Title: Soldados da Revolução
Author: Antero de Quental
Editor: Rodrigo Veloso
Release date: September 15, 2009 [eBook #29997]
Language: Portuguese
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ANTHERO DE QUENTAL
ANTHERO DE QUENTAL
SOLDADOS DA REVOLUÇÃO
BARCELLOS
Typographia da Aurora do Cavado
Editor—R. V.
1896
Tiragem apenas de 100 exemplares:
20 em papel de linho.
80 em papel d'algodão.
N.º___
{5}
Em 1889 publicou o sr. Fernando Leal, o eminente poeta dos Reflexos e Penumbras e dos Relampagos, dous primores da nossa litteratura, Os Soldados da Revolução de Michelet, obra preciosa do{6} grande escriptor francez, precedendo-a d'um prologo superiormente bem pensado e bem escripto, pagina brilhantissima que para Fernando Leal não desmerece coisa alguma dos poderosos e scintillantes versos por elle firmados. Sobre esse livro, e agradecendo ao auctor o offerecimento de um exemplar, escreveu-lhe Anthero do Quental a carta que para este opusculo trasladamos do n.º 79, 2.º anno, do 1 de dezembro de 1889, da Revista Popular de Conhecimentos Uteis.
Antecedeu-a ahi o illustrado redactor da Revista com as seguintes palavras que gostosamente reproduzimos:
''Ácerca do prefacio do traductor, folgamos de poder, em vez da nossa obscura apreciação, offerecer aos leitores da Revista um valioso documento inedito, que representa uma levantada e auctorisadissima critica do alludido trabalho, feita por um dos nossos maiores pensadores e escriptores. É uma carta escripta por Anthero do Quental a Fernando Leal.
''Os escriptos do grande poeta das{7} Odes modernas e do livro dos Sonetos, do eminente publicista das Causas da decadencia dos povos peninsulares, além do seu alto valor intrinseco, teem a realçar-lhes a valia estimativa o facto de serem infelizmente cada vez mais raros. E, se a raridade é um dos predicados que tornam precioso o mais precioso dos mineraes, os escriptos de Anthero não possuem menos os outros predicados que realçam o diamante: a rijeza e o explendor da fórma em perfeita harmonia com a idéa.
''No inédito que publicamos, com quanto seja uma simples carta particular, e por isso mesmo, admiram-se mais uma vez aquellas altas qualidades de um espirito propenso á critica superior dos factos e á synthese philosophica que d'elles deriva. E, na verdade, Anthero do Quental é de todos os escriptores portuguezes, senão o unico, sem duvida aquelle a quem melhor cabe o nome augusto de philosopho; embora n'um recente escripto lh'o tenha negado, com audacia e a irreflexão naturaes em verdes annos, um moço critico,{8} aliás de grande talento, o sr. Guilherme Moniz Barreto''.
Rodrigo Velloso{9}
Villa do Conde, 8 de fevereiro.—Meu caro amigo.—Obrigado pelo prazer que me deu com o seu prologo aos Soldados da Revolucção. É excellente: pensado,{10} sentido e escripto. O Fernando é dos poucos que ainda sabem escrever em português. E quem sabe escrever e tem que dizer não deve estar calado. Escreva pois, que isso ha de fazer-lhe bem. O Fernando precisa distrahir-se: mas, para um homem do seu sentir, as distracções que servem aos outros não lhe podem servir. Só o pode distrahir o trabalho, esse grande narcotico, esse dictame, dom dos Deuses, sem o qual a vida dos homens que pensam intensamente seria intoleravel. Escreva, pois como quizer, sobre o que quizer, prosa ou verso, que já d'aqui lhe asseguro que nunca lhe ha de sahir cousa somenos. A conclusão do seu prologo é a de um moralista, e a unica que, no meio do naufragio de tantas esperanças, abrigará ainda as consciencias sãs; fais ce que doit, advienne que pourra. Mas não se entristeça de mais com o que vê. A burguezia deu o{11} que podia dar, não se lhe pode exigir mais. Uma classe nunca pode ser um apostolo: é simplesmente um elemento, uma força, cujo acto é determinado pela energia inicial. O que dará a democracia? Quem poderá dizel-o! É o escopulo onde até hoje teem naufragado todas as sociedades. Será que a sociedade, em quanto dividida em classes, que reagem umas sobre as outras e mutuamente se estimulam, e em quanto essas classes teem, como taes, um fim a cumprir, uma aspiração, um ideal, será, digo, que a sociedade, n'essas condições, constitua um meio mais proprio para a producção do civismo e para a tempera dos caracteres? e que, realisadas aquellas ideias, cessando aquelle estimulo, o homem, que aquella lucta levantára como que acima de si mesmo, tenha fatalmente de cahir na condição primitiva, na do animal de que descende,{12} só preoccupado com materialidades e visionices? Não sei: mas o que é certo é que não ha sociedade, por decadente e inferior, onde a virtude não seja possivel: e, se a virtude é o fim ultimo da vida, por conseguinte da sociedade, que não é mais que uma condição para que ella possa dar-se, direi que não ha sociedade completamente perdida, completamente inutil, visto que o fim supremo nunca deixa de se realisar. A nós, espiritualistas e estoicos, deve bastar-nos isso. Sejamos nós os que perante o Universo justificam a sociedade em que vivem, por podre que ella seja. Cumpra-se por nós o fim da humanidade, impulso primario de todas as sociedades, e aquella em que vivemos não terá sido, perante o Ser, inutil nem esteril. E mãos á obra. Do bem, ainda o mais invisivel, não se perde uma particula, nunca se poderá perder, atravez do infinito{13} do tempo, atravez do monstruoso rodopiar das fórmas e dos acasos. Guarda-se e accumula-se, não sabemos como, na espiritualisação permanente do Universo. É um momento na grande obra do Ser infinito, uma linha, uma pedra, uma areia, na estructura do seu grande edificio, e, pequeno ou grande, lá ficará eternamente.
Mãos á obra, pois, amigo, e nada de desanimar. Faça o que puder, que Deus não lhe exige mais, fazendo-o de boa vontade e de todo a coração. Elle ter-lhe-ha o pouco que fizer em tanta conta como o muito dos que podem mais. Comece por tractar seriamente da sua saude, considerando isso um dever, visto que é condição para o cumprimento dos outros. Depois verá. Entretanto, tome isso a serio e distraia-se escrevendo, que, por todos os lados, não será tempo perdido.{14}
Quanto á associação editora dos literatos, acho que é um pensamento sympathico, mas um dos mais irrealizaveis. O que propõe é a final uma Cooperativa de producção. Ora este genero de associação, pela sua mesma superioridade, exige condições nos trabalhadores associados que ainda hoje se não dão em classe alguma. Todas as Cooperativas de producção teem fracassado desastrosamente (e é por isso, entre parenthesis, que o capitalismo prospera, porque não ha ainda quem o substitua), ainda entre as classes trabalhadoras dotadas de mais senso pratico e moral e espirito de disciplina. Mas de todos os trabalhadores o litterario é justamente aquelle a quem mais faltam aquelles diversos sensos. Os calafates, ou ferreiros, ou trapeiros valem, n'este ponto de vista, infinitamente mais que os melhores litteratos. Considerar isto é considerar como{15} chimerica qualquer tentativa no sentido do seu artigo. E adeus.
Do seu do coração
Anthero de Quental