar, e depois, por cima, uma casa envidraçada, onde está o timoneiro, que dirige o apparelho por meio de um poderoso leme. Todos os compartimentos são esclarecidos por meio de setteiras, fechadas com vidros temperados, que apresentam dez vezes a resistencia do vidro ordinario. Por baixo do casco, está estabelecido um systema de molas flexiveis, destinadas a abrandar os choques, apesar do acto de fundear em terra se poder realisar com uma extrema suavidade; tanto o engenheiro é senhor dos movimentos do apparelho. Engenhos de suspensão e de propulsão.—Por cima da plataforma erguem-se verticalmente trinta e sete eixos, dos quaes quinze de cada lado, e sete, mais altos, ao meio. Dir-se-hia um navio de trinta e sete mastros. Unicamente esses mastros, em vez de vélas, trazem cada um dois helices horisontaes, de um passo e de um diametro assaz curtos, mas aos quaes se pode imprimir uma rotação prodigiosa. Cada um d’estes eixos tem um movimento independente do movimento dos outros, e além d’isso, de dois em dois, cada eixo gira em sentido inverso,—disposição necessaria para que o apparelho não seja tomado de um movimento giratorio. De modo que os helices, não deixando de continuar a subir sobre a columna de ar vertical, fazem equilibrio contra a resistencia horisontal. Em consequencia d’isso, o apparelho fica munido de sessenta e quatro helices suspensivos, cujos tres ramos são guardados exteriormente por um circulo metallico que, fazendo o papel de volante, economisa a fôrça motriz. Na frente e na retaguarda, montados sobre eixos horisontaes, dois helices propulsivos, de quatro ramos, de um passo inverso muito alongado, giram em sentido differente e communicam o movimento de propulsão. Estes dois helices, de um diametro muito maior que o dos helices de suspensão, podem egualmente girar com uma excessiva velocidade. Em summa, este apparelho aproveita ao mesmo tempo dos systemas que teem sido preconisados pelos engenheiros srs. Cossus, de la Landelle e de Ponton de Amécourt, systemas aperfeiçoados pelo engenheiro Robur. Mas é sobretudo na escolha e na applicação da fôrça motriz que elle tem direito de ser considerado como inventor. Machinas.—Não é nem ao vapor de agua ou outros liquidos, nem ao ar comprimido ou outros gazes elasticos, nem ás misturas explosivas susceptiveis de produzir uma acção mechanica, que Robur foi pedir a potencia necessaria para sustentar e mover o seu apparelho. Foi á electricidade, a esse agente que será um dia a alma do mundo industrial. Mas nenhuma machina electro-motriz o produzia; apenas pilhas e accumuladores. Quaes são porém os elementos que entram na composição d’aquellas pilhas, e que acidos os põem em acção? N’isso consistia o segredo de Robur. O mesmo com respeito aos accumuladores. De que natureza são as suas laminas positivas e negativas, não se sabe. O engenheiro tivera o cuidado de tirar um privilegio de invenção. E afinal o resultado era incontestavel:—pilhas de um effeito extraordinario; acidos de uma resistencia, quasi absoluta, á evaporação e á congelação; accumuladores que deixam a perder de vista os Faure-Sellon-Volckmar; finalmente correntes cujo valor se cifra em numerosas incognitas. D’ahi um poder em cavallos electricos, por assim dizer, infinito, pondo em acção os helices que communicam ao apparelho uma fôrça de suspensão e de propulsão superior a todas as suas necessidades, seja em que circumstancia fôr. Mas, convem repetir, isso pertence exclusivamente ao engenheiro Robur, e a seu respeito elle guardou o segredo mais absoluto. Se o presidente e o secretario do Weldon-Institute não conseguirem descobril-o, muito provavelmente ficará perdido para a humanidade. Escusado é dizer que este apparelho possue uma estabilidade sufficiente, em consequencia da posição do seu centro de gravidade. Não ha perigo de que faça angulos assustadores com a horisontal, nem ha a receiar nenhuma reviravolta. Resta saber que materia empregára o engenheiro Robur para a construcção da sua aeronave,—nome que pode muito bem ser applicado ao _Albatrós_. Que substancia era essa tão dura que o _bowie-knife_ de Phil Evans não tinha podido entrar com ella, e cuja natureza Uncle Prudent não podéra explicar? Era papel, unicamente. Havia muitos annos que esta fabricação tomára um desenvolvimento consideravel. Papel sem gomma, cujas folhas são impregnadas de dextrina e amido, e que depois de apertadas na prensa hydraulica, formam uma materia dura como o aço. Com ella se fazem roldanas, rails, rodas de wagon, mais solidas que as de metal e ao mesmo tempo mais ligeiras. Ora, essa solidez, essa leveza, é que Robur tinha querido utilisar para a construcção da sua locomotiva aerea. Casco, paredes, compartimentos, tudo era feito de papel da palha, que se tornára metal sob a pressão, e até—o que não era para desprezar para um apparelho que corria a grandes alturas—incombustivel. Quanto aos diversos orgãos dos engenhos de suspensão e de propulsão, eixos ou palhetas de helices, era ainda a febra gelatinada que lhes fornecia a substancia resistente e flexivel ao mesmo tempo. Essa materia, que pode tomar todas as formas, insoluvel na maior parte dos gazes e dos liquidos, acidos ou essencias,—não falando já das suas propriedades isoladoras—tinha tido um preciosissimo emprego no machinismo electrico do _Albatrós_. O engenheiro Robur, o seu contramestre Tom Turner, um machinista e seus dois ajudantes, dois timoneiros e um cozinheiro,—ao todo oito homens,—eis o pessoal da aeronave, bastante para as manobras exigidas pela locomoção aerea. Armas de caça e de guerra, apparelhos de pesca, pharoes electricos, instrumentos de observação, bussolas e sextantes, para traçar o caminho, thermometro para o estudo da temperatura, diversos barometros, uns para avaliar a cota das alturas alcançadas, outros para indicar as variações da pressão atmospherica, um storm-glass para a previsão das tempestades, uma pequena bibliotheca, uma pequena imprensa portatil, uma peça de artilheria montada em rodizio no centro da plataforma, de carregar pela culatra e lançando balas de seis centimetros, um provimento de polvora, balas, cartuchos de dynamite, uma cozinha accesa pelas correntes dos accumuladores, um _stock_ de conservas, carnes e legumes, accomodadas n’um compartimento _ad hoc_ com alguns barris de brandy, de wisky e de gin, finalmente, o necessario para se estar muitos mezes sem necessidade de descer a terra,—taes o material e as provisões da aeronave, não falando já na famosa trombeta. Havia, além d’isso, a bordo um ligeiro barco de cautchuc, insubmersivel, que podia trazer oito homens á superficie de um lago, de um rio, ou de mar sereno. Mas tinha pelo menos Robur installado pára-quédas, para o caso de um accidente? Não! não acreditava em accidentes d’este genero. Os eixos dos helices eram independentes. O pararem uns, não impedia os outros de funccionar. Bastava que metade funccionasse para manter o _Albatrós_ no seu elemento natural. —E com elle,—teve Robur, o Conquistador, bem depressa ensejo de dizer aos seus hospedes, hospedes bem contra a sua vontade,—com elle, eu sou senhor d’esta setima parte do mundo, maior que a Australia, a Oceania, a Asia, a Africa e a Europa, esta Icaria aerea que milhares de icarianos povoarão um dia! CAPITULO VII DE COMO UNCLE PRUDENT E PHIL EVANS SE RECUSAM AINDA A DEIXAR-SE CONVENCER O presidente do Weldon-Institute estava estupefacto, e seu companheiro aturdido. Mas nem um nem outro quiz deixar transparecer nada d’esse pasmo tão natural. O creado Fricollin, esse não dissimulava o seu espanto em se sentir transportado no espaço, a bordo de uma tal machina; não procurava mesmo dissimular. Durante esse tempo, os helices suspensivos giravam rapidamente por sobre as cabeças d’elles. Comquanto fôsse muito consideravel, n’essa occasião, essa velocidade de rotação poderia ser triplicada no caso do _Albatrós_ querer attingir zonas mais altas. Quanto aos dois propulsores, lançados n’um andamento moderadissimo, não imprimiam ao apparelho senão um deslocamento de vinte kilometros por hora. Curvando-se para fora, os passageiros do _Albatrós_ puderam notar n’uma longa e sinuosa fita liquida que serpeava, como um simples regato, através um paiz accidentado, no meio da scintillação de alguns lagos obliquamente feridos pelos raios do sol. Esse regato era um rio, e um dos mais importantes d’aquelle territorio. Sobre a margem esquerda desenhava-se uma cadeia de montanhas, cuja prolongação ia até perder de vista. —Diz-nos onde estamos? perguntou Uncle Prudent com a voz tremula de colera. —Não tenho necessidade de lh’o dizer, respondeu Robur. —E não nos diz tambem onde vamos? accrescentou Phil Evans. —Através do espaço. —E isto vae durar muito? —O tempo que fôr necessario. —Trata-se então de dar a volta ao mundo? perguntou ironicamente Phil Evans. —Mais do que isso, respondeu Robur. —E se a viagem nos não convem?... replicou Uncle Prudent. —É necessario que convenha! Eis uma amostra da natureza de relações que se iam estabelecer entre o dono do _Albatrós_ e os seus hospedes, para não dizermos seus prisioneiros. Manifestamente, porém, elle quiz antes de tudo dar-lhes tempo de voltarem a si, de admirar o maravilhoso apparelho que os levava pelos ares, e, de certo, de comprimentar o seu inventor. De modo que fingia estar a passeiar de um lado a outro da plataforma. Ficava-lhes a liberdade de examinar as machinas, a disposição da aeronave, ou de conceder toda a attenção á paizagem que se extendia por baixo d’elles. —Uncle Prudent, disse então Phil Evans, devemos pairar n’este momento sobre a parte central do territorio canadiano. Esse rio que corre no noroeste é o Saint-Laurent. A cidade que nos ficou atraz é Quebec. Era, com effeito, a velha cidade de Champlain, cujos tectos de zinco brilhavam ao sol como reflectores. O _Albatrós_ tinha-se pois elevado até quarenta e seis graus de latitude norte, o que explicava o raiar prematuro do dia, e a prolongação anormal da aurora. —Sim, continuou Phil Evans, é com effeito a cidade em amphitheatro, a collina com a sua cidadella, essa Gibraltar da America do Norte. Eis as cathedraes ingleza e franceza! Eis a alfandega com a sua cupula coroada com a bandeira britannica. Mal acabára Phil Evans de dizer isto, e já a capital do Canadá começava a reduzir-se ao longe. A aeronave entrava n’uma zona de pequenas nuvens que tiraram a pouco e pouco a vista da terra. Robur, vendo então que o presidente e o secretario do Weldon-Institute fixavam a sua attenção sobre o conjunto exterior do _Albatrós_, approximou-se e disse: —Então, meus senhores, acreditam já na possibilidade da locomoção aerea, por meio de apparelhos mais pesados que o ar? Era difficil não se deixarem vencer pela evidencia. Comtudo Uncle Prudent e Phil Evans não responderam. —Não dizem nada? perguntou o engenheiro. Com certeza é a fome que os impede de falar ... Mas, por eu os ter arrebatado pelo ar, não imaginem que estou resolvido a alimental-os com esse fluido pouco nutritivo. Espera-os o seu primeiro almoço. Como Uncle Prudent e Phil Evans sentiam a fome a aguilhoal-os vivamente, não era essa a occasião de fazer ceremonias. Uma refeição a nada obriga, e quando Robur os tivesse posto em terra, esperavam adquirir em presença d’elle toda a liberdade de acção. Foram ambos conduzidos para os compartimentos trazeiros, a um pequeno “dining room„. Alli estava posta uma mesa, no maior asseio, onde elles deviam comer durante a sua viagem. Constituiam os pratos differentes conservas e entre outras uma especie de pão, composto, em partes eguaes, de farinha e de carne em pó, preparado com um pouco de toucinho, e que, cozido em agua, dá uma sôpa excellente; depois fatias de presunto frio, e chá. Tambem Fricollin, pelo seu lado, não fôra esquecido. Nos compartimentos da frente tinha encontrado uma forte sôpa do mesmo pão. E, realmente, elle devia ter muita fome, para comer como comia, porque os queixos tremiam-lhe de medo e podiam bem recusar-lhe todos os serviços. —Se isto se desmancha!... se isto se desmancha! repetia o infeliz negro. D’ahi, transes continuados! Imagine-se! Uma quéda de mil e quinhentos metros, que o teria reduzido a papas! Uma hora depois, Uncle Prudent e Phil Evans voltaram á plataforma. Robur não estava lá. Na retaguarda, o homem do leme, na sua gaiola envidraçada, com os olhos fixos na bussola, seguia imperturbavelmente, sem uma hesitação, o caminho indicado pelo engenheiro. Quanto ao resto do pessoal, provavelmente o almoço o detinha no seu posto. Unicamente um ajudante machinista, encarregado de vigiar as machinas, passeava de um compartimento a outro. Embora a velocidade fôsse grande, os dois collegas não a podiam apreciar senão muito imperfeitamente, apesar do _Albatrós_ ter já sahido da zona das nuvens e a terra se apresentar mil e quinhentos metros abaixo. —É inacreditavel! observou Phil Evans. —Nem acreditemos! respondeu Uncle Prudent. Foram então collocar-se na frente e extenderam as vistas pelo horisonte, ao oéste. —Ah! uma outra cidade! disse Phil Evans. —Pode reconhecel-a? —Sim! Parece-me que é Montreal. —Montreal?... Mas nós deixámos Quebec ha duas horas, o maximo! —Isso prova que esta machina se desloca com uma rapidez de vinte e cinco leguas por hora, pelo menos. Com effeito, era essa a velocidade da aeronave, e se os passageiros não se sentiam incommodados, é porque caminhavam no sentido do vento. Por um tempo calmo, aquella velocidade tel-os-hia contrariado consideravelmente, porque é pouco mais ou menos a velocidade de um expresso. Com vento contrario, seria impossivel supportal-a. Phil Evans não se enganava. Por baixo do _Albatrós_ apparecia Montreal, perfeitamente reconhecivel pela Victoria Bridge, ponte tubular, lançada sobre o Saint-Laurent, como o viaducto do caminho de ferro sobre o lago de Veneza. Depois, distinguiam-se as suas largas ruas, as suas lojas immensas, os palacios dos seus bancos, a sua cathedral, basilica recentemente construida pelo modêlo de S. Pedro de Roma, e finalmente o Monte-Real que domina o conjunto da cidade e de que se fez um parque magnifico. Felizmente que Phil Evans visitára as principaes cidades do Canadá. Poude assim reconhecer algumas, sem interrogar Robur. Em seguida a Montreal, pela hora e meia da tarde, passaram sobre Ottawa, cujas cascatas, vistas do alto, pareciam uma vasta caldeira em ebullição e a transbordar, em effervescencias do mais grandioso effeito. —Eis o palacio do parlamento, disse Phil Evans. E mostrava uma especie de brinquedo de Nuremberg, posto sobre uma collina. Esse brinquedo, com a sua architectura polychroma, parecia-se com o Parliament-House de Londres, como a cathedral de Montreal se parecia com S. Pedro de Roma. Mas pouco importava; era fora de duvida ser Ottawa. Não tardou que essa cidade minguasse no horisonte, não formando mais do que uma mancha luminosa sobre o solo. Eram proximamente duas horas, quando Robur tornou a apparecer. Acompanhava-o o seu contramestre, Tom Turner. Não lhe disse mais do que tres palavras. Turner transmittiu-as aos dois ajudantes, postados nos compartimentos da frente e da retaguarda. A um signal, o timoneiro modificou a direcção do _Albatrós_, desviando dois graus ao sudoéste. Ao mesmo tempo, Uncle Prudent e Phil Evans puderam notar que uma velocidade maior acabava de ser imprimida aos propulsores da aeronave. De facto aquella velocidade podia ser duplicada e ultrapassar tudo que se tem obtido até aqui dos mais rapidos engenhos de locomoção terrestre. Imagine-se! Os torpedeiros podem fazer vinte e dois nós ou quarenta kilometros por hora. Os caminhos de ferro francezes e inglezes, cem; os barcos patineiros sobre os rios gelados dos Estados Unidos, cento e quinze; uma machina, construida nas officinas de Patterson, com roda de engrenagem, faz cento e trinta sobre a linha do lago Erié, e uma outra locomotiva, entre Trenton e Jersey, cento e trinta e sete. Ora o _Albatrós_, com o maximo de potencia dos seus propulsores, podia andar na razão de duzentos kilometros por hora, isto é, cêrca de cinquenta metros por segundo. Pois bem, esta velocidade é a do furacão que arranca as arvores pela raiz, a de uma certa rabanada de vento que, durante a tempestade de 21 de setembro de 1881, se deslocou em Cahors, na razão de cento e noventa e quatro kilometros. É a velocidade média do pombo viajante, a qual não é ultrapassada senão pelo vôo da andorinha vulgar (sessenta e sete metros por segundo) e pelo do gavião (oitenta e nove metros). N’uma palavra, como o dissera Robur, o _Albatrós_, desenvolvendo toda a fôrça dos seus helices, podia dar a volta ao mundo em duzentas horas, isto é, em menos de oito dias! Pouco se importava esta machina voadora que o globo possuisse n’aquella épocha quatrocentos e cincoenta mil kilometros de via ferrea, isto é, onze vezes a circumferencia da terra no equador. Pois não tinha ella por ponto de apoio todo o ar do espaço? E será preciso dizer agora que esse phenomeno, que tanto havia intrigado o publico dos dois mundos, era a aeronave do engenheiro Robur? Aquella trombeta que soltava notas vibrantes nos ares, era a do contramestre Tom Turner. A bandeira collocada no alto dos principaes monumentos da Europa, Asia e America, era a bandeira de Robur, o Conquistador, e do seu _Albatrós_. E se, até então, o engenheiro tomára algumas precauções para que o não reconhecessem; se, de preferencia, elle viajava de noite, alumiando-se ás vezes com os seus pharoes electricos; se, durante o dia, desapparecia por cima da camada das nuvens, agora parecia não querer occultar o segredo da sua conquista. E se viera a Philadelphia, se se apresentára na sala das sessões do Weldon-Institute, não era para dar parte da sua prodigiosa descoberta, para convencer _ipso facto_ os mais incredulos? Sabemos como fôra recebido e vamos ver as represalias que queria exercer sobre o presidente e o secretario do mencionado club. Robur approximára-se dos dois collegas. Estes affectavam não ter a menor surpresa do que viam e do que experimentavam, bem contra sua vontade. Evidentemente, dentro d’aquelles dois craneos anglo-saxonios incrustava-se uma teimosia que seria difficil arrancar. Pelo seu lado, Robur não quiz tambem ter o ar de quem percebia isso, e como se continuasse a conversação, que estava aliás interrompida havia duas horas: —Meus senhores, disse elle, estão de certo perguntando a si proprios se este apparelho, maravilhosamente apropriado á locomoção aerea, é susceptivel de receber uma velocidade maior? Elle não seria digno de conquistar o espaço se fôsse incapaz de o devorar. Eu quizera que o espaço fôsse para mim um ponto de apoio solido, e é. Comprehendi que, para luctar contra o vento, era unicamente preciso ser mais forte do que elle, e sou mais forte. Não tenho necessidade de vélas para me mover, nem de remos, nem de rodas para me puxar, nem de rails para fazer mais rapidamente o caminho. Ar, e mais nada. O ar que me envolve, como a agua o barco submarino, e no qual os meus propulsores giram como os helices de um vapor. E aqui está como resolvi o problema da aviação. Eis o que não faria nem o balão nem outro apparelho mais leve que o ar. Mutismo absoluto dos dois collegas, o que não desconcertou um instante o engenheiro. Contentou-se com sorrir e continuou em forma interrogativa: —Talvez perguntem tambem se, ao poder que tem de se deslocar horisontalmente, o _Albatrós_ junta um egual poder de deslocamento vertical: n’uma palavra, se mesmo quando se trata de visitar as altas zonas da atmosphera, pode luctar com um aerostato? Pois bem, não os aconselho a pôr em lucta o _Go a head_ com elle. Os dois collegas tinham-se limitado a encolher os hombros. Era alli que elles esperavam o engenheiro. Robur fez um signal. Os helices propulsivos pararam immediatamente. Depois, tendo corrido no seu rumo uma milha ainda, o _Albatrós_ permaneceu immovel. A um segundo gesto de Robur, os helices suspensivos puzeram-se então a mover-se com uma rapidez tal, que se podia comparar á das sereias nas experiencias de acustica. O seu _frrr_ subiu cêrca de uma oitava na escala dos sons, diminuindo comtudo de intensidade por causa da rarefacção do ar, e o apparelho elevou-se verticalmente como uma calhandra, que solta o seu grito agudo através o espaço. —Meu amo!... meu amo!... repetia Fricollin. Queira Deus que isto se não parta! Um sorriso de desdem foi a unica resposta de Robur. Em alguns minutos, o _Albatrós_ devia ter alcançado setecentos metros, o que extendia o raio visual a setenta milhas, depois quatro mil metros, o que era indicado pelo barometro que descia a quatrocentos e oitenta millimetros. Então, feita a experiencia, o _Albatrós_ tornou a descer. A diminuição da pressão das altas camadas traz a diminuição do oxygenio no ar, e, por conseguinte, no sangue. É a causa dos graves accidentes que se teem dado com certos aeronautas. Robur julgava inutil expôr-se a isso. O _Albatrós_ voltou pois á altura que parecia procurar de preferencia, e os seus propulsores, entrando de novo a girar, arrastaram-n’o com uma velocidade ainda maior para o sudoéste. —Agora, meus senhores, se tinham no espirito essa pergunta ahi fica a resposta. Depois, curvado sobre o corrimão, ficou-se absorto a contemplar. Quando ergueu a cabeça, tinha o presidente e o secretario do Weldon-Institute defronte d’elle. —Engenheiro Robur, disse Uncle Prudent, que em vão procurava dominar-se, nós não perguntavamos nada do que lhe pareceu que pensassemos. Mas far-lhe-hemos uma pergunta, a que desejariamos que respondesse. —Diga. —Com que direito nos atacou em Philadelphia, no parque de Fairmont? Com que direito nos encerrou n’uma cellula? Com que direito nos leva, contra a nossa vontade, a bordo d’esta machina volante? —E com que direito, senhores balonistas, respondeu Robur, os senhores me insultaram, me apuparam, me ameaçaram, no seu club, a ponto de eu estar espantado de ter sahido de lá vivo? —Interrogar não é responder, continuou Phil Evans, e eu repito-lhe: com que direito?... —Quer sabel-o? —Tenha a bondade. —Pois bem, com o direito do mais forte! —Isso é cynico! —Mas assim é! —E por quanto tempo ainda, cidadão engenheiro, perguntou Uncle Prudent, que não se poude mais conter, por quanto tempo ainda pretende exercer esse direito? —Pois que, meus senhores! respondeu ironicamente Robur, como me podem fazer uma pergunta d’essas, quando não teem mais do que baixar os olhos para desfructar um espectaculo sem egual em todo o mundo! O _Albatrós_ mirava-se n’aquelle momento no immenso espelho do lago Ontario. Acabava de atravessar o paiz tão poeticamente cantado por Cooper. Depois seguiu pela costa meridional da vasta bacia e dirigiu-se ao celebre rio que n’elle verte as aguas do lago Erié, quebrando-se sobre as suas cataratas. Durante um instante, um ruido majestoso, um rugir de tempestade subiu até elle. E, como se se tivesse derramado no ar um nevoeiro humido, a atmosphera refrescou sensivelmente. Por cima, em forma de ferradura, precipitavam-se massas liquidas. Dir-se-hia um enorme jacto de crystal, no meio de mil arcos iris que produziam a refracção, decompondo os raios solares. Era um aspecto sublime. Na frente d’estas cascatas, uma estreita ponte, tensa como um fio, ligava uma margem á outra. Um pouco acima, á altura de tres milhas, estava a ponte pensil, sobre a qual passava então um comboio que ia da margem canadiana á margem americana. —As cataratas do Niagara! exclamou Phil Evans. E este grito escapou-lhe, emquanto que Uncle Prudent fazia todos os esforços para nada admirar d’aquellas maravilhas. Um minuto depois, o _Albatrós_ tinha transposto a margem que separa os Estados Unidos da colonia canadiana, e lançava-se por sobre os vastos territorios da America do Norte. CAPITULO VIII ONDE SE VERÁ QUE ROBUR SE RESOLVE A RESPONDER Á IMPORTANTE PERGUNTA QUE LHE ERA FEITA Era n’um dos beliches dos compartimentos de traz que Uncle Prudent e Phil Evans haviam encontrado dois excellentes leitos, roupa branca e fato para mudar, em quantidade sufficiente, mantas e abafos de viagem. Um vapor do Transatlantico não lhes teria offerecido maior commodidade. Se não dormiram a somno solto, foi porque o não quizeram, ou, pelo menos, porque cuidados muito serios lh’o impediam. Em que aventura se tinham elles mettido? A que serie de experiencias tinham sido convidados? Como terminaria o negocio? e, afinal, o que é que o engenheiro Robur queria? Havia n’isto muito que dar que scismar. Quanto ao creado Fricollin, estava installado nos compartimentos da frente, n’um beliche contiguo ao do mestre cozinheiro do _Albatrós_. Esta vizinhança não lhe podia desagradar. Elle gostava de conviver com os grandes d’este mundo. Mas se acabou por adormecer, foi para sonhar quédas successivas, e projecções através do vacuo, que fizeram do seu sonho um pesadello horrivel. E comtudo, nada mais tranquillo do que essa peregrinação no meio de uma atmosphera, cujas correntes tinham serenado com a tarde. Afora o ruido dos helices, nenhum outro se ouvia n’aquella zona. Ás vezes um assobio de alguma locomotiva terrestre, que corria sobre os rails, ou vozes de animaes domesticos. Singular instincto! Esses seres terrestres sentiam a machina volante passar por cima d’elles e soltavam gritos de espanto na sua passagem. No dia seguinte, 14 de junho, ás cinco horas, Uncle Prudent e Phil Evans passeavam na plataforma, pode-se dizer, sobre a ponte da aeronave. Nada estava mudado desde a vespera: o homem de vigia, na frente, o timoneiro, atraz. Vigia para quê? Havia a receiar algum choque com apparelho do mesmo genero? Não, evidentemente. Robur não tinha encontrado ainda imitadores. Quanto a encontrar algum aerostato a pairar nos ares, era probabilidade tão minima, que era permittido não a ter em consideração. Em todo o caso, tanto peor para o aerostato! Seria como o choque de um vaso de ferro com outro de barro. O _Albatrós_ nada tinha a receiar de um tal encontro. Mas, afinal, podia dar-se algum choque? Sim! Era bem possivel a aeronave dar á costa, como um navio, se alguma montanha, que ella não pudesse passar ou tornear, lhe vedasse o caminho. Eram esses os escolhos do ar, e era preciso evital-os como um navio evita os do mar. É verdade que o engenheiro déra a direcção, como o faz um capitão, tendo em vista a altitude necessaria para dominar os altos cumes. Ora, como a aeronave não tardaria em pairar sobre um paiz de montanhas, era de todo o ponto prudente estar de vigia, para o caso de haver qualquer desvio na rota. Observando a região collocada abaixo d’elles, Uncle Prudent e Phil Evans viram um grande lago, de que o _Albatrós_ ia alcançar o extremo inferior, ao sul. Concluiram d’ahi que, durante a noite, o lago Erié fôra transposto em toda a sua extensão. Portanto, visto que caminhava mais directamente ao oéste, a aeronave devia então alcançar o extremo do lago Michigan. —É fora de toda a duvida! disse Phil Evans. Este conjuncto de tectos, lá no horisonte, é Chicago! E não se enganava. Era de facto a cidade para a qual convergem dezesete caminhos de ferro, a rainha do Occidente, o vasto reservatorio, onde affluem os productos da Indiana, do Ohio, do Wisconsin, do Missuri, de todas aquellas provincias que formam a parte occidental da União. Uncle Prudent, munido de um excellente oculo que encontrára no seu beliche, reconheceu perfeitamente os principaes edificios da cidade. O seu collega poude-lhe indicar as egrejas, edificios publicos, os numerosos “elevators„ ou selleiros mechanicos, o immenso hotel Sherman, semelhante a um grande dado, e cujas janellas pareciam centenas de pontos luminosos em cada uma das faces. —Visto ser Chicago, disse Uncle Prudent, é a prova de que estamos sendo levados um pouco mais ao oéste do que seria preciso para voltarmos ao ponto da partida. Com effeito o _Albatrós_ afastava-se em linha recta da capital da Pensylvania. Mas, se Uncle Prudent tivesse querido convencer Robur a conduzil-os um pouco para o léste, não o poderia n’aquella occasião. N’essa manhã, o engenheiro não parecia ter pressa de sahir do seu beliche, quer porque andasse occupado n’algum trabalho importante, quer porque estivesse ainda a dormir. A velocidade não se tinha modificado ainda desde a vespera. Sendo a direcção do vento que soprava ao léste, aquella velocidade não era incommoda, e como o thermometro não baixa senão um grau por cada cento e setenta metros de elevação, a temperatura não era insuportavel. Uncle Prudent e Phil Evans passeavam sob o que se podia chamar a ramagem dos helices, que eram n’aquelle momento arrastados n’um movimento giratorio tal, que a irradiação dos seus ramos se fundia n’um disco meio diaphano. O estado de Illinois foi assim transposto na sua fronteira septentrional em menos de duas horas e meia. Passaram por sobre o Mississipi, o Pae das Aguas, onde os vapores de dois andares não pareciam maiores que botes. Depois o _Albatrós_ lançou-se sobre o Jowa, tendo avistado Jowa-City pelas onze da manhã. Uma serie de collinas, _bluffs_, serpeavam através aquelle territorio, obliquando do sul ao noroéste. A sua mediocre altitude não exigia nenhuma elevação da aeronave. Além de que, esses _bluffs_ não deviam tardar em baixar para dar logar ás vastas planicies do Jowa, extendidas sobre toda a parte occidental e sobre o Nebraska, pradarias numerosas que se desenrolam até aos pés das Montanhas Rocheas. Aqui e acolá, numerosos rios, affluentes ou sub-affluentes do Missuri. Sobre as suas margens, cidades e aldeias, que se tornavam mais raras quanto mais rapidamente o _Albatrós_ avançava por sobre o Far-West. Nada de particular se passou durante aquelle dia. Uncle Prudent e Phil Evans ficaram completamente entregues a si proprios. Mal viam até o pobre Fricollin, estirado na frente da aeronave, e com os olhos fechados para não vêr nada. O abysmo não attrahe quando é dominado do alto da barquinha de um balão ou da plataforma de uma aeronave; ou, por outra, o que se abre por baixo do aeronauta, não é um abysmo, é o horisonte que sobe e o rodeia de todos os lados. Ás duas horas, o _Albatrós_ passava por cima do Omaha, na fronteira do Nebraska,—Omaha-City, verdadeiro leito d’esse caminho de ferro do Pacifico, longa extensão de rails de quinhentas leguas, traçada entre Nova-York e S. Francisco. Por um momento, puderam vêr as aguas amarellentas do Missuri, depois a cidade, com casas de madeira e tijolo, posta no centro d’essa rica bacia, como uma fivela no cinto de ferro que cinge pela cintura a America do Norte. Evidentemente, emquanto os passageiros da aeronave observavam todos estes pormenores, os habitantes de Omaha deviam notar no extranho apparelho. Mas o seu espanto em o vêr pairar nos ares não podia ser maior que o do presidente e do secretario do Weldon-Institute por se acharem a seu bordo. Em todo o caso era um facto que os jornaes da União iam commentar. Seria essa a explicação do inexplicavel phenomeno, de que o mundo inteiro se occupava desde algum tempo. Uma hora depois o _Albatrós_ tinha transposto o Omaha. Viu-se então que se dirigia para léste, afastando-se da Platte-River, por cujo valle segue o Pacific-Railway, através o Prado. Isso não podia ser do agrado de Uncle Prudent e Phil Evans. —É pois a serio este absurdo projecto de nos conduzir aos antipodas? disse um. —E contra a nossa vontade? respondeu outro. Ah! tome sentido esse Robur! Não sou homem com quem se brinque!... —Nem eu! replicou Phil Evans. Mas, repare no que lhe digo, Uncle Prudent, tenha moderação ... —Moderação!... —E guarde a sua colera para o momento em que seja opportuno que ella rebente. Pelas cinco horas, depois de terem transposto as Montanhas Negras, cobertas de pinheiros e cedros, o _Albatrós_ voava por sobre esse territorio que justamente se chamou as Más Terras do Nebraska, um cahos de collinas côr de occa, de pedaços de montanhas que parecia terem deixado cahir sobre o solo, e que se houvessem partido na quéda. De longe, aquelles blocos tomavam as formas mais phantasticas. Aqui e acolá, no meio d’aquelles destroços, entreviam-se ruinas de cidades da edade média com fortes, bastiões, castellos com setteiras e ameias. Mas, realmente, essas Más terras não passam de um ossuario immenso, onde alvejam, ás myriades, destroços de pachidermes, de collonianos, e mesmo, segundo dizem, de homens fosseis, arrastados por algum desconhecido cataclismo das primeiras edades. Quando veiu a noite, toda aquella bacia da Platte-River já havia sido transposta. Agora a planicie desenvolvia-se até os limites de um horisonte muito ampliado pela altitude do _Albatrós_. Durante a noite não se ouviram os silvos agudos das locomotivas, nem os graves assobios dos _steam-boats_ a perturbarem o socego do firmamento estrellado. Longos mugidos subiam ás vezes até á aeronave, então mais proxima do solo. Eram rebanhos de bisões que atravessavam a pradaria, em busca de regatos e pastagens. E quando se calavam, o fremito das hervas, debaixo dos seus pés, produzia um ruido surdo, semelhante á passagem de uma inundação e bem diverso do fremito continuo dos helices. Depois, de tempos a tempos, um uivo do lobo, da rapoza, do gato bravo; um uivo do _canis latrans_, cujo nome é bem justificado pelo seu ladrar sonoro. Ao mesmo tempo cheiros penetrantes, a ortelã pimenta, a salsa, o absintho, de mistura com os aromas poderosos das coniferas, a derramarem-se no ar puro da noite. Finalmente, para notar todos os ruidos vindos do solo, um sinistro uivo que não era d’esta vez de nenhum _canis latrans_; era o grito do Pelle Vermelha, que um pioneiro não podia confundir com o grito dos animaes bravios. No dia seguinte, 15 de junho, pelas cinco da manhã, Phil Evans deixou o seu beliche. Encontrar-se-hia n’esse dia com o engenheiro Robur? Em todo o caso, desejoso de saber porque não apparecêra na vespera, dirigiu-se ao contramestre Tom Turner. Tom Turner, de origem ingleza, da edade de quarenta e cinco annos, approximadamente, largo de hombros, atarracado, com uma construcção de ferro, tinha uma d’essas cabeças enormes e caracteristicas, á Hogarth, taes como esse pintor de todas as fealdades saxonias traçou com o seu pincel. Se quizermos analysar a estampa quarta do _Harlot Progress_, alli encontraremos a cabeça do Tom Turner sobre os hombros do carcereiro, e veremos que a sua physionomia nada tem de animadora. —Veremos hoje o engenheiro Robur? perguntou Phil Evans. —Não sei, respondeu Tom Turner. —Não lhe perguntarei se elle sahiu do beliche. —Talvez sahisse. —E quando voltará? —Naturalmente, quando tiver dado as suas voltas. N’isto Tom Turner entrou para os seus compartimentos. Forçoso era contentar-se com aquella resposta, tanto menos tranquillisadora quanto, consultada a bussola, se viu que o _Albatrós_ continuava a caminhar para o noroéste. Que contraste entre esse arido territorio das Más Terras, abandonado com a noite, e a paizagem que se desenrolava agora, á superficie do solo! A aeronave, depois de ter atravessado mil kilometros desde Omaha, achava-se por cima de uma região que Phil Evans não podia reconhecer pela razão de não a ter visitado nunca. Alguns fortes, destinados a conter os Indios, coroavam os _blufs_ com as suas linhas geometricas, formadas mais por paliçadas do que por muralhas. Poucas povoações, poucos habitantes n’esse paiz tão diverso dos territorios auriferos do Colorado, situados muitos graus mais ao sul. Ao longe, começava a destacar-se, muito confusamente ainda, uma serie de cumes de montanhas que o sol nascente franjava com uma lista de fogo. Eram as Montanhas Rocheas. De repente, n’essa manhã, Uncle Prudent e Phil Evans foram tomados de um frio intenso. Aquelle abaixamento de temperatura não era devido a uma modificação do tempo, e o sol brilhava com uma luz magnifica. —Deve ser por causa da elevação do _Albatrós_ na atmosphera, observou Phil Evans. Com effeito o barometro, collocado á porta da divisão central, cahira a quinhentos e quarenta millimetros, o que indicava uma elevação de tres mil metros, obrigada pelos accidentes do terreno. Uma hora antes tinham passado á altura de quatro mil metros; porque, atraz d’elles, erguiam-se montanhas cobertas de uma neve eterna. Nada encontravam na sua memoria, nem Uncle Prudent, nem o seu companheiro, que lhes lembrasse qual era aquelle paiz. Durante a noite, o _Albatrós_ tinha podido fazer desvios para o norte, para o sul, com uma velocidade extrema, e isso era sufficiente para os desnortear. Apesar d’isso, depois de terem discutido diversas hypotheses, mais ou menos plausiveis, fixaram-se no seguinte: aquelle territorio, emmoldurado n’um circulo de montanhas, devia ser o que um acto do congresso, em março de 1872, havia declarado Parque Nacional dos Estados Unidos. Era de facto essa região tão curiosa. Merecia bem o nome de parque, um parque com montanhas por collinas, lagos por tanques, rios em vez de regatos, circos por labyrinthos, e em vez de jactos de agua, cascatas de um poder maravilhoso. Em alguns minutos o _Albatrós_ passava por sobre o Yellowstone river, deixando o monte Stevenson á direita, e alcançava o grande lago que tem o nome d’aquelle rio. Que variedade no traçado das margens d’aquella bacia, cujas praias, semeadas de obsidiana e de crystaes miudos, reflectem o sol pelas suas milhares de facetas. Que disposição caprichosa de ilhas á superficie! E em volta d’aquelle lago, um dos mais altos do globo terrestre, que nuvens de volateis, pelicanos, cysnes, gaivotas, patos, gansos e mergulhões! Certas porções da margem, escarpadissimas, são revestidas de um tufo de arvores verdes, pinheiros e larises, e na base d’essas escarpas innumeras nuvens brancas de fumo. É o vapor que sae do chão, como de um enorme recipiente, onde a agua se mantem por meio de fogos interiores no estado de permanente ebullição. Para o mestre cozinheiro seria aquella uma occasião excellente de fazer uma grande provisão de trutas, o unico peixe que as aguas do lago Yellowstone nutrem ás myriades. Mas o _Albatrós_ conservou-se sempre a uma tal altura, que não deu o ensejo de se emprehender uma pesca, que teria sido, com toda a certeza, miraculosa. Em tres quartos de hora era transposto o lago e, um pouco mais longe, a região d’esses _geysers_ (cascatas), que rivalisam com os mais bellos da Islandia. Curvados sobre a plataforma, Uncle Prudent e Phil Evans observavam as columnas liquidas que se lançavam, como que para fornecer á aeronave um novo elemento. Eram o “Leque„, cujos jactos se dispunham em laminas irradiantes; o “Castello forte„, que parece defender-se a golpe de trombas de agua; o “Velho fiel„, com a sua projecção coroada em arco-íris; o “Gigante„, cujo impulso interno vomita uma torrente vertical de uma circumferencia de vinte pés, na altura de mais de cem pés. D’este espectaculo incomparavel, pode-se dizer, unico no mundo, conhecia decerto Robur todas as maravilhas, porque não appareceu na plataforma. Seria, pois, só para recreio dos seus hospedes que elle lançára a aeronave por sobre aquelle dominio nacional? Seja como fôr, absteve-se de vir buscar os agradecimentos. Nem mesmo se mexeu durante a audaciosa travessia das Montanhas Rocheas, que o _Albatrós_ alcançou pelas sete horas da manhã. Como se sabe, esta disposição orographica extende-se, como uma enorme espinha dorsal, desde os rins até o pescoço da America septentrional, seguindo pelos Andes mexicanos. É um desenvolvimento de tres mil e quinhentos kilometros dominado pelo pico James, cujo cume attinge doze mil pés. Certamente que multiplicando os seus movimentos de aza, como uma ave de vôo alto, poderia o _Albatrós_ galgar os cumes mais elevados d’esta cordilheira para ir cahir, n’um pulo, no Oregon ou no Utah. Mas nem sequer foi necessaria essa manobra. Ha passagens que permittem atravessar aquella barreira sem galgar a crista. Ha muitos d’esses “canons„, especie de gargantas, mais ou menos estreitas, através das quaes se pode deslisar, uns como a passagem Bredger, por onde segue o caminho de ferro do Pacifico, para penetrar no territorio dos Mormons, outros que se abrem mais ao norte ou mais ao sul. Foi por uma d’ellas que o _Albatrós_ tomou, depois de ter moderado a sua velocidade, afim de não esbarrar. O timoneiro, com uma certeza de mão que tornava mais efficaz ainda a extrema sensibilidade do leme, manobrou-o como se tratasse de uma embarcação de primeira ordem, n’um _match_ do Royal Thames Club. Foi verdadeiramente extraordinario. E, apesar do despeito que podiam sentir os dois inimigos do “Mais pesado que o ar„, não puderam deixar de se maravilhar com a perfeição de um tal engenho de locomoção aerea. Em menos de duas horas e meia, a grande cordilheira foi transposta, e o _Albatrós_ voltou á sua primeira velocidade, a razão de cem kilometros. Tomava de novo para sudoéste, de maneira a cortar obliquamente o territorio do Utah, approximando-se do solo. Tinha mesmo descido uns centos de metros, quando alguns silvos attrahiram a attenção de Uncle Prudent e Phil Evans. Era um comboio do Pacific Railway, que se dirigia para a cidade do Grande Lago Salgado. N’esse momento, obedecendo a uma ordem secreta, o _Albatrós_ baixou ainda mais, de maneira a seguir o comboio, lançado a todo o vapor. Depois, numerosos passageiros se juntaram nas pontes que ligam as carruagens dos caminhos de ferro americanos. Alguns não hesitaram mesmo em subir ao toldo, afim de vêr melhor aquella machina volante. Hips e hurrahs voaram através do espaço; mas não deram em resultado fazer apparecer Robur. O _Albatrós_ desceu ainda mais, moderando o jogo dos seus helices suspensivos, e encurtou o seu andamento para não deixar para traz o comboio, que facilmente podia pôr a distancia. Esvoaçava-lhe por cima, como um enorme escaravelho, elle que podia ser uma gigantesca ave de rapina. Fazia bordos á direita e á esquerda, lançava-se para a frente, voltava atraz, e, orgulhosamente, tinha arvorado o seu pavilhão negro, ao sol, ao que o chefe do trem respondeu fazendo agitar a bandeira das trinta e sete estrellas, da União Americana. Em vão os dois prisioneiros quizeram aproveitar a occasião que se lhes offerecia de darem a conhecer o que lhes succedêra. Em vão o presidente do Weldon-Institute gritou com voz forte: —Sou Uncle Prudent, de Philadelphia! E o secretario: —Sou Phil Evans, seu collega! Os seus gritos perderam-se nos milheiros de _hurrahs_ com que os viajantes saudaram a sua passagem. Tres ou quatro dos homens que iam na aeronave, appareceram na plataforma. Depois, um d’elles, á maneira dos marinheiros que passam adeante de um navio menos rapido que o em que elles vão, lançou ao comboio a extremidade de um cabo, maneira ironica de lhe offerecer um reboque. O _Albatrós_ voltou de novo ao seu andamento habitual e, em meia hora, tinha deixado atraz de si o expresso, cujo ultimo fumo não tardou em desapparecer. Pela uma hora, depois do meio dia, appareceu um vasto disco que reflectia os raios do sol, como faria um immenso reflector. —Deve ser a capital dos Mormons, Salt-Lake-City! disse Uncle Prudent. Era com effeito a cidade do Grande Lago Salgado, e aquelle disco o tecto redondo do Tabernaculo, onde podem ser collocados dez mil Santos, á vontade. Como um espelho convexo, dispersava os raios do sol em todas as direcções. Alli se extendia a grande cidade, aos pés dos montes Wasatsh, revestidos de cedros e de pinheiros, até meia encosta, sobre a margem d’esse Jordão que verte as aguas do Utah no Great-Salt-Lake. Debaixo da aeronave extendia-se esse taboleiro formado pela maior parte das cidades americanas, taboleiro de jogo de damas do qual se pode dizer que “tem mais damas do que casas„, visto que a polygamia está em uso entre os Mormons. Todo em volta, um paiz bem tratado, bem cultivado, rico em plantas textis, onde os rebanhos de carneiros se contam aos milheiros. Mas este conjunto evapora-se como uma sombra, e o _Albatrós_ toma na direcção sudoéste uma velocidade mais accelerada que não deixou de ser muito sensivel, por exceder a do vento. Breve a aeronave voou por sobre as regiões da serra Nevada e de um territorio argentifero, que só a serra separa dos jazigos auriferos da California. —Decididamente, disse Phil Evans, devemos contar com vêr S. Francisco antes da noite. —E depois?... perguntou Uncle Prudent. Eram seis da tarde, quando a serra Nevada foi transposta, precisamente pelo desfiladeiro de Truckie, que serve de passagem ao caminho de ferro. Apenas faltavam a percorrer 300 kilometros para alcançar, se não S. Francisco, pelo menos Sacramento, a capital do Estado Californiano. Tal foi então a rapidez imprimida ao _Albatrós_ que, antes das oito horas, a cupula do Capitolio erguia-se no horisonte do poente, para logo desapparecer no horisonte opposto. Nesse instante, Robur apparecia na plataforma. Os dois collegas foram ter com elle. —Engenheiro Robur, disse Uncle Prudent, eis-nos nos confins da America! Quer-nos parecer que este gracejo vae terminar ... —Não estou a gracejar, respondeu Robur. Fez um signal. O _Albatrós_ desceu rapidamente ao chão, mas, ao mesmo tempo, tomou uma tal velocidade, que tiveram de se refugiar nos seus compartimentos. Mal a porta do seu beliche se fechou sobre os dois collegas: —Um pouco mais, e tinha-o estrangulado! disse Uncle Prudent. —É preciso pensar em fugir! disse Phil Evans. —Sim! custe o que custar! respondeu Uncle Prudent. Ouviu-se então um longo murmurio. Era o rugido do mar, que se quebrava nos rochedos do littoral. Era o Oceano Pacifico. CAPITULO IX DE COMO O “ALBATRÓS„ TRANSPÕE CERCA DE DEZ KILOMETROS QUE TERMINAM POR UM SALTO PRODIGIOSO Uncle Prudent e Phil Evans estavam realmente resolvidos a fugir. Se não se tratasse dos oito homens, excepcionalmente vigorosos, que constituiam o pessoal da aeronave, talvez tivessem tentado a lucta. Um golpe de audacia poderia tornal-os senhores a bordo, e permittir-lhes descer em algum ponto dos Estados Unidos. Mas sendo elles apenas dois,—visto Fricollin ser considerado como uma quantidade sem valor,—não se podia pensar n’isso. Portanto, visto a fôrça não poder ser empregada, conviria recorrer á manha, apenas o _Albatrós_ ganhasse a terra. Foi o que Phil Evans quiz fazer conhecer ao seu irascivel collega em quem receiava alguma violencia prematura, que aggravasse a situação. Em todo o caso, não era aquella a occasião. A aeronave caminhava com toda a velocidade por sobre o Pacific-Nord. No dia seguinte, 16 de junho, não se via nada da costa. Ora como o littoral se arredonda desde a ilha de Vancouver até o grupo das Aleutas,—porção da America russa cedida aos Estados Unidos em 1867,—muito provavelmente o _Albatrós_ o cruzaria na sua curva extrema, se a direcção se não modificasse. Como as noites pareciam longas aos dois collegas! De modo que estavam mortos por deixar o beliche. N’essa manhã, quando se acharam sobre a ponte, havia muito já que a alvorada illuminava o horisonte ao nascente. Estava-se proximo do solsticio de junho, o dia mais longo do anno, no hemispherio boreal; e, sob o parallelo 60.°, mal era noite. Quanto ao engenheiro Robur, quer fôsse por habito, quer por intenção, não se dava pressa em sahir dos seus aposentos. N’esse dia, quando os deixou, contentou-se com saudar os seus dois hospedes, ao encontrar-se com elles, na ré da aeronave. Com os olhos vermelhos da insomnia, o olhar estupidificado, as pernas tremulas, Fricollin atrevera-se a sahir do seu compartimento. Caminhava como um homem que sente que lhe falta o terreno debaixo dos pés. O seu primeiro olhar foi para o apparelho suspensor, que funccionava com uma regularidade tranquillisadora, sem se apressar muito. Feito isso, o negro, a titubear sempre, dirigiu-se para a sacada e segurou-a com as duas mãos, para melhor garantir o equilibrio. Evidentemente elle desejava fazer idéa do paiz que o _Albatrós_ dominava da altura de duzentos metros, o maximo. Fricollin devia estar muito afflicto para arriscar um tal passo. Foi-lhe decerto preciso uma grande audacia para sujeitar a sua pessoa a uma prova d’essas. Primeiramente, Fricollin inclinou o corpo para traz junto á sacada; depois sacudiu-a afim de reconhecer a sua solidez; depois tornou a levantar-se; depois curvou-se para a frente; depois poz a cabeça de fora. Inutil é dizer que, emquanto executava estes diversos movimentos, tinha os olhos fechados. Abriu-os afinal. Que grito! e como recuou depressa! E como a cabeça lhe entrou pelos hombros dentro! No fundo do abysmo vira o immenso Oceano. Os cabellos ter-se-lhe-hiam eriçado, se não fôssem carapinha. —O mar!... o mar!... exclamou elle. E Fricollin cahiria sobre a plataforma, se o mestre cozinheiro não tivesse aberto os braços para o receber. O mestre cozinheiro era um francez, um gascão talvez, apesar de se chamar François Tapage. Se não era gascão, devia ter pelo menos aspirado as brisas do Garonne, durante a infancia. Como é que esse François Tapage estava ao serviço do engenheiro? Que serie de acasos o levaram a fazer parte do pessoal do _Albatrós?_ Não se sabia. Em todo o caso, aquelle patusco falava inglez como um Yankee. —Vamos, arriba! arriba! gritou elle, dando um impulso pelos rins ao negro, afim de o pôr direito. —Master Tapage! respondeu o pobre diabo, lançando olhares desesperados para os helices. —Então, Fricollin! —Isto parte-se, ás vezes? —Não, mas acabará por se partir. —Porque?... porque? —Porque, como dizem na minha terra, _tout lasse, tout passe, tout casse_. —E o mar que está por baixo?... —Em caso de quéda, é melhor o mar. —Mas afoga-se a gente! —Afoga-se, mas não se faz em pedaços! respondeu François Tapage, accentuando cada syllaba da phrase. Um momento depois, por um movimento de reptação, Fricollin esgueirava-se para o fundo do seu beliche. Durante esse dia, 16 de junho, a aeronave não passou de uma velocidade moderada. Parecia roçar na superficie tão calma d’esse mar, todo impregnado de sol, que ella dominava da altura de uns cem pés apenas. Pela sua vez, Uncle Prudent, e o seu companheiro haviam ficado nos seus compartimentos, para se não encontrarem com Robur, que passeava, fumando, ora só, ora com o contramestre Tom Turner. Só estava metade dos helices a funccionar, e isso bastou para manter o apparelho nas zonas baixas da atmosphera. N’essas condicções a gente do _Albatrós_ poderia ter, conjuntamente com o prazer da pesca, a satisfação de variar o seu passadio, se as aguas do Pacifico tivessem peixe. Mas á superficie appareciam apenas algumas baleias, d’essa especie de ventre amarello que chegam a medir até vinte e cinco metros de comprimento. São os mais temiveis cetaceos dos mares boreaes. Os pescadores de profissão fogem de os atacar, tanto a sua fôrça é prodigiosa. Comtudo, arpoando-se uma d’essas baleias, ou fôsse com um arpão vulgar, ou com o foguete Tlechter, ou com o dardo-bomba, de que havia a bordo grande provisão, a pesca poderia realisar-se sem perigo. Mas para que servia essa massacragem inutil? Comtudo, talvez para mostrar aos dois membros do Weldon-Institute o que elle podia conseguir da sua aeronave, Robur quiz dar caça a um d’esses monstruosos cetaceos. Ao grito de “baleia! baleia!„ Uncle Prudent e Phil Evans sahiram do seu beliche. Talvez estivesse á vista algum navio baleeiro ... N’esse caso, afim de escapar á sua prisão volante, seriam os dois capazes de se atirar ao mar, contando com a probabilidade de serem recolhidos por uma embarcação. Já todo o pessoal da aeronave estava postado na plataforma, á espera. —Vamos então experimentar, master Robur? perguntou o contramestre Turner. —Sim, Tom! respondeu o engenheiro. Nos compartimentos da machina, o machinista e os seus dois ajudantes estavam a postos, promptos a executar as manobras que seriam ordenadas por meio de gestos. O _Albatrós_ não tardou em se abaixar até o mar, e parou uns cincoenta pés acima d’elle. Não estava ao largo nenhum navio,—o que foi verificado pelos dois collegas, nem á vista nenhuma terra que elles pudessem alcançar a nado, admittindo mesmo que Robur nada fizesse para os colher de novo. Muitos jactos de vapor e de agua, lançados pelos ventiladores, annunciaram a presença das baleias que vinham respirar á superficie do mar. Tom Turner, auxiliado por um dos seus camaradas, collocára-se na frente. Ao alcance d’elle estava um d’esses dardos-bombas, de fabrico californiano, que se lança por meio de um arcabuz. É uma especie de cylindro de metal que termina em bomba cylindrica, armada de uma haste de ponta farpada. Do banco da frente, ao qual acabava de subir, Robur indicava com a mão direita aos machinistas, e com a esquerda ao homem do leme, as manobras a fazer. Era assim senhor da aeronave, em todas as direcções, horisontal e vertical. Não se pode calcular a rapidez e a precisão com que o apparelho obedecia a todas as ordens. Parecia um ser organico, de que Robur era a alma. —Baleia!... Baleia!... exclamou de novo Tom Turner. Com effeito, umas quatrocentas e oito braças deante do _Albatrós_ emergia o dorso de um cetaceo. O _Albatrós_ correu para elle, e quando chegou a uns sessenta pés de distancia parou. Tom Turner tinha apontado a espingarda que estivera encostada ao parapeito. O tiro partiu, e o projectil, levando comsigo uma longa corda, cuja extremidade se prendia á plataforma, entrou no corpo da baleia. A bomba cheia de uma materia fulminante, explosiu então, e, explosindo, lançou uma especie de pequeno arpão de duas voltas, que se incrustou nas carnes do animal. —Attenção! gritou Turner. Uncle Prudent e Phil Evans, por pouco dispostos que estivessem, achavam-se interessados no espectaculo. A baleia, gravemente ferida, fustigára o mar com uma tão violenta rabanada, que a agua repuxou até á altura da aeronave. Depois o animal mergulhou a uma grande profundidade, ao passo que lhe iam largando corda, préviamente enrolada dentro de uma celha com agua, para que se não incendiasse com a fricção. Quando a baleia voltou á tona d’agua, desatou a fugir a toda a pressa na direcção do norte. Imagine-se a rapidez com que o _Albatrós_ foi rebocado! Além de que, os propulsores tinham sido parados. Deixaram o animal andar, pondo-se em alinhamento com elle. Tom Turner estava prestes a cortar a corda, para o caso de um novo mergulho tornar muito perigoso esse reboque. Durante meia hora, e talvez á distancia de seis milhas, o _Albatrós_ foi assim arrastado; mas via-se que o cetaceo começava a enfraquecer. Então, a um gesto de Robur, os ajudantes dos machinistas andaram com a machina atraz, e os propulsores começaram a oppôr uma certa resistencia á baleia, que, a pouco e pouco, se approximou de bordo. A aeronave batia ainda nas aguas com uma violencia incrivel. Ás voltas sobre si propria, a baleia produzia remoinhos enormes. De repente poz-se, por assim dizer, de pé, e atirou-se á agua com uma tal velocidade, que Tom Turner mal teve tempo de lhe alar a corda. N’um puxão, a aeronave foi arrastada á superficie das aguas. Um turbilhão se formara no sitio onde o animal desapparecêra. Uma vaga entrou para dentro da aeronave, como acontece com um navio que caminha contra o vento e contra a onda. Felizmente, com um golpe de machado, Tom Turner cortou a corda, e o _Albatrós_, livre do reboque, subiu duzentos metros, com o poder dos seus helices ascensionaes. Quanto a Robur, manobrára o apparelho sem que o seu sangue frio o houvesse abandonado um momento. Alguns minutos depois a baleia voltava á tona da agua,—porém morta d’esta vez. Por todos os lados as aves do mar accorriam, soltando gritos capazes de ensurdecer todo um Congresso. O _Albatrós_, não sabendo o que fazer áquelle cadaver, retomou para léste o seu andamento. No dia seguinte, 17 de junho, ás seis horas da manhã, uma terra se avistou no horisonte. Era a peninsula de Alaska, e a longa sementeira de rochedos das Aleutes. O _Albatrós_ saltou por cima d’essa barreira onde pullulam as focas, para pelles, que os habitantes d’aquelle paiz pescam por conta da Companhia Russo-Americana. Excellente cousa, a captura d’esses amphibios, do comprimento de seis a sete pés, côr de ferrugem, e que pesam trezentos e quinhentos arrateis. Eram filas interminaveis d’elles, em formatura de batalha, e contavam-se aos milhares. Se não se mexeram á passagem do _Albatrós_, não aconteceu o mesmo com os mergulhões, e outros animaes, cujos gritos roucos encheram o espaço, e que desappareceram nas aguas como se fôssem ameaçados por algum grande animal aereo. Os dois mil kilometros do mar de Behring, desde as primeiras Aleutes até a ponta extrema do Kamtchalka, foram transpostos durante as vinte e quatro horas d’esse dia e da noite immediata. Para pôr em execução o seu plano de fuga, Uncle Prudent e Phil Evans não se encontravam em condições favoraveis. Não era nem sobre as margens desertas da extrema Asia, nem nas paragens do mar de Okhotsk que se podia realisar essa fuga, com alguma probabilidade de exito. Visivelmente o _Albatrós_ dirigia-se para as terras do Japão e da China. Alli, apesar de não ser talvez prudente pôrem-se á discreção dos Chinezes e Japonezes, os dois collegas estavam resolvidos a fugir, se a aeronave fizesse alto em qualquer ponto d’aquelles territorios. Mas faria alto, com effeito? Não se tratava precisamente de uma ave que se fatiga de um longo vôo, ou de um balão que, á falta de gaz, é obrigado a descer. Havia provisões para muitas mais semanas ainda, e os seus orgãos, de uma solidez maravilhosa, desafiavam toda a fraqueza e todo o cançaço. Um pulo por sobre a peninsula do Kamtchalka, de que apenas se viu o estabelecimento de Petropaulovsk e o vulcão de Klutschen durante o dia 18 de julho, depois um novo salto por sobre o mar de Okhotsk, pouco mais ou menos á altura das ilhas Kurilas, que lhe põem uma barreira, cortada por centos de pequenos canaes, e no dia 19, pela manhã, tinha o _Albatrós_ alcançado o estreito de la Peruse, apertado entre a ponta septentrional do Japão e a ilha Saghaliana, n’aquella pequena Mancha, onde desagua esse grande rio siberico, o Amor. Levantou-se então um nevoeiro densissimo, que a aeronave teve de deixar por baixo de si. Não que tivesse necessidade de se desembaraçar d’aquelles vapores para se dirigir; na altitude em que ia, nenhum obstaculo havia a recear, nem monumentos com que pudesse esbarrar na passagem, nem montanhas contra as quaes corresse o risco de se espedaçar no seu vôo. O paiz era bem pouco accidentado, mas aquelles vapores não deixavam de ser desagradabilissimos, e tudo ficaria molhado a bordo. Nada mais tinha portanto do que collocar-se acima d’aquelles vapores cuja espessura medía tresentos ou quatrocentos metros. De modo que os helices foram rapidamente activados, e, para além do nevoeiro, o _Albatrós_ encontrou regiões cheias de sol. N’estas condições, Uncle Prudent e Phil Evans teriam tido certa difficuldade em dar execução aos seus projectos de fuga, admittindo que elles tivessem podido deixar a aeronave. N’esse dia, no momento em que passava junto d’elles, Robur parou um instante e sem que parecesse dar a menor importancia ao que dizia: —Meus senhores, disse elle, um navio á véla, ou um vapor, perdido nas brumas d’onde não pode sahir, está sempre embaraçado. Não navega senão com o auxilio de assobio ou da tuba. Tem de diminuir o andamento; e, apesar de tantas precauções, é para recear a cada instante um abalroamento. O _Albatrós_ não tem nenhum d’estes cuidados. Que lhe podiam fazer os nevoeiros se tinha meio de se desembaraçar d’elles? O espaço é seu, todo o espaço! Dito isto, Robur continuou tranquillamente o seu passeio, sem esperar uma resposta que não pedia; e as baforadas do seu cachimbo perderam-se no espaço. —Uncle Prudent, disse Phil Evans, parece que este espantoso _Albatrós_ não tem medo de cousa alguma! —Veremos isso! respondeu o presidente do Weldon-Institute. O nevoeiro durou tres dias, 19, 20 e 21 de junho, com uma persistencia lamentavel. Fôra necessario subirem mais para evitar as montanhas japonezas de Fousi-Zama. Mas tendo-se rasgado o véo da névoa, notou-se uma immensa cidade com palacios, _villas_, chalets, jardins e parques. Mesmo sem a vêr a teria Robur reconhecido pelo ladrar das suas myriades de cães, pelos gritos das suas aves de rapina, e sobretudo pelo cheiro de cadaver que os corpos dos seus suppliciados lançam no espaço. Os dois collegas estavam na plataforma, no momento em que o engenheiro tomára este ponto de referencia para o caso de ter de continuar o seu caminho através do nevoeiro. —Meus senhores, disse elle, não tenho razão alguma para lhes occultar que esta cidade é Yedo, a capital do Japão. Uncle Prudent não respondeu. Em presença do engenheiro, sentia-se suffocado, como se o ar lhe faltasse nos pulmões. —Esta vista de Yedo, continuou Robur, é na realidade curiosissima. —Por mais curiosa que seja ... respondeu Phil Evans. —Não chega a Pekin?... concluiu o engenheiro. Tambem sou d’essa opinião, e podem avalial-o dentro em pouco. Era impossivel ser mais amavel. O _Albatrós_, que se dirigia para o sudoéste, mudou então de direcção tres quartos, a fim de buscar ao léste um novo caminho. Durante a noite dissipou-se o nevoeiro. Havia symptomas de um grande tufão pouco distante: baixa rapida de barometro, desapparição de vapores, grandes nuvens, de forma ellipsoidal, pegadas ao céo cobreado; no horisonte opposto, longas listas de carmim, nitidamente traçadas sobre um fundo de ardosia, e uma larga aberta, muito clara, ao norte; depois o mar unido e calmo, mas cujas aguas, ao pôr do sol, tomavam uma côr vermelha escura. Felizmente, aquelle tufão desencadeiou-se ao sul, e não teve outros resultados senão dissipar as névoas amontoadas havia tres dias. Em uma hora, tinham transposto os duzentos kilometros do estreito da Coréa, e em seguida a ponta extrema d’aquella peninsula. Emquanto o tufão ia bater as costas suéste da China, o _Albatrós_ abalançava-se sobre o Mar Amarello, e, durante os dias 22 e 23, sobre o golpho de Pelchéli; no dia 24 seguia o valle de Pei-Ho e pairava afinal sobre a capital do Celeste Imperio. Curvados para fora da plataforma, os dois collegas puderam ver muito distinctamente, como o engenheiro havia annunciado, aquella immensa cidade, a muralha que a separa em duas partes—cidade mandchúa e cidade chineza—; os doze bairros que a cercam, os amplos boulevards que irradiam para o centro; os templos, cujos tectos amarellos e verdes se banham no sol nascente; os parques, que rodeiam os palacios dos mandarins; depois, no meio da cidade mandchúa, os seiscentos setenta e oito hectares[1] da cidade Amarella, como um quadrado de _casse-tête_ chinez, emmoldurado dentro de outro; a cidade Vermelha, isto é, o Palacio Imperial com todas as phantasias da sua architectura inverosimil. N’aquelle momento, por baixo do _Albatrós_, o ar estava cheio de uma harmonia singular. Dir-se-hia um concerto de harpas eolias. No ar pairavam um cento de papagaios de papel, de diversas formas, feitos de folhas de palmeira ou de pandano, munidos na parte superior de uma especie de arco de madeira, distendido por meio de uma lamina de bambú. Ao sôpro do vento, todas estas laminas, de notas variadas, como as de um harmonium, soltavam um murmurio do mais melancholico effeito. Parecia que, n’aquelle meio, se respirava oxygenio musical. Robur teve então a phantasia de se approximar d’aquella orchestra aérea, e o _Albatrós_ veiu lentamente banhar-se nas ondas sonoras que os papagaios emittiam através da atmosphera. Mas immediatamente se produziu um effeito extraordinario no meio d’aquella enorme população. Sons do tamtam e outros instrumentos formidaveis das orchestras chinezas, tiros de espingarda aos mil, tiros de morteiros aos centos, tudo foi posto em acção para afastar a aéronave. Os astronomos chinezes reconheceram n’esse dia que aquella machina aérea era a causa de tantas questões que se haviam levantado; mas os milhões de habitantes do Celeste Imperio, desde o humilde tankadére até os mandarins mais cheios de botões, tomaram-n’o por um monstro apocalyptico que acabava de apparecer no céo de Budha. No inaccessivel _Albatrós_ não se preoccuparam com taes demonstrações. Mas as guitas que seguravam os papagaios ás estacas dos jardins imperiaes foram, ou cortadas ou içadas a toda a pressa. D’estes leves apparelhos, uns vieram rapidamente a terra, accentuando os seus accordes, outros cahiram como aves que o chumbo ferisse nas azas e cujo canto expira com o ultimo alento. Um som violento, sahido da trombeta de Tom Turner, se espalhou sobre a capital, e cobriu as ultimas notas do concerto aéreo. Isso não interrompeu a fusilaria terrestre. Comtudo uma bomba viera rebentar apenas a alguns pés da plataforma, e o _Albatrós_ subiu de novo para as zonas inaccessiveis do céo. O que se passou durante alguns dias que se seguiram? Nenhum incidente de que os prisioneiros pudessem aproveitar. Que direcção tomou a aéronave? Invariavelmente a do sudoéste, o que denotava o projecto de se approximar do Industão. Era visivel, além d’isso, que o solo, alteando-se cada vez mais, obrigava o _Albatrós_ a regular-se segundo o seu perfil. Umas dez horas depois de haverem deixado Pekin, Uncle Prudent e Phil Evans tinham podido entrevêr a parte da grande muralha no limite do Chen-Si. Depois, evitando os montes Loungs, passaram por sobre o valle de Wang-Ho e transpuzeram a fronteira do Imperio Chinez, no limite do Tibet. O Tibet, elevados planaltos sem vegetação, barrancos dissecados, torrentes alimentadas pelos geleiros, baixios com brilhantes camadas de sal, lagos emmoldurados em florestas virentes. Acima de tudo, um vento muitas vezes glacial. O barometro, baixado a 450 millimetros, indicava então uma altitude de mais de quatro mil metros acima do nivel do mar. A esta altura, a temperatura, apesar de se estar nos mezes mais quentes do hemispherio boreal, não passava de zero. Aquelle resfriamento, combinado com a velocidade do _Albatrós_, tornava a situação pouco supportavel. De modo que, apesar dos dois collegas dispôrem de quentes mantas de viagem, preferiram entrar para os seus compartimentos. Escusado será dizer que fôra preciso dar aos helices suspensivos uma velocidade extrema, afim de manter a aéronave n’um ar já rarefeito. Mas elles funccionavam com um conjunto perfeito, e parecia que se estava embalado pelo fremito das suas azas. N’esse dia, Garlok, a cidade do Tibet occidental, capital da provincia de Guari-Khorsum, poude ver passar o _Albatrós_ do tamanho de um pombo viajante. No dia 27 de junho, Uncle Prudent e Phil Evans notaram uma enorme barreira, dominada por alguns altos picos, perdidos na neve, e que lhes interceptava o horisonte. Os dois, encostados ao compartimento da frente, afim de resistir á velocidade do deslocamento, olhavam para aquellas massas colossaes. Pareciam correr na frente da aéronave. —É o Himalaya, com certeza, disse Phil Evans, e é provavel que vá contornar-lhe a base, sem tentar passar pela India. —Peor para nós! respondeu Uncle Prudent. N’esse immenso territorio, talvez tivessemos podido ... —A não ser que elle torneie a cordilheira a léste, ou pelo Nepól a oéste. —Desafio-o a que o faça! —Serio! disse uma voz. No dia seguinte, 28 de junho, o _Albatrós_ estava em frente do gigantesco macisso, por cima da provincia de Zzang. Do outro lado do Himalaya estava a região de Nepól. Com effeito, tres cordilheiras impedem successivamente o caminho da India, a quem vem do norte. As duas cordilheiras septentrionaes, entre as quaes se insinuára o _Albatrós_, como um navio entre enormes escolhos, são os primeiros degraus d’aquella barreira da Asia central. Foi primeiramente o Karakorum, que forma o valle longitudional e parallelo ao Himalaya, quasi na linha que separa as bacias do Indo, a oéste, das do Brahmaputra, a léste. Que soberbo systema orographico! Mais de duzentos cumes já medidos, dos quaes dezesete passam de vinte e cinco mil pés! Deante do _Albatrós_, a oito mil oitocentos e quarenta metros, eleva-se o monte Everest. Á direita, o Dwalaghiri, da altura de oito mil e duzentos metros. Á esquerda, o Kinchanjunga, da altura de oito mil quinhentos e noventa e dois metros, posto no segundo plano, depois das ultimas medidas do Everest. Evidentemente, Robur não tinha a pretenção de chegar até o pincaro das montanhas; mas conhecia as diversas passagens do Himalaya, entre outras a passagem de Ibi-Gamin, que os irmãos Schlagintweit, em 1856, transpuzeram a uma altura de seis mil e oitocentos metros, e n’ella se metteu resolutamente. Houve algumas horas palpitantes, dolorosas mesmo. Comtudo, se a rarefacção do ar não se tornou tal que fôsse preciso recorrer a apparelhos especiaes para renovar o oxygenio nos beliches, o frio comtudo foi excessivo. Robur, postado na frente, com o seu masculo rosto debaixo do capuz, commandava as manobras. Tom Turner tinha na mão a canna do leme. O machinista vigiava attentamente as pilhas, cujas substancias nada tinham, felizmente, a receiar da congelação. Os helices, levados ao maximo da corrente, soltavam sons cada vez mais agudos, cuja intensidade foi extrema, apesar da minima intensidade do ar. O barometro cahiu a 290 milimetros, o que indicava sete mil metros de altitude. Magnifica disposição a d’esse cahos de montanhas! Por toda a parte cumes brancos. Nenhum lago, mas geleiros que descem até dez mil pés da base. Nenhuma herva, apenas raras phanerogamias no limite da vida vegetal. Nenhum d’esses admiraveis pinheiros e cedros que se agrupam em florestas esplendidas, nos flancos inferiores da cordilheira. Nenhum d’esses gigantescos fetos, nem d’esses interminaveis parasitas, extendidos de um tronco a outro, como nos cannaviaes bravos. Nenhum animal, nem cavallos selvagens, nem yacks, nem bois tibetanos. De quando em quando uma gazella perdida n’aquellas alturas. Nenhuma ave, a não ser alguns casaes d’essas gralhas que se elevam até as ultimas camadas do ar respiravel. Transposta esta passagem, o _Albatrós_ começou a descer de novo. Ao sahir do desfiladeiro, para fora da região das florestas, não se via mais do que uma planicie infinita que se extendia sobre um immenso sector. Então Robur avançou para os seus hospedes, e com voz amavel: —A India, meus senhores! lhes disse. CAPITULO X ONDE SE VERÁ COMO E PORQUE O CREADO FRICOLLIN FOI POSTO A REBOQUE O engenheiro não tinha tenção de passear o seu apparelho por sobre aquellas maravilhosas regiões do Industão. Galgar o Himalaya para mostrar de que admiravel engenho de locomoção elle dispunha, convencer mesmo os que não queriam deixar-se convencer, era tudo quanto desejava. Quer isto dizer que o _Albatrós_ era perfeito, embora não exista a perfeição n’este mundo? É o que havemos de vêr. Em todo o caso, se no seu fôro intimo Uncle Prudent e o seu collega não podiam deixar de admirar o poder de um tal apparelho de locomoção aerea, não o deixaram conhecer. Só procuravam o ensejo de se safar. Nem mesmo admiravam o soberbo espectaculo que se lhes offerecia, emquanto o _Albatrós_ seguia as orlas pittorescas do Pendjab. Ha na base do Himalaya uma facha de terrenos pantanosos d’onde transpiram vapores doentios; é o Terai, onde a febre existe no estado endemico. Isso porém não era cousa que embaraçasse o _Albatrós_, nem compromettesse a saude do seu pessoal. Dirigiu-se, sem se apressar muito, para o angulo que o Industão forma no ponto de juncção do Turkestan com a China. No dia 29 de junho, nas primeiras horas do dia, abria-se deante d’elle o incommensuravel valle de Cachemir. Sim, incomparavel essa garganta que deixam entre si o grande e o pequeno Himalaya! Sulcada de centenas de contrafortes de montanhas, que a enorme cordilheira leva até á bacia do Hydaspe, é banhada pelos caprichosos meandros do rio, que assistiu ao choque dos exercitos de Porus e de Alexandre, isto é, a India e a Grecia em lucta na Asia central. Esse Hydaspe continúa alli, ao passo que as duas cidades, fundadas pelo Macedonio, em commemoração da sua victoria, desappareceram a ponto de não se conhecer onde existiram. Durante essa manhã, o _Albatrós_ pairou por sobre o Srinagar, mais conhecido pelo nome de Cachemir. Uncle Prudent e o seu companheiro viram uma cidade soberba, ao longo das duas margens do rio, com as suas pontes de madeira da grossura de um fio, os seus chalets adornados de balcões recortados; as suas ribas ensombradas de altos ulmeiros; os seus tectos cobertos de musgo, que tomavam o aspecto de ninhos de toupeira; os seus canaes multiplos, com barcos do tamanho de nozes e barqueiros do tamanho de formigas; os seus palacios, os seus templos, os seus kiosques; as suas mesquitas, os seus bangalós, á entrada dos bairros,—todo esse conjunto duplicado pelo reflexo das aguas; depois a sua velha cidadella de Hari-Parvata, no alto de uma collina, como o mais importante dos fortes de Paris no alto do Monte Valeriano. —Seria Veneza, disse Phil Evans, se estivessemos na Europa. —E se estivessemos na Europa, respondeu Uncle Prudent, nós saberiamos encontrar o caminho da America! O _Albatrós_ não se demorou sobre o lago que o rio atravessa, e retomou o vôo através do valle do Hydaspe. Durante meia hora apenas, tendo descido a uns dez metros do rio, permaneceu estacionario. Então, por meio de um tubo de borracha deitado abaixo, Tom Turner e os seus companheiros puzeram-se a refazer a sua provisão de agua, que foi aspirada por meio de uma bomba que as correntes dos accumuladores puzeram em movimento. Durante esta operação, Uncle Prudent e Phil Evans tinham olhado um para o outro. Um mesmo pensamento lhes havia passado pelo cerebro. Estavam a uns passos apenas do Hydaspe, ao alcance das margens. Ambos eram bons nadadores. Um mergulho lhes daria a liberdade, e quando tivessem desapparecido, como é que Robur os poderia apanhar? Para os seus propulsores terem a possibilidade de se pôrem em acção, não era preciso que o apparelho estivesse pelo menos dois metros acima do lago? N’um instante passaram-lhes pelo espirito todas as considerações pró e contra. N’um instante as pesaram. E afinal íam-se atirar da plataforma abaixo, quando muitos pares de mãos se descarregaram sobre os seus hombros. Tinham estado a observal-os. Ficaram na impossibilidade de fugir. Mas d’esta vez não se renderam sem resistencia. Quizeram repellir os que os seguravam. Mas era gente solida, essa gente do _Albatrós_. —Meus senhores, contentou-se com dizer o engenheiro, quando se tem o prazer de viajar em companhia de Robur, o Conquistador, como os senhores muito bem me chamaram, e a bordo do seu admiravel _Albatrós_, não se deixa esse Robur assim á ingleza! Direi mesmo que não se deixa nunca! Phil Evans arrastou comsigo o seu collega, que se ía entregar a algum acto de violencia. Ambos entraram para o seu compartimento, resolvidos a fugir, fôsse para onde fôsse, embora isso lhes custasse a vida. O _Albatrós_ tinha retomado a sua direcção para oéste. Durante esse dia, com uma velocidade média, transpoz o territorio de Caboulistan, cuja capital avistaram por momentos, depois a fronteira do reino de Herát, a mil e cem kilometros de Cachemir. N’aquellas regiões, ainda tão disputadas, n’este caminho aberto aos russos para as possessões inglezas da India, appareceram ajuntamentos de homens, columnas d’elles, comboios, n’uma palavra, tudo que constitue o pessoal e o material de um exercito em marcha. Ouviram-se tiros de peça e o crepitar da fusilaria. Mas o engenheiro não se mettia em negocios de outrem, a não ser que fôsse para elle um ponto de honra ou uma questão de humanidade. Continuou ávante. Se o Herát, como dizem, é a chave da Asia central, pouco lhe importava que essa chave estivesse n’uma algibeira ingleza ou n’uma algibeira moscovita. Os interesses terrestres nada tinham que vêr com esse atrevido, que tinha feito do ar o seu unico dominio. Além de que não tardou que o paiz desapparecesse debaixo de um verdadeiro furacão de areia, como é frequente n’aquellas regiões. Esse vento, que se chama “tebbad„, transporta elementos febris com a poeira imponderavel que levanta na sua passagem. E quantas caravanas não veem a morrer n’aquelles turbilhões! Quanto ao _Albatrós_, no intuito de escapar a essa poeira que podia prejudicar a finura das suas engrenagens, foi buscar a dois mil metros uma zona mais pura. Assim desappareceu a fronteira da Persia e as suas vastas planicies que permaneceram invisiveis. O andamento era moderado, apesar de não haver a receiar nenhum escolho. Com effeito, se a carta indica algumas montanhas, são ellas cotadas a altitudes médias. Mas, nas proximidades da capital, convinha evitar o Damavend, cujo cume, cheio de neve, tem a altura de cêrca de seis mil e seiscentos metros, e depois a cordilheira de Elbrouz, ao pé da qual está construida Teheran. Desde os primeiros clarões do dia 2 de julho appareceu esse Damavend, emergindo do simún de areias. O _Albatrós_ encaminhou-se pois de maneira a passar por sobre a cidade, que o vento envolvia n’uma nuvem de fina poeira. Apesar d’isso, pelas seis da manhã, puderam-se notar largos fossos, em volta do recinto, e no meio, o palacio do Shah, as suas muralhas revestidas de tijolos, as suas bacias, que pareciam talhadas em enormes turquezas de um azul brilhante. Não passou de uma rapida visão. A partir d’aquelle ponto, o _Albatrós_, alterando o seu itinerario, dirigiu-se quasi que directamente ao norte. Algumas horas depois, achava-se por cima de uma pequena cidade, construida n’um angulo septentrional da fronteira persa, sobre as margens de uma grande extensão de agua, cujo termo se não podia notar nem ao norte nem ao sul. Aquella cidade era o porto de Ashurada, a estação russa mais avançada do sul. Aquella extensão de agua era um mar, o mar Caspio. Já se não viam turbilhões de poeira. Era a vista de um conjunto de casas á européa, dispostas ao longo de um promontorio, com um campanario a dominal-as. O _Albatrós_ desceu sobre aquelle mar, cujas aguas estão tresentos pés abaixo do nivel do oceano. Junto á tarde, ía ao longo da costa,—outr’ora turkestana, hoje russa,—que sobe até o golpho de Balkan, e no dia seguinte, 3 de julho, pairava cem metros acima do mar Caspio. Nenhuma terra á vista, nem do lado da Asia, nem do lado da Europa. Á superficie do mar, algumas vélas brancas, enfunadas pela brisa. Eram os navios indigenas, que se reconheciam pela sua forma, kesebeys de dois mastros, kayuks, antigos barcos piratas de um mastro, teimils, simples botes de serviço ou de pesca. Aqui e acolá subiam até o _Albatrós_ algumas nuvens de fumo, lançadas pelos canos dos vapores de Ashurada, que a Russia mantém para fazer a policia das aguas turcumanas. N’aquella manhã, o contramestre Tom Turner conversava com o mestre cozinheiro, François Tapage, e a uma pergunta d’este, respondera: —Sim, estaremos cêrca de quarenta e oito horas por cima do mar Caspio. —Bem! respondeu o mestre cozinheiro. Isso permittir-nos-ha decerto pescar. —Perfeitamente! Se se gastariam quarenta e oito horas em percorrer as cento e vinte e cinco milhas que aquelle mar mede de comprimento, sobre duzentas de largo, é porque a velocidade do _Albatrós_ seria muito moderada, e mesmo nulla durante as operações de pesca. Ora aquella resposta de Tom Turner foi ouvida por Phil Evans, que estava então na frente. N’aquelle momento, Fricollin teimava em o maçar com as suas incessantes queixas, pedindo-lhe para intervir junto a seu amo, afim de elle ser pousado em terra. Sem responder áquelle pedido absurdo, Phil Evans voltou atraz para ir ter com Uncle Prudent. Ahi, com todas as precauções para não serem ouvidos, contou as phrases trocadas entre Tom Turner e o mestre cozinheiro. —Phil Evans, respondeu Uncle Prudent, quero crer que nos não resta illusão alguma com respeito ás intenções d’esse miseravel a nosso respeito? —Nenhuma! respondeu Phil Evans. Não nos dará a liberdade senão quando lhe convier, se é que nol-a dará! —N’esse caso devemos tentar tudo para deixarmos o _Albatrós_. —Famoso apparelho, devemos confessar! —É possivel! exclamou Uncle Prudent, mas apparelho de um patife que nos retem, desprezando todo o direito. Ora este apparelho representa para nós e para os nossos um perigo permanente. Se conseguissemos destruil-o ... —Tratemos primeiro de nos salvar; depois veremos. —Pois sim! respondeu Uncle Prudent, e aproveitemos as occasiões que se vão proporcionar ... Evidentemente o _Albatrós_ vae atravessar o mar Caspio, e lançar-se depois sobre a Europa, quer ao norte, por sobre a Russia, quer ao oéste, por sobre as regiões meridionaes. Pois bem! em qualquer ponto que ponhamos o pé, estará segura a nossa salvação até o Atlantico. É conveniente portanto estarmos promptos para tudo. —Mas, perguntou Phil Evans, fugir de que maneira? —Ora ouça, disse Uncle Prudent. Succede ás vezes, durante a noite, que o _Albatrós_ paira a uns centos de pés acima do solo. Ha a bordo alguns cabos com esse comprimento, e com um pouco de ousadia, talvez se pudesse deslisar por um d’elles abaixo ... —Sim, respondeu Phil Evans, e n’esse caso não hesitarei. —Nem eu, disse Uncle Prudent. Mas note que, excepto o homem do leme que fica atraz, ninguém está de noite acordado. Ora, precisamente um d’aquelles cabos está na frente, e, sem se ser visto, sem se ser ouvido, não era difficil desenrolal-o. —Bem, disse Phil Evans. Vejo com prazer, Uncle Prudent, que está mais sereno. É melhor assim. Mas eis-nos sobre o mar Caspio. Numerosos navios estão á vista. O _Albatrós_ vae descer e parar durante a pesca ... Não poderiamos aproveitar d’isso? —Oh! somos vigiados, mesmo quando mal imaginâmos, respondeu Uncle Prudent. Bem o viu, quando nos quizemos lançar ao Hydaspe. —E quem nos diz que não somos tambem vigiados de noite? observou Phil Evans. —Mas é necessario acabarmos com isto! exclamou Uncle Prudent, sim! acabar com este _Albatrós_ e com o seu dono! Como se vê, sob o imperio da colera, os dois collegas,—Uncle Prudent principalmente—podiam ser levados a praticar os actos mais temerarios e talvez os mais contrarios á sua propria segurança. O sentimento da sua impotencia, o desdem ironico com que Robur os tratava, as respostas brutaes que elle lhes dava, tudo contribuia para tornar tensa uma situação cujo aggravamento era cada dia mais manifesto. N’esse mesmo dia uma nova scena esteve para produzir uma altercação das mais lamentaveis entre Robur e os dois collegas. Mal imaginava Fricollin que seria elle quem a provocasse. Vendo-se sobre este mar sem limites, o poltrão teve uma grande surpresa. Como uma creança, como um negro que era, poz-se a gemer, a gritar, a agitar-se em mil contorsões e caretas. —Quero-me ir embora!... quero-me ir embora! gritava elle. Não sou passaro!... Não fui feito para voar!... Ponham-me em terra!... depressa!... É claro que Uncle Prudent não se importava nada com socegal-o,—pelo contrario. De modo que aquelles berros acabaram por impacientar Robur, fortemente. Ora como Tom Turner e os seus companheiros iam proceder ás manobras da pesca, o engenheiro, para se vêr livre de Fricollin, ordenou que o fechassem no seu compartimento. Mas o negro continuou a debater-se, a patear, a berrar cada vez mais. Era meio dia. O _Albatrós_ estava então a uns cinco ou seis metros apenas do nivel do mar. Algumas embarcações, espantadas com a sua presença, tinham desatado a fugir. Não tardaria em ficar deserta aquella porção do mar Caspio. Como se pode imaginar, n’estas condições em que elles não tinham mais do que atirar-se á agua para fugir, os dois collegas deviam ser, e eram de facto, objecto de uma vigilancia especial. Admittindo mesmo que elles se atirassem pela borda fora, facil seria apanhal-os com o barco de cautchuc do _Albatrós_. Portanto nada se podia fazer durante a pesca, a que Phil Evans julgou dever assistir, emquanto que Uncle Prudent, em perpetuo estado de raiva, se retirava para o seu beliche. Como se sabe, o mar Caspio é uma depressão vulcanica do solo. N’aquella bacia caem as aguas d’esses grandes rios, o Volga, o Ural, o Kur, o Kuma, o Yemba e outros. Sem a evaporação que lhe absorve a agua a mais, aquella cavidade, de uma superficie de dezesete mil leguas quadradas, de uma profundidade média comprehendida entre sessenta e quatrocentos pés, teria inundado as costas do norte e léste, baixas e pantanosas. Apesar de não estar em communicação nem com o mar Negro, nem com o mar de Aral, cujos niveis são muito superiores ao seu, não deixa por isso de crear uma grande quantidade de peixe,—d’esses, claro está, que se não dão mal com as aguas, de um amargo pronunciado, devido á naphta que alli trazem as correntes desde o extremo meridional. Ora, com a idéa da variedade que ia trazer ao seu passadio, o pessoal do _Albatrós_ não dissimulava o prazer que isso lhe ia dar. —Attenção! exclamou Tom Turner, que acabava de fisgar um peixe de um bello tamanho, quasi do feitio do tubarão. Era um magnifico solho, de sete pés de comprido, da especie chamada Belonga, entre os russos, e cujos ovos, misturados com sal, vinagre e vinho branco, constituem o caviar. Talvez que os solhos, ou esturjões, pescados no rio, sejam melhores que os pescados no alto mar; mas estes foram bem recebidos a bordo do _Albatrós_. Comtudo, o que tornou aquella pesca mais fructifera ainda, foi a rêde de arrastar que apanhou, a esmo, carpas, douradas, salmões, lucios marinhos, e sobretudo uma quantidade de outros peixes, os _sterlets_, de tamanho médio, que os ricos apreciadores mandam vir vivos de Astrakan, a Moscow e S. Petersburgo. Estes iam passar do seu elemento natural para as caldeiras de bordo, sem despesa de transporte. A gente de Robur puxava alegre as redes que o _Albatrós_ arrastára durante algumas milhas. O gascão François Tapage gritava de prazer, justificando bem o seu nome. Uma hora de pesca bastou para encher os viveiros da aeronave, que se dirigiu para o norte. Durante esta paragem, Fricollin não tinha deixado de berrar, de bater nas paredes do quarto, de fazer finalmente uma algazarra dos diabos. —Aquelle maldito negro não se calará! disse Robur, já com a paciencia exgottada. —Quer-me parecer, meu caro senhor, que elle está no seu direito de se queixar! respondeu Phil Evans. —Sim, como eu no direito de poupar este supplicio aos meus ouvidos! replicou Robur. —Engenheiro Robur!... bradou Uncle Prudent, que acabava de apparecer na plataforma. —Presidente do Weldon-Institute? Avançaram um para o outro. Encaravam-se fixamente. Depois, Robur, encolhendo os hombros: —No extremo de uma corda! disse elle. Tom Turner tinha comprehendido. Fricollin foi tirado do beliche. Que gritos elle não deu quando o contramestre e um dos seus companheiros o seguraram e o ataram a uma especie de celha, a que prenderam a extremidade de um cabo! Era precisamente um d’esses cabos de que Uncle Prudent queria fazer o uso que sabemos. O negro julgára a principio que ia ser enforcado ... Mas não! devia ser apenas suspenso. Com effeito foi desenrolado o cabo para fora, no comprimento de cem pés, e Fricollin achou-se a balançar no espaço. Podia agora gritar á vontade. Mas o pavor estrangulava-o, e ficou sem fala. Uncle Prudent e Phil Evans tinham querido oppôr-se áquella execução: fôram porém repellidos. —É uma infamia!... É uma cobardia! exclamou Uncle Prudent, que estava fora de si. —Serio! respondeu Robur. —É um abuso da fôrça contra o qual eu hei de protestar de outro modo que não sejam só palavras. —Pois proteste. —Hei de me vingar, engenheiro Robur! —Pois vingue-se, presidente do Weldon-Institute! —Hei de me vingar de si e dos seus! O pessoal do _Albatrós_ approximára-se em disposições pouco benevolas. Robur fez um signal para se afastarem. —Sim! de si e dos seus!... continuou Uncle Prudent, que o seu collega em vão tentava socegar. —Quando queira! respondeu o engenheiro. —E por todos os meios possiveis! —Basta! disse então Robur n’um tom ameaçador, basta! Ha mais cabos a bordo! Cale-se, ou, quando não, faz-se ao amo o que se fez ao creado! Uncle Prudent calou-se, não de medo, mas porque lhe deu uma tal suffocação, que Phil Evans teve de o levar para o beliche. Havia uma hora que o tempo se modificára singularmente. Havia symptomas que não enganavam. Estava eminente uma tempestade. A saturação electrica da atmosphera fôra levada a tal ponto que pelas duas e meia Robur presenceára um phenomeno que elle jamais observára. Nas bandas do norte, d’onde provinha a tempestade, subiam volutas de vapor quasi luminosas, o que decerto era devido á variação da carga electrica das camadas de nuvens. O reflexo d’aquellas fachadas fazia correr, á superficie do mar, myriades de luzes, cuja intensidade se tornava tanto mais viva quanto o céo começava a escurecer. O _Albatrós_ e o meteoro não tardariam em encontrar-se, visto caminharem um para o outro. E Fricollin? Fricollin continuava sempre a reboque, e reboque é o termo proprio, porque o cabo fazia um angulo muito aberto com o apparelho lançado a uma velocidade de cem kilometros, o que deixava a celha um tanto atraz. Calcule-se o seu espanto quando os relampagos começavam a sulcar o espaço em volta d’elle, emquanto o trovão rolava nas profundezas do céo. Todo o pessoal de bordo occupava-se em manobrar, de prevenção contra a tempestade, quer para se elevar mais alto que ella, quer para se distanciar, lançando-se através das camadas inferiores. O _Albatrós_ achava-se então na sua altura média,—mil metros proximamente,—quando rebentou uma trovoada de uma violencia extrema. O tufão subiu rapidamente. Em alguns segundos, as nuvens em fogo precipitaram-se sobre a aeronave. Phil Evans veiu então interceder a favor de Fricollin e pedir que o trouxessem para bordo. Mas Robur não tinha esperado pelo pedido. Tinha dado as suas ordens, e já se tratava de içar a corda, quando de repente se produziu um afrouxamento inexplicavel na rotação dos helices suspensivos. Robur deu então um pulo para os compartimentos centraes. —Fôrça! fôrça!... gritou elle ao machinista. É preciso subir rapidamente e mais alto que a tempestade. —Impossivel, mestre! —O que ha? —As correntes estão desarranjadas!... Dão se intermittencias!... E de facto o _Albatrós_ baixava sensivelmente. Como acontece com as correntes dos fios electricos durante a tempestade, o funccionamento electrico não actuava senão de um modo incompleto nos accumuladores da aeronave. Mas, o que não passa de um inconveniente, quando se trata de despachos telegraphicos, aqui era nada menos que o apparelho precipitado no mar, sem se poder ser senhor d’elle. —Deixa-o descer, gritou Robur, e saiâmos da zona electrica! Vamos, rapazes! tenham sangue frio! O engenheiro tinha-se posto em pé sobre o banco de quarto. Os homens, no seu posto, estavam prestes a executar as ordens do mestre. O _Albatrós_, apesar de ter baixado alguns centos de metros, estava ainda immerso na nuvem, no meio de relampagos que se cruzavam como peças de fogo de artificio. Era caso de imaginarem que ia ser fulminado. Os helices afrouxaram-se ainda mais, e o que até então não fôra mais do que uma descida um pouco mais rapida, ameaçava agora tornar-se n’uma quéda. Finalmente, em menos de um minuto estaria no nivel do mar. E dado o mergulho, nada havia que o pudesse arrancar áquelle abysmo. De subito appareceu por cima d’elle uma nuvem electrica. O _Albatrós_ estava apenas a sessenta pés da crista das ondas. Em dois ou tres segundos, estas teriam inundado a plataforma. Mas Robur, aproveitando o instante propicio, metteu-se no compartimento central, segurou nas alavancas de impulsão, soltou a corrente das pilhas que já não neutralisava a tensão electrica da atmosphera ambiente ... N’um momento restituiu aos helices a sua velocidade normal, susteve a quéda, e manteve o _Albatrós_ a pequena altura, ao mesmo tempo que os seus propulsores o arrastavam para longe da tempestade, que não tardou em ser transposta. Inutil é dizer que Fricollin tomára um banho forçado, durante alguns segundos apenas. Quando foi trazido para bordo, estava molhado como se estivesse mergulhado até o fundo do mar. Como se pode imaginar, não gritou mais. No dia seguinte, 4 de julho, o _Albatrós_ tinha transposto o limite septentrional do mar Caspio. CAPITULO XI ONDE A COLERA DE PRUDENT CRESCE NA RAZÃO DO QUADRADO DA VELOCIDADE Se alguma vez Uncle Prudent e Phil Evans renunciaram a toda a esperança de escapar, foi durante as cincoenta horas que se seguiram. Teria Robur receado que a guarda dos seus prisioneiros fôsse menos facil durante essa travessia da Europa? É possivel. Sabia, além d’isso, que elles estavam resolvidos a tudo para fugir. Seja como fôr, toda a tentativa teria sido então um suicidio. Saltar de um expresso, que vae com a velocidade de cem kilometros por hora, não é talvez mais do que arriscar a vida; mas saltar de um rapido, que vae na razão de duzentos kilometros, seria desejar a morte. [Illustration: Viram então um dos naufragos] Ora, é precisamente essa velocidade, a maxima de que podia dispôr,—que fôra imprimida ao _Albatrós_. Excedia o vôo da andorinha, isto é, cento e oitenta kilometros por hora. Tinha-se notado que, desde algum tempo, os ventos do nordéste dominavam com uma persistencia muito favoravel á direcção do _Albatrós_, porque seguia no mesmo sentido, isto é, de um modo geral para o oéste. Mas esses ventos começavam a acalmar, e tornou-se em breve impossivel manterem-se na plataforma, sem terem a respiração cortada pela rapidez do deslocamento. Os dois collegas, n’um certo momento, teriam mesmo sido lançados pela borda fora, se não tivessem sido apertados contra as paredes dos seus compartimentos pela pressão do ar. Felizmente, através as portinholas do seu cubiculo, o homem do leme deu por elles, e uma campainha electrica preveniu os homens, que estavam nos compartimentos da frente. Quatro d’elles vieram ter cá atraz, de rastos sobre a plataforma. Que os que se teem achado no mar, a bordo de um navio, direito ao vento, durante uma tempestade, evoquem as suas recordações, e comprehenderão qual era a violencia de uma tal pressão. Unicamente, aqui, era o _Albatrós_ que a creava pela sua incomparavel velocidade. Em summa foi preciso moderar o andamento,—o que permittiu a Uncle Prudent e a Phil Evans voltar ao seu beliche. No interior dos seus aposentos, como bem dissera o engenheiro, o _Albatrós_ tinha uma atmosphera perfeitamente respiravel. Mas que solidez tinha aquelle apparelho, para poder resistir a tal deslocamento? Era prodigioso. Quanto aos propulsores da frente e de traz, nem já se viam girar. Era com um infinito poder de penetração que elle entrava na camada de ar. A ultima cidade notada de bordo, era Astrakan, situada quasi no extremo norte do mar Caspio. A estrella do Deserto (foi decerto algum poeta russo que assim a denominou), tinha então descido da quinta á sexta grandeza. Aquella simples séde de governo mostrára por instantes as suas velhas muralhas coroadas de inuteis ameias, as suas torres antigas no centro da cidade, as suas mesquitas contiguas ás egrejas de estylo moderno, a sua cathedral cujas cupulas, douradas e semeadas de estrellas azues, pareciam recortadas n’um pedaço do firmamento; tudo quasi ao nivel d’essa embocadura do Volga que mede dois kilometros. Depois a partir d’esse ponto, o vôo do _Albatrós_ não foi mais do que uma especie de desfilada através das alturas do céo, como se fôsse tirado por esses fabulosos hippogrifos, que transpõem uma legua em cada movimento de aza. Eram duas horas da manhã, do dia 4 de julho, quando a aeronave tomou rumo na direcção noroéste, seguindo quasi o valle do Volga. As _steppes_ do Don e do Oural seguiam dos dois lados do rio. Se fôsse possivel lançar a vista sobre aquelles vastos territorios, mal haveria tempo para contar as cidades e aldeias. Afinal, quando veiu a noite, a aeronave ia além de Moscow. Em dez horas, tinha transposto os dois mil kilometros que separam Astrakan da antiga capital de todas as Russias. De Moscow a S. Petersburgo, a linha de caminho de ferro não conta mais de mil e duzentos kilometros. Era portanto questão de meio dia. De modo que o _Albatrós_, pontual como um expresso, alcançou S. Petersburgo e as margens do Neva pelas duas da manhã. A claridade da noite, debaixo d’esta latitude onde abunda tão pouco o sol de junho, permitte abraçar um instante o conjunto d’aquella vasta capital. Depois foi o golpho de Finlandia, o archipelago de Abo, o Baltico, a Suecia, na latitude de Stockolmo, a Noruega na latitude de Christiania. Dez horas apenas para aquelles dois mil kilometros. Como se pode imaginar, nenhum poder conseguiria então travar a velocidade do _Albatrós_, como se a resultante da sua fôrça de projecção e de attracção terrestre o tivesse mantido n’uma trajectoria immutavel em volta do globo. E comtudo parou, e precisamente por cima da famosa cascata de Rjukanfos, na Noruega. O Gusta, cujo cume domina aquella admiravel região do Telemarck, foi como que um limite gigantesco que elle não devia ultrapassar no oéste. De modo que a partir d’aquelle ponto, o _Albatrós_ voltou francamente para o sul, sem moderar a sua velocidade. E durante aquelle vôo inverosimil o que fazia Fricollin? Permanecia mudo no fundo do beliche, dormindo o melhor que podia, excepto nas horas da refeição. Francisco Tapage fazia-lhe então companhia e gosava com os seus terrores. —Então! meu rapaz, disse elle, já não gritas?... Não te prendas!... É questão de duas horas de suspensão!... Hein! com a velocidade que levamos agora, que excellente banho de ar para o rheumatismo! —Parece-me que tudo se desmancha! repetia Fricollin. —Talvez, meu valente Fry! talvez! Mas vamos tão rapidamente que nem poderiamos cahir! É o que vale! —Acha isso? —Á fé de gascão! Para dizer a verdade e sem exaggerar como Francisco Tapage, o certo era que, graças áquella rapidez, o trabalho dos helices suspensivos tinha minorado um pouco. O _Albatrós_ deslisava na camada de ar á maneira de um foguete. —E isto durará muito tempo assim? perguntou Fricollin. —Muito tempo?... Oh! não! respondeu o mestre cozinheiro. Apenas toda a vida! —Ah!... exclamára o negro, recomeçando as suas lamentações. —Toma sentido, Fry, toma sentido! dizia Francisco Tapage, porque olha que o mestre pode mandar-te para o balouço. E Fricollin engulia os seus suspiros com os pedaços de comida que mettia na bôcca em duplicado. Durante este tempo, Uncle Prudent e Phil Evans, que não eram homens para se recriminarem inutilmente, acabavam de tomar uma resolução. Era evidente que a fuga se não podia realisar. Se não era possivel pôr o pé em terra, não se poderia fazer saber aos seus habitantes o que era feito, depois que haviam desapparecido, do presidente e secretario do Weldon-Institute! por quem haviam sido arrebatados; a bordo de que machina voadora estavam retidos? e provocar talvez,—mas de que maneira, Deus do céo!—uma audaciosa tentativa da parte dos seus amigos para os arrancar ás mãos d’esse Robur? Mas corresponderem-se? de que modo? Seria bastante fazer como os marinheiros em afflicção que lançam á agua uma garrafa contendo um documento indicativo do local do naufragio? Mas aqui o mar era a atmosphera. A garrafa não fluctuaria. A menos de não cahir justamente sobre a cabeça de algum transeunte, rachando-a, corria-se o risco de não ser encontrada. Em summa, os dois collegas não tinham senão este meio á sua disposição e iam sacrificar uma das garrafas de bordo, quando Uncle Prudent teve outra idéa. Elle tomava rapé, como se sabe, e pode-se perdoar este ligeiro defeito a um americano, que podia fazer peior. Ora como tomasse rapé, tinha uma caixa,—n’aquella occasião vasia. Era de aluminio. Atirada ao chão, se algum honesto cidadão a encontrasse, apanhal-a-hia, e apanhando-a, leval-a-hia a uma estação de policia, e alli tomariam conhecimento do documento destinado a dar a conhecer a situação das duas victimas de Robur, o Conquistador. É o que se fez. A nota era curta, mas dizia tudo e dava a direcção do Weldon-Institute, com um pedido para ser enviada ao seu destino. Então Uncle Prudent, mettendo a nota na caixa, envolveu esta n’um espesso trapo de lã, e atou-a com cordel, tanto para impedir que se abrisse durante a quéda, como para se não partir no chão. Não havia mais do que esperar occasião favoravel. Realmente, a manobra mais difficil, durante aquella prodigiosa travessia da Europa, era sahir do beliche, ir de rastos sobre a plataforma, com risco de ser arrebatado; e tudo isso em segredo. Por outro lado, era preciso que a caixa não cahisse n’algum mar, golpho, lago ou outra qualquer porção de agua. Seria perdel-a. Não era, comtudo, impossivel entrarem os dois collegas em communicação com o mundo habitado. Era dia claro, n’aquella occasião; e era melhor esperar pela noite, e aproveitar, quer uma diminuição de actividade, quer uma paragem, para sahir do beliche. Talvez então se pudesse ir até á borda da plataforma, e não deixar cahir a preciosa caixa senão em cima de uma cidade. Além d’isso, mesmo que todas aquellas condições se déssem, o projecto não poderia ser posto em execução,—pelo menos n’aquelle dia. Com effeito o _Albatrós_, depois de ter deixado a terra noruegueza á altura do Gusta, tinha tomado para o sul. Seguia precisamente o zero de longitude que não é outro na Europa senão o meridiano de Paris. Passou portanto por cima do mar do norte, produzindo uma bem natural estupefacção a bordo d’esses milhares de barcos que fazem cabotagem entre a Inglaterra, Hollanda, França e Belgica. A não ser que a caixa cahisse exactamente sobre a ponte de um d’esses navios, o mais certo era ir para o fundo. Uncle Prudent e Phil Evans foram pois obrigados a esperar uma occasião mais favoravel; e, como se vae vêr, uma excellente occasião se lhes ia offerecer. Ás dez da tarde acabava o _Albatrós_ de alcançar as costas da França, pouco mais ou menos á altura de Dunkerque. A noite estava muito escura. Por um instante se poude vêr o pharol de Gris-Nez cruzar os seus fogos electricos com o pharol do Passo de Calais. Então o _Albatrós_ avançou por sobre o territorio francez, mantendo-se a uma altura média de mil metros. A sua velocidade não tinha diminuido. Passava como uma bomba por sobre cidades, villas, aldeias, tão numerosas n’aquellas ricas provincias da França septentrional. Eram, sobre esse meridiano de Paris,—depois de Dunkerque—, Doulens, Amiens, Criel, Saint-Denis. Nada o fez desviar da linha recta. Foi assim que, perto da meia noite, elle estava por sobre a “Ville-Lumiére„, que merece aquelle nome quando os seus habitantes estão a dormir,—ou pelo menos deviam estar. Mas que extranha phantasia levou o engenheiro a fazer alto sobre a cidade parisiense? não se sabe. O que é certo é que o _Albatrós_ baixou de modo a dominal-a de alguns centos de pés apenas. Robur sahiu então do seu beliche e todo o pessoal veio respirar o ar para a plataforma. Uncle Prudent e Phil Evans não perderam a excellente occasião que se lhes offerecia. Sahindo dos seus compartimentos, os dois, procuraram isolar-se, afim de poder escolher o momento mais propicio. Era sobretudo preciso evitar serem vistos. O _Albatrós_, semelhante a um gigantesco escaravelho, continuava suavemente por sobre a grande cidade. Percorreu a linha dos boulevards, tão brilhantemente illuminados pelos apparelhos Edison. Subia até elles um ruido de trens, e o rodar das carruagens sobre os multiplos rails que irradiam sobre Paris. Depois veiu pairar á altura dos mais altos monumentos, como se tivesse querido ir de encontro á esphera do Pantheon ou á cruz dos Invalidos. Esvoaçou desde os dois minaretes do Trocadéro até á torre metallica do Campo de Marte, cujo enorme reflector inundava toda a capital com os seus clarões electricos. Aquelle passeio aereo, aquelle vaguear de noctambulo, durou cêrca de uma hora. Era como uma paragem nos ares, antes de recomeçarem a interminavel viagem. E talvez mesmo o engenheiro Robur quizesse dar aos parisienses o espectaculo de um meteoro que os seus astronomos não haviam previsto. Os pharoes do _Albatrós_ foram postos em actividade. Dois feixes de luz passearam então sobre as praças, esquares, jardins, palacios e sobre as sessenta mil casas da cidade, lançando enormes jorros de luz, de um horisonte a outro. Evidentemente fôra visto o _Albatrós_, d’aquella vez; não só bem visto, mas ouvido tambem, porque Tom Turner, embocando a sua trombeta, enviou sobre a cidade uma vibrante fanfarra. N’essa occasião, Uncle Prudent, inclinando-se por sobre o parapeito, abriu as mãos e deixou cahir a caixa de rapé. Quasi em seguida o _Albatrós_ subiu rapidamente. Então, através das alturas do céo parisiense, subiu um hurrah immenso da multidão, que era enorme ainda nos boulevards, hurrah de estupefacção que se dirigia ao phantastico meteoro. De subito se apagaram os pharoes da aeronave, fez-se de novo a sombra em volta d’ella, ao mesmo tempo que o silencio, e seguiram o caminho com uma velocidade de duzentos kilometros por hora. É tudo o que se devia ter visto da capital da França. Ás quatro da manhã, o _Albatrós_ tinha transposto obliquamente todo o territorio. Depois, afim de não perder tempo em transpôr os Pyrinéos ou os Alpes, deslisou á superficie da Provença até á ponta do Cabo das Antibes. Ás nove, os San-pietrini, reunidos no terraço de S. Pedro de Roma, ficavam embasbacados ao vêl-o passar por cima da Cidade Eterna. Duas horas depois, dominava a bahia de Napoles, balouçava-se um instante entre as volutas fuliginosas do Vesuvio. Afinal, depois de ter cortado o Mediterraneo com um vôo obliquo, desde a primeira hora depois do meio dia, era visto pelas vigias da Guletta, na costa tunisina. Depois da America, a Asia! Depois da Asia, a Europa! Eram mais de trinta mil kilometros que o prodigioso apparelho acabava de fazer em menos de vinte e tres dias! E agora, eil-o por sobre as regiões conhecidas ou desconhecidas da terra de Africa! * * * * * Talvez queiram saber o que veiu a succeder á famosa caixa de tabaco, depois da sua quéda? A caixa cahira na rua de Rivoli, em frente do numero 210, no momento em que aquella rua estava deserta. No dia seguinte foi apanhada por uma honrada varredoura, que se apressou a leval-a á Prefeitura de Policia. Alli, tomada ao principio por um apparelho explosivo, foi desatada, desenrolada, aberta com a maxima cautela. De subito houve uma especie de explosão ... Um formidavel espirro, que o chefe de segurança não tinha podido suster! Tiraram então o documento de dentro da caixa, e, com geral surpreza, leu-se o seguinte: “Uncle Prudent e Phil Evans, presidente e secretario do Weldon-Institute de Philadelphia, arrebatados na aeronave do engenheiro Robur. “Participem isto aos amigos e conhecimentos. U.P. e P.E.„ Era o inexplicavel phenomeno explicado finalmente aos habitantes dos Dois Mundos. Era o socego restituido aos numerosos observatorios que funccionam á superficie do globo terrestre. CAPITULO XII DE COMO O ENGENHEIRO ROBUR PROCEDE, COMO SE QUIZESSE CONCORRER PARA UM PREMIO MONTHYON N’este ponto da viagem de circumaviação do _Albatrós_, é permittido fazer as seguintes perguntas: Quem é afinal esse Robur, cujo nome se não conhece até agora? Passa a sua vida nos ares? A sua aeronave não descança nunca? Não tem um retiro em qualquer logar inaccessivel, onde, embora não precise de descançar, vá pelo menos abastecer-se? Seria espantoso se assim não fôsse. Os mais poderosos voadores teem sempre um abrigo ou um ninho em qualquer parte. Além d’isso, o que pretendia o engenheiro fazer d’aquelles dois incommodos prisioneiros? Pretendia conserval-os em seu poder, condemnal-os á aviação perpetua? Ou então, depois de os haver passeado por sobre a Africa, a America, a Australia, o Oceano Indico, o Atlantico, o Pacifico, para os convencer de vez, mesmo a despeito d’elles, dar-lhes liberdade, dizendo: —Agora, meus senhores, espero que se mostrarão menos incredulos com respeito ao “Mais pesado que o ar„! Em todo o caso, o tal ninho, a ave Robur não se incommodou em o procurar na fronteira septentrional da Africa. Contentou-se com passar o fim d’aquelle dia por sobre a regencia de Tunis, desde o cabo Bon até o cabo Carthago, ora esvoaçando, ora pairando, á mercê de um capricho. Um pouco depois, dirigiu-se para o interior, e enfiou o admiravel vale da Medjerda, seguindo o seu caminho pardacento, perdido entre os arbustos de cactus e loureiros rosas. E que centos de papagaios elle não espantou, que pousados nos fios telegraphicos pareciam esperar pelos despachos, na sua passagem, para os levar nas suas azas! Depois, tendo vindo a noite, o _Albatrós_ balouçou sobre as fronteiras da Krumeria, e, se ainda restava um krumir, este não deixou decerto de se prostrar em terra, invocando Allah, á apparição d’aquella aguia gigantesca. No dia seguinte de manhã era Bone, e as graciosas collinas dos arredores; era Philippeville, agora uma pequenina Argel, com os seus novos caes em arcadas, as suas admiraveis vinhas, cujas cepas eriçam todo aquelle campo, que parece recortado no campo bordelez, ou nos torrões da Borgonha. Este passeio de quinhentos kilometros, por sobre a grande e pequena Kabylia, terminou ao meio dia á altura da Kasbah de Argel. Que espectaculo para os passageiros da aeronave! o ancoradouro aberto entre o Cabo Matifú e a Ponta Pescada, esse littoral ornado de palacios, de marabuts, de casas de campo; esses valles caprichosos, revestidos nos seus mantos de vinhas; esse Mediterraneo, tão azul, sulcado pelos vapores transatlanticos, que parecem lanchas a vapor! E foi assim até Oran, a pittoresca, cujos habitantes, mais retardatarios nos jardins da cidade, puderam vêr o _Albatrós_ confundir-se com as primeiras estrellas da noite. Se Uncle Prudent e Phil Evans perguntassem a si proprios a que phantasia obedecia o engenheiro Robur, ao passear a prisão volante por sobre a terra argelina,—essa continuação da França do outro lado do mar, que mereceu o nome de lago francez,—deviam ter pensado que a sua phantasia estava satisfeita, duas horas depois do pôr do sol. Um movimento do leme acabava de encaminhar o _Albatrós_ para o suéste, e no dia seguinte, depois de se ter desembaraçado da parte montanhosa do Tell, viu o astro do dia levantar-se sobre as areias do Sahará. Eis o itinerario do dia 8 de julho. Vista da pequena aldeia de Geryville, creada, como Laghouat, sobre o limite extremo do deserto, para facilitar a conquista ulterior da Kabylia. Passagem do desfiladeiro do Stillen, com certa difficuldade, contra uma brisa violentissima. Travessia do deserto, ora lenta, por sobre verdejantes oasis ou ksars, ora com uma rapidez fogosa, que vencia o vôo das gypaétas. Muitas vezes mesmo, foi preciso fazer fogo contra temiveis aves, que, aos bandos de doze e de quinze, não receavam precipitar-se sobre a aeronave, com grande espanto de Fricollin. Mas, se as gypaétas não podiam responder senão com gritos horrorosos, com bicadas e patadas, os indigenas não menos selvagens, não lhes pouparam tiros de espingarda, sobretudo quando passavam a montanha do sal, cujo arcabouço, verde e côr de violeta, transparecia sob o véo branco que a cobria. Dominavam então o grande Sahará. Alli se viam os restos dos bivaques de Abdel-Kader. Alli o paiz é sempre perigoso para o viajante europeu, principalmente na confederação do Beni-Mzal. O _Albatrós_ teve então de subir ás zonas mais altas, afim de escapar a um assalto do _simún_ que passeava uma lamina de areia avermelhada á superficie do solo, como faria um excesso de maré á superficie do Oceano. Em seguida, os planaltos desolados da Chebka espraiaram o balastro de lavas ennegrecidas até ao fresco e verde valle de Ain-Massin. Seria difficil imaginar a variedade d’aquelles territorios que o olhar podia abraçar no seu conjunto. Ás collinas cobertas de arvores e arbustos succediam-se longas ondulações pardacentas, ás pregas, como um albornoz arabe, cujos soberbos recortes accidentavam o solo. Ao longe viam-se as “oueds„ de aguas torrenciaes, bosques de palmeiras, grupos de pequenas cabanas sobre um monticulo, em volta de uma mesquita, e entre outras Metliti, onde vegeta um chefe religioso, o grande Marabut Sidi Chick. Antes da noite, alguns centos de kilometros foram transpostos por sobre um territorio chatissimo, sulcado de grandes dunas. Se o _Albatrós_ tivesse querido fazer alto, teria pousado em terra no fundo do oasis de Marglá, sob um immenso bosque de palmeiras. A cidade apresentou-se muito visivel com os seus tres quarteirões distinctos, o antigo palacio do sultão, especie de Kasbah fortificada, as suas casas construidas de tijolos que o sol se encarregou de cozer, e os seus poços artesianos, abertos no valle, onde a aeronave podia refazer a sua provisão liquida. Mas graças á sua extraordinaria velocidade, as aguas do Hydaspe, sugadas no valle de Cachemir, enchiam ainda os seus depositos, no meio dos desertos de Africa. Teria o _Albatrós_ sido visto pelos Arabes, Mozabitas, e negros que habitam o oasis de Marglá? Certamente que sim, porque foi saudado por alguns centos de tiros de espingarda, cujas balas voltaram á terra, sem o haverem alcançado. Veiu depois a noite, essa noite silenciosa do deserto, cujos segredos Felicien David interpretou tão bem! Durante as horas seguintes, desceram para o sudoéste, cortando os caminhos do El-Goléa, um dos quaes foi reconhecido em 1859, pelo intrepido viajante Francisco Duveyrier. A escuridão era profunda. Nada puderam vêr do railway transsahariano em construcção, segundo o projecto Duponchel, longa fita de ferro que deve ligar Argel a Tombuctú por Laghuat, Gardaia, e alcançar mais tarde o golpho da Guiné. O _Albatrós_ entrou então na região equatorial, para além do tropico de Cancer. A mil kilometros da fronteira septentrional do Sahará, transpunha o caminho em que o major Lang encontrou a morte em 1846; cortava os caminhos das caravanas de Marrocos ao Sudão, e sobre essa porção de deserto que os Tuaregs espumam, ouvia o que se chama o “canto das areias„, murmurio dôce e plangente que parece surgir do solo. Apenas se deu um incidente: uma nuvem de gafanhotos se ergueu no espaço, e cahiu uma tal carregação d’elles a bordo, que o navio aereo esteve prestes a sossobrar. Trataram porém de deitar fora o excesso da carga, menos alguns centos de que François Tapage fez provisão. E cozinhou-os de um modo tão succulento, que Fricollin esqueceu por momentos os seus transes perpetuos. —Isto vale por camarões! dizia elle. Estavam então a mil e oitocentos kilometros do oasis de Marglá, quasi no limite norte d’esse immenso reino do Sudão. Pelas duas da tarde appareceu uma cidade no cotovello formado por um grande rio. Era o rio Niger. A cidade, Tombuctú. Se até então não tinham tido que visitar essa Méka africana senão os viajantes do Mundo Antigo, os Batuta, os Khazan, os Imbert, os Mungo-Park, os Adams, os Laing, os Caillé, os Barth, os Lenz, n’esse dia, graças aos acasos da mais singular aventura, dois americanos podiam falar d’ella _de visu, de auditu e de olfactu_, no seu regresso á America, se lá regressassem de facto. _De visu_, porque o seu olhar poude chegar a todos os pontos d’aquelle triangulo de cinco a seis kilometros, formado pela cidade; _de auditu_, porque esse dia era um dia de grande mercado, e faziam uma algazarra espantosa; _de olfactu_, porque o nervo olfactivo não podia ser muito agradavelmente affectado pelos odores da praça de Yubu-Kamo, onde está o mercado de carne, perto do palacio dos antigos reis So-mais. Em todo o caso o engenheiro entendeu não dever deixar ignorar ao presidente e ao secretario do Weldon-Institute que elles tinham a felicidade extrema de contemplar a Rainha do Sudão, agora em poder dos Tuaregs de Taganet. —Meus senhores, Tombuctú! lhes disse no mesmo tom em que dois dias antes lhes dissera: “A India, meus senhores!„ Depois continuou: —Tombuctú, aos 18 graus de latitude norte, e 5°,56´ de longitude a oéste do meridiano de Paris, com uma costa de duzentos e quarenta e cinco metros acima do nivel médio do mar. Importante cidade de doze a trese mil habitantes, outr’ora illustrada pela arte e pela sciencia! Talvez quizessem fazer alto alli durante alguns dias? Uma tal proposta não podia ser feita senão por ironia, pelo engenheiro. —Mas, continuou elle, seria perigoso para os extrangeiros, no meio dos negros, dos Berberes, dos Fullanes, e dos Arabes que a habitam, sobretudo se considerarmos que a nossa chegada em aeronave lhes poderia desagradar. —Meu caro senhor, respondeu Phil Evans no mesmo tom, para termos o prazer de o deixar, arriscar-nos-hiamos de bom grado a sermos mal recebidos pelos indigenas. Prisão por prisão, mais vale Tombuctú que o _Albatrós_! —É questão de gôsto, replicou o engenheiro. Em todo o caso, não tentarei a aventura, porque tenho de responder pela segurança dos hospedes que me fazem a honra de viajar commigo ... —De maneira que, sr. engenheiro Robur,—disse Uncle Prudent, não podendo conter a indignação,—de maneira que, não se contenta com ser carcereiro? Ao attentado junta o insulto? —Oh! a ironia unicamente! —Não ha armas a bordo? —Ha sim! um arsenal completo! —Dois revolvers bastariam, se eu tivesse um e o senhor outro! —Um duello! exclamou Robur, um duello, que poderia produzir a morte de um de nós! —Que a produzia com certeza! —Pois, meu caro presidente do Weldon-Institute, não pode ser. Prefiro conserval-o vivo. —Para ter a certeza de viver tambem! É prudente! —Prudente ou não, é isso que me convem. Fica-lhe a liberdade de pensar de outro modo e de se queixar a quem quizer, se o pode fazer. —Já o fiz, engenheiro Robur! —Serio? —Pois era tão difficil, quando atravessavamos as regiões habitadas da Europa, deixar cair um documento ... —E os senhores fizeram isso? disse Robur, arrebatado por um irresistivel movimento de colera. —E se o tivessemos feito? —Se o tivessem feito ... mereceriam ... —Mereceriamos o que, sr. engenheiro? —Ir fazer companhia ao documento, pela borda fora! —Ora experimente lá! exclamou Uncle Prudent. Já o fizemos! Robur avançou para os dois collegas. A um gesto seu Tom Turner e alguns dos seus camaradas tinham acudido. Sim! o engenheiro tivera um desejo furioso de pôr em execução a sua ameaça; mas sem duvida, no receio de succumbir, entrou precipitadamente no seu beliche. —Ora bem! disse Phil Evans. —E o que elle não se atreveu a fazer, respondeu Uncle Prudent, atrever-me-hei eu a fazel-o! sim, fal-o-hei! N’aquelle momento, a população do Tombuctú reunia-se nas praças, nas ruas, sobre os terraços construidos em amphitheatro. Nos ricos bairros de Sankore e de Sarahama, como nas miseraveis choças conicas do Ragnidi, os padres lançavam do alto dos minaretes as suas mais violentas maldições sobre o monstro aereo. Era mais inoffensivo isso que balas de espingarda. Assim foi até o porto de Kabara, situado no cotovello formado pelo Niger, e onde o pessoal das flotilhas foi posto em movimento. Se o _Albatrós_ tivesse pousado em terra, teria sido feito em pedaços. Durante alguns kilometros, bandos atordoadores de cegonhas, de francolins, e de ibis o escoltaram, luctando em velocidade com elle; mas o seu vôo rapido em breve os poz a distancia. Quando veiu a noite, foram os ares atordoados com o mugir de numerosos rebanhos de elephantes e bufalos, que percorriam aquelle territorio, cuja fecundidade é verdadeiramente maravilhosa. Durante vinte e quatro horas, toda a região, encerrada entre o meridiano zero e o segundo grau no colchete do Niger, se desenrolou sob o _Albatrós_. Na realidade, se algum geographo tivesse tido á sua disposição um tal apparelho, com que facilidade poderia proceder ao levantamento topographico d’aquelle paiz, obter as cotas da altitude, fixar o curso dos rios e dos seus affluentes, determinar a posição das cidades e das aldeias! E desappareceriam então dos mappas da Africa central esses claros a tintas pallidas, essas linhas a pontos, e essas designações vagas que constituem o desespero dos cartographos! No dia 11, pela manhã, o _Albatrós_ transpoz as montanhas da Guiné septentrional, apertada entre o Sudão e o golpho que usa o seu nome. No horisonte perfilavam-se confusamente os Montes Kong do reino de Dahomey. Depois de haverem sahido de Tombuctú, Uncle Prudent e Phil Evans haviam podido notar que a direcção tinha sido sempre de norte a sul. D’ahi a conclusão de que, se a direcção se não modificasse, encontrariam, seis graus além, a linha equinoxial. Iria ainda o _Albatrós_ abandonar os continentes e lançar-se, não sobre o mar de Behring, ou mar Caspio, ou mar do Norte, ou Mediterraneo, mas por sobre o Oceano Atlantico? Esta perspectiva não era para tranquillisar os dois collegas, cujas probabilidades de fuga se tornavam então nullas. Comtudo o _Albatrós_ caminhava de vagar, como se hesitasse no acto de deixar a terra africana. Quereria o engenheiro Robur voltar atraz? Não! Mas a sua attenção era particularmente atrahida por aquelle paiz que elle então atravessava. Sabe-se, e elle sabia tambem, o que era o reino de Dahomey, um dos mais poderosos do littoral occidental da Africa. Apesar de assaz forte para poder luctar com o seu vizinho, o reino dos Achantis, os seus limites são comtudo restrictos, pois que não conta mais de cento e vinte leguas de sul a norte e sessenta de léste a oéste; mas a sua população comprehende de setecentos a oitocentos mil habitantes, depois que annexou a si os territorios independentes de Ardrah e de Wydah. Apesar de não ser grande, aquelle reino de Dahomey, tem dado muitas vezes que falar de si. É celebre pelas cruezas horriveis que assignalam as suas festas annuaes, pelos seus sacrificios humanos, e hecatombes espantosas, destinadas a honrar o soberano que se fina e o que o substitue. É mesmo de boa cortezia que quando o rei de Dahomey recebe a visita de algum alto personagem ou de um embaixador extrangeiro, lhe faça a surpresa de alguma duzia de cabeças cortadas em sua honra, e cortadas pelo ministro da justiça, o “minghan„, que desempenha perfeitamente as suas funcções de carrasco. Ora na épocha em que o _Albatrós_ passava a fronteira do Dahomey, acabava de morrer o soberano Bahadú, e toda a população ía proceder á enthronisação do seu successor. D’ahi um grande movimento em todo o paiz, movimento que não passára desapercebido a Robur. Com effeito, longas filas de dahomeanos dos campos se dirigiam então para Abomey, capital do reino. Estradas bem tratadas, através vastas planicies cobertas de hervas gigantes, numerosos campos de mandioca, magnificos bosques de palmeiras, coqueiros, mimosas, laranjeiras, mangueiras, tal era o paiz, cujos perfumes subiam até o _Albatrós_, emquanto que, aos milhares, aos milheiros mesmo, papagaios e cardeaes erguiam vôo de todo aquelle conjunto de verdura. O engenheiro, curvado sobre o parapeito, absorto nas suas reflexões, poucas palavras trocava com Tom Turner. Não parecia tambem que o _Albatrós_ tivesse o privilegio de attrahir a attenção d’aquellas massas movediças, as mais das vezes invisiveis sob a abobada impenetravel das arvores. Isso provinha, decerto, de elle se conservar a uma grande altura no meio de ligeiras nuvens. Pelas onze da manhã appareceu a capital, no seu cinto de muralhas, defendida por um fosso medindo doze milhas em volta, ruas largas e regularmente traçadas sobre um solo chato, grande praça cujo lado norte é occupado pelo palacio do rei. Este vasto conjunto de construcções é dominado por um terraço, a pequena distancia da casa dos sacrificios. Durante os dias de festa, é do alto d’este terraço que se lançam ao povo prisioneiros mettidos em cestos de junco, e pode-se bem imaginar, infelizmente, a furia com que esses infelizes são feitos em pedaços. N’uma parte dos pateos que dividem o palacio do soberano, estão alojados quatro mil guerreiros, um dos contingentes do exercito real, dos mais corajosos. Se é ponto contestavel que haja amazonas no rio d’este nome, não acontece o mesmo no Dahomey. Umas trazem camisa azul, facha azul e vermelha, calção branco raiado de azul, barrete branco redondo, cartucheira presa ao cinto; outras, caçadoras de elephantes, estão armadas com uma pesada carabina, um punhal de lamina curta, e duas pontas de antilope presas á cabeça por um circulo de ferro; umas, as artilheiras, usam tunica parte azul parte vermelha, e por arma um bacamarte, com velhos canos de ferro fundido; outras, finalmente, o batalhão de raparigas, usam tunicas azues, e calções brancos, e são verdadeiras vestaes, puras como Diana, e como ella, armadas de arco e flecha. Junte-se a estas amazonas cinco a seis mil homens em calças, em camisas de algodão, com um panno em roda da cintura, e temos passado em revista o exercito dahomeano. Abomey estava n’esse dia absolutamente deserta. O soberano, o pessoal regio, o exercito masculino e feminino, a população, tinha tudo deixado a capital para invadir, a algumas milhas de lá, uma vasta planicie cercada de bosques magnificos. Era sobre essa planicie que se devia realisar o reconhecimento do novo rei. Era alli que milhares de prisioneiros, feitos nas ultimas razzias, íam ser immolados em sua honra. Eram cêrca de duas horas quando o _Albatrós_, chegando á altura d’essa planicie, começou a descer no meio de alguns vapores que o occultavam á vista dos dahomeanos. Eram uns sessenta mil, vindos de todos os pontos do reino, de Widah, de Kerapay, de Ardrah, de Pombory, das aldeias mais afastadas. O novo rei, um vigoroso rapagão, chamado Bou-Nadi, da edade de vinte e cinco annos, occupava um morro ensombrado por um grupo de arvores, de amplas ramagens. Em volta d’elle a sua nova côrte, o seu exercito masculino, as suas amazonas, todo o seu povo. Na base do monticulo, uns cincoenta musicos tocando instrumentos barbaros, dentes de elephantes produzindo sons roufenhos, tambores de pelle de gamo, cabaças, guitarras, campainhas vibradas com um badalo de ferro, flautas de bambu, cujo som agudo dominava todo o conjunto. Depois, a cada instante, descargas de peças, cujos reparos estremeciam, com risco de esmagar os artilheiros; finalmente uma algazarra geral e clamores tão intensos, que dominavam os tiros de polvora. N’um angulo da planicie, sob a guarda dos soldados, estavam reunidos os captivos encarregados de acompanhar no outro mundo o rei defunto, a quem a morte não deve fazer perder os privilegios de soberania. Nas exequias de Glozo, pae de Bahadú, seu filho enviára-lhe tres mil captivos. Bou-Nadi não podia fazer menos pelo seu antecessor. Pois não eram precisos numerosos mensageiros para reunir não só os Espiritos, mas todos os hospedes do céo, convidados a formar o cortejo do monarcha divinisado? Durante uma hora não houve mais do que discursos, rengas, phrases cortadas pelas dansas executadas não só pelas bailadeiras de officio, mas tambem pelas amazonas, que n’ellas desenvolvem uma graça toda bellica. Mas approximava-se o momento da hecatombe. Robur, que conhecia os sanguinarios costumes de Dahomey, não perdia de vista os captivos, homens, mulheres, creanças, reservados para a carnificina. O minghan estava de pé sobre o outeiro; brandia o sabre de executor, de lamina curva, encimado por uma ave de metal, cujo pêso torna mais certeiro o golpe. D’esta vez não estava só. Seria insufficiente para a matança. Junto d’elle estavam agrupados uns cem carrascos, destros em decepar cabeças de um só golpe. No entretanto, o _Albatrós_ approximava-se a pouco e pouco, obliquamente, moderando os seus helices suspensivos e propulsivos. Breve sahiu da camada de nuvens que o occultava a menos de cem metros da terra, e, pela primeira vez, appareceu. Ao contrario do que succedia habitualmente, os ferozes indigenas não viram n’elle mais do que um ser celeste, descido expressamente para prestar homenagem ao rei Bahadú. Enthusiasmo indescriptivel, chamamentos interminaveis, supplicas ruidosas, preces geraes, dirigidas a esse sobrenatural hippogrifo que vinha decerto receber o corpo do finado rei para o transportar ás alturas do céo dahomeano. N’esse momento a primeira cabeça voava sob a espada do minghan. Depois, outros prisioneiros foram trazidos aos centos, deante dos seus horriveis carrascos. De subito um tiro partiu do _Albatrós_. O ministro da justiça cahiu, dando com o rosto em terra. —Boa pontaria, Tom! disse Robur. —Pás!... Para o monte! respondeu o contramestre. Os seus camaradas, armados como elle, estavam prestes ao primeiro signal do engenheiro. Mas, fizera-se um reviramento na multidão. Havia comprehendido. Aquelle monstro alado, não era um Espirito bemfazejo, mas um Espirito hostil a esse bom povo de Dahomey. De modo que em seguida á quéda do minghan, gritos de vingança se ergueram de toda a parte. Quasi immediatamente, rompia uma fusilaria sobre a planicie. Aquellas ameaças não impediram o _Albatrós_ de descer audaciosamente a menos de cento e cincoenta pés do solo. Uncle Prudent e Phil Evans, fôssem quaes fôssem os seus sentimentos para com Robur, não podiam deixar de se associar a uma obra tão humanitaria. —Sim! livremos os prisioneiros! exclamaram elles. —É essa a minha tenção! respondeu o engenheiro. E as espingardas de repetição do _Albatrós_, nas mãos dos dois collegas, como tambem nas mãos da tripulação, começaram um fogo tal, que nenhuma bala se perdeu no meio d’aquella massa humana. E mesmo a pequena peça de artilharia de bordo, assentada no angulo mais apertado, enviou a proposito algumas caixas de metralha, que fizeram maravilhas! Immediatamente os prisioneiros, sem comprehenderem nada d’esse soccorro que lhes vinha do alto, cortaram as prisões, emquanto os soldados respondiam ao fogo da aeronave. O helice anterior foi atravessado por uma bala, emquanto que alguns outros projectis lhe batiam em pleno casco. Até Fricollin, escondido no fundo do seu beliche, esteve para ser alcançado por uma bala através a parede do compartimento. —Ah! querem experimentar! exclamou Tom Turner. E descendo ao deposito de munições, voltou com uma duzia de cartuchos de dynamite, que distribuiu pelos seus collegas. A um signal de Robur, aquelles cartuchos foram atirados para cima do outeiro, e, cahindo no solo, rebentaram como pequenas granadas. Que enorme derrota do rei, da côrte, do exercito, do povo, tomados de um espanto bem justificavel por uma tal intervenção! Todos haviam buscado refugio debaixo das arvores, emquanto que os prisioneiros fugiam, sem ninguem pensar em os perseguir. Assim foram perturbadas as festas em honra do novo rei de Dahomey. Assim Uncle Prudent e Phil Evans tiveram de reconhecer de que fôrça dispunha um tal apparelho e que serviços elle podia prestar á humanidade. Em seguida o _Albatrós_ subiu tranquillamente na zona média; passou por cima do Wydah e tinha perdido em breve de vista aquella costa selvagem que os ventos do sudoéste envolveram n’uma ressaca inaccessivel. Pairava sobre o Atlantico. CAPITULO XIII DE COMO UNCLE PRUDENT E PHIL EVANS ATRAVESSAM O OCEANO, SEM ENJOAR Sim o Atlantico! Os receios dos dois collegas tinham-se realisado. Não parecia que Robur experimentasse a menor inquietação em se aventurar por sobre o vasto oceano. Isso não o preoccupava, nem aos seus companheiros, que deviam estar habituados áquellas travessias. Estavam já todos nos seus postos. Nenhuma insomnia lhes perturbou o repouso. Para onde ia o _Albatrós_? Como o engenheiro dissera, iria dar mais de uma volta ao globo? Em todo o caso, era necessario que aquella jornada terminasse n’algum ponto. Que Robur passasse a vida no ar, a bordo da aeronave, e nunca viesse a terra, era inadmissivel. Como havia de elle renovar as suas provisões de viveres e munições, não falando já nas substancias necessarias ao funccionamento das machinas? Era de todo o ponto preciso que elle tivesse um retiro, um porto de descanço, se quizerem, em algum sitio ignorado e inaccessivel do globo, onde o _Albatrós_ pudesse abastecer-se. Que elle tivesse quebrado as relações com os habitantes da terra, vá! mas com todo o ponto da superficie terrestre, não podia ser! Sendo assim, onde era esse ponto? O que levára o engenheiro a escolhel-o? Seria alli esperado por alguma pequena colonia de que elle era o chefe? Podia recrutar alli um novo pessoal? E depois, de que recursos dispunha para ter podido fabricar um apparelho tão dispendioso, sobre cuja construcção tinha sido guardado um tal segredo? Quanto ao passadio, parecia não ser muito caro. A bordo vivia-se em commum, uma vida de familia, como pessoas felizes que não escondem o seu bem estar. Mas afinal, quem era esse Robur? D’onde vinha? Qual era o seu passado? Outros tantos enigmas impossiveis de resolver, e cuja decifração decerto não seria nunca dada por aquelle que era d’elles o assumpto principal. Não é portanto para admirar que esta situação, feita de problemas insoluveis, trouxesse em sobresalto os dois collegas. Sentir-se assim arrebatado no desconhecido, não vêr a sahida de uma tal aventura, não saber mesmo se ella teria um fim; serem condemnados á aviação perpetua, não era na realidade cousa para fazer perder a paciencia ao presidente e ao secretario do Weldon-Institute? Desde 11 de julho que o _Albatrós_ seguia por sobre o Atlantico. No dia seguinte, quando o sol appareceu, erguia-se sobre essa linha circular onde veem confundir-se o céo e a agua. Nenhuma terra á vista, por mais vasto que fôsse o campo de visão. A Africa desapparecêra no horisonte do norte. Quando Fricollin se aventurou a sahir do seu beliche, quando viu todo esse mar por baixo d’elle, o mêdo tomou-o rapidamente. Por baixo, não é bem o termo; melhor era dizer em volta d’elle, porque, para um observador collocado nas zonas elevadas, o abysmo parece envolvel-o de todos os lados, e o horisonte, levantado no seu nivel, parece recuar, sem nunca se lhe poder attingir o termo. É verdade que Fricollin não conhecia a explicação physica d’aquelle effeito, mas sentia-a moralmente. Isso bastava para provocar n’elle “esse horror do abysmo„, de que certas naturezas, aliás corajosas, se não podem libertar. Em todo o caso, por prudencia, o negro não se expandiu em recriminações. Com os olhos fechados, os braços a tactear, entrou para o beliche com a perspectiva de alli ficar muito tempo. Com effeito, em tresentos e sessenta e quatro milhões cincoenta e sete mil novecentos e doze metros quadrados[2] que a superficie dos mares representa, o Atlantico occupa mais da quarta parte. Ora não parecia que o engenheiro estivesse agora com pressa. De modo que não tinha dado ordem para se ir com toda a velocidade. Tambem o _Albatrós_ não poderia ter toda a velocidade que trouxera por sobre a Europa, a razão de duzentos kilometros por hora. N’aquella região onde dominam os ventos sudoéste, havia vento pela frente, e apesar de ser fraco ainda, não deixava de ser um obstaculo. N’aquella zona intertropical, os mais recentes trabalhos dos meteorologistas, apoiados n’um grande numero de observações, permittiram reconhecer que havia lá uma convergencia de ventos, quer para o Sahará, quer para o golpho do Mexico. Fora da região das calmarias, ou veem de oéste e se dirigem para Africa, ou veem de léste e se dirigem para o Novo Mundo,—pelo menos durante a estação quente. O _Albatrós_ não procurou pois luctar contra os ventos contrarios, com toda a fôrça dos seus propulsores. Contentou-se com um andamento moderado, que excedia comtudo o dos mais rapidos vapores transatlanticos. No dia 13 de julho a aeronave atravessou a linha equinoxial, o que foi annunciado a todo o pessoal. Foi assim que Uncle Prudent e Phil Evans souberam que acabavam de deixar o hemispherio boreal para entrar no hemispherio austral. Esta passagem da linha não exigiu nenhuma d’essas experiencias e ceremonias de que ella é acompanhada a bordo de certos navios de guerra e do commercio. Apenas François Tapage se contentou com entornar uma porção de agua sobre o pescoço de Fricollin; mas como esse baptismo foi seguido de alguns copos de gin, o negro declarou-se prompto a passar a linha todas as vezes que quizessem, mas não havia de ser no dorso de uma ave mechanica que lhe não inspirava grande confiança. Na manhã de 15, o _Albatrós_ enfiou por entre as ilhas da Ascensão e de Santa Helena,—mais perto d’esta ultima, cujos terrenos altos se mostravam no horisonte havia algumas horas. Ora evidentemente, se no tempo em que Napoleão estava em poder dos inglezes, existisse um apparelho analogo ao do engenheiro Robur, Hudson Lowe, a despeito das suas insultantes precauções, podia bem vêr fugir-lhe pelos ares o seu illustre prisioneiro! Nos dias 16 e 17 de julho, um curioso phenomeno de clarões crepusculares se produziu, ao cahir da tarde. N’uma latitude elevada, podia-se acreditar na apparição de uma aurora boreal. O sol, no occaso, projectou raios multicôres, alguns dos quaes se impregnaram de uma ardente côr verde. Seria uma nuvem de poeira cosmica que a terra atravessava n’aquelle momento e que reflectia os ultimos clarões do dia? Alguns observadores deram aquella explicação aos clarões crepusculares. Mas essa explicação não subsistiria se esses sabios estivessem a bordo da aeronave. Feito o exame, foi reconhecido que estavam em suspensão no ar pequenos crystaes de pyroxena, globos vitreos, finas particulas de ferro magnetico, analogas ás materias que lançam certas montanhas ignivomas. Portanto, não restava duvida alguma que um vulcão em erupção não tivesse projectado no espaço aquella nuvem, cujos crepusculos crystallinos produziam o phenomeno desejado,—nuvem que as correntes aereas tinham então em suspensão por sobre o Atlantico. Além disso, durante aquella parte da viagem, muitos outros phenomenos foram observados. Por diversas vezes, certas nuvens davam uma côr parda de um singular aspecto; depois, se se passava aquella nuvem de vapores, a sua superficie apparecia cheia de volutas deslumbrantes, de um branco crú, semeado de pequenas palhetas solidificadas,—o que, n’aquella latitude, não se pode explicar senão por uma formação identica á do graniso. No dia 17 para 18, appareceu o arco iris lunar, de um amarello esverdeado, em consequencia da posição da aeronave entre a lua cheia e uma rêde de chuva miuda, que se volatisava antes de ter alcançado o mar. Por estes diversos phenomenos, podia-se concluir uma proxima mudança de tempo? Talvez. Seja como fôr, o vento que soprava de sudoéste, desde que haviam sahido de Africa, começava a serenar nas regiões do equador. N’essa zona tropical, fazia um calôr extremo. Robur foi portanto buscar a frescura nas camadas mais altas. Era além d’isso necessario abrigarem-se dos raios do sol, cuja projecção directa não se poderia supportar. Esta modificação nas correntes aereas fazia decerto presentir que outras condições climatericas se apresentariam para além das regiões equinoxiaes. É necessario observar, além d’isso, que o mez de julho do hemispherio austral é o mez de janeiro do hemispherio boreal, isto é, o coração do inverno. O _Albatrós_, se descesse mais para o sul, ia soffrer-lhe os effeitos. Além de que, o mar “sentia isso„, como dizem os marinheiros. No dia 18 de julho, para além do Tropico do Capricornio, manifestou-se um phenomeno, que teria produzido um certo temor a um navio. Uma extranha successão de laminas luminosas se espalhavam á superficie do oceano com uma rapidez tal, que se não podia calcular em menos de sessenta milhas por hora. Estas laminas agitavam-se a uma distancia de oitenta pés uma da outra, traçando longos sulcos de luz. Com a noite que começava a vir, um intenso reflexo subia até o _Albatrós_. D’esta vez, podia ser tomado por algum bolide inflammado. Jámais Robur tivera occasião de pairar sobre um mar de fogo,—fogo sem calor, que elle não tinha necessidade de evitar, elevando-se nas alturas do céo. A electricidade devia ser a causa d’este phenomeno, porque não podia ser attribuido á presença de um baixio de desova de peixes ou a uma chusma d’esses animalculos, cuja accumulação electrica produz a phosphorescencia. Isto levava a suppôr que a tensão electrica da atmosphera devia ser então muito consideravel. E com effeito, no dia seguinte, 19 de julho, qualquer navio se acharia em perigo n’aquelle mar. Mas o _Albatrós_ ria-se dos ventos e das ondas, semelhante á ave poderosa de que elle usava o nome. Se lhe não aprazia passear á superficie das aguas, como as procellarias, podia, como as aguias, procurar nas alturas a tranquillidade e o sol. N’aquelle momento fôra transposto o 47.° parallelo sul. O dia não durava mais de sete a oito horas. Devia diminuir á proporção que se approximassem das regiões antarcticas. Cêrca de uma hora da tarde, o _Albatrós_ tinha baixado sensivelmente para buscar uma corrente mais favoravel. Voava por sobre o mar, a menos de cem pés da sua superficie. O tempo estava calmo. Em certos pontos do céo, grossas nuvens negras, arredondadas na parte superior, terminavam por uma linha rigida, completamente horisontal. D’essas nuvens sahiam protuberancias alongadas, cuja ponta parecia attrahir a agua que refervia por baixo, em forma de sarsa liquida. De repente esta agua ergue-se, tomando a forma de uma ampulheta. N’um instante, o _Albatrós_ foi envolvido no turbilhão de uma tromba gigantesca, á qual umas vinte outras, de um negro côr de tinta, vieram juntar-se. Felizmente, o movimento giratorio d’aquella tromba era inverso dos helices suspensivos, sem que estes pudessem ter acção, e a aeronave esteve para ser precipitada no mar; mas poz-se a girar sobre si mesmo, com uma rapidez assombrosa. Comtudo o perigo era immenso, e talvez impossivel de conjurar, visto que o engenheiro se não podia desembaraçar da tromba, cuja aspiração o retinha, a despeito dos propulsores. Os homens, lançados pela fôrça centrifuga aos dois extremos da plataforma, tiveram de se segurar ao corrimão, para não serem arrebatados. —Sangue frio! gritou Robur. Era com effeito necessario, como tambem a paciencia. Uncle Prudent e Phil Evans, que acabava de deixar o seu beliche, foram impellidos para traz, com risco de serem lançados pela borda fora. Ao mesmo tempo que girava, o _Albatrós_ seguia o deslocamento d’aquellas trombas que se moviam com uma velocidade que os seus helices podiam invejar. Depois, se escapava a uma das trombas, era apanhado por outra, com perigo de ser deslocado ou feito em pedaços. —Um tiro de peça! gritou o engenheiro. Esta ordem era dirigida a Tom Turner. O contramestre agarrava-se á pequena peça de artilharia, montado no meio da plataforma, onde os effeitos da fôrça centrifuga eram pouco sensiveis. Comprehendeu o pensamento de Robur. N’um instante, abriu a culatra do canhão e n’ella introduziu um cartucho tirado da caixa presa aos reparos. O tiro partiu, e de subito se desfizeram as trombas, com a abobada de nuvens que ellas pareciam sustentar nos seus fastigios. O abalo do ar bastára para romper o meteoro, e a enorme nuvem, resolvendo-se em chuva, raiou o horisonte de estrias verticaes, immensa rêde liquida extendida do mar ao céo. O _Albatrós_, livre afinal, apressou-se a subir alguns centos de metros. —Não está nada partido a bordo? perguntou o engenheiro. —Não, respondeu Tom Turner; mas este jôgo de pião é que seria bom não recomeçar de novo! Com effeito, durante uns momentos o _Albatrós_ estivera em perigo. Se não fôra a sua extraordinaria solidez, teria sossobrado n’aquelle turbilhão de trombas. Durante aquella travessia do Atlantico, como as horas eram longas, quando nenhum phenomeno lhes vinha quebrar a monotonia! Além de que, os dias diminuiam e o frio tornava-se intenso. Uncle Prudent e Phil Evans pouco viam Robur. Encerrado no seu beliche, o engenheiro occupava-se em traçar o caminho, em marcar sobre os mappas a direcção seguida, a reconhecer a sua posição todas as vezes que podia, a notar as indicações dos barometros, dos thermometros, dos chronometros, finalmente a lançar nos livros de bordo todos os incidentes da viagem. Quanto aos dois collegas, mettidos nos seus capuzes, procuravam a cada passo vêr terra do lado do sul. Pelo seu lado, sob a recommendação expressa de Uncle Prudent, Fricollin procurava sondar o mestre cozinheiro, em vez do engenheiro. Como se havia de acreditar no que dizia esse gascão do François Tapage? Umas vezes Robur era um antigo ministro da Republica Argentina, um chefe do Almirantado, um presidente dos Estados Unidos a ferias, um general hespanhol na disponibilidade, um vice-rei das Indias á busca de mais alta posição nos ares. Outras vezes possuia milhões, graças ás razzias que fazia com a sua machina, e era apontado á vindicta publica. Outras vezes ainda, tinha-se arruinado a montar aquelle apparelho e seria obrigado a fazer ascensões publicas para rehaver o seu dinheiro. Quanto a saber se elle parava em alguma parte, nada! Mas pretendia ir até á lua, e alli estabelecer-se, caso encontrasse um sitio conveniente. —Hein, Fry!... meu camarada!... Não desgostarias de ir vêr o que se passa lá em cima!... —Isso é que não vou! respondeu o imbecil, que tomava a serio todos aquelles palões. —Então porque, Fry, porque? Alli te casaremos com alguma bella e joven habitante da lua ... Alli estabelecerás uma geração de negros! E quando Fricollin ía contar esses arrazoados ao seu amo, este via bem que era impossivel encontrar por aquella forma qualquer informação sobre Robur. Não pensava pois senão em se vingar. —Phil, disse elle um dia ao seu collega, está agora bem provado que toda a fuga é impossivel! —Impossivel, Uncle Prudent. —Seja! Mas um homem deve ser senhor de si, embora tenha de sacrificar a vida ... —Se esse sacrificio é necessario, que se faça o mais cedo possivel! respondeu Phil Evans, cujo temperamento, por mais frio que fôsse, não se podia conter mais. Sim! é tempo de acabar com isto!... Para onde vae o _Albatrós_?... Eil-o a atravessar obliquamente o Atlantico, e se continúa n’esta direcção, vae ter ao littoral da Patagonia, e depois ás plagas da Terra de Fogo ... E depois! Lançar-se-ha por sobre o Oceano Pacifico, ou irá aventurar-se até os continentes do pólo austral?... Com este Robur tudo é possivel!... E estariamos então perdidos!... É portanto um caso de legitima defesa; e se temos de morrer ... —Que não seja sem nos termos vingado, disse Uncle Prudent, sem termos anniquilado este apparelho, com toda a gente que elle encerra! Os dois collegas tinham chegado a isto, á fôrça de furor impotente, de rancor concentrado. Sim! Já que era necessario, sacrificar-se-hiam para destruir o inventor e o seu segredo. Alguns mezes, eis quanto poderia durar aquella prodigiosa aeronave, cuja incontestavel superioridade em locomoção aerea elles eram obrigados a reconhecer. Ora esta idéa estava tão bem incrustada no seu espirito, que elles não tinham outro desejo senão pôl-a em execução. De que maneira? Apoderando-se de um dos apparelhos explosivos, que estavam n’um dos armazens de bordo, e com que fariam saltar pelos ares a aeronave. Mas era necessario penetrar até o deposito das munições. Felizmente Fricollin não suspeitava d’estes projectos. Á idéa de que o _Albatrós_ ía explodir nos ares, era capaz de denunciar o amo! Foi no dia 23 de julho que a terra tornou a apparecer no sudoéste, pouco mais ou menos perto do Cabo das Virgens, á entrada do estreito de Magalhães. Para além do parallelo 54, n’aquella épocha do anno, a noite durava já perto de dezoito horas, e a temperatura baixava na média de seis graus acima de zero. Primeiramente, o _Albatrós_, em vez de avançar mais para o sul, seguiu os meandros do estreito, como se quizesse alcançar o Pacifico. Depois de ter passado por sobre a bacia de Lomas, deixando ao norte o monte Gregory e os montes Brecknocks ao oéste, reconheceu a Punta Arena, pequena povoação chilena, no momento em que o sino da egreja repicava, e depois, algumas horas mais tarde, o antigo estabelecimento de Porto da Fome. Se os patagonios, cujas lareiras se viam aqui e acolá, teem realmente uma estatura acima da mediana, os passageiros da aeronave não o puderam apreciar, porque a altura em que estavam os fazia parecer-lhes anões. Mas, durante as tão curtas horas d’aquelle dia austral, que espectaculo! Montanhas abruptas, pincaros eternamente cobertos de neve, com espessas florestas sobre as suas costas; mares interiores; bahias formadas entre as peninsulas e ilhas d’esse archipelago; conjunto das terras de Clarence, Dawson, Desolação; canaes e passagens; innumeros cabos e promontorios, todo esse matto inextricavel de que o gêlo fazia já uma massa solida, desde o cabo Forward, que termina o continente americano, até o cabo Horn, onde acaba o Novo Mundo! Comtudo, chegados ao Porto da Fome, notou-se que o _Albatrós_ ia tomar de novo o seu caminho para o sul. Passando entre o monte Torn da peninsula de Brunswick e o monte Grasve, dirigiu-se em direitura para o monte Sarmiento, pincaro enorme, coberto de gêlos, que domina o estreito de Magalhães, dois mil metros acima do nivel do mar. Era o paiz dos Pechereses, ou fuegios, indigenas que habitam a Terra de Fogo. Seis mezes mais cedo, em pleno verão, por occasião dos longos dias de quinze a dezeseis horas, como essa terra se mostraria fertil e bella, sobretudo na sua parte meridional! Então, por toda a parte, valles, pastagens que poderiam alimentar milhares de animaes, florestas virgens, arvores gigantescas, vidoeiros, faias, freixos, cyprestes, fetos arboreos, planicies que bandos de guanacos, de cegonhas e de abestruzes percorrem; depois, exercitos de pinguins, myriades de volateis. De modo que, quando o _Albatrós_ poz em acção os seus pharoes electricos, patos, gansos e outras aves vieram ter a bordo, em quantidade cem vezes superior ao que seria necessario para encher de provisões a cozinha de François Tapage. D’ahi um augmento de trabalho para o mestre cozinheiro, que sabia preparar aquella caça de maneira a tirar-lhe todo o sabor gorduroso. Tambem augmento de trabalho para Fricollin, que não se poude recusar a depennar duzias sobre duzias d’esses interessantes volateis. N’esse dia, no momento em que o sol se ia pôr, pelas tres da tarde, appareceu um vasto lago, emmoldurado n’uma orla de florestas soberbas. O lago estava então completamente gelado, e alguns indigenas, com as suas longas raquettas nos pés, deslisavam rapidamente á superficie. Á vista do apparelho, no auge do espanto, os fuegios fugiam em todas as direcções, e, quando não podiam fugir, escondiam-se, agachavam-se na terra, como os animaes. O _Albatrós_ não deixou de seguir para o sul, para lá do canal de Beagle, ainda além da ilha de Nevarino, cujo nome grego destôa um pouco dos nomes rudes d’essas terras longinquas, mais longe que a ilha de Wollaston, banhada pelas ultimas aguas do Pacifico. Emfim, depois de haver transposto sete mil e quinhentos kilometros, desde a costa de Dahomey, passou os extremos ilhotes do archipelago de Magalhães, e depois, o mais avançado de todos, para o sul, cuja ponta é eternamente roida pela resaca,—o cabo Horn. CAPITULO XIV DE COMO O “ALBATRÓS„ FAZ O QUE NUNCA PODERIA TALVEZ SER FEITO Estamos no dia seguinte ao 24 de julho. Ora o 24 de julho do hemispherio austral é o 24 de janeiro do hemispherio boreal. Além de que, o 56.° grau de latitude acabava de ficar atraz, e esse grau corresponde ao parallelo que, no norte da Europa, atravessa a Escocia, á altura de Edimburgo. De modo que o thermometro se conservava constantemente n’uma média inferior a zero. Tinha sido portanto necessario pedir um certo calor artificial aos apparelhos destinados a aquecer os compartimentos da aeronave. É claro que, se a duração dos dias tendia a augmentar depois do solsticio de 21 de junho do inverno austral, aquella duração diminuia n’uma proporção bem mais consideravel, pelo facto do _Albatrós_ descer para as regiões polares. Em consequencia d’isto, pouca claridade, por sobre aquella parte do Pacifico meridional que confina com o circulo antarctico. D’ahi pouca luz, e com a noite, um frio ás vezes intensissimo. Para resistir a elle, era necessario vestirem-se á maneira dos esquimáos, ou dos fuegios. Ora como estes arranjos não faltavam a bordo, os dois collegas, bem enroupados, puderam permanecer na plataforma, com a idéa no seu plano, e não buscando senão ensejo de o pôr em execução. De resto, elles viam pouco Robur, e, desde as ameaças trocadas de parte a parte, no paiz de Tombuctú, o engenheiro e elles não se falavam. Quanto a Fricollin, não sahia da cozinha, onde François Tapage lhe concedia uma generosa hospitalidade, sob condição de que faria de ajudante de cozinheiro. Como isto tinha as suas vantagens, o negro tinha-o acceitado de muito boa vontade, com permissão de seu amo. Além d’isso, fechado d’aquelle modo, elle não via nada do que se passava lá fora, e podia reputar-se livre de perigo. Pois não se parecia elle com o abestruz, não só no physico, pelo seu prodigioso estomago, mas no moral pela sua rara estupidez? Para que ponto do globo ia agora dirigir-se o _Albatrós_? Seria admissivel que, em pleno inverno, se aventurasse por sobre os mares austraes ou continentes do polo? N’aquella atmosphera glacial não correspondia isso á morte do pessoal, a uma horrivel morte pelo frio, admittindo mesmo que os agentes chimicos das pilhas pudessem resistir a uma tal congelação? Que Robur tentasse transpôr o polo durante a estação quente, vá! Mas no meio d’essa noite permanente do inverno antarctico, seria o acto de um louco! Assim raciocinavam o presidente e o secretario do Weldon-Institute, agora levados ao extremo d’aquelle continente do Novo Mundo, que é ainda a America, mas não a dos Estados Unidos! Sim! o que ía fazer esse intratavel Robur? Não teria chegado o momento de terminar a viagem destruindo o apparelho voador? O certo é que durante aquelle dia de 24 de julho, o engenheiro teve frequentes entrevistas com o seu contramestre. Muitas vezes os dois consultaram o barometro, não para calcular d’esta vez a altura que haviam attingido, mas para tomar nota das indicações relativas ao tempo. Evidentemente, alguns symptomas se produziam que era necessario ter em consideração. Uncle Prudent julgou tambem notar que Robur buscava inventariar o que lhe restava de provisões de toda a especie, tanto para entreter as machinas propulsivas e suspensivas da aeronave, como tambem as machinas humanas, cujo funccionamento não devia ser menos garantido a bordo. Tudo isto parecia annunciar projectos de regresso. —De regresso!... dizia Phil Evans. Mas para onde? —Onde esse Robur se possa abastecer, respondeu Uncle Prudent. —Deve ser alguma ilha perdida no Oceano Pacifico, com uma colonia de scelerados, dignos do seu chefe. —É tambem a minha opinião, Phil Evans. Parece-me, com effeito, que elle pretende dirigir-se para o oéste, e, com a velocidade de que dispõe, terá alcançado rapidamente o seu fim. —Mas não poderemos pôr os nossos projectos em execução ... se elle lá chega ... —Não chegará, Phil Evans! Evidentemente, os dois collegas tinham em parte adivinhado os planos do engenheiro. Durante aquelle dia, era fora de duvida que o _Albatrós_, depois de ter avançado para os limites do Mar Atlantico, ía definitivamente retrogradar. Quando os gelos tivessem invadido aquellas paragens até o cabo Horn, todas as baixas regiões do Pacifico seriam cobertas de _icefields_ e de _icebergs_. A grande massa de gelo formaria então uma barreira impenetravel aos mais solidos navios, como aos mais intrepidos navegadores. É certo que, batendo mais rapidamente o vôo, o _Albatrós_ poderia transpôr as montanhas de gelo, accumuladas sobre o Oceano, depois as montanhas de terra, erguidas sobre o continente do polo, se é um continente que forma a calote austral. Mas aventurar-se-hia a affrontar, no meio da noite polar, uma atmosphera que pode esfriar até sessenta graus abaixo de zero? Não, decerto! De modo que depois de ter avançado uns cem kilometros ao sul, o _Albatrós_ obliquou para o oéste, de maneira a tomar a direcção de alguma ilha desconhecida dos grupos do Pacifico. Por baixo d’elles extendia-se a planicie liquida, lançada entre a terra americana e a terra asiatica. N’aquelle momento, as aguas tinham tomado essa côr singular que lhes faz dar o nome de “mar de leite„. Na meia sombra que não conseguiam dissipar os raios enfraquecidos do sol, toda a superficie do Pacifico era de um branco leitoso. Dir-se-hia um vasto campo de neve, cujas ondulações não eram sensiveis, vistas d’aquella altura. Tivesse aquella porção de mar sido solidificada pelo frio, e convertida n’um immenso _icefield_, e o seu aspecto não seria outro. Como se sabe, são myriades de particulas luminosas, de corpusculos phosphorecentes que produzem aquelle curiosissimo phenomeno. O que podia surprehender era que se encontrasse aquelle conjunto opalescente fora das aguas do Oceano Indico. De subito o barometro, depois de se ter mantido assaz alto durante as primeiras horas do dia, cahiu bruscamente. Havia evidentemente symptomas com que um navio se poderia preoccupar, mas que a aeronave desprezava. Comtudo, como era de suppôr, alguma formidavel tempestade tinha recentemente abalado as aguas do Pacifico. Era uma hora depois do meio dia quando Tom Turner, approximando-se do engenheiro, lhe disse: —Master Robur, repare n’aquelle ponto negro do horisonte!... Acolá ... perfeitamente ao norte de nós!... Não poderá ser um rochedo? —Não, Tom, não ha terras d’aquelle lado. —N’esse caso deve ser um navio ou pelo menos um barco. Uncle Prudent e Phil Evans, que tinham ido para a frente, olhavam o ponto indicado por Tom Turner. Robur pediu o seu oculo de mar, e poz-se a observar attentamente o objecto apontado. —É um barco, disse elle, e iria affirmar que traz homens a bordo. —Naufragos? exclamou Tom. —Sim! naufragos, que terão sido forçados a abandonar o seu navio, continuou Robur; infelizes, que não sabem bem onde é a terra, e que morrem talvez de fome e de sêde. Pois bem! não se dirá que o _Albatrós_ não procurou ir em auxilio d’elles! Foi dada uma ordem ao machinista e aos seus dois ajudantes. A aeronave começou a baixar lentamente. A cem metros parou, e os seus propulsores impelliram-n’a rapidamente para o norte. Era effectivamente um barco. A véla batia sobre o mastro. Á falta de vento não sabia andar, e decerto que a bordo ninguem tinha fôrças para pegar n’um remo. No fundo estavam cinco homens, adormecidos ou immobilisados pela fadiga, a não ser que estivessem mortos. O _Albatrós_ chegou acima d’elles e desceu lentamente. Atraz d’aquella embarcação, puderam ler então o nome do navio a que ella pertencia; a era _Jeannette_, de Nantes, navio francez, que a sua tripulação teria naturalmente tido que abandonar. —Eh! gritou Tom Turner. E deviam tel-o ouvido, porque a embarcação não estava oitenta pés acima d’elles. Nada de resposta. —Um tiro! disse Robur. A ordem foi executada, e a detonação propagou-se longamente á superficie das aguas. Viram então um dos naufragos erguer-se difficultosamente, com os olhos esgazeados, um verdadeiro rosto de esqueleto. Dando com o _Albatrós_ teve primeiramente um gesto de espanto. —Nada receie! gritou Robur em francez. Vimos em vosso soccorro! Quem sois? —Marinheiros da _Jeannette_, barca de que eu era o immediato, respondeu o homem. Ha quinze dias que a deixámos ... na occasião de sossobrar!... Não temos nem agua nem viveres!... Os outros quatro naufragos tinham-se levantado a pouco e pouco. Lividos, exhaustos, n’um horroroso estado de magreza, levantavam as mãos para a aeronave. —Attenção! gritou Robur. Uma corda se desenrolou da plataforma, e uma celha, contendo agua dôce, foi arreada até á embarcação. Os desgraçados lançaram-se a ella e beberam com uma avidez que incommodava vêr. —Pão!... pão!... gritaram elles. Immediatamente, um cabaz contendo alguns viveres, alimentos de conserva, um frasco de brandy, e boa porção de café, desceu até elles. O immediato viu-se grego para os conter no mitigamento da fome. E elles perguntaram depois: —Onde estamos? —A cincoenta milhas da costa do Chili, e do archipelago dos Chonas, respondeu Robur. —Muito obrigado. Mas falta-nos o vento e ... —Vamos dar-vos reboque! —Quem sois? —Gente que se sente feliz por vos ter vindo em auxilio, respondeu apenas Robur. O immediato comprehendeu que havia um incognito a respeitar. E quanto á machina volante, seria possivel que ella tivesse fôrça bastante para os rebocar? Sim! e a embarcação, presa a um cabo de uns cem pés de comprimento, foi arrastada para o léste por um poderoso apparelho. Ás dez da noite, a terra estava á vista, ou antes viam-se brilhar as luzes que indicavam a sua situação. Viera a tempo aquelle auxilio do céo, para os naufragos da _Jeannette_, e estes tinham bem de que pensar que na sua salvação havia o quer que fôsse de miraculoso. Depois, tendo-os conduzido á entrada das passagens das ilhas Chonas, Robur gritou-lhes para largarem o reboque, o que elles fizeram abençoando os seus salvadores, e o _Albatrós_ retomou o seu amplo vôo. Decididamente tinha muito de bom essa aeronave, que assim podia vir em auxilio de marinheiros perdidos no alto mar. Qual o balão, por mais aperfeiçoado que elle fôsse, que seria capaz de prestar aquelle serviço? E de si para si Uncle Prudent e Phil Evans tiveram de concordar n’isto, apesar de estarem na disposição de espirito de negar a propria evidencia. O mar sempre mau. Symptomas assustadores. O barometro desceu ainda alguns millimetros. Rabanadas terriveis de vento, que silvava violentamente nos engenhos helicoptericos do _Albatrós_, e que parava n’um momento. N’estas circumstancias, um navio de véla teria já dois rizes no mastro da gavea, e um na mesena. Tudo indicava que o vento ia saltar para o noroéste. O tubo do storm-glass começava a perturbar-se de um modo inquietador. Á uma da manhã, o vento fixou-se com uma extrema violencia. Comtudo, apesar de vir de frente, a aeronave, movida pelos seus propulsores, poude ainda vencel-o, e subir, na razão de quatro a cinco leguas por hora. Mas não se lhe podia exigir mais. Evidentemente preparava-se um cyclone, o que é raro n’aquellas latitudes. Chamem-lhe furacão no Atlantico, tufão nos mares da China, simún no Sahará, redemoinho na costa occidental, é sempre uma tempestade em vortice, e temivel. Sim! temivel para todo o navio, apanhado por esse movimento giratorio, que cresce da circumferencia ao centro e não deixa senão um unico logar calmo, no meio d’esse Maelström dos ares. Sabia-o Robur. Sabia tambem que era prudente fugir a um cyclone, sahindo da sua zona de attracção por uma ascensão até as camadas superiores. Até então tinha-se sahido sempre bem. Mas não havia hora a perder, nem um minuto talvez! Com effeito, a violencia do vento crescia sensivelmente. As ondas, descoroadas nas suas cristas, faziam correr uma poeira branca á superficie do mar. Era claro tambem que o cyclone, deslocando-se, ia cair nas regiões do polo com uma velocidade horrivel. —Para cima! disse Robur. —Para cima! respondeu Turner. Um extremo poder ascencional foi communicado á aeronave, e ella subiu obliquamente, como se seguisse um plano que se tivesse inclinado para o sudoéste. N’aquelle momento o barometro baixou mais ainda, uma quéda rapida da columna de mercurio de oito e depois de doze millimetros. De subito o _Albatrós_ parou no seu movimento ascencional. A que causa era devida aquella paragem? Evidentemente a um pêso de ar, a uma formidavel corrente, que, propagando-se de alto abaixo, diminuia a resistencia do ponto de apoio. Quando um vapor sobe um rio, o seu helice produz um trabalho menos util quanto a corrente tende a fugir sob as suas azas. O recuo é então consideravel, e pode mesmo tornar-se egual á corrente. Assim acontecia ao _Albatrós_ n’aquelle momento. Comtudo Robur não abandonou a partida. Os seus setenta e quatro helices, actuando n’uma simultaneidade perfeita, foram levados ao seu maximo de rotação. Mas, irresistivelmente attrahido pelo cyclone, o apparelho não se lhe podia escapar. Durante curtas calmarias, retomava o seu movimento ascencional. Depois o grande pêso fazia-o arrastar de novo, e ía abaixo como um navio que vae ao fundo. E não era isso afundar-se n’esse mar aereo, no meio de uma noite onde os pharoes da aeronave não rompiam a escuridão senão n’um raio muito restricto? Evidentemente, se a violencia do cyclone crescesse, o _Albatrós_ não seria mais que um feixe de palha, sem direcção, levado n’um d’esses turbilhões que arrancam arvores pelas raizes, lançam pelos ares os tectos e derruem muralhas. Robur e Tom não podiam falar senão por signaes. Uncle Prudent e Phil Evans, agarrados ao parapeito, perguntavam a si proprios se o meteoro lhes não iria fazer a vontade destruindo a aeronave, e com elle o inventor e todo o segredo da sua invenção. Mas já que o _Albatrós_ não conseguia desembaraçar-se verticalmente d’aquelle cyclone, parecia que havia apenas uma cousa a fazer: alcançar o centro, relativamente socegado, onde seria mais senhor das suas manobras. Sim! mas para o conseguir, seria preciso romper aquellas correntes circulares que o arrastavam á peripheria. Possuia elle sufficiente fôrça mechanica para se deslocar? De subito a parte superior da nuvem desfez-se. Os vapores condensaram-se em torrentes de chuva. Eram duas da manhã. O barometro, oscillando com deslocamentos de doze millimetros, cahira então a 709, o que, na realidade, devia ser diminuido da baixa devida á altura alcançada pela aeronave por sobre o nivel do mar. Phenomeno rarissimo: aquelle cyclone formára-se fora das zonas que elle mais habitualmente percorre, isto é, entre o 30.° parallelo norte e o 26.° parallelo sul. Talvez isto explique como aquella tempestade girante se transformou subitamente n’uma tempestade rectilinea. Mas que furacão! Tom Turner puzera-se ao leme. Era necessaria toda a sua destreza para não dar guinadas de um lado para o outro. Nas primeiras horas do dia,—se assim se pode chamar áquelles vagos tons do horisonte,—o _Albatrós_ tinha galgado quinze graus desde o cabo Horn, isto é, mais de quatrocentas leguas, e passára o limite do circulo polar. Alli, no mez de julho, a noite dura ainda dezenove horas e meia. O disco do sol sem calor, sem luz, não apparecia sobre o horisonte senão para desapparecer quasi immediatamente. No polo, aquella noite prolonga-se durante cento e setenta e nove horas. Tudo indicava que o _Albatrós_ ia afundar-se n’ella como n’um abysmo. N’esse dia, se uma observação fôsse possivel, teria dado 66° 40´ de latitude austral. A aeronave não estava pois mais longe mil e quatrocentas milhas do polo antarctico. Irresistivelmente arrastada para aquelle inaccessivel ponto do globo, a sua velocidade “comia„ por assim dizer, a sua gravidade, apesar d’esta ser um pouco mais forte, então, em consequencia da chateza da terra no polo. Quanto aos seus helices suspensivos, parecia que podia passar sem elles. De subito, a violencia do furacão tornou-se tal, que Robur julgou dever reduzir os propulsores ao minimo de voltas, afim de evitar algumas graves avarias, e de modo a poder governar, conservando o menos possivel da velocidade propria. No meio d’estes perigos, o engenheiro commandava com sangue frio, e o pessoal obedecia como se a alma do seu chefe estivesse n’elle. Uncle Prudent e Phil Evans não deixaram um instante a plataforma. Tambem podia-se estar alli sem inconveniente. O ar não resistia, ou resistia muito fracamente. A aeronave estava alli como um aerostato que caminha com a massa fluida em que está immerso. O dominio do polo austral comprehende, segundo dizem, quatro milhões, quinhentos mil metros quadrados de superficie. É um continente? É um archipelago? é um mar paleocrystico, cujos gelos não se derretem mesmo durante o longo periodo de verão? Não se sabe. Mas o que é sabido, é que esse polo austral é mais frio que o polo boreal, phenomeno devido á posição da terra sobre a sua orbita, durante o inverno das regiões antarcticas. Durante aquelle dia nada indicou que a tempestade fôsse diminuir. Era pelo 75.° grau meridiano, a oéste, que o _Albatrós_ ia alcançar a região circumpolar. Por que meridiano sahiria, se sahisse? Em todo o caso, á medida que descia mais ao sul, a duração do dia diminuia. Antes de pouco, estaria mergulhado n’aquella noite permanente que não se illumina senão á claridade da lua ou aos pallidos clarões das auroras austraes. Mas era lua nova então, e os companheiros de Robur arriscavam-se a não vêr nada d’aquellas regiões, cujo segredo escapava ainda á curiosidade humana. Muito provavelmente o _Albatrós_ passou por cima de alguns pontos já reconhecidos, um pouco antes do circulo polar, no oéste da terra de Graham, descoberta por Biscoe em 1832, e da terra Luiz Filippe, descoberta em 1838 por Dumont d’Urville, ultimos limites alcançados sobre o continente desconhecido. Comtudo a bordo não se soffria muito com a temperatura, muito menos baixa então do que era para receiar. Parecia que aquelle furacão era uma especie de Gulf Stream aereo que levava comsigo um certo calor. Quanto foi então para lastimar que aquella região estivesse immersa n’uma obscuridade profunda! É necessario comtudo notar que, mesmo que a lua allumiasse o espaço, a parte das observações seria muito reduzida. N’essa épocha do anno, uma immensa rede de neve, uma crusta de gelo, cobre toda a superficie polar. Não se nota mesmo aquelle “blink„ de gelos, tintura esbranquiçada cujo reverbero falta aos horisontes obscuros. N’estas condições, como distinguir a forma das terras, a extensão dos mares, a disposição das ilhas? A sua propria configuração orographica, como marcal-a, desde as collinas onde as montanhas se confundem com os ice-berg, e os montões de gelo? Um pouco antes da meia noite, uma aurora boreal illuminou aquellas trevas. Com as suas franjas prateadas, as suas laminasinhas que irradiavam através do espaço, aquelle meteoro apresentava a forma de um immenso leque, aberto sobre uma metade do céo. As suas extremas effluencias electricas vinham perder-se no Cruzeiro do Sul, cujas quatro estrellas brilhavam no zenith. O phenomeno foi de uma magnificencia incomparavel, e a sua claridade bastou para mostrar o aspecto d’aquella região confundida n’uma brancura immensa. Escusado é dizer que, n’aquellas regiões proximas do polo magnetico austral, a agulha da bussola, constantemente endoidada, não podia dar indicação alguma precisa com respeito á direcção que se levava. Mas a sua inclinação foi tal n’um certo momento, que Robur poude ter como certo que passára por sobre esse polo magnetico, situado pouco mais ou menos sobre o 78.° parallelo. E mais tarde, pela uma da manhã, calculando o angulo que essa agulha fazia com a vertical, elle exclamou: —Temos a nossos pés o polo austral! Uma convexidade branca appareceu, mas sem deixar vêr nada do que se escondia sob os seus gelos. A aurora boreal apagou-se pouco depois, e aquelle ponto ideal, onde vinham cruzar-se todos os meridianos do globo, está ainda por ser conhecido. Evidentemente, se Uncle Prudent e Phil Evans queriam sepultar na mais mysteriosa das solidões a aeronave e os que ella conduzia através do espaço, a occasião era propicia. Se o não fizeram, foi decerto porque o instrumento de que necessitavam lhes faltava ainda. No entretanto o furacão continuava a desencadear-se com uma violencia tal, que, se o _Albatrós_ tivesse encontrado alguma montanha no caminho, ter-se-hia alli esmagado como um navio que dá á costa. Com effeito, não só não podia dirigir-se horisontalmente, mas nem sequer era senhor do seu deslocamento em altura. E comtudo alguns pincaros de montanhas se erguiam n’aquellas terras antarcticas. A cada instante um choque seria possivel e teria produzido a destruição do apparelho. Aquella catastrophe era tanto mais para receiar quanto o vento inclinára para léste, passando o meridiano zero. Dois pontos luminosos se apresentaram a uns cem kilometros á frente do _Albatrós_. Eram os dois vulcões que fazem parte do vasto systema dos Montes Ross, o Erebus e o Terror. Iria pois o _Albatrós_ queimar-se nas suas chammas, como uma borboleta gigante? Houve uma hora palpitante. Um dos vulcões, o Erebus, parecia precipitar-se sobre a aeronave, que parecia não se poder desviar do leito do furacão. Os pennachos de chamma cresciam a olhos vistos. Uma rede de fogo tomava o caminho. Intensos clarões enchiam agora o espaço. As figuras, vivamente illuminadas a bordo, tomaram um aspecto infernal. Todos, immoveis, sem um grito, sem um gesto, esperavam o horroroso minuto, em que aquella terrivel fornalha os envolveria nas suas chammas. Mas o furacão que arrastava o _Albatrós_, salvou-o d’aquella espantosa catastrophe. As chammas do Erebus, lançadas pela tempestade, abriram-lhe passagem. Foi no meio de uma chuva de substancias lavicas, repellidas felizmente pela acção centrifuga dos helices suspensivos, que elle transpoz a cratéra em plena erupção. Uma hora depois, o horisonte deixava vêr as duas tochas colossaes que allumiavam os confins do mundo durante a longa noite polar. Ás duas da manhã, passaram a ilha Ballery no extremo da costa da Descoberta, sem que a pudessem reconhecer, visto estar soldada ás terras arcticas por um cimento de gelo. E então, a partir do circulo polar que o _Albatrós_ cortou sobre o 75.° meridiano, o furacão levou-o para sobre os bancos de gelo, para sobre os icebergs, contra os quaes esteve cem vezes no risco de se despedaçar. Não ia já nas mãos do seu timoneiro, mas nas mãos de Deus ... Deus é um excellente piloto. A aeronave caminhava para o meridiano de Paris, que faz um angulo de cento e cinco graus com o que ella havia seguido para galgar o circulo do mundo antarctico. Afinal, para além do parallelo 60.°, o furacão mostrou uma tendencia a quebrar. A sua violencia diminuiu sensivelmente. O _Albatrós_ começou a tornar-se senhor de si. Depois,—o que foi um verdadeiro allivio,—entrou nas regiões illuminadas do globo, e o dia tornou a apparecer pelas oito horas da manhã. Robur e os seus, depois de haverem escapado ao cyclone do cabo Horn, estavam agora livres do furacão. Tinham sido levados para o Pacifico por sobre toda a região polar, depois de haver galgado sete mil kilometros em dezenove horas,—isto é, mais de uma legua por minuto—velocidade dupla da que podia obter o _Albatrós_ sob a acção dos seus propulsores nas circumstancias ordinarias. Mas Robur não sabia já onde estava, em consequencia das perturbações da agulha nas proximidades do polo magnetico. Era necessario esperar que o sol se mostrasse em condicções sufficientes de se fazer uma observação. Infelizmente grossas nuvens carregavam o céo n’aquelle dia, e o sol não appareceu. Foi um desapontamento tanto mais sensivel, quanto os dois helices propulsivos haviam tido certas avarias durante a tormenta. Robur, contrariadissimo com este accidente, não poude seguir, durante este dia, senão com uma velocidade relativamente moderada. Quando passou por sobre os antipodas de Paris, não o fez senão a razão de seis leguas por hora. Era necessario, além d’isso, tomar bem sentido em não aggravar as avarias. Se os seus dois propulsores fôssem postos fora das condições de funccionar, a situação da aeronave por sobre esses vastos mares do Pacifico estaria muito compromettida. Assim o engenheiro perguntava a si proprio se não deveria proceder ás reparações alli, de modo a assegurar a continuação da viagem. No dia seguinte pelas sete da manhã, foi avistada uma terra ao norte. Reconheceu-se logo que era uma ilha. Mas qual d’essas milhares de ilhas de que está semeado o Pacifico? Comtudo Robur resolveu parar alli, sem vir a terra. Segundo elle, bastaria o dia para reparar as avarias, e partiria n’essa mesma noite. O vento tinha serenado de todo, circumstancia favoravel para a manobra que se tratava de executar. Pelo menos, visto que ficára estacionario, o _Albatrós_ não seria arrastado sem se saber para onde. Um longo cabo de cento e cincoenta pés, com uma ancora na extremidade, foi lançado pela borda fora. A aeronave chegava ao extremo da ilha, a ancora tocou de raspão nos primeiros escolhos, e depois prendeu-se solidamente entre dois rochedos. O cabo destendeu-se sob a acção dos helices suspensivos, e o _Albatrós_ ficou immovel, como um navio prêso da praia com uma ancora. Era a primeira vez que se ligava á terra, desde a sua partida de Philadelphia. CAPITULO XV ONDE SE PASSAM COUSAS QUE NA REALIDADE MERECEM SER CONTADAS Quando o _Albatrós_ occupava ainda uma zona elevada, tinham podido reconhecer que aquella ilha era de mediocre tamanho. Mas qual o parallelo que a cortava? Sobre que meridiano estava? Era uma ilha do Pacifico, da Australasia, do Oceano Indico? Não se poderá saber senão quando Robur tiver feito os seus calculos. Comtudo, apesar de elle não ter podido tomar em conta as indicações do compasso, havia razão para pensar que estava sobre o Pacifico. Apenas o sol nascesse, seriam excellentes as circumstancias para obter uma boa observação. D’aquella altura, cento e cincoenta pés, a ilha que media cerca de mil e quinhentas milhas de circumferencia, desenhava-se como uma estrella do mar, de tres pontas. Á ponta de suéste emergia um ilhote, precedido de uma sementeira de rochedos. Á borda, nenhum indicio de marés, o que levava a confirmar a opinião de Robur relativamente á situação, porque o fluxo e refluxo são quasi nullos no Oceano Pacifico. Na ponta noroéste erguia-se uma montanha conica, cuja altitude podia ser calculada em duzentos pés. Não se via nenhum indigena, mas talvez occupassem o littoral opposto. Em todo o caso, se elles tinham dado com a aeronave, era natural que o espanto os levasse a esconderem-se e a fugir. Fôra pela ponta suéste que o _Albatrós_ atracára á ilha. Não longe, n’uma pequena insua, lançava-se um riacho, por entre rochedos. Para além, alguns valles sinuosos, arvores de essencias variadas, caça de matto, perdizes e abetardas em grande quantidade. Se a ilha não era habitada, pelo menos parecia habitavel. Decerto que Robur podia alli pousar em terra, e se o não fizera, fôra decerto porque o solo, muito accidentado, lhe parecêra que não offerecia um logar conveniente para a aeronave. Esperando lançar-se nos ares, o engenheiro mandou começar os preparativos, que esperava concluir durante o dia. Os helices suspensivos, em perfeito estado, tinham funccionado admiravelmente no meio das violencias do furacão, o qual, como vimos, tinha acalmado. N’aquelle momento, metade do jogo funccionava, o que era bastante para assegurar a tensão do cabo, fixado perpendicularmente ao littoral. Mas os dois propulsores haviam soffrido, e mais ainda do que Robur suppunha. Era necessario pôr novas hastes e concertar a engrenagem que lhes transmittia o movimento de rotação. Foi do helice anterior que o pessoal se occupou primeiramente sob a direcção de Robur e de Tom Turner. Era melhor começar por elle, para o caso em que um motivo qualquer obrigasse o _Albatrós_ a partir antes do trabalho estar concluido. Bastava esse propulsor, para se poder continuar razoavelmente o caminho. Entrementes, Uncle Prudent e o seu collega, depois de haverem passeado sobre a plataforma tinham-se ido sentar atraz. Quanto a Fricollin, estava singularmente socegado. Que differença! não se estar suspenso senão a uns cincoenta pés do chão! Os trabalhos não foram interrompidos senão no momento em que a elevação do sol sobre o horisonte permittiu tomar primeiro um angulo horario, depois, quando elle estava na sua inclinação, calcular o meio dia do logar. O resultado da observação, feita com a maior exactidão, foi o seguinte: Longitude: 176.° 17´ a léste do meridiano zero. Latitude: 43.° 37´ austral. O ponto sobre a carta, referia-se á posição da ilha Chatam e do ilhote Viff, cujo grupo é tambem designado pelo nome commum de ilhas Brongthon. Aquelle grupo está a quinze graus ao léste de Taivaï-Pomanú, ilha meridional da Nova Zelandia, situada na parte sul do Oceano Pacifico. —É pouco mais ou menos o que eu suppunha, disse Robur a Tom Turner. —E então, estamos?... —A quarenta e seis graus ao sul da ilha X, isto é, a uma distancia de duas mil e oitocentas milhas. —Mais uma razão para concertarmos os nossos propulsores, respondeu o contramestre. N’aquelle trajecto podemos encontrar ventos contrarios, e, com o pouco que nos resta de provisões, é necessario alcançarmos a ilha X o mais depressa possivel. —Sim, Tom, e espero pôr-me a caminho esta noite, mesmo que tenha de partir só com um helice, podendo concertar o outro no caminho. —Master Robur, perguntou Tom Turner, e esses dois cavalheiros, e o creado?... —Tom Turner, respondeu o engenheiro, serão elles para lastimar por se terem tornado colonos da ilha X? Mas que ilha é essa ilha X? Uma ilha perdida na immensidade do Oceano Pacifico, entre o equador e o tropico de Cancer, uma ilha que justificava bem aquelle signal algebrico de que Robur fizera o seu nome. Emergia d’esse vasto mar das Marquezas, fora de todos os caminhos de communicação interoceanicos. Era alli que Robur fundára a sua pequena colonia, alli que vinha repousar o _Albatrós_, quando estava cançado de voar; alli que fazia provisão de tudo que era necessario para as suas perpetuas viagens. N’essa ilha X, Robur, que dispunha de grandes recursos, tinha podido estabelecer um estaleiro e construir perfeitamente a sua aeronave. Alli a podia concertar e mesmo fazer outra de novo. As suas officinas continham as materias, as substancias, as provisões de toda a especie, accumuladas para a manutenção de uns cincoenta habitantes, a população da ilha. Quando Robur dobrou o cabo Horn, alguns dias antes, o seu intento era alcançar a ilha X, atravessando obliquamente o Pacifico. Mas o cyclone tinha apanhado o _Albatrós_ no seu turbilhão. Depois d’elle, o furacão tinha-o levado para além das regiões austraes. Em summa, tinha sido trazido pouco mais ou menos á sua direcção primitiva, e, sem as avarias dos propulsores, o atrazo teria bem pouca importancia. Iam pois alcançar a ilha X. Mas, como dissera o contramestre, Tom Turner, o caminho era ainda longo. Teriam provavelmente de luctar com ventos desfavoraveis. E todo o seu poder mechanico sería pouco para se chegar ao seu destino nos prasos desejados. Com um tempo médio, n’um andamento ordinario, essa travessia devia realisar-se em tres ou quatro dias. D’ahi o partido que Robur tomára de se fixar na ilha Chatam. Alli se achava em condições melhores para concertar pelo menos o helice da frente. Não receiava, no caso de uma brisa contraria se levantar, ser arrastado para o sul, quando quizesse ir para o norte. Chegada a noite, aquelle concerto estaria terminado. Manobraria então para desprender a ancora. Se estivesse solidamente agarrada aos rochedos, venceria a difficuldade cortando o cabo e retomaria o vôo para o Equador. Como se vê, aquella maneira de proceder era a mais simples, e a melhor tambem, sendo executada cabalmente. O pessoal do _Albatrós_, sabendo que não havia tempo a perder, poz-se resolutamente a trabalhar. Emquanto se trabalhava na frente da aeronave, Uncle Prudent e Phil Evans tinham entre si um dialogo cujas consequencias iam ser de um alcance excepcional. —Phil Evans, disse Uncle Prudent, está bem resolvido, como eu, a fazer o sacrificio da sua vida? —Estou! —Pela ultima vez: é bem certo que nada temos a esperar d’esse Robur? —Nada! —Pois bem, Phil Evans, a minha resolução está tomada. Já que o _Albatrós_ deve partir esta noite mesmo, não passará a noite sem termos realisado a nossa obra. Cortaremos as azas a esse passaro do engenheiro Robur. Esta noite voará pelos ares! —Vamos a isso! respondeu Evans. Como se vê, os dois collegas estavam de accôrdo em todos os pontos, mesmo quando se tratava de acceitar com indifferença a horrivel morte que os esperava. —Tem tudo que é necessario? perguntou Phil Evans. —Sim! A ultima noite, emquanto Robur e a sua gente não pensavam senão na salvação da aeronave, pude introduzir-me no deposito e tirar um cartucho de dynamite! —Uncle Prudent, vamos á obra! —Não! ha de ser esta noite. Quando ella vier, entraremos nos nossos compartimentos, e o senhor vigiará para que nos não surprehendam. Pelas seis horas os dois collegas jantaram segundo o costume. Duas horas depois, tinham-se retirado para o seu beliche, como pessoas que vão dormir para se refazerem de uma noite passada em claro. Nem Robur, nem nenhum dos seus companheiros, podiam suspeitar a catastrophe que ameaçava o _Albatrós_. Eis como Uncle Prudent contava proceder: Como dissera, tinha conseguido penetrar no deposito de munições, accommodado a um canto, no fundo da aeronave. Alli se apoderára de uma certa quantidade de polvora e de um cartucho semelhante áquelles de que o engenheiro se servira em Dahomey. Entrando para o seu beliche, tinha escondido cautelosamente o cartucho, com o qual estava resolvido a fazer saltar o _Albatrós_ durante a noite, quando elle tivesse retomado o seu vôo pelos ares. N’aquelle momento, Phil Evans examinava o cartucho roubado pelo seu companheiro. Era uma bainha metallica, contendo cêrca de um kilograma da substancia explosiva, o que devia bastar para deslocar a aeronave e partir o seu jogo de helices. Se a explosão não a destruisse rapidamente, acabaria com ella de todo na quéda. Ora nada havia mais facil do que depositar aquelle cartucho n’um canto do beliche, de modo que rompesse a plataforma e alcançasse o casco, até ao cavername. Mas, para provocar a explosão, seria preciso fazer rebentar a capsula fulminante, de que estava munido o cartucho. Era a parte mais delicada da operação, porque a inflammação da capsula não se devia produzir senão n’um tempo calculado com uma extrema precisão. Com effeito, Uncle Prudent tinha imaginado o seguinte: desde que o propulsor da frente estivesse concertado, a aeronave devia continuar o seu caminho para o norte; mas feito isto, era provavel que Robur e a sua gente voltassem atraz para arranjar o helice posterior. Ora a presença de todo o pessoal junto ao beliche podia embaraçar Uncle Prudent na sua operação. É a razão por que se resolvêra a servir-se de uma mécha, de maneira a não provocar a explosão senão n’um tempo dado. Eis o que elle disse a Phil Evans. —Juntamente com o cartucho tirei polvora. Com essa polvora vou fazer uma mécha, cujo comprimento estará na razão do tempo que seja preciso gastar a queimar, e que estaria metade na capsula do fulminante. A minha intenção é accendel-a á meia noite, de modo que a explosão se produza entre as tres e quatro da manhã. —Bem combinado! respondeu Phil Evans. Os dois collegas, como se vê, tinham chegado a examinar com o maior sangue frio a terrivel destruição em que deviam morrer. Havia n’elles uma tal somma de odio contra Robur e os seus, que o sacrificio da sua propria vida parecia indicado para destruir, com o _Albatrós_, os que elle levava comsigo. O acto era de facto insensato, odioso mesmo! Mas eis a que elles haviam chegado, depois de cinco semanas d’essa existencia cheia de colera que não pudera ainda rebentar, de raiva que não haviam podido conter. —E Fricollin, disse Phil Evans, temos nós direito de dispôr da sua vida? —Pois se sacrificâmos a nossa! respondeu Uncle Prudent. Não é provavel que Fricollin achasse sufficiente a razão. Immediatamente Uncle Prudent pôz mãos á obra, emquanto Phil Evans vigiava as immediações dos seus aposentos. O pessoal continuava occupado na frente. Não havia receio de ser surprehendido. Uncle Prudent começou por triturar uma pequena quantidade de polvora a ponto de a tornar em pó fino. Depois de a molhar ligeiramente, metteu-a n’um envolucro de panno, em forma de mécha. Accendendo-a, reconheceu que queimava na razão de cinco centimetros por dez minutos, isto é, um metro em tres horas e meia. A mécha foi então apagada, depois fortemente apertada n’uma espiral de corda e applicada á capsula do cartucho. O trabalho estava concluido pelas dez horas da noite, sem haver excitado a minima suspeita. N’aquelle momento, Phil Evans veiu ter com o seu collega ao beliche. Durante aquelle dia, as reparações do helice anterior tinham sido activamente conduzidas; mas tinha sido preciso mettel-o para dentro para poder desmontar os seus ramos, que estavam desarranjados. Quanto ás pilhas, aos accumuladores, ao que produzia a fôrça mechanica do _Albatrós_, nada havia soffrido com as violencias do cyclone. Havia com que alimental-os ainda durante quatro ou cinco dias. Viera a noite, quando Robur e os seus homens interromperam o seu trabalho. O propulsor da frente não estava ainda collocado no seu logar. Eram necessarias tres horas de reparações para que estivesse apto a funccionar. De modo que, depois de conversar com Tom Turner, o engenheiro resolveu-se a dar algum descanço ao seu pessoal, morto de cançaço, e guardar para o dia seguinte o que ficava por fazer. Além de que, era necessaria a claridade do dia para esse trabalho extremamente delicado, e a que os pharoes não dariam uma luz sufficiente. Eis o que Uncle Prudent e Phil Evans ignoravam. Atidos ao que haviam ouvido dizer a Robur, deviam pensar que o propulsor da frente seria concertado antes da noite e que o _Albatrós_ seguiria immediatamente o seu caminho para o norte. Julgavam-n’o pois desprendido da ilha, quando estava ainda preso a ella pela ancora. Isto ía conduzir as cousas de um modo completamente diverso do que elles haviam imaginado. A noite estava sombria e sem luar. Sentia-se que ía estabelecer-se uma brisa ligeira. Vinham aragens do sudoéste; mas não deslocavam o _Albatrós_, que permanecia immovel, preso á ancora, cujo cabo, verticalmente tenso, o retinha ao solo. Uncle Prudent e o seu collega, encerrados no seu beliche, poucas palavras trocavam, prestando ouvidos ao fremito dos helices suspensivos que dominava todos os outros ruidos de bordo. Esperavam o momento de proceder. Um pouco antes da meia noite: —É tempo! disse Uncle Prudent. Sob os leitos do beliche estava um cofre em forma de gaveta. Foi n’esse cofre que Uncle Prudent depositou o cartucho de dynamite, munido da mécha. D’esse modo, a mécha podia queimar sem se revelar pelo fumo ou pela crepitação. Uncle Prudent accendeu-o no extremo. Depois, empurrando o cofre para baixo da caixa: —Agora lá para traz e esperemos! Sahiram os dois e ficaram ao principio admirados de não vêr o timoneiro no seu posto habitual. Phil Evans curvou-se então para fora da plataforma. —O _Albatrós_ continúa no mesmo logar! disse em voz baixa. Os trabalhos não concluiram!... Não pode naturalmente partir. Uncle Prudent teve um gesto de desapontamento. —É preciso apagar a mécha, disse. —Não!... é preciso safarmo-nos!... respondeu Phil Evans. —Safarmo-nos? —Sim!... Pelo cabo da ancora, visto ser noite escura. Cento e cincoenta pés de descida não é nada. —Não é nada, com effeito, Phil Evans, e seriamos loucos se não aproveitassemos esta occasião inesperada. Mas, entraram no seu beliche e tomaram tudo que puderam levar comsigo de provisões para uma estação mais ou menos prolongada na ilha Chatam. Depois, fechando a porta, avançaram sem ruido para a frente. A sua intenção era despertar Fricollin e obrigal-o a fugir com elles. A escuridão era profunda. As nuvens começavam a soprar do sudoéste. Já a aeronave balançava um pouco, presa á ancora, afastando-se ligeiramente da vertical com relação ao cabo que a segurava. A descida devia pois offerecer uma certa difficuldade. Mas não era cousa que fizesse recuar homens que estavam resolvidos a expôr a vida. Arrastaram-se os dois até á plataforma, parando ás vezes ao abrigo dos compartimentos para escutar se ouviam algum ruido. Silencio absoluto por toda a parte. Nenhuma luz nas vigias. Não era só no silencio, que a aeronave estava immersa; mas no somno. No emtanto Uncle Prudent e o seu companheiro approximavam-se do beliche de Fricollin, quando Phil Evans estacou: —O vigia! disse elle. Com effeito um homem estava deitado junto aos compartimentos centraes. Passava pelo somno. Toda a fuga se tornára impossivel no caso de elle dar o alarme. Estavam n’aquelle logar algumas cordas, pedaços de panno e de estopa, que tinham servido para o concerto do helice. Um instante depois, o homem era amordaçado, encapuzado, atado a um dos varões do parapeito, sem poder dar um grito ou fazer um movimento. Tudo isto se passára quasi sem ruido. Uncle Prudent e Phil Evans puzeram-se a escutar.... O silencio não foi perturbado no interior dos compartimentos. A bordo tudo dormia. Os dois fugitivos,—pois não os podemos já chamar assim?—chegaram á frente do beliche occupado por Fricollin. François Tapage fazia ouvir um resonar digno do seu nome, o que era tranquillisador. Com grande surpresa sua, Uncle Prudent não teve de empurrar a porta de Fricollin. Estava aberta. Entrou até meio beliche, e depois, retirando-se: —Ninguem! disse elle. —Ninguem! Onde estará elle? murmurou Phil Evans. Os dois foram de rastos até á frente, pensando que Fricollin dormia talvez em algum canto ... Ninguem! —Ter-se-ha anticipado a nós o maroto? disse Uncle Prudent. —Seja como fôr, respondeu Phil Evans, não podemos esperar por mais tempo. Partamos! Sem hesitar, um após outro, os fugitivos agarraram-se ao cabo com ambas as mãos e ambos os pés, e, deixando-se escorregar, chegaram a terra sãos e salvos. Que alegria para elles o pizarem o chão que lhes faltava havia tanto tempo, caminharem sobre um terreno solido, e não estarem á mercê da atmosphera! Preparavam-se para se internar na ilha quando uma sombra se ergueu deante d’elles. Era Fricollin. Sim! O negro tinha tido a mesma idéa que seu amo, e a audacia de se lhe anticipar, sem o prevenir. Mas não era aquella a occasião para recriminações, e Uncle Prudent dispunha-se a procurar um refugio em qualquer ponto afastado da ilha, quando Phil Evans o deteve. —Uncle Prudent, escute, disse elle. Eis-nos livres de Robur. Está votado, com os seus collegas, a uma morte espantosa. Merece-a, é verdade! Mas se elle jurasse sobre a sua honra que não tentaria tornar a apanhar-nos ... —A honra n’um tal sujeito.... Uncle Prudent não poude concluir. Produzira-se um movimento a bordo do _Albatrós_. Evidentemente, fôra dada voz de alarme, e a evasão ía ser descoberta. —Soccorro! Soccorro! gritaram. Era o vigía que tinha podido expellir a mordaça. Passos precipitados resoaram na plataforma. Immediatamente os pharoes lançaram os seus clarões electricos sobre um largo sector. —Lá estão!... lá estão! exclamou Tom Turner. Os fugitivos tinham sido vistos. No mesmo instante, em consequencia de uma ordem que Robur deu em voz alta, os helices suspensivos foram afrouxados, e sendo o cabo içado para bordo, o _Albatrós_ começou a approximar-se do solo. N’esse momento ouviu-se distinctamente a voz de Phil Evans: —Engenheiro Robur, disse elle, compromette-se, sob sua honra, a deixar-nos livres n’esta ilha?... —Nunca! exclamou Robur. E essa resposta foi seguida de um tiro de espingarda, cuja bala roçou pelo hombro de Phil Evans. —Ah! patife! exclamou Uncle Prudent. E de faca na mão, precipitou-se para o lado dos rochedos, onde a ancora se tinha incrustado. A aeronave estava apenas a uns 50 pés do solo. E em poucos segundos o cabo estava cortado, e a brisa, que tinha refrescado sensivelmente, batendo de lado o _Albatrós_, afastava-o para o nordéste, por sobre o mar. CAPITULO XVI ONDE O LEITOR FICARÁ N’UMA INDECISÃO TALVEZ LAMENTAVEL Era então meia noite e vinte. Cinco ou seis tiros mais tinham sido dados da aeronave. Uncle Prudent e Fricollin, sustentando Phil Evans, tinham-se posto ao abrigo dos rochedos. Não haviam sido feridos. Nada a receiar n’aquelle momento. Primeiramente, o _Albatrós_, ao mesmo tempo que se afastava da ilha Chatam, foi levado a uma altura de novecentos metros. Tinha sido preciso forçar a velocidade ascensional afim de não cahir ao mar. No momento em que o vigia, livre da mordaça, soltava o primeiro grito, Robur e Tom Turner, precipitando-se sobre elle, tinham-n’o desembaraçado do pedaço de panno que lhe cobria o rosto, e dos laços que o prendiam. Depois o contramestre entrára no beliche de Uncle Prudent e de Phil Evans: estava vasio! François Tapage, pelo seu lado, havia esquadrinhado no beliche de Fricollin: e não vira ninguem!... Vendo que os prisioneiros lhe haviam escapado, Robur entregou-se a um movimento de colera. A evasão de Uncle Prudent e Phil Evans era o seu segredo, era a sua pessoa revelada a todo o mundo. Se não se inquietára com o documento lançado durante a travessia da Europa, é que havia muitas probabilidades de elle se perder na quéda!... Mas agora!... Depois, serenando: —Fugiram! deixal-os! disse elle. Como não poderão safar-se da ilha Chatam antes de alguns dias, eu voltarei!... Eu os procurarei!... eu os tornarei a apanhar!... e então ... Com effeito a salvação dos tres fugitivos estava longe de ser garantida. O _Albatrós_, tornando-se senhor da sua direcção, não tardaria em alcançar de novo a ilha Chatam, d’onde os fugitivos não podiam sahir tão cedo. Antes de doze horas estariam em poder do engenheiro. Antes de doze horas! Mas antes de duas o _Albatrós_ seria anniquilado! Esse cartuxo de dynamite, não era como um torpedo preso ao seu flanco, e destinado a realisar a sua obra de destruição nos ares? Entretanto a brisa tornava-se mais fresca, a aeronave era levada para o nordéste. Embora a sua velocidade fôsse moderada, devia ter perdido de vista a ilha Chatam antes do nascer do sol. Para voltar contra o vento, seria preciso que os propulsores, ou pelo menos os da frente, estivessem em estado de funccionar. —Tom, disse o engenheiro, põe os pharoes a toda a luz. —Sim, master Robur. —E todos á obra! —Todos! respondeu o contramestre. Não era cousa que se deixasse para o dia seguinte. Não se tratava de cançaço agora. Não havia um unico no _Albatrós_ que não partilhasse das paixões do seu chefe. Nenhum que não estivesse resolvido a fazer tudo para tornar a apanhar os fugitivos! Apenas o helice da frente fôsse collocado no seu logar, voltariam a Chatam, alli, amarrariam de novo, e dariam caça aos prisioneiros. Só então começariam as reparações do helice de traz, e a aeronave poderia continuar com toda a segurança através o Pacifico a sua viagem de regresso á ilha X. Comtudo era necessario que o _Albatrós_ não fôsse levado para muito longe ao nordéste. Ora, circumstancia desagradavel! a brisa ía-se accentuando, e elle não podia nem vencel-a, nem ficar estacionario. Privado dos seus propulsores, tornou-se um balão indirigivel. Os fugitivos, postados no littoral, tinham podido vêr que elle desappareceria antes que a explosão puzesse tudo em pedaços. Este estado de cousas não podia deixar de inquietar Robur com respeito aos seus projectos ulteriores. Pois não resultava isso n’um atrazo em voltar á ilha Chatam? De modo que emquanto os concertos eram feitos activamente, elle tomou a resolução de descer até ás baixas camadas na esperança de alli encontrar correntes mais fracas. Talvez o _Albatrós_ chegasse a manter-se n’aquellas paragens até o momento de se ter sufficiente fôrça para resistir á aragem. Fez-se immediatamente a manobra. Se algum navio tivesse assistido ás evoluções d’este apparelho, então envolto nos seus clarões electricos, que espanto não teria a guarnição! Quando o _Albatrós_ não esteve senão a alguns centos de pés da superficie do mar, parou. Infelizmente Robur teve de notar que a aragem soprava com mais fôrça n’esta zona inferior, e a aeronave afastou-se com velocidade maior. Arriscava-se a ser arrastada para mais longe ao nordéste, o que retardaria o seu regresso a Chatam. Em summa, feitas algumas tentativas, ficou provado que havia vantagem em se manter nas altas camadas em que a atmosphera estava melhor equilibrada. Assim o _Albatrós_ subiu uma média de tres mil metros. Alli, se não ficou estacionario, pelo menos o seu andamento foi lento. O engenheiro poude esperar melhor que ao romper do dia, e d’aquella altura, teria ainda em vista as paragens da ilha, cuja posição elle tomara com uma exactidão perfeita. Quanto á questão de saber se os fugitivos haviam recebido bom acolhimento dos indigenas, no caso da ilha ser habitada, Robur nem se preoccupava com isso. Que os indigenas lhes viessem em auxilio pouco se lhe dava! Com os meios offensivos de que o _Albatrós_ dispunha, seriam promptamente espantados e dispersados. A captura dos prisioneiros, não podia, pois, trazer receios, e, estando presos ... —Não ha meio de fugir da ilha X! disse Robur. Cêrca da uma hora depois do meio dia, o propulsor da frente estava concertado. Não se tratava senão de o pôr no seu logar, o que exigia ainda uma hora de trabalho. Feito isto, o _Albatrós_ tornaria a partir, na direcção sudoéste, e então desmontariam o propulsor de traz. E a mécha que ardia no beliche abandonado! Essa mécha cuja terça parte tinha já ardido. E a chamma que se approximava do cartucho de dynamite! Evidentemente, se os homens da aeronave não estivessem occupados, talvez um d’elles tivesse ouvido o tenue crepitar que começara a produzir-se no beliche; talvez tivesse sentido o cheiro da polvora queimada. E ter-se-hia preoccupado; teria prevenido o engenheiro Robur ou Tom Turner. Teriam então dado busca, e descoberto o cofre em que haviam guardado o cartucho. Seria ainda tempo de salvar esse maravilhoso _Albatrós_ e todos que elle levava! Mas os homens trabalhavam na frente, isto é, a vinte metros do beliche dos fugitivos. Nada os levara ainda a essa parte da plataforma, como nada podia distrahil-os de um trabalho que chamava toda a sua attenção. O proprio Robur trabalhava, como habil machinista que era. Apressava o trabalho, mas sem esquecer que tudo fôsse feito com o maior cuidado! Era necessario que elle se tornasse absolutamente senhor do seu apparelho. Se não conseguisse apanhar os fugitivos, estes acabariam por voltar á sua terra. Fariam investigações. A ilha X não escaparia talvez ás pesquizas. E isso, seria acabar com a situação da gente do _Albatrós_, situação sobrehumana e sublime! N’aquelle momento, o contramestre approximou-se do engenheiro. Era uma hora e um quarto. —Master Robur, disse elle, parece-me que o vento annuncia agua para oéste. —E o que indica o barometro? perguntou Robur, depois de ter observado o aspecto do céo. —Está quasi estacionario, respondeu o contramestre. Comtudo parece-me que as nuvens descem para baixo do _Albatrós_. —É verdade, Tom Turner. E n’esse caso não é impossivel que chova á superficie do mar. Mas comtanto que permaneçamos por cima das nuvens, pouco importa! Não seremos perturbados na conclusão do nosso trabalho. —Se chover, continuou Tom Turner, deve ser uma chuva fina,—pelo menos a forma das nuvens assim o faz suppôr,—e é provavel que mais em baixo o vento serene completamente. —Decerto, Tom, respondeu Robur. Comtudo, parece-me preferivel não descer ainda. Acabemos de reparar as avarias e poderemos então manobrar á vontade. Tudo está n’isso. Ás duas horas e alguns minutos, estava concluida a primeira parte do trabalho. Reinstallado o helice anterior, fôram postas em movimento as pilhas que n’elle actuavam. O movimento accelerou-se a pouco e pouco e o _Albatrós_, evolucionando na direcção do sudoéste, voltou com uma velocidade média em direcção da ilha Chatam. —Tom, disse Robur, ha duas horas e meia, approximadamente, que nos dirigimos ao nordéste. A brisa não mudou, como pude notar observando o compasso. Portanto calculo que em uma hora, o maximo, poderemos encontrar de novo as paragens da ilha. —Assim o julgo, master Robur, respondeu o contramestre; porque avançamos na razão de uns doze metros por segundo. Entre as tres e as quatro da manhã terá o _Albatrós_ alcançado o seu ponto de partida. —E será assim melhor, Tom! respondeu o engenheiro. Temos interesse em chegar de noite, e mesmo em pousar em terra, sem sermos vistos. Os fugitivos julgando-nos para o norte, não se previnirão. Quando o _Albatrós_ estiver rente da terra trataremos de o esconder por detraz de alguns altos rochedos da ilha. Depois, teremos de passar alguns dias em Chatam. —Pois passaremos, e quando tivermos de luctar contra um exercito de indigenas ... —Luctaremos, Tom, luctaremos pelo nosso _Albatrós_! O engenheiro voltou-se então para a sua gente, que esperava novas ordens. —Meus amigos, disse elle, não chegou ainda a hora de descançar. É preciso trabalhar até ser dia. Estavam todos prestes. Tratava-se agora de recomeçar para o propulsor de traz os concertos que haviam sido feitos para o da frente. Eram as mesmas avarias, produzidas pela mesma causa, isto é, pela violencia do furacão durante a travessia do continente antarctico. Mas afim de auxiliar a metter o helice para dentro, entenderam dever suspender, durante alguns minutos, a marcha da aeronave e mesmo imprimir-lhe um movimento retrogrado. Á ordem de Robur, o ajudante do machinista deu o movimento de recúo á machina, mudando a rotação do helice anterior. A aeronave começou portanto a “descahir„ lentamente, para empregarmos uma expressão maritima. Tudo se dispunha então a andar para traz, quando Tom Turner foi surprehendido por um cheiro singular. Eram os gazes da mécha, accumulados agora no cofre, e que começavam a sahir do beliche dos fugitivos. —Hein? fez o contramestre. —O que ha? perguntou Robur. —Pois não lhe cheira?... dir-se-hia que é polvora a queimar-se. —É verdade, Tom! —E o cheiro vem dos ultimos compartimentos! —Sim, e até do ultimo beliche ... —Será possivel que esses miseraveis tivessem deitado fogo?... —Oh! se fôsse fogo apenas!... exclamou Robur. Mette a porta dentro, Tom, mette-a já! Mal o contramestre dera um passo para traz, e já uma formidavel explosão abalava o _Albatrós_. Os beliches voaram em estilhaços. Os pharoes apagaram-se, por lhes faltar subitamente a corrente electrica, e fez-se escuridão completa. Comtudo, se a maior parte dos helices suspensivos, torcidos ou partidos, estavam de todo inutilisados, alguns, á prôa, não haviam parado ainda de girar. De repente, o casco da aeronave abriu-se um pouco atraz dos primeiros compartimentos, cujos accumuladores actuavam ainda no propulsor da frente, e a parte posterior da plataforma deu uma viravolta no espaço. Quasi em seguida pararam os helices suspensivos, e o _Albatrós_ foi precipitado no abysmo. Era uma quéda de tres mil metros para os oito homens agarrados, como naufragos, áquelles destroços. Além d’isso a quéda ia ser muito mais rapida porque os propulsores da frente, depois de se pôrem verticalmente, funccionavam ainda! Foi então que Robur, com um grande sangue frio, se deixou deslisar até o beliche meio deslocado, pegou na alavanca e mudou a rotação do helice que, de propulsiva que era, tornou-se suspensiva. Quéda inevitavel, apesar de um tanto retardada; mas, pelo menos, sem essa velocidade crescente dos corpos abandonados aos effeitos da gravidade. E se em todo o caso era certa a morte para os que sobrevivessem, visto que se precipitavam no mar, não era a morte por asphixia, no meio de um ar que a rapidez da descida teria tornado irrespiravel. Oitenta segundos depois da explosão, o que restava do _Albatrós_ abysmara-se nas ondas. CAPITULO XVII DE COMO SE VOLTA DOIS MEZES ATRAZ E SE SALTA PARA NOVE MEZES MAIS TARDE Algumas semanas antes, a 13 de junho, no dia seguinte ao da sessão, durante a qual o Weldon-Institute se abandonára a tão tempestuosas discussões, tinha havido em todas as classes da população philadelphia, negros e brancos, uma emoção difficil de descrever. Já, nas primeiras horas da manhã, as conversações versavam unicamente sobre o inesperado e escandaloso incidente da vespera. Um intruso, que dizia ser engenheiro, um engenheiro que pretendia chamar-se com um nome inverosimil de Robur,—Robur, o Conquistador!—um personagem de origem desconhecida, de nacionalidade anonyma, tinha-se apresentado inopinadamente na sala das sessões, havia insultado os balonistas, infamado os partidarios dos aerostatos, exaltára as maravilhas dos apparelhos mais pesados que o ar, levantára celeuma no meio de um tumulto espantoso, provocado por ameaças que revirára contra os seus adversarios. Finalmente, depois de ter abandonado a tribuna no meio de tiros de revolvers, tinha desapparecido, e, apesar de todas as pesquisas, não tinham mais ouvido falar d’elle. Com effeito, isto fizera-se para dar exercicio a todas as linguas, e inflammar todas as imaginações. O que se deu na Philadelphia, deu-se em todos os outros trinta e seis Estados da União, e, para dizer a verdade, tanto no Antigo Mundo como no Novo Mundo. Mas este alarme cresceu de ponto quando na noite de 13 de junho foi voz geral que nem o presidente nem o secretario do Weldon-Institute tinham apparecido no domicilio, sendo aliás pessoas bem comportadas e prudentes. Na vespera tinham deixado a sala das sessões como pessoas que pretendem recolher tranquillamente para suas casas, na sua qualidade de celibatarios, que nenhum rosto aborrecido espera á entrada. Não se teriam ausentado, por acaso? Não; pelo menos nada haviam dito que levasse a suppôl-o. E mesmo tinha ficado combinado que no dia seguinte elles tomariam o seu logar no club, um como presidente, outro como secretario, na previsão de uma sessão em que se discutissem os acontecimentos da vespera. E não só houvera desapparição completa dos dois personagens importantes do Estado de Pensylvania, mas nenhuma noticia havia do creado Fricollin. Não havia meio de o encontrar, como a seu amo. Não! negro nenhum, depois de Toussaint Louverture, ou Soulouque, tinha dado tanto que falar! Elle ia agora ter um logar importante, tanto entre os seus collegas da domesticidade philadelphia, como entre todos esses originaes a quem uma excentricidade qualquer basta para se pôrem em relevo n’esse formoso paiz da America! No dia seguinte nada de novo. Nem os dois collegas, nem Fricollin tornaram a apparecer. Séria inquietação. Principiaram então a agitar-se. Grande multidão começou a reunir-se nas proximidades dos Post-and-Telegraph-offices para saber se havia alguma noticia. Nada de novo. E, comtudo, bem os haviam visto, aos dois, sahir do Weldon-Institute, conversar em voz alta, irem ter com Fricollin, que os esperava, e depois descer a Walnut Street, indo até á encosta de Fairmont-Park. Jem Cip, o legumista, tinha até apertado a mão direita do presidente, dizendo-lhe: —Até ámanhã! E William T. Forbes, o fabricante de assucar feito de trapos, tinha recebido um cordeal aperto de mão de Phil Evans, que lhe dissera duas vezes: —Até á vista!... até á vista!... Miss Doll e miss Mat Forbes, tão ligadas a Uncle Prudent por laços da mais pura amizade, não estavam em si com um tal acontecimento, e afim de obterem noticias do ausente, falavam ainda mais que do costume. Emfim, tres, quatro, cinco, seis dias se passaram, depois uma semana, duas semanas ... Ninguem, e indicio nenhum que pudesse pôr na pista dos tres desapparecidos. Tinham comtudo procedido ás mais minuciosas pesquizas no bairro ... Nada! Nas ruas que vão dar ao porto ... Nada! No parque o mesmo, sob os grandes tufos de arvores, no mais espesso dos mattos ... Nada! Sempre nada! Comtudo reconheceu-se que na grande clareira a herva tinha sido recentemente calcada, e de um modo que parecia suspeito, visto não ter explicação. Á entrada do bosque que a cerca tambem foram notados vestigios de uma lucta. Teriam pois bandos de malfeitores encontrado e atacado os dois collegas, a essa hora avançada da noite, no meio d’esse parque deserto? Era possivel. Portanto a policia procedia a um inquerito em todas as formas e com todo o rigor legal. Esquadrinharam o Schuylkill-river, rasparam-lhe o fundo, bateram as grandes hervas dos mattos. E se não deu resultado, pelo menos não foi inutil de todo, porque o Schuylkill estava precisando de um bom trabalho de limpeza. Fizeram-n’o por essa occasião. É gente pratica, os edis de Philadelphia. Appellaram então para a publicidade dos jornaes. Annuncios, reclamos foram enviados a todas as folhas democraticas ou republicanas da União, sem distincção de côr. O _Daily Negro_, jornal especial da raça negra, publicou um retrato de Fricollin, segundo uma photographia. Foram offerecidas recompensas, premios, a quem désse alguma noticia dos tres ausentes, e mesmo a todos que encontrassem um indicio qualquer de natureza a pôr-se-lhes no encalço. —Cinco mil dollars! cinco mil dollars!... A todo o cidadão que ... Nada de novo. Os cinco mil dollars permaneceram na caixa do Weldon-Institute. Impossivel achal-os! Impossivel achal-os! Uncle Prudent e Phil Evans de Philadelphia! Escusado será dizer que o club ficou n’uma singular excitação por este inexplicavel desapparecimento do seu presidente e secretario. Primeiramente a assembléa tomou uma urgente medida, suspendendo os trabalhos relativos á construcção do balão _Go a head_, aliás tão adeantados. Mas como é que, na ausencia dos principaes promotores do facto, dos que tinham votado a essa empresa uma parte da sua fortuna, em tempo e dinheiro, poderiam acabar a obra, não estando elles ahi para a concluir? Era portanto necessario esperar. Ora, precisamente n’essa épocha, tratou-se de novo do extranho phenomeno, que tanto havia sobreexcitado os espiritos algumas semanas antes. Com effeito, o objecto mysterioso tinha sido visto, ou, por outra, entrevisto por varias vezes nas altas camadas da atmosphera. Evidentemente ninguem pensava em estabelecer uma relação entre essa apparição tão singular e o desapparecimento, não menos inexplicavel, dos dois membros do Weldon-Institute. De facto seria preciso uma extraordinaria dóse de imaginação para se approximar estes dois factos um do outro. Seja como fôr, o asteroide, o bolide, o monstro aereo, ou como lhe queiram chamar, tinha tornado a apparecer nas condições que melhor permittiam apreciar as suas dimensões e a sua forma. Primeiramente no Canadá, por sobre os territorios que se extendem desde Ottawa até Quebec, e isso no dia seguinte á desapparição dos dois collegas; depois, mais tarde, por sobre as planicies do Far-West, luctando em velocidade com o caminho de ferro do Pacifico. A partir d’esse dia, as incertezas do mundo sabio tiveram em que se fixar. Aquelle corpo não era um producto da natureza; era um apparelho volante, com applicação pratica da theoria do “Mais pesado que o ar„. E se o creador, o dono da aeronave, queria ainda guardar o incognito para a sua pessoa, evidentemente o não queria já para a sua machina, visto que acabava de a mostrar tão perto, sobre os territorios do Far-West. Quanto á fôrça mechanica de que dispunha, quanto á natureza dos apparelhos que lhe communicavam movimento, era isso desconhecido. Em todo o caso, o que não deixava duvida alguma era que a aeronave devia ser dotada de uma extraordinaria facilidade de locomoção. Com effeito, alguns dias depois, havia sido vista no Celeste Imperio, depois na parte septentrional do Industão, depois por sobre os immensos steppes da Russia. Quem era pois esse ousado mechanico que possuia um tal poder de locomoção, para o qual os Estados não tinham fronteiras, nem os oceanos limites e que dispunha da atmosphera terrestre como de um dominio? Devia-se acreditar que era esse Robur, cujas theorias tinham sido tão brutalmente lançadas em rosto do Weldon-Institute, no dia em que veiu bater em brecha a utopia dos balões dirigiveis? Talvez alguns espiritos perspicazes o tivessem pensado. Mas, cousa singular decerto, ninguem pensou na hypothese de que o tal Robur pudesse estar relacionado de qualquer maneira com o desapparecimento do presidente e do secretario do Weldon-Institute. Em summa isso teria ficado no mysterio, se não fôsse um despacho que de França chegou á America pelo fio de Nova-York, ás onze e trinta e sete, do dia 6 de julho. E o que dizia o despacho? era o texto do documento achado em Paris n’uma caixa de tabaco, documento que revelava o que havia succedido aos dois personagens por quem a União ia tomar lucto. Portanto, o auctor do rapto era Robur, o engenheiro vindo expressamente a Philadelphia para esmagar no ovo a theoria dos balonistas! Era elle que commandava a aeronave _Albatrós_. Era elle que, para exercer represalias, tinha arrebatado Uncle Prudent, Phil Evans e para mais o Fricollin. E essas personagens deviamos consideral-as para sempre perdidas, a não ser que, por um meio qualquer, construindo um engenho capaz de luctar com o poderoso apparelho, os seus amigos terrestres não conseguissem reconduzil-o a terra. Que emoção! que pasmo! O telegramma parisiense tinha sido dirigido ao Weldon-Institute. Os membros do club tiveram conhecimento d’elle immediatamente. Dez minutos depois, toda a Philadelphia recebia a noticia pelos seus telephonios, e depois, em menos de uma hora, toda a America, porque electricamente essa noticia se tinha espalhado pelos innumeros fios do novo continente. Não queriam acreditar n’isso, e nada havia comtudo mais certo. Devia ser uma mystificação de mau gôsto, diziam outros! Como é que esse rapto se podia ter realisado em Philadelphia, e tão secretamente? Como é que esse _Albatrós_ tinha pousado em Fairmont-Park, sem que a sua apparição fôsse notada nos horisontes do Estado de Pensylvania? Muito bem, eram estes os argumentos. Os incredulos tinham ainda o direito de duvidar. Mas esse direito, já não o tinham oito dias depois de ter chegado o telegramma. No dia 13 de julho, o vapor francez _Normandia_ ancorava nas aguas de Hudson, e trazia a famosa caixa de rapé. O caminho de ferro de Nova-York expediu-a para Philadelphia pela grande velocidade. Era de facto a caixa de rapé do presidente do Weldon-Institute. Jem Cip não teria feito mal se tomasse n’esse dia um alimento substancial, porque esteve para cahir desmaiado, quando reconheceu a caixa. Quantas vezes elle tomára n’ella a sua pitada amigavel! E miss Doll e miss Matt reconheceram tambem a caixa, para a qual tinham olhado ás vezes com esperança de metter n’ella um dia os seus magros dedos de solteiras. Depois foi o pae d’ellas, foi William T. Forbes, Truk Milnor, Bat T. Fyn, e muitos outros do Weldon-Institute. Cem vezes elles a haviam visto abrir-se nas mãos do seu venerando presidente. Emfim, teve por si o testemunho de todos os amigos que Uncle Prudent contava n’aquella boa cidade de Philadelphia, cujo nome indica,—não é de mais repetil-o,—que os seus habitantes se amam como irmãos. De modo que não era permittido conservar a sombra de uma duvida a esse respeito. Não só a caixa de tabaco do presidente, mas a lettra, que vinha sobre o documento, não permittiam aos incredulos abanar a cabeça. Começaram então as lamentações, mãos desesperadas se levantaram ao céo. Uncle Prudent e o seu collega, transportados n’um apparelho volante, sem que se pudesse sequer entrevêr um meio de os salvar! A Companhia do Niagára Falls, de que Uncle Prudent era o maior accionista, teve de suspender os seus negocios. A _Walton-Watch Company_, procurou liquidar a sua officina de relogios, agora que perdera o seu director, Phil Evans. Sim! foi um lucto geral e a palavra lucto não é exaggerada, porque, a não ser alguns cerebros esquentados, como se encontram mesmo nos Estados Unidos, ninguem esperava já tornar a vêr os dois respeitaveis cidadãos. Comtudo, depois da sua passagem por sobre Paris, não se ouvia falar senão no _Albatrós_. Algumas horas mais tarde, fôra visto por sobre Roma, e disse. Não era isso para admirar, dada a velocidade com que a aeronave tinha atravessado a Europa de norte a sul, e o Mediterraneo de oéste a léste. Graças áquella velocidade, nenhum oculo a pudera alcançar, em qualquer ponto da trajectoria. Em vão todos os observatorios puzeram a postos todo o seu pessoal, dia e noite; a machina de Robur tinha ido ou tão longe ou tão alto, na Icaria, como elle dizia, que não havia esperança de a encontrar. Convem accrescentar que, apesar da sua rapidez ser mais moderada por sobre o littoral da Africa, como o documento não era ainda conhecido, não pensaram em procurar a aeronave nas alturas do céo argelino. Evidentemente, foi vista por cima de Tombuctú; mas o observatorio d’aquella cidade celebre,—se é que ha lá um,—não tinha ainda tempo de enviar para a Europa o resultado das suas observações. Quanto ao rei do Dahomey, preferiria mandar cortar a cabeça a vinte mil subditos seus, a confessar que tinha sido levado de vencida na lucta com um apparelho aereo. Questão de amor proprio. Mais além foi o Atlantico que o engenheiro Robur atravessou, foi a Terra de Fogo que elle alcançou, e depois o cabo Horn. Foram as terras austraes e o immenso dominio do polo, que transpoz um pouco contra a vontade. Ora d’aquellas regiões antarcticas nenhuma noticia havia a esperar. Passou-se julho, e nenhum olhar humano podia vangloriar-se de haver entrevisto sequer a aeronave. Passou-se agosto, e a incerteza com respeito aos prisioneiros de Robur foi completa. Era caso para perguntar se o engenheiro, a exemplo de Icaro, o mais velho mechanico de que reza a historia, não fôra victima da sua temeridade. Finalmente, os vinte e sete dias de setembro passaram-se sem resultado. É bem certo que a tudo a gente se acostuma n’este mundo. É da humana natureza esquecer as dôres que se afastam. Esquece-se porque é necessario esquecer. Mas d’esta vez, é justo dizel-o em sua honra, o publico terrestre susteve-se n’aquelle pendor. Não! não se tornou indifferente á sorte de dois brancos e do preto, arrebatados como o propheta Elias, mas cujo regresso á terra a Biblia não tinha promettido. E isto foi mais para sentir em Philadelphia que em qualquer outro logar. Juntavam-se tambem alguns receios pessoaes. Como represalia, tinha Robur arrancado Uncle Prudent e Phil Evans ao seu paiz natal. Decerto que estava bem vingado, embora contra todo o direito. Mas bastava isso para a sua vingança? Não a quereria elle exercer ainda sobre alguns dos collegas do presidente e do secretario do Weldon-Institute? E quem se podia julgar ao abrigo dos ataques d’esse omnipotente senhor das regiões aereas? Eis que no dia 28 de setembro correu na cidade uma noticia. Uncle Prudent e Phil Evans haviam apparecido, de novo, n’essa tarde, no domicilio particular do presidente do Weldon-Institute. E o mais extraordinario é que a noticia era verdadeira, embora os espiritos sensatos não quizessem acreditar n’ella. Comtudo foi preciso convencerem-se pela evidencia. Eram de facto os dois que haviam desapparecido, elles em pessoa, e não a sua sombra ... Até o proprio Fricollin estava de volta. Os membros do club, depois os seus amigos, e depois a multidão, foram para defronte da casa de Uncle Prudent. Acclamaram os dois collegas, fizeram-os passar de mão para mão, no meio de hurrahs e de hips! Lá estava Jem Cip, que abandonára o seu almoço,—um prato de alfaces cozidas,—depois William T. Forbes e suas duas filhas, miss Doll e miss Mat. E n’esse dia Uncle Prudent poderia esposal-as as duas, se fôsse mormão; mas não o era, e não tinha tendencia alguma para o vir a ser. E estava tambem Truk Milnor, Bat T. Fyn, finalmente todos os membros do club. E ainda hoje perguntam como é que Uncle Prudent e Phil Evans poderiam sahir vivos dos milhares de braços por que tiveram de passar, ao atravessar a cidade toda. N’essa mesma tarde devia o Weldon-Institute ter a sua sessão hebdomadaria. Esperava-se que os dois collegas tomassem assento na presidencia. Ora, como elles nada haviam dito das suas aventuras,—não lhes teriam dado tempo para falar?—esperava-se tambem que contassem por miudos as suas impressões de viagem. Com effeito, por qualquer motivo que fôsse, os dois permaneceram mudos. Mudo tambem o creado Fricollin, que os seus congeneres por pouco não estrangularam no seu delirio. Mas o que os dois collegas não haviam dito, ou não tinham querido dizer, é o seguinte: Escusado é voltar ao que se sabe já da noite de 27 a 28 de julho, da audaciosa evasão do presidente e do secretario do Weldon-Institute, da sua impressão tão viva quando pisaram os rochedos da ilha Chatam, o tiro dado sobre Phil Evans, o cabo cortado, e o _Albatrós_, privado então dos seus propulsores, arrastado ao largo pelo vento do sudoéste, emquanto se elevava a uma grande altura. Os seus pharoes accesos haviam permittido seguil-o durante algum tempo. Depois não tardára a desapparecer. Os fugitivos nada tinham a receiar. Como é que Robur podia voltar á ilha, se os seus helices deviam ainda estar impossibilitados de funccionar durante tres ou quatro horas? D’aqui lá, o _Albatrós_ destruido pela explosão, não seria mais do que um destroço fluctuando á tona de agua, e os que elle levava, cadaveres despedaçados que o Oceano não restituiria. O acto de vingança teria sido realisado com todo o seu horror. Uncle Prudent e Phil Evans, considerando-se como em estado de legitima defesa, não haviam tido sombra de remorso. Phil Evans não fôra senão ligeiramente ferido pela bala lançada pelo _Albatrós_. De modo que os tres trataram de alcançar o littoral, na esperança de encontrar alguns indigenas. Essa esperança não foi baldada. Uns cincoenta indigenas, vivendo de pesca, habitavam a costa occidental de Chatam. Haviam visto a aeronave descer sobre a ilha. Fizeram aos fugitivos o acolhimento devido a seres sobrenaturaes. Adoraram-os, ou pouco menos. Puzeram-os na casa mais confortavel. Jámais Fricollin tornaria a encontrar occasião egual para passar pelo Deus dos pretos. Como elles haviam previsto, Uncle Prudent e Phil Evans não viram voltar a aeronave. Deviam concluir d’ahi que a catastrophe se tinha produzido n’alguma zona alta da atmosphera. Não mais se ouviria falar do engenheiro Robur, nem da prodigiosa machina que os seus companheiros tripulavam com elle. Agora era necessario esperar occasião de voltar á America. Ora a ilha Chatam é pouco frequentada de navegantes. Todo o mez de agosto se passou assim, e os fugitivos podiam ficar pensando se não tinham trocado uma prisão por outra, com a qual, apesar de tudo, Fricollin se entendia melhor que com a sua prisão aerea. Afinal, a 3 de setembro, veiu um navio fazer aguada na ilha Chatam. Como se devem lembrar, no momento de ser arrebatado de Philadelphia, Uncle Prudent levava comsigo alguns milhares de dollars em papel, mais do que era necessario para voltar á America. Depois de haverem agradecido aos seus adoradores, que lhes não regateavam as mais respeitosas demonstrações, Uncle Prudent, Phil Evans e Fricollin embarcaram para Aukland. Nada contaram da sua historia e, em dois dias, chegavam á capital da Nova Zelandia. Alli, um vapor do Pacifico os recebeu como passageiros, e no dia 20 de setembro, depois de uma travessia das mais felizes, os que sobreviviam do _Albatrós_ desembarcaram em S. Francisco. Não haviam dito quem eram, nem d’onde vinham; mas como haviam pago a bom preço o seu transporte, não seria um capitão americano que lhes pedisse mais do que isso. Em S. Francisco, Uncle Prudent, o seu collega e o creado Fricollin tomaram o caminho de ferro do Pacifico. No dia 27 chegaram a Philadelphia. Eis a descripção resumida do que se passára depois da evasão dos fugitivos e da sua ida para a ilha Chatam. Eis como, n’essa mesma noite, o presidente e o secretario puderam tomar logar na mesa da presidencia do Weldon-Institute, no meio de uma affluencia extraordinaria. Comtudo, nem um, nem outro tinham nunca estado tão tranquillos. Não se diria, ao vêl-os, que alguma cousa de anormal se tivesse passado depois da memoravel sessão de 12 de junho. Tres mezes e meio que pareciam não contar na sua existencia! Depois das primeiras salvas de hurrahs, que os dois receberam, sem que o seu rosto reflectisse a menor emoção, Uncle Prudent poz o chapéo na cabeça e tomou a palavra. —Respeitaveis cidadãos, disse elle, está aberta a sessão. Applausos freneticos e bem legitimos! Porque, se não era extraordinario que aquella sessão se abrisse, era-o o facto de ser aberta por Uncle Prudent, acompanhado de Phil Evans. O presidente deixou o enthusiasmo expandir-se em clamores e palmas. Depois continuou: —Na nossa ultima sessão, meus senhores, a discussão fôra muito viva (ouçam, ouçam!) entre os partidarios do helice na frente e do helice atraz, para o nosso balão, o _Go a head_. (Demonstrações de surpreza.) Ora, encontrámos meio de chegar a um accôrdo entre os _afrentistas_ e os _atrazistas_, e esse meio é o seguinte:—é pôr dois helices, um em cada extremo da barquinha. (Silencio de completa estupefacção.) E mais nada. Era tudo! Do rapto do presidente e do secretario do Weldon-Institute, nem palavra! Nem palavra do _Albatrós_, nem do engenheiro Robur! Nem palavra da viagem! Nem palavra finalmente do que viera a ser da aeronave: se corria ainda através do espaço, se se podiam receiar novas represalias contra os membros do club! Não faltava a todos esses balonistas o desejo de interrogarem Uncle Prudent e Phil Evans; mas viram-os tão serios, tão abotoados, que pareceu conveniente respeitar a sua attitude. Quando julgassem necessario falar, falariam e teriam muita honra em os ouvir. No fim de contas, havia talvez n’aquelle mysterio algum segredo que não podia ainda ser divulgado. E então Uncle Prudent, tomando de novo a palavra no meio do silencio, até então desconhecido nas sessões do Weldon-Institute: —Meus senhores, disse elle, agora não falta senão concluir o aerostato _Go a head_, ao qual pertence fazer a conquista do ar. Está levantada a sessão. CAPITULO XVIII ONDE TERMINA ESTA VERIDICA HISTORIA DO “ALBATRÓS„ SEM SE TERMINAR No dia 29 de abril do anno seguinte, sete mezes depois do regresso imprevisto de Uncle Prudent e de Phil Evans, toda a Philadelphia estava em movimento. A politica não entrava para cousa alguma d’esta vez. Não se tratava nem de eleições nem de meetings. O aerostato _Go a head_, concluido a expensas do Weldon-Institute, ia afinal tomar posse do seu elemento natural. Tinha por aeronauta o celebre Harry W. Tinder, cujo nome foi pronunciado no principio d’esta narrativa,—e mais um ajudante. Por passageiros, o presidente e o secretario do Weldon-Institute. Não mereciam elles uma tal honra? Não lhes competia vir protestar em pessoa contra todo o apparelho que se baseasse no principio do “Mais pesado que o ar„? Comtudo, depois de sete mezes, elles não falavam ainda das suas aventuras. O proprio Fricollin, por mais vontade que tivesse, nada dissera do engenheiro Robur, nem da sua prodigiosa machina. Evidentemente, balonistas intransigentes como eram, Uncle Prudent e Phil Evans não queriam ouvir falar da aeronave ou de qualquer outro apparelho volante. Emquanto o balão _Go a head_ não tivesse o primeiro logar entre os apparelhos de locomoção aerea, nada queriam admittir das invenções devidas aos aviadores. Acreditavam ainda, e queriam continuar a acreditar, que o verdadeiro vehiculo atmospherico era o aerostato e que só a elle pertencia o futuro. Além de que, esse de quem haviam tirado uma tão grande vingança, na sua opinião, tão justa,—já não existia. Nenhum dos que o acompanhavam lhe podia sobreviver. O segredo do _Albatrós_ estava agora sepultado nas profundezas do Pacifico. Quanto a admittir que o engenheiro Robur tivesse um retiro, uma ilha onde descançar, no meio do vasto oceano, não passava de uma hypothese. Em todo o caso, os dois collegas reservavam-se para decidir mais tarde se não conviria fazer algumas pesquizas n’esse sentido. Iam finalmente proceder a essa grande experiencia que o Weldon-Institute preparava de tão longa data e com tantos cuidados. O _Go a head_ era o typo mais perfeito do que havia sido inventado até áquella épocha na arte aerostatica,—o que um _Inflexivel_ ou um _Formidavel_ é na arte naval. O _Go a head_ possuia todas as qualidades que um aerostato devia ter. O seu volume permittia-lhe subir até as ultimas alturas que um balão pode attingir; a sua impenetrabilidade permittia-lhe o poder manter-se indefinidamente na atmosphera; a sua solidez o arrostar com toda a dilatação de gaz, como tambem com as violencias da chuva e do vento; a sua capacidade, o dispôr de uma fôrça ascencional assaz consideravel para aguentar, com todos os seus accessorios, um machinismo electrico que devia communicar aos seus propulsores um poder de locomoção superior a tudo o que até então se tinha obtido. O _Go a head_ tinha uma forma alongada que facilitava o seu deslocamento segundo a horisontal. A sua barquinha, plataforma pouco mais ou menos semelhante á do balão dos capitães Krebs e Renard, conduzia todos os utensilios necessarios aos aeronautas, instrumentos de physica, cabos, ancoras, _guide ropes_, etc., fora apparelhos, pilhas e accumuladores que constituiam o seu poder mechanico. Essa barquinha estava munida, na frente, de um helice e de um leme. Mas, provavelmente, a fôrça das machinas do _Go a head_ devia ser inferior á dos apparelhos do _Albatrós_. O _Go a head_ tinha sido transportado, depois de cheio de ar, para a clareira do Fairmont Park, no proprio sitio onde a aeronave tinha pousado durante algumas horas. Inutil é dizer que o seu poder ascensional lhe era fornecido pelo mais leve dos corpos gazosos. O gaz de illuminação não possue senão uma fôrça de setecentas grammas, proximamente, por metro cubico,—o que não dá senão uma insufficiente quebra de equilibrio com o ar ambiente. Mas o hydrogenio possue uma fôrça de ascensão que pode ser calculada em mil e cem grammas. Esse hydrogenio puro, preparado segundo os processos e apparelhos especiaes do celebre Henry Giffard, enchia o enorme balão. Portanto, já que a capacidade do _Go a head_ media quarenta mil metros cubicos, a potencia ascensional do seu gaz era quarenta mil multiplicados por mil e cem, isto é, quarenta e quatro mil kilos. N’essa manhã de 29 de abril tudo estava prestes. Desde as onze horas, o enorme aerostato balouçava a alguns pés do solo, prestes a subir ao ar. Um tempo admiravel, como que expressamente feito para esta importante experiencia. Em summa, talvez mais valesse que a brisa fôsse mais forte, o que teria tornado a experiencia mais concludente. Com effeito, nunca se poz em duvida que um balão possa ser dirigido n’uma atmosphera calma; porém no meio de uma atmosphera em movimento, é outra cousa e é n’essas condições que as experiencias devem ser tentadas. Emfim, não havia vento, nem apparencia de que se pudesse levantar. N’esse dia, por um caso extraordinario, a America do Norte não se dispunha a enviar á Europa occidental uma das boas tempestades que traz de reserva, e nunca se poderia ter escolhido um dia mais conveniente para uma experiencia aeronautica. Será preciso falar na immensa multidão reunida no Fairmont-Park, nos trens numerosos que tinham trazido para a capital da Pensilvania os curiosos de todos os Estados circumvizinhos? na suspensão da vida industrial e commercial que permittia a todos virem assistir ao espectaculo: patrões, empregados, operarios, homens, mulheres, velhas, creanças, membros do Congresso, representantes do exercito, magistrados, reporters, indigenas brancos e negros, reunidos na vasta clareira? Será preciso descrever as emoções ruidosas da populaça, os movimentos inexplicaveis, os impetos subitaneos que tornavam a massa popular palpitante e tempestuosa? Será preciso enumerar os hips! hips! hips! que rebentaram de toda a parte, como detonações de fogo de artificio, quando Uncle Prudent e Phil Evans appareceram na plataforma, por baixo do aerostato, embandeirado das côres americanas? Será preciso confessar finalmente que o maior numero de curiosos não tinha talvez vindo para vêr o _Go a head_, mas unicamente para contemplar esses dois homens extraordinarios que o Antigo Mundo enviava ao Novo? Dois? e porque não tres? É que Fricollin entendia que a campanha do _Albatrós_ bastava para a sua celebridade. Havia declinado a honra de acompanhar seu amo. Não teve portanto partilha nas acclamações freneticas que acolheram o presidente e o secretario do Weldon-Institute. Escusado é dizer que, de todos os membros da illustre assembléa, nenhum faltou nos logares reservados, para dentro das cordas e postes que marcavam o recinto no meio da clareira. Lá estavam Truk Milnor, Bat T. Fyn, William T. Forbes, trazendo pelo braço as suas filhas, miss Doll e miss Mat. Tinham todos vindo affirmar pela sua presença que nada podia jámais separar os partidarios do “Mais ligeiro que o ar„. O _Go a head_, seguro pelas suas cordas de rêde, subiu uns quinze metros acima da clareira. D’esse modo a plataforma dominava a multidão tão profundamente commovida. Uncle Prudent e Phil Evans, de pé, na frente, puzeram então a mão esquerda sobre o peito,—o que significava que o seu coração estava com todos os que se viam presentes. Depois, extenderam a mão direita para o zenith,—o que significava que o maior dos balões conhecidos até esse dia ia finalmente tomar posse dos dominios supra-terrestres. Cem mil mãos se levaram então a cem mil peitos, e cem mil outras se ergueram ao céo. Um terceiro tiro de peça se ouviu ás onze e trinta. —Largue tudo! gritou Uncle Prudent, proferindo a formula sacramental. E o _Go a head_ subiu, “majestosamente„, adverbio consagrado pelo uso nas descripções aerostaticas. Na realidade, era um espectaculo soberbo! Dir-se-hia um navio que acaba de deixar o seu estaleiro de construcção. E não era um navio, lançado no mar aereo? O _Go a head_ subiu seguindo uma rigorosa vertical, prova da tranquillidade absoluta da atmosphera, e parou a uma altura de duzentos e cincoenta metros. Alli começaram as manobras de deslocamento horisontal. O _Go a head_, impellido pelos seus dois helices, foi em direcção ao sol com uma velocidade de uns dez metros por segundo. Era a velocidade de uma baleia, livre no meio das camadas liquidas. E não é fora de proposito comparal-o com o gigante dos mares boreaes, porque tinha tambem a forma d’esse enorme cetaceo. Uma nova salva de hurrahs subiu até os habeis aeronautas. Depois, sob a acção do seu leme, o _Go a head_ entregou-se a todas as evoluções circulares, obliquas, rectilineas, que a mão do timoneiro lhe imprimia. Girou n’um circulo restricto, avançou, recuou, de maneira a convencer os mais refractarios da direcção dos balões,—se houve algum!... Se os houvesse tel-os-hiam cortado em pedaços. Mas porque havia de o vento faltar a essa magnifica experiencia? Era para lamentar. Teriam visto decerto, o _Go a head_ executar, sem uma hesitação, todos os movimentos, quer obliquando como um navio de véla, quer cortando as correntes, como um navio a vapor. N’esse momento o aerostato subiu no espaço alguns centos de metros. Comprehenderam a manobra. Uncle Prudent e os seus companheiros iam tentar procurar uma corrente qualquer nas mais altas zonas, afim de completar a experiencia. Além d’isso, um systema de balõesinhos interiores, analogos ás bexigas natatorias dos peixes e onde se podia introduzir uma certa quantidade de ar, por meio de bombas, permittiam-lhe deslocar-se verticalmente. Sem deitar fora o lastro para subir, ou perder o gaz para descer, estava nos casos de se elevar ou abaixar-se na atmosphera, á vontade do aeronauta. Comtudo elle fôra munido de uma valvula no seu hemispherio superior, para o caso de ser obrigado a uma rapida descida. Era, em summa, a applicação de systemas já conhecidos, mas levados a um extremo grau de perfeição. O _Go a head_ subiu, pois, seguindo uma linha vertical. As suas enormes dimensões diminuiram gradualmente á vista, como por um effeito de optica. Não deixava isto de ser curioso para os espectadores, cujas vertebras do pescoço quasi se deslocavam, de olhar para o ar. A enorme baleia tornára-se a pouco e pouco um golphinho, emquanto não fôsse reduzida ao estado de um simples peixinho. O movimento ascensional não cessava, e o _Go a head_ attingia uma altitude de quatro mil metros. Mas n’um céo tão puro, sem uma sombra de nuvem, esteve constantemente visivel. Comtudo elle mantinha-se por sobre a clareira, como se estivesse por fios divergentes. Tivesse uma enorme campanula aprisionado a atmosphera e não teria estado mais immovel. Nenhuma aragem, nem áquella altura nem a outra. O aerostato evolucionava sem encontrar resistencia alguma, diminuindo pela distancia, como se o estivessem a vêr por um lentesinha. De repente, um grito se ergueu da turba, um grito seguido de cem mil outros. Todos os braços se extenderam para um ponto do horisonte. Esse ponto era para o noroéste. Alli, no azul profundo, appareceu um corpo movel, que se approximava e crescia. Era uma ave, batendo as azas nas altas camadas do ar? Seria um bolide, cuja trajectoria cortava obliquamente a atmosphera? Em todo o caso, era dotado de uma velocidade excessiva, e não tardaria a passar por cima da multidão. Uma suspeita, que se communica electricamente a todos os cerebros, corre por toda a clareira. Mas parece que o _Go a head_ viu aquelle extranho objecto. Decididamente, sentiu que um perigo o ameaçava, porque a sua velocidade augmentou, e dirigiu-se para léste. Sim! a multidão comprehendêra! Um nome, foi repetido por cem mil bôcas: —O _Albatrós_! o _Albatrós_! É o _Albatrós_ com effeito! É Robur que reapparece nas alturas do céo! É elle que, semelhante a uma gigantesca ave de rapina, ia cahir sobre o _Go a head_! E no entretanto, nove mezes antes, a aeronave, espedaçada pela explosão, com os helices partidos, a sua plataforma em duas, fôra anniquilada. Sem o sangue frio prodigioso do engenheiro, que modificou o sentido giratorio do propulsor da frente e o transformou n’um helice suspensivo, todo o pessoal do _Albatrós_ teria morrido asphyxiado pela rapidez da quéda. Mas, se tinham podido escapar á asphyxia, como é que elle e os seus se não tinham afogado nas aguas do Pacifico? É que os destroços da sua plataforma, as azas dos propulsores, os tabiques dos beliches, tudo que ficára do _Albatrós_, sobrenadava. Se a ave ferida cahira na agua, as suas azas sustinham-n’a ainda sobre as ondas. Durante algumas horas, Robur e os seus homens ficaram primeiramente sobre esses destroços, depois, no barco de cautchuc que haviam encontrado á superficie do Oceano. A Providencia, para os que acreditam na intervenção divina nas cousas humanas,—o acaso, para os que teem a fraqueza de não acreditar na Providencia,—veiu em auxilio dos naufragos. Deu com elles um navio, algumas horas depois de romper o sol. Esse navio lançou uma embarcação ao mar. Recolheu não só Robur e os seus companheiros, mas tambem os restos fluctuantes da aeronave. O engenheiro contentou-se com dizer que o seu barco sossobrára n’um abalroamento, e o seu incognito foi respeitado. O navio era inglez, o _Two Friends_, de Liverpool. Dirigia-se para Melbourno, onde chegou alguns dias depois. Estavam na Australia, mas ainda longe da ilha X, á qual era preciso voltar o mais depressa possivel. Nos destroços dos compartimentos de traz o engenheiro tinha podido encontrar uma somma assaz consideravel, que lhe permittia attender a todas as necessidades dos seus companheiros, sem pedir nada a ninguem. Pouco tempo depois da sua chegada a Melbourno, fez acquisição de uma pequena golêta, de umas cem tonneladas, e foi assim que Robur, que era pratico no mar, voltou á ilha X. E então não teve senão uma idéa fixa, uma obcecação:—o vingar-se. Mas para se vingar, era preciso fazer um segundo _Albatrós_. Facil tarefa, para quem já havia construido o primeiro. Utilisou-se o que se poude da antiga aeronave, os seus propulsores, entre outras cousas que tinham sido embarcadas com todos os destroços na golêta. Refizeram o mechanismo com pilhas novas e novos accumuladores. Em summa, em menos de oito mezes, todo o trabalho estava concluido, e um novo _Albatrós_, identico ao que a explosão destruíra, egualmente poderoso e egualmente rapido, esteve prompto a subir aos ares. É facil de comprehender, sem que seja necessario insistir, que elle levava a mesma equipagem, e que essa equipagem estava furiosa contra todo o Weldon-Institute em geral, e em particular contra Uncle Prudent e Phil Evans. O _Albatrós_ deixou a ilha X logo nos primeiros dias de abril. Durante essa travessia aerea, não quiz que a sua passagem pudesse ser notada em ponto algum da terra. De modo que viajou quasi sempre entre as nuvens. Chegado á altura da America do Norte, a uma porção deserta do Far-West, pousou em terra. Alli o engenheiro, guardando o mais profundo incognito, soube um facto que lhe não podia deixar de dar o maior prazer:—é que o Weldon-Institute estava prestes a começar as suas experiencias, e que o _Go a head_, levando dentro Uncle Prudent e Phil Evans, ia partir de Philadelphia no dia 29 de abril. Que excellente occasião para satisfazer uma vingança que estava no coração de Robur e de todos os seus! Vingança terrivel, a que não podia escapar o _Go a head_! Vingança publica, que provaria ao mesmo tempo a superioridade da aeronave sobre todos os aerostatos e outros apparelhos d’aquelle genero! E ahi está porque n’esse dia, como um abutre que se precipita do alto, a aeronave appareceu por sobre Fairmont-Park. Sim! era o _Albatrós_, facil de reconhecer, mesmo de todos aquelles que nunca o haviam visto. O _Go a head_ continuava a fugir. Mas comprehendeu logo que não podia escapar nunca por uma fuga horisontal. Assim, procurou salvar-se por uma fuga vertical, não approximando-se do solo, porque a aeronave lhe impediria immediatamente o caminho, mas subindo no ar, indo a uma zona onde não podia talvez ser alcançado. Era sobremaneira audacioso, porém ao mesmo tempo muito logico. Comtudo o _Albatrós_ começava a subir com elle. Bem mais pequeno que o _Go a head_, era como o espadarte em perseguição da baleia que pretende atravessar com o seu dardo, era o torpedeiro correndo sobre o couraçado que vae fazer saltar n’um prompto. Viram-n’o perfeitamente, e com que afflicção! Em poucos instantes a aeronave teria attingido cinco mil metros de altura. O _Albatrós_ tinha-o seguido no seu movimento ascensional. Evolucionava sobre os flancos. Cingia-o n’um circulo cujo raio diminuia a cada volta. Podia anniquilal-o de um pulo, rompendo o seu fragil envolucro. Então Uncle Prudent e os seus companheiros seriam despedaçados n’uma formidavel quéda. O publico, mudo de horror, anhelante, estava tomado d’essa especie de espanto que opprime o peito, e nos prende as pernas, quando vemos cahir alguem de uma grande altura. Preparava-se um combate aereo, combate em que não se offereciam sequer as probabilidades de salvação que ha n’um combate naval,—o primeiro d’esse genero, mas que não seria o ultimo, decerto, visto que o progresso é uma das leis do mundo. E se o _Go a head_ usava no seu circulo equatorial as côres americanas, o _Albatrós_ tinha arvorado a sua bandeira, a bandeira estrellada, com o sol de ouro, de Robur—o Conquistador. O _Go a head_ quiz então tentar distanciar-se do seu inimigo, subindo ainda mais alto. Desembaraçou-se do lastro que tinha de reserva. Deu um novo salto de mil metros. Não era então mais que um ponto no espaço. O _Albatrós_, que continuava a seguil-o, imprimindo aos seus helices o seu maximo de rotação, tornára-se invisivel. De subito, um grito de terror se ergueu do solo. O _Go a head_ engrossava a olhos vistos, emquanto que a aeronave tornava a apparecer, e baixando com elle. D’essa vez era quéda certa. O gaz, muito dilatado nas altas zonas, tinha rebentado o envolucro e, meio esvasiado, o balão cahia rapidamente. Mas a aeronave, moderando os seus helices suspensivos, baixava com uma velocidade egual. Alcançou o _Go a head_ quando este não estava senão a uns duzentos metros do chão, e approximou-se d’elle, bordo com bordo. Quereria Robur dar cabo d’elle? Não! Queria soccorrer, queria salvar a sua equipagem! E foi tal a habilidade da sua manobra, que o aeronauta e o seu ajudante puderam facilmente saltar para a plataforma da aeronave. Iriam Uncle Prudent e Phil Evans recusar os auxilios de Robur, recusarem-se a ser salvos por elle? Eram bem capazes d’isso! Mas a gente do engenheiro lançou-se sobre elles e, á fôrça, passaram-n’os do _Go a head_ para o _Albatrós_. Depois a aeronave desembaraçou-se e ficou estacionaria, emquanto que o balão, completamente vasio de gaz, cahia sobre as arvores da clareira, onde ficou suspenso como um farrapo gigantesco. Um horroroso silencio reinava em terra. Parecia que a vida ficára suspensa em todos os peitos. Muitos olhos se tinham fechado para não verem a suprema catastrophe. Uncle Prudent e Phil Evans tinham-se porém tornado prisioneiros do engenheiro Robur. Já que os havia apanhado, iria elle arrastal-os de novo no espaço, em sitio onde não fôsse possivel seguil-o? Podia ser. Comtudo, em vez de tornar a subir aos ares, o _Albatrós_ continuava a baixar ao chão. Quereria elle vir pousar em terra? Assim o pensaram, e a multidão afastou-se para lhe dar logar no meio da clareira. A emoção tinha sido levada ao maximo da sua intensidade. O _Albatrós_ parou a dois metros da terra. Então, no meio de um profundo silencio, fez-se ouvir a voz do engenheiro. —Cidadãos dos Estados Unidos, disse elle, o presidente e o secretario do Weldon-Institute estão de novo em meu poder. Conservando-os commigo eu não faria mais do que usar de um direito de represalia. Mas, pela paixão incendida na sua alma pelo exito do _Albatrós_, comprehendi que o seu estado de espirito não estava ainda preparado para a importante revolução que a conquista do ar deve produzir um dia. Uncle Prudent e Phil Evans, sois livres! O presidente e o secretario do Weldon-Institute, o aeronauta e o seu ajudante, não tiveram mais que saltar, para estarem em terra. O _Albatrós_ subiu de novo a uns dez metros por sobre a multidão. Depois, Robur, continuando: —Cidadãos dos Estados Unidos, disse elle, a minha experiencia está feita; mas a minha opinião é que nada se deve realisar prematuramente:—nem mesmo o progresso. A sciencia não deve ultrapassar os costumes. O que lhe convem são evoluções e não revoluções. N’uma palavra, é preciso que não cheguemos senão á nossa hora propria. Eu chegaria hoje cedo de mais para ter razão no meio de interesses divididos e contradictorios. Portanto parto, e levo commigo o meu segredo. Mas não ficará perdido para a humanidade; pertencer-lhe-ha no dia em que fôr assaz instruida para tirar d’elle partido e assaz prudente para não abusar nunca d’elle. Adeus, cidadãos dos Estados Unidos, adeus! E o _Albatrós_, ferindo o ar com os seus setenta e quatro helices, impellidos pelos seus dois propulsores levados até o extremo, desappareceu na direcção de léste, no meio de uma tempestade de hurrahs, que d’essa vez eram de admiração. Os dois collegas, profundamente humilhados, como todo o Weldon-Institute na pessoa d’elles, fizeram a unica cousa que tinham a fazer:—voltaram para suas casas, emquanto que a multidão, por um reviramento subito, estava prestes a saudal-os com os mais vivos sarcasmos, justos n’aquella occasião! * * * * * E agora, sempre esta pergunta:—Quem é este Robur? Virão um dia a sabel-o? Sabe-se hoje. Robur é a sciencia futura, a de ámanhã talvez. É o peculio certo do futuro. Quanto ao _Albatrós_, continuará a viajar ainda através da atmosphera terrestre, no meio d’esse dominio que ninguem lhe pode roubar? Não é permittido duvidar. Robur, o Conquistador, tornará a apparecer um dia, como annunciou? Sim! Virá denunciar o segredo de uma invenção que pode modificar as condições sociaes e politicas do mundo. Quanto ao futuro da locomoção aerea, pertence á aeronave, e não ao aerostato. É aos _Albatrós_ que está definitivamente reservada a conquista do ar! FIM NOTAS [1] Quasi quatorze vezes a superficie do Campo de Marte, em Paris. [2] A superficie da terra é de 136,051,371 kilometros quadrados. INDEX DOS CAPITULOS Capitulos Pag. I De como a gente sabia e a gente ignorante se via em eguaes embaraços 5 II De como os membros do Weldon-Institute disputam entre si, sem chegarem a um accordo 15 III De como um novo personagem não teve necessidade de ser apresentado, pois se apresentou elle proprio 25 IV De como a proposito do creado Fricollin o auctor procura rehabilitar a lua 35 V De como foi concedida uma suspensão de hostilidades entre o presidente e o secretario do Weldon-Institute 43 VI Aquillo por que não sería mau que passassem os engenheiros, os mechanicos e outros sabios 53 VII De como Uncle Prudent e Phil Evans se recusam ainda a deixar-se convencer 63 VIII Onde se verá que Robur se resolve a responder á importante pergunta que lhe era feita 73 IX De como o _Albatrós_ transpõe cerca de dez kilometros que terminam por um salto prodigioso 85 X Onde se verá como e porque o creado Fricollin foi posto a reboque 99 XI Onde a colera de Prudent cresce na razão do quadrado da velocidade 112 XII Do como o engenheiro Robur procede, como se quizesse concorrer para um premio Monthyon 120 XIII De como Uncle Prudent e Phil Evans atravessam o Oceano, sem enjoar 134 XIV De como o _Albatrós_ faz o que nunca poderia talvez ser feito 145 XV Onde se passam cousas que na realidade merecem ser contadas 160 XVI Onde o leitor ficará n’uma indecisão talvez lamentavel 171 XVII De como se volta dois mezes atraz e se salta para nove mezes mais tarde 178 XVIII Onde termina esta veridica historia do _Albatrós_ sem se terminar 191 NOVIDADE LITTERARIA JORGE EBERS EGYPTO TRADUCÇÃO PORTUGUEZA DE OLIVEIRA MARTINS EDIÇÃO MONUMENTAL Illustrada com 650 gravuras intercalladas no texto, frontispicios para cada volume habilmente aguarellados por Henrique Casanova, e 24 esplendidas aguarellas, cópia dos notaveis quadros do afamado pintor CARLOS WERNER CONDIÇÕES DA PUBLICAÇÃO A obra completa dividir se-ha approximadamente em 80 _fasciculos quinzenaes_, constando cada um de 2 folhas de 4 paginas e uma aguarella, ou 3 folhas de 4 paginas quando não haja estampa a distribuir. Preço de cada fasciculo 200 réis, em Lisboa e Porto, pagos no acto da entrega Nas demais terras do paiz, pagamento _adeantado_ ás series de dois, tres, ou mais fasciculos. As despezas de remessa são á custa da Companhia, e a distribuição de cada fasciculo é feita nos dias 5 e 20 de todos os mezes. _O rôsto e ante-rôsto de cada tomo, impressos a duas côres serão distribuidos gratuitamente_ Todas as pessoas que angariarem dez assignaturas realisaveis receberão um exemplar gratis. [Illustration] *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ROBUR, O CONQUISTADOR *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. 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