The Project Gutenberg eBook of As theocracias litterarias

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Title: As theocracias litterarias

Author: Teófilo Braga

Release date: April 29, 2008 [eBook #25240]
Most recently updated: January 3, 2021

Language: Portuguese

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THEOPHILO BRAGA

AS THEOCRACIAS
LITTERARIAS

LISBOA

TYPOGRAPHIA UNIVERSAL
RUA DOS CALAFATES, 110

1865

THEOPHILO BRAGA

AS THEOCRACIAS LITTERARIAS
RELANCE SOBRE O ESTADO ACTUAL
DA
LITTERATURA PORTUGUEZA

LISBOA

TYPOGRAPHIA UNIVERSAL
RUA DOS CALAFATES, 110

1865

THEOCRACIAS LITTERARIAS

RELANCE
SOBRE O ESTADO ACTUAL DA LITTERATURA PORTUGUEZA

Força-me a consciencia a erguer a voz:

Estamos n'uma terra em que a verdade para ser ouvida precisa trazer a fórma do escandalo. A não vir d'este modo é uma coisa inintelligivel, obscura. Tanto melhor para quem aspira a ser entendido sómente por aquelles que se pagam de sua obscuridade pela firmeza da consciencia, e integridade de caracter.

A grande individualidade, resultado dos progressos d'este seculo, vae tornando impossiveis todas as supremacias, tanto na religião, como no estado, como na arte. É para onde confluem todos os esforços, todas as luctas; é o mobil de acção na Europa moderna.

As realezas litterarias foram as primeiras que acabaram, porque se comprehendeu de prompto, que não era o modêlo academico, mas o sentimento puro, que nos havia elevar á perfeição, dar-nos a percepção immediata das fórmas que traduzem o bello na vida. Cada um, em vez de ir com os olhos nas pégadas do mestre, procurou desenvolver em si esse sentimento ingenito; é em vez de arrancarem curiosidades hybridas de sua phantasia, souberam descobrir como a eternidade se allia com as creações humanas. Passo dado pela evolução romantica.

Uma das phases mais brilhantes da vida de Goëthe, depois de se ter encarnado no Fausto e contemplado o ideal sereno do mundo antigo, as fórmas encantadoras de Helena, o typo supremo do bello; depois de ter representado as luctas e revoluções com que o christianismo abalou a alma humana, na sublime creação da Noiva de Coryntho, o vulto do pensador e poeta realisa em si a mesma perfeição plastica, sente que se transfigura, a fronte envolve-se em uma magestade olympica. É justamente n'este ponto que elle sente em si uma realeza; a edade avança, a purpura está quasi a cahir-lhe dos hombros, substituida pelo sudario. Então lança os olhos pela mocidade da Allemanha, á busca do eleito. Vem de toda a parte consultar o vidente sentado no marco miliario da vida; o que elle diz grava-se como uma sentença, é o vaticinio em que dá a apotheose ou a obscuridade. Apesar da intuição e sciencia do bello, que é nos seus resultados similhante ao sentimento da justiça, quantas vezes não foi o semideus da arte injusto nas suas apreciações? Novalis, a alma mystica da Allemanha, a melancholia das elevações intimas que caracterisa a nacionalidade de Tauler, Hans Sachs, Ruysbroek, não foi avaliado por Goëthe. O pagão não comprehendera os devaneios crepusculares, os anceios vagos de uma alma, que aspirara o perfume da rosa mystica do christianismo. Goëthe foi uma vez injusto na sua vida, quando despresou o pobre e poeta Novalis.

Que differença entre Goëthe e o sr. Castilho? a mesma que dá um zero por denominador. Comtudo, entre nós, como se vê pelas suas obras, ou talvez por esta infancia perpetua que lhe encontram os seus admiradores, que é essencialmente imitadora, procura tambem no ultimo quartel da vida acclamar-se o arbitro supremo da litteratura, e cobrir com os retalhos da sua purpura as chagas e aleijões dos aulicos, decretando-lhes a admiração publica, e impondo-os á posteridade. Cabia aqui, para todos, o bom dito de Voltaire a proposito da Epistola de J. B. Rousseau Á Posteridade. Se estas coisas fossem feitas por leviandade natural da senectude, ao menos tinhamos a certeza de que lá estavam as bemaventuranças que dariam por premio o reino do céo. O apparecimento de um livro é uma das melhores tertulias para o sr. Castilho; apparece logo como estes homens que vão a todos os enterros.

Esta phrase usual de republica das lettras significa mais do que se pensa; a intelligencia não reconhece magestades, nem hierarchias, vive da egualdade plena, e tanto, que é este o dom maravilhoso da razão, a uniformidade de processos para uma egualdade de resultados—a verdade. A Carta do sr. Anthero do Quental colloca na sua verdadeira altura o que significam estas insinuações perfidas contra a eschola de Coimbra[1], as attençoes equivocas, e a animação clandestina aos adeptos que lhe vão na pista apodando com insolencias e banalidades todo o impulso dado para sahirmos das superfetações mesquinhas a que entre nós se chama arte. A carta versa sobre o bom senso e o bom gosto, e é pela carencia d'estes dons que se adquire o principado da lyra.

Ao lerem-se as paginas d'esse protesto, que ha de vir a ser um capitulo da historia da litteratura contemporanea, sente-se vibrar em cada palavra um sentimento illimitado de justiça, como a sabem sentir os corações novos, ou os homens que teem soffrido, victimas da perversidade dos outros. Este mesmo sentimento de justiça, que é sempre a principal inspiração da poesia do sr. Anthero do Quental, traduzida na sua fórma mais austera do dever, dá-lhe um vigor logico á dicção; dotado das qualidades que fazem admiravel um estylista, imaginação e uma intuição generalisadora, é n'esta carta que vemos melhor caracterisado o seu genio. Tem a franqueza de linguagem, o desenfado de quem se fia na sua dialectica firme, a penetração que segue um principio até ás mais remotas conclusões. Alma rectissima de Proudhon, comprehensão e tenacidade de Feuerbak, o sr. Anthero do Quental obedece á fatalidade de sua natureza. Tem todos os dotes para um terrivel pamphletario. Elle serve-se da sua obscuridade e despreocupação litteraria para que este protesto não seja um resentimento, mas lhe dê direito a julgar desassombradamente, com frieza e boa fé. N'esta carta admiravel ha dois elementos distinctos que o auctor soube combinar de uma maneira condigna do talento; é a seriedade com que discute as idéas, o lyrismo com que se apossa dellas, e o ridiculo que derrama sobre as ninharias das nullidades altivas.

Cumpre fazer um reparo. O publico julgará por certo um desacato, vir um homem, affrontando todas as conveniencias, o respeito á velhice, a admiração sancionada por todos, e demonstrar a exiguidade do sr. Castilho. Todos nós sabemos o que particularmente se pensa e se diz do auctor da Joven Lilia, como caracter e como artista, mas uns diante dos outros não se atrevem, talvez por servilismo, a proclamar a verdade crua. O sr. Castilho assiste de dia para dia ao esphacelamento do seu caracter; indole viperina, reservado, como o rancor de cego, bifronte como o deus antigo cujos fastos ainda commemora, não tem, não tem direito a esta sagração que vae sanctificando a edade e o trabalho.

Elle apparece-nos como Chiron ensinando o mysterio da força aos que o cercam, mas é n'isto que está o attentado á arte, ensinando uma rotina arcadica, palavrosa, nulla de idéas, de sentimentos falsos, que já se nota na mocidade, que o admira. Sobre tudo a má fé, é o que mais depressa se communica; um critico chama ingrato a um auctor, que preoccupado com o seu trabalho não soube, nem teve tempo para ir agradecer-lhe as inepcias; e promette verberal-o, alludindo fóra de proposito á sua nebulosidade. Cada vez me convenço mais do celebre dito de Pope, que se pode applicar á maioria dos que escrevem: «Que um mau escriptor é sempre um mau homem.»

Um dos argumentos do auctor das Cartas de Ecco e Narciso, contra este movimento e esforço para dar ideal á poesia, é o falar da plastica e da Esthetica como coisas futeis, e tanto, que os grandes poetas antigos não as conheceram. Homero, Dante, Virgilio, todos os genios de todos os tempos não sabiam o que era Esthetica? Seguramente o sr. Castilho acostumado a rimar palavras e ensacar periodos em arrendondadas periphrases, tomou só a palavra Esthetica, creada por W. Hamilton (Lectures on metaphysics, t. I) por que não se quiz dar ao trabalho de comprehender o que esta designação contém. Ha na natureza do homem o poder de determinar a generalidade das coisas, de descobrir n'ellas o ponto em que a vontade de todos se harmonisa, a força mysteriosa de harmonisar o mundo, o sentimento do bello, o ideal; mas a este dom sublime anda tambem adjunto o poder de dar fórma, trazer á realidade da vida os sentimentos mais intimos—é a arte. É a união d'estas duas forças que constitue verdadeiramente o genio; é o que tem feito a apotheose dos poetas eternos. Ora, sr. Castilho, ao estudo e contemplação objectiva de todos estes factos do nosso espirito, á sua reducção a sciencia é que se chama Esthetica, do mesmo modo que as cathegorias do raciocinio formam a Logica. Antes de Aristoteles ter determinado as leis syllogisticas, ninguem tinha pensado, segundo o modo de vêr do sr. Castilho, ou pensava-se bem sem ellas. O sr. Castilho não é bom Homero, mas dormita sempre embalado ao canto das cigarras debaixo da olaia, e não sabe o que é o homem, nem procura saber a razão do movimento da sua epoca.

Mas para que serve a Esthetica?

É facil de ver. O homem obrando primeiramente por impulsos instinctivos, tende continuamente a emancipar-se d'essa fatalidade tornando todos os seus actos do dominio da consciencia; as sciencias nascem d'este mesmo esforço incessante; não chegam a constituir-se antes de uma longa observação de factos successivos em que se basêem. A Esthetica é a consciencia do sentimento do bello; mas como o sentimento do bello é a communicação espiritual do homem com o mundo, vem a Esthetica a ser a synthese de todas as outras sciencias que procuram as propriedades e qualidades das coisas materiaes. E o ideal? É a passagem da realidade natural para a realidade artistica.

Sobre tudo uma das primeiras condições da arte é a verdade; e a verdade nunca se encontra aonde não ha caracter. A arte sem a verdade dá as ampliações rhetoricas, insuffladas de synongmos, a que entre nós se chama estylo classico, á Frei Luiz de Sousa, em que se relê depois de lêr, e se torna a lêr, em que se voltam de mil maneiras as formas arredondadas, em que não ha um pensamento, e em que prima o sr. Castilho. E esta sua prosa é muito portugueza na dicção; portugueza de dois seculos atraz, quinhentista pela fórma intertelada e urbana, seiscentista pelo requinte, e sobre tudo dissonante para quem conhece a verdadeira eurythmia da lingua, pela mistura insólita e desnatural da gravidade academica com as locuções desenfadadas e legitimas do nosso povo.

Ainda ha por ahi quem pensa que uma lingua não progride com as necessidades intellectuaes ou materiaes de um povo. Não admira, porque entre nós as necessidades intellectuaes são nullas, e o sr. Castilho é o primeiro a reconhecel-o, quando se enfaixa nos Sousas e Lucenas e decreta urbi et orbi as gallanices do estylo. Nos Quadros Historicos, obra tão falada e gostada, abundam paginas infindas, safaras de idéas, seccantes pelas extorsões dos elementos da oração, mas portuguezas de lei. Citámos um livro, justamente aquelle em que o sr. Castilho levantou um protesto contra a eschola romantica de Victor Hugo; n'aquelle prologo diz heresias inauditas contra o ideal; mas sua excellencia veio como os falsos prophetas, queria excommungar, e as palavras do esconjuro converteram-se-lhe em bençãos. De tudo o que o auctor da Ode arcadica a D. João VI tem escripto até ás traducções paraphrasticas de Ovidio, se alguma cousa ha que se lêa, é imitação da escola romantica: tal é o drama Camões. As obras do sr. Castilho tem o valor economico da raridade. É o que faz com que se fale nos Quadros Historicos, porque poucos os tem visto; lidos, e conhecida a intenção do auctor, occupam um logar somenos ainda abaixo do que é mediocre. O sr. Alexandre Herculano emprehendeu a Historia de Portugal com este espirito severo da escola analysta de Guizot e Macauley; tinha de sacrificar, de nos expropriar, por assim dizer, a bem da verdade, das nossas lendas e tradições nacionaes, com que os nossos Herodotos haviam bordado a historia dos primeiros tempos. Era preciso que outra mão fosse respigando na seara cortada, como Rutth. Só um poeta, com a sua vara magica, poderia fazer apparecer os thesouros da imaginação. O sr. Castilho votou-se á empreza. Mas como? Falto de imaginação lançou-se a romancear a capricho aquellas lendas que já estavam dramatisadas na ingenuidade da chronica pelos bons Froissarts. Assim falsificou-lhes o espirito, dando-se-nos como contemporaneo d'ellas. É uma atrocidade imperdoavel, tanto maior, quanto n'este tempo já tinha apparecido o livro monumental de Jacob Grimm sobre as Tradições allemãs, em que o moderno Du Cange, depois de haver consumido dez annos de vida n'esse trabalho, ensina como se restauram estas preciosidades. As grandes descobertas são para todos.

Já nos Quadros se nota em sua excellencia, um desejo de imitar aquella esperteza de Chartterton que inventou o monge Rowley, a intuição de Macfferson inventando Ossian, ou o ardil de Psalmanazar que imaginou um outro Japão. Escrevendo o Auto da boa Estreia deu-se por muito feliz em enganar o consciencioso bibliographo José Maria da Costa e Silva no seu Ensaio bibliographico critico.

A arte não é isto! a mentira é uma perversidade de morte, principalmente no que toca ao sentimento, que não discute, mas se deixa impressionar sómente. Não é assim que se é pontifice das letras.

Digamos a verdade toda. O sr. Castilho deve a sua celebridade á infelicidade de ser cego. O que se espera de um cego? Apenas habilidade. É uma celebridade triste porque tem origem na compaixão, e a compaixão fatiga-se. A primeira vez que o seu nome foi citado em um trabalho litterario em Paris, no Parnaso Luzitano, era d'esta circumstancia que tirava os motivos da admiração o sabio auctor d'aquelle esboço de historia litteraria. Foi tambem a inspiração de Victor Hugo em um pequeno distico, quando retribuiu com a immortalidade as palavras injustas contra a Notre Dome.

O publico tem direito a que lhe respeitem uma celebridade que fez. É de razão. Mas como se fez esta celebridade? Do mesmo modo que os insectos formaram a enorme cordilheira dos Andes, como a defecação dos passaros, que emigram, forma ilhas no meio do mar. Com o tempo. A primeira impressão que as obras d'este auctor causaram, quando appareceram, foi boa; era preciso animar a formação da litteratura. Lia-se apenas O Feliz Independente.

Esta impressão tem-se transmittido tradicionalmente, porque a raridade das edições, que ha um anno se reproduzem, não deixou assignar-lhe ainda o seu valor actual. A reputação do sr. Castilho acaba com a sua vida; é a luz que se apaga comsigo; nenhum dos seus livros vae á posteridade, porque a posteridade, sempre impassivel, aceita sómente o que exerceu uma influencia sobre uma epoca. Hoje fala-se ainda nas Epistolae Obscurorum Virorum, do cavalleiro de Hutten, porque foi o primeiro passo para a secularisação das letras antes da Reforma. Depois da morte do auctor da Primavera, conclue-se evidentemente que, nem mais um volume se tornará a imprimir.

É um phenomeno curioso, mas que se dá frequentes vezes, quando o auctor gosa de uma aura acima do que merece. O mesmo se deu com Chapellain, auctor de uma Pucelle, com Palissot, Scarron, Saint-Evremont, e quejandos.

Custa-nos bastante ter de arcar com preconceitos e superstições do publico; mas a verdade é mais imperiosa, não se cala ante as tosquias dos fetiches; e que se póde esperar do Memnide Eginense, lentas in umbra, entre as ovelhas da sua arcadia, senão isso?

É em nome da verdade e da justiça que levanto por um instante a mão da consciencia, para assignar-me contra as theocracias litterarias.

Novembro de 1865.

Theophilo Braga.

[1] Não existe eschola alguma; existem apenas homens que sabem pensar e escrever com independencia. Todavia ha quem ache conveniente servir-se d'esta designação para comprometter esses homens tornando-os solidarios com as incoerencias e futilidades de gente que se dá por honrada em vêr-se reprovada em tão boa companhia.

PREÇO 100 RÉIS

End of Project Gutenberg's As theocracias litterarias, by Teófilo Braga