The Project Gutenberg eBook of Flirts This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Flirts Author: Henrique de Vasconcellos Release date: January 26, 2011 [eBook #35073] Most recently updated: January 7, 2021 Language: Portuguese Credits: Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK FLIRTS *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) *Notas de transcrição:* O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1905. Foi mantida a grafia usada na edição original de 1905, tendo sido corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura do texto, e que por isso não foram assinalados. HENRIQUE DE VASCONCELLOS FLIRTS (CONTOS) LISBOA Ferreira & Oliveira, Lda.--Editores _132, Rua Aurea, 138_ 1905 FLIRTS HENRIQUE DE VASCONCELLOS FLIRTS LISBOA Ferreira & Oliveira, Lda.--Editores _132, Rua do Ouro, 138_ 1905 DE HENRIQUE DE VASCONCELLOS _PRIMEIRAS POESIAS, EM QUATRO VOLUMES:_ FLORES CINZENTAS (exgotado) OS ESOTERICOS (exgotado) A HARPA DE VANADIO AMÔR PERFEITO (exgotado) _PROSA:_ A MENTIRA VITAL, um volume. CONTOS NOVOS, um volume. L'art et la science sont independants. La morale ne doit avoir aucune prise sur eux; jamais l'artiste, avant de faire une statue, jamais le philosophe avant de faire une loi, ne doivent se demander si cette statue sera utile aux m½urs, si cette loi portera les hommes à la vertu. L'artiste n'a pour but que de produire le beau, le savant n'a pour but que de trouver le vrai. Les changer en predicateurs, c'est les detruire. Il n'y a plus de science ni art dès que l'art et la science devienent des instruments de pedagogie et de gouvernement. H. TAINE. * * * * * A ESCOLA DE FLIRT AO CONDE DE FIGUEIRÓ A ESCOLA DE FLIRT O PROFESSOR.--Sem edade, 25 ou 40, tudo lhe convém. Uma mocidade que envelheceu, ou mocidade que dura _quand même_, «je meurs où je m'attache». Toda a pelle do rosto é sulcada por imperceptiveis rugas finissimas; a boca tem um sorriso de cético, mas os olhos ainda brilham. Parece ter conhecido tudo ou advinhado tudo. Se se olha para a boca, sente-se que conheceu, para os olhos, pensa-se que adivinhou. Elegante, uma ponta de preciosismo,--muito pouco!--apenas presentida na maneira como olha para as mãos deliciosamente cuidadas, como as d'uma senhora, viajou por toda a parte, indo mais ás festas mundanas do que aos museus, leu mais jornaes do que livros. A DISCIPULA.--Uma ingenuidade, que quer conhecer tudo, ignorando tudo. Vestida um pouco _à la diable_, seria positivamente _fagotée_ sem a elegancia do corpo fino e leve e o brilho e o riso dos olhos e dos labios côr de rosa. A discipula vae procurar o professor da Escola de Flirt, discretamente annunciada por meio de circulares em papel lilaz com dois corações em chamas estilisados à maneira moderna. É n'um minusculo jardim seculo XVIII portuguez, com um delgado repuxo a partir-se n'um pequeno tanque sem lavores e canteiros bordados por buxeiros. No centro d'um, uma anagua forma uma copa verde-clara de onde pendem as campanulas brancas que perfumam. O PROFESSOR--É v. ex.ª que... A DISCIPULA--Sim, senhor... Venho aqui tomar algumas lições. Fiz a minha educação no convento; não tive occasião de aprender os rendimentos do Flirt. Casei sem amor, sem noivado, sem lua de mel... Um casamento de conveniencia... para o meu tutor. Escusou de prestar contas. Vim ha pouco para Lisboa. Aqui, toda a gente flirtea um pouco. Troçam do meu acanhamento, chamam-me Pires, até Possidonia, dizem que sou «old style», do tempo da rainha Anna... Recommendaram-me esta escola. Se não ensinam aqui as cortezias, dança, diversas maneiras de trazer as _mouches_, como no tempo de Moliére, mostram-nos como se conduz um flirt com a pericia com que o Jeronymo Condeixa guiava _four-in-hands_. O PROFESSOR--V. ex.ª é intelligente? A DISCIPULA--(_Modestamente_)--Sou. O PROFESSOR--Formosa, vejo que é. (_A discipula agradece_) Gosta de toilettes? A DISCIPULA--_Fagotée_ durante a minha interminavel mocidade--vinte annos na provincia!--não possuo a complicada arte da _fanfreluche_. O PROFESSOR--Mas tem tendencias? A DISCIPULA--Enormes! Passo horas ao espelho a compor o meu pobre cabello, a pôr uma fita... O PROFESSOR--Mais tout ça c'est l'affaire de la femme de chambre! A DISCIPULA--(_Indignada_) Entregar-me a mãos mercenarias?! O PROFESSOR--Mas minha senhora! Deve v. ex.ª fazer... permitta-me a expressão--as proprias meias? Passar as noites em compridos serões a alinhavar os corpetes com essas mãos que adivinho lindas sob a pellica da luva? (_A discipula agradece._) Com certeza que não. Bem o vejo nos seus olhos que são, deixe-me dizer-lhe, d'um brilho incomparavel. (_A discipula torna a agradecer._) Todos esses cuidados pertencem aos fornecedores. É por acaso a propria rosa que póda a roseira? Não! Ha jardineiros de mãos calosas e almas rudimentares que preparam a eclosão das orgulhosas flores que são o pasmo e o encantamento dos jardins. Ha creaturas que se dobram dias inteiros sobre sedas e rendas, pensando em cosinhadas e roes de roupa suja, e constroem fantasticas teias em que nos vamos prender, as deliciosas toilettes dos Redfern e dos Rouff... Porque se não deixa preparar por ellas? Ha cabelleireiras habeis que ageitam deliciosos penteados. Seja paciente, consinta que ellas a penteiem. A DISCIPULA--É absolutamente preciso? Não poderei prescindir? O PROFESSOR--Absolutamente... absolutamente... não... A formosura de v. ex.ª suppre muito... tudo... Mas é util. A DISCIPULA--Bem... E depois? O PROFESSOR--Sabe conversar? A DISCIPULA--Meu Deus! No convento, no que conversavamos mais era nas Irmãs... para dizer mal d'ellas. O PROFESSOR--Dizer mal... é bom... mas de quando em quando... Senão cae-se nas soirées do _Sporting_.--Lê? A DISCIPULA--O _Diario Illustrado_, todas as manhãs... O PROFESSOR--É pouco. Bourget--fala do coração. É um bom tema. Tudo o que se disser é verdadeiro e falso, de fórma que uma opinião é voltada do avesso com a maior facilidade. Falla de mulheres, _toilettes_ e almas, pezares e córtes _tailleurs_, amores e rendas de corpetes...--uma _macedoine_ que, para a conversação, tem o encanto da variedade. A DISCIPULA--Tenho o Larousse. O PROFESSOR--Bah! O Larousse é muito comprido. Não se pode falar em sociedade, como se não deve falar no diabo e em outras coisas do uso diario. Outro: Theuriet--é sentimental, cheio de lamurias; no campo, um chorão, n'uma sala, um piano. É optimo para as noites de luar, na praia, emquanto se faz a digestão. A DISCIPULA--Uma pastilha de Vichy em trezentas paginas. O PROFESSOR--Pouco mais ou menos. É um filho de Lamartine... Olhe, este é preciso cital-o... ás vezes... a troçar... Depois, todos os _vient-de-paraitre_. O _Figaro_ assignala-os. A proposito: são muitos. Leia dez paginas no começo, vinte no meio e as tres ultimas. Terá assim um verniz literario... completo. A DISCIPULA--Tenho entendido. O PROFESSOR--Mas isto é longo. Prefere entrar? Quer a primeira lição aqui ou na aula? Aqui? A DISCIPULA--Sim. Acho melhor. Sob as arvores, junto ás flores, a ouvir o murmurio dolente da agua que corre. O PROFESSOR--É poetica? A DISCIPULA--Quasi, ás vezes. O PROFESSOR--Não fica mal um pouco de poesia... Falar do mar e do estremecimento da lua sobre as aguas inquietas, comparar-se á agua movediça e infiel... Emfim são coisas para mais tarde. Vamos aos preliminares. Ah! Antes de mais nada: o nome de v. ex.ª? A DISCIPULA--Carmo... Maria do Carmo. As minhas amigas chamam-me a Carminho. O PROFESSOR--Um nome lindo... A DISCIPULA--Não se presta a madrigaes. O PROFESSOR--Um nome sabendo a flores silvestres... A DISCIPULA--Pires... O PROFESSOR--(_Vae tomando calor_)--Pelo contrario. Um nome que se desfaz na boca como um _fondant_, nome para murmurar nas horas perturbantes, nome que finalisa n'um franzir de labios, como para um beijo... Delicioso! A DISCIPULA--Muito obrigada. O PROFESSOR--Bem. Bem. Passemos á lição. (_Toma um falso ar amavel, faz brilhar na boca um sorriso, retorce o bigode loiro_). A DISCIPULA--Ouvil-o-hei com toda a attenção. O PROFESSOR--(_Agradece com um gesto largo._) _Flirt_ é uma palavra ingleza que deriva do francez. Já tem fóros de portugueza: Garrett empregou-a. É como uma batalha de flores entre duas pessoas de diferente sexo. A DISCIPULA--Com os espinhos? O PROFESSOR--Conforme: ha varias especies de flirt. Ha um em que as rosas são quasi todas guardadas por numerosos regimentos de espinhos: é o flirt agressivo, feito de recriminações. Ha quem lhe encontre encanto. Pff! Não lh'o aconselho. É bom para velhas de sessenta annos com os _vieux beaux_ que foram seus namoros. Ha o flirt sentimental, aquelle a quem me referi ha pouco, com _clair-de-lune_ e regatos prateados, o flirt com Theuriet e Alfred de Musset dos proverbios, um assucareiro em que caiu agua e vae entornando calda que pinga e lambusa. Horrivel! Mas tem os seus adoradores, misses _sur le retour_, tias, meninas da Baixa espremidas nos espartilhos de baleia e aço--crosta d'um peixe que a ichtyologia ignora; é muito usado lá para os lados excentricos da Estefania. Ha--tome toda a attenção, pois é o que convem ao seu genero de belleza... A DISCIPULA--V. Ex.ª confunde-me... O PROFESSOR--O que ha de mais sincero!... Ha um genero, o meu predilecto... (_Ageita-se no banco, torna a retorcer o bigode, olha amorosamente para as unhas rosadas_). É o flirt perfumado e finissimo, o fumo das cassoletas com perfumes leves, como se queimassem flores, petalas tremulas d'anemonas... A DISCIPULA--Como V. Ex.ª é eloquente! O PROFESSOR (_Baboso_)--É V. Ex.ª que me inspira! A DISCIPULA--Os seus olhos sublinham com tal calor as frases! O PROFESSOR--Um pouco de luz que vem dos seus!... Um reflexo do seu admiravel olhar! É por isso que falo assim. (_Approxima-se d'ella_). É o flirt em que o coração apenas perfuma... O que tem de bom uma flor? A propria materia? Não, que essa é unica, a mesma na couve lombarda e no lyrio. É o perfume e a côr. Do coração, tambem, só devemos permutar o perfume. Ora imagine: entregar um coração cheio de sangue, a palpitar como um peixe quando acaba de ser pescado! A DISCIPULA--Até mete medo! O PROFESSOR--Tem razão. Até mete medo. V. Ex.ª tem sempre razão. A DISCIPULA--Muito obrigada. O PROFESSOR--As pessoas formosas--e V. Ex.ª é divinamente formosa--teem sempre razão. A DISCIPULA--V. Ex.ª é muito lisonjeiro. O PROFESSOR--A lisonja é o aroma da verdade. V. Ex.ª merece tudo. A DISCIPULA--V. Ex.ª é extraordinariamente amavel. O PROFESSOR--Podesse eu ser amavel para que todas as senhoras bonitas me amassem! A DISCIPULA--Todas? O PROFESSOR--Quando digo todas... V. Ex.ª comprehende que me refiro a uma só. A DISCIPULA--Feliz aquella... O PROFESSOR--Acha feliz? A DISCIPULA--Deve sentir o peito em festa... O PROFESSOR--Oh minha senhora! A DISCIPULA--Lembrar-me-hei de si. Nas noites infindaveis, quando me sento ao piano e os meus dedos correm sem fito sobre o teclado... O PROFESSOR--Como nardos que andassem... A DISCIPULA--Como póde dizer isso, se nunca as viu? O PROFESSOR--Adivinho-as. Mas gostaria de as vêr (_Toma-lhe a mão_). Estas luvas são de Paris? A DISCIPULA--Não senhor: são dos Gatos. O PROFESSOR--(_Um pouco desapontado_). Não importa. As mãos são lindas. (_Vae desabotoando uma das luvas_). A DISCIPULA--(_Consentindo_). O que faz? O PROFESSOR--Estes botões são feios. Mas a pelle é finissima. A DISCIPULA--A da luva? O PROFESSOR--Não, a da mão. A DISCIPULA--Agradecida. O PROFESSOR--(_Curva mais a cabeça approximando-se mais, assim, da mão_). A DISCIPULA--(_Sem a retirar_). O que faz? O PROFESSOR--Nada, minha senhora... ia vêr melhor o grão da pelle. A DISCIPULA--(_Ligeiramente desapontada_). Ah! julguei... O PROFESSOR--Oh minha senhora! Pensar tal a meu respeito! Não sabe que o flirt é o amor sem desejo, a sombra do Amor? Eu não podia dar-lhe um beijo! * * * * * FLIRTS A ANTONIO BANDEIRA FLIRTS Maria do Carmo, curvada sobre a meza, folheia os ultimos _envois_ de Paquin e Redfern. Um candieiro com um largo quebra-luz de seda e rendas lança-lhe sobre o cabello uma aureola de oiro. O corpo está mergulhado na penumbra. Na sala, os moveis tomam aspectos fantasticos. Os espelhos teem um brilho pallido. Gonçalo, ao entrar, beija a mão que Maria do Carmo lhe estende, sem levantar os olhos dos papeis. MARIA DO CARMO--trinta annos, com dez de casamento. Sem filhos. A vida passa-se-lhe em visitas, _raouts_, recéções e bailes. Alguns livros da moda, recommendados por Marcel Ballot, no _Figaro_, e Jean Lorrain, por curiosidade. Interessante como um enigma, ás vezes perversa. Não se lhe conhece um amante, mas indicam-se muitos. Não toca piano. GONÇALO--não tem uma branca, mas no meio da animação, ficticia, vê-se um grande cançaço de viver, como se tivesse experimentado tudo. Procura por toda a parte, como um _gourmet_, o manjar fino. Epicurista, delicadamente depravado, como um _roué_ da Restauração, ou um elegante do fim da republica romana. --Ainda bem que veiu!... Preciso do seu bom conselho... --Como sempre, depois de ter feito alguma tolice?... --Impertinente! --É sempre assim. Pede-me o conselho depois de não precisar d'elle! De resto, dá na mesma: ninguem segue conselhos. --Não. Tenho aqui estes dois albuns. De Paquin... De Redfern... São as ultimas creações. Estou tentada a escolher quasi tudo e a não escolher nenhum... Quer acreditar que tenho dias vazios na minha vida? Dias sem vontade, d'uma grande lassidão, em que nem sequer tenho forças para fingir que sorrío!... --Ame um pouco... --É coisa que se encommende? Acordo um dia, com a resolução de amar. É logo. O primeiro que me apparece na Avenida, aquelle que melhor dorme em S. Carlos, o caixeiro que me vende as fitas no Martins! Vê-se bem que nunca amou! --Não amei! Mas eu não _sou_, eu _amo_. É a minha maneira de existir. Um nasce cego; nasci amoroso... --Calle-se! Diga lá, qual d'estes vestidos prefere? --Sabe que é muito difficil escolher um vestido pelos desenhos feitos _d'après_ os manequins? O mesmo vestido toma aspectos differentes conforme as pessoas... --Não faça filosofia. Olhe este de Paquin: ligeiro, todo em rendas, em coisas leves, parece feito com flôres; o Redfern é mais hieratico; mesmo nos vestidos de baile conserva a _raideur_ dos córtes _tailleur_. São vestidos para a Bouro, que parece ameaçar-nos constantemente com a sua corôa de marqueza. Este? --Não lhe irá bem, talvez... O talhe da saia engrossa a sua figura, a que não vão bem... --O senhor treslê... Tudo me vae bem... Deixe lá os figurinos... Não sabe nada de vestidos... É como do coração. Aconselha-me a que ame... --E dou-lhe um bom conselho. Nem parece que sou seu amigo. --Trouxe hoje a alma de cinico? --Era a que tinha mais á mão. Estava ao cimo da gaveta... --Continuo a dizer: não percebe nada dos negocios do coração... --Não ha negocios do coração. O coração dá-se... --Não; troca-se... --Para quê? Não é preciso, no amor, ser-se correspondido. Basta amar. É possivel que para a felicidade seja necessaria a permuta... --O amor é o choque... --Muitas vezes o cheque. --Que _jeu de mots_ tão velho! É o choque de duas almas. É preciso que girem bem, no encontro. São duas electricidades que se combinam. Conhece a theoria das duas metades da maçã? --Conheço: é uma figura de rétorica... --Não é. Andam duas creaturas por esse mundo, ignorando o seu futuro, achando a vida sem rasão, idiota... --Escolhe uma mentira vital, como diz Ibsen. Conheço-lhe o _charabia_... --Deixe-me acabar. Corre mundos, faz tolices, fecha-se dias em casa, até vae ao circo ver as focas... E nada! Um dia, sem saber como nem porquê, uns olhos encontram-se com os seus, numa multidão. Ha a faisca... Pode ser um santo ou um bandido, lindo como o Rubempré, estupido como um tenor, candidato á grilheta ou futil como um janota. Fica-se presa; somos d'elle para toda a vida, ficamos amarradas a elle, como uma sombra... É assim o Amor, é feito de imprevistos... Não tem rasão alguma de ser, mas é. --Uma coisa fatal? Tem que ser? --Sim. --Permite-me que discorde? --É teimoso. --Sou. Já viu alguma discussão dar resultado? O amor é sempre creado por nós. Não amamos senão a pessoa que queremos amar. É, como tudo, um acto voluntario. Ha escolha. Vemos uma mulher, vinte, trinta vezes, sem nos fazer impressão alguma. Um dia ella repara em nós. Se é bonita, elegante, calça no Chapelle e veste na Lippman, pelo menos, a nossa vaidade sente-se satisfeita e começamos a descobrir-lhe encantos, a crear alguns, a afeiçoal-a ao nosso geito. Ao conversar com ella, pomos intensão nas frases ôcas que diz, vemos mysterio no seu sorriso... Estamos presos.--Um bello dia, porém, por qualquer motivo, torna-se util acabar com o pesadello da mulher que aparece em toda a parte: sae das brasas do fogão, a que nos aquecemos, da pagina que lemos, do fumo do cigarro, do papel em branco em que vamos escrever ao nosso procurador. Repara-se um pouco nella. Descobre-se o primeiro defeito. Exageramol-o para o grotesco. E da deusa perfeita tambem as flores e fica uma caração que faz rir. --Uma theoria... --Não é, creia. Acontece-me isso duas ou tres vezes por anno. Sabe que ando sempre com uma paixoneta... ou mais. Levo oito dias a fazel-as cair do peito. --E vive feliz? --Inteiramente feliz. Saber contentar-se não é a suprema sabedoria? Para que se inventou o _flirt?_ --O _flirt?_ Que horrivel coisa? É a «sombra chineza» do Amor... --É melhor. É o perfume. Os delicados contentam-se. É preciso comer uma flor? Não, basta respirar-lhe o aroma. Ora essas conversas, meio sentimentaes, a um canto, ditas em voz baixa, sublinhadas pelos olhos que toda a alma illumina, são como o roçar de azas que fossem flores. Ha o ligeiro premir dos dedos, sob os leques, certos tremores de labios, como se os beijos n'elles esvoaçassem, uma concentração de todo o ser, que parece boiar no ether, leve... As phrases não se arrastam, n'um espasmo. Teem palpitações, lançam-se n'uma curva larga, até desapparecer em estrella. Não conhece o _flirt_. Todo o ser é livre e vae entregar-se, rendido... Cada palavra toma um sentido misterioso... Vou-lhe contar um _flirt_... Estava na Suissa. --Internacional? --Cosmopolita. N'um d'esses cantos, que ultimamente o Cook estraga, na Engadine. Paisagem de gelo, hotel de gente podre... --De chic? --De chic. Conheci uma americana, deliciosa como um fructo acre, que vivia fora da _coterie swell_. O americano vae-se tornando terrivelmente _rasta_. Trinta annos? Talvez... Mas trinta annos frescos, sem rugas, viuva depois de dois mezes de escasso matrimonio com um formidavel _brasseur d'affaires_ de New-York, cerebro em ebulição permanente que acabou n'uma neurasthenia aguda. Iamos passear sós, pelo gelo. Sentavamo-nos nos pontos de vista que o B½deker não indica, paisagens tristes de tanta brancura, sem uma mancha. Fugiamos dos _five-ó-clock_, das _parties_ bulhentas em complicada companhia. Comecei a amal-a. Tinhamos lido os mesmos livros, sobre elles fallavamos: gostavamos das mesmas musicas, d'esse Schumann cheio de côr, dolente e envenenado; preferiamos aos flamengos gordurosos e aos hespanhoes sombrios, o delicado misterio dos Vinci, a graça fina e brilhante de Raphael. A fallar de quadros e de romances, as nossas almas tocavam-se, porque um sentido novo brilhava em cada palavra; e parecia que cada frase terminava n'um beijo. Ás vezes, levemente, as nossas mãos tocavam-se. Era rapido e delicioso. D'esse contacto ficava uma lembrança, como d'um perfume. Amor platonico? Não. Um _flirt_. Sem arroubamentos. Sempre a Alma livre, sempre o beijo a tremer na bocca, sem cair... Uma ou outra vez, comprehende, por esquecimento... --Comprehendo. Sem malicia... --Essa mulher tinha realisado todo o meu sonho! De resto acontece-me isto muitas vezes. O sonho varía com as mulheres que nos interessam. Mas essa parecia realisar tudo. No seu corpo ambiguo, de egipcia, parecia conservar-se, como um fructo no gelo, uma adolescencia eterna. As suas mãos finas, pesadas de tantos anneis em que Vever pozera todo o seu genio estranho, floriam gestos d'uma caricia delicada e terna. A sua alma, que parecia ter visto tudo, ainda sentia a vida com frescura. As horas que passei junto d'ella! O perfume, uma mistura sabia d'Houbigants, então _dernier bateau_, perturbava... Longe d'ella, não pensava n'outra coisa. Recordava-me dos gestos, os pequenos detalhes da _toilette_ e da conversa, um rosar de pelle sob as rendas, uma palavra, um _grain de beauté_, que tinha na nuca. Sabe como acabou? Ella propoz-me casar. Fechei-me no quarto, horrorisado. Casar, eu? Uma mulher que me julgava capaz d'isso! Era preciso abater esse amor orgulhoso, que crescia no meu peito. Que defeito tinha ella? A principio não vi nenhum... Fui procurando. Tinha, ás vezes, quando fallavamos em francez, erros de grammatica deliciosos. Comecei a achar ridiculo essa ignorancia. D'ahi passou para os vestidos, para o corpo, o peito chato, sem ancas... Tudo caiu. Essa mulher pareceu-me horrorosa... Comecei a troçar d'ella, do seu _bas-bleuismo_... Por fim ella resolveu partir. Lembro-me perfeitamente. O gerente do hotel levou-lhe um enorme ramo de _bluets_, os raros amigos tambem lhe levaram flôres. Todo o carro estava cheio de flôres. Sentou-se entre ellas, afagava-as, cortára algumas para cheirar. Chorára. Ainda me deitou um molho, que tinha beijado. O carro partiu, como se fosse um açafate. E a sua face branca era como uma flôr triste... Não tive pena. O amor já caira. A gente ou gosta ou não gosta, conforme quer.--Vamos fazer um _flirt_ para experimentar? * * * * * LOGICA A ANTONIO DA COSTA CABRAL (THOMAR) LOGICA N'um _garden-party_. Emquanto no _tennis_ se cruzam as palavras inglezas, e no kiosque, d'onde caem chuveiros de glicinias, se discutem mãos de _bridge_, afastados, junto a um roseiral, Joanna, Maria e Miguel veem jogar. JOANNA--Toda a face branca é illuminada por dois largos olhos negros. Casada ha dois annos com um _sportsman enragé_, que prefere o cabo de uma _raquette_, o leme d'um _outrigger_, o _guidon_ d'um automovel, á mais terna caricia da mulher. Usando e abusando do flirt, um em cada dia, ás vezes dois, tem periodos de fidelidade: quando quer torturar alguem. Provoca-o, chama-o, fal-o entontecer com promessas. Quando o vê absolutamente rendido, foge, para pensar n'outra coisa, ou em coisa alguma. Não vae ao fim de nada. Desenha, mas nunca terminou um esboço; toca piano, mas deixa sempre o trecho de musica suspenso a meio d'um compasso. Tem medo de acabar. É uma natureza hesitante. MIGUEL--Nada intellectual. Um bom animal intelligente. Tem viajado. Mas prefere o _steeple-chase_ de Auteuil a uma _première_ no Vaudeville. Admira a força. É um leal. Dá o seu coração sem reservas. É, actualmente, o flirt fixo de Joanna. MARIA--Vão-lhe falhando os admiradores. Os cabellos brancos não lhe ficam bem. Não sente muito a falta, nem se irrita com a felicidade alheia. Natureza simpatica, hoje rara. MARIA--... Encontrou o Cerqueira a passear d'um lado para o outro, no terraço do Hotel, a balbuciar phrases, os olhos fechados, um livro na mão.--Que estás tu a fazer?--Tenho hoje de fazer uma declaração á Clotilde. Estou a estudar aqui no Bourget duas phrases tezas!... (_Joanna e Miguel riem-se, mas deixam cair a conversa_). MARIA--A Clotilde merecia-o. Quando se começaram a usar os _flous_, para que é preciso _postiches_, ella tinha escrupulos e explicava:--«Sei lá se o cabello pertenceu a alguma creatura damnada! E hei-de pôr na minha cabeça uma coisa de alguem que hoje está a arder nas profundas dos infernos!» O que acham vocês? (_Joanna e Miguel tornam a rir-se, sem responder_). MARIA--Já comprehendo. Vocês querem ficar sós... (_levanta-se_). JOANNA (_sem convicção_)--Não. Deixa-te estar... MIGUEL (_a mesma coisa_)--Pelo amor de Deus!... (_Maria afasta-se, voltando ainda a cabeça para sorrir-lhes_). MIGUEL (a _principio, parece hesitar, por fim decide-se_)--Afinal, o que quer de mim, ao certo? JOANNA--Eu? MIGUEL--Sim. O que quer de mim? JOANNA--Não comprehendo... MIGUEL--É bem facil!... JOANNA--Quer chamar-me estupida? Ha de concordar que é pouco amavel!... MIGUEL--Não desvie a conversa. Sabe que mesmo que o pensasse não lh'o diria... JOANNA--Então pensa-o? MIGUEL--Não o penso; sabe isso muito bem. JOANNA--Uff! Respiro... Não poderia entrar na Academia, se fizesse tal conceito da minha intelectualidade... Não é assim que se diz, nos meios _très dernier bateau_? MIGUEL--Oh! por mim!... JOANNA--É o seu ambiente, o meio cosmopolita; é inseparavel dos diplomatas, delicia-se no Tyrol e em Roma... MIGUEL--Quer outra vez mudar a conversa. Não é verdade? JOANNA--Confesso-lhe que sim... Não percebo o que quer!... MIGUEL--Repito-lhe: é facil. O que quer de mim? JOANNA--Olhe: dê-me d'ali a minha sombrinha... N'este momento é a unica coisa que quero de si. (_Miguel traz-lhe a sombrinha vermelha, que ella abre. A luz parece incendiar-lhe o chapeu branco, e toda a face branca_). MIGUEL--Fallemos a serio, um pouco... JOANNA--Já me viu brincar? Na minha edade!... MIGUEL--Fishing for compliments? JOANNA--Será, se quizer... Oiço-lh'os tão poucas vezes! MIGUEL--Queria passar a vida, como um d'esses pagens antigos, sentado a seus pés a cantar-lhe endeixas. Mas o seu sorriso paralisa, na minha bocca, o amor que vae a sair. JOANNA--É o que o Cerqueira chamava uma phrase tesa! MIGUEL--Porque troça de mim? Porque faz de mim seu joguete? Eu andava feliz e livre, sem mulher alguma que me preocupasse. Nunca andei tão alegre. Vivia a minha vida, livremente. Todas as mulheres bonitas me pareciam eguaes. Joanna começou a chamar-me, a dizer-me phrases que me prendiam, que me entonteciam. Tinha olhares para mim tão cheios de promessas, que corri como um esfomeado, diante d'uma mão que se lhe estende, carregada de vitualhas. E junto de si senti-me perturbado. Foram para mim as palavras mais carinhosas, aquellas que tinham um sentido ambiguo, banal para os estranhos, para mim precioso e comovido. Parecia um flirt terno. Subitamente, tudo mudou. Parece escolher tudo o que possa desagradar para dizer-me. É o flirt agressivo, em que d'uma das partes não ha amor, ou o quer esconder. E a conversa é toda feita de botes de florete, que muitas vezes arranham e podem até matar o amor. JOANNA--Tout passe, tout casse, tout lasse... Porque não ha de ser assim o Amôr?... MIGUEL--Mas deixe-o acabar por si, como uma flôr n'um jardim deserto, que se desfolha aos poucos... JOANNA--Para apodrecer?... MIGUEL--Ó não, não apodrece. Evapora-se como uma essencia e deixa um perfume suave--uma recordação... JOANNA--Outra phrase tesa. Está terrivel! MIGUEL--Faça-me a justiça de pensar que não a li... JOANNA--Não. Ouviu-a em alguma peça... Você diz-me que não lê nada... MIGUEL--Leio o _Seculo_, todas as manhãs. JOANNA--Não acredito... MIGUEL--Palavra! Por causa das cotações da bolsa. Tenho uns dinheiros nos fundos russos... Mas não sobem... Ando infeliz em tudo: no jogo e nos amores. JOANNA--Nos amores? Diz isso a mim? Você é muito ingrato, Miguel! MIGUEL--Continua a brincar comigo! JOANNA--Agora é occasião de eu tambem fallar a serio. E faço-lhe a mesma pergunta que me fez ha pouco:--O que quer de mim? MIGUEL--(_não atina com a resposta_) Eu? JOANNA--Sim. O que quer? Tem um flirt comigo... É o meu preferido... MIGUEL--Diga antes favorito, como se tratasse d'um cavallo de corridas. JOANNA--É o meu favorito, seja. Gosta de mim? Muito. É o que ia a dizer, com alguma rétorica. Não gosto eu de si? Não me ponho pelos cantos a fallar comsigo, a sós? Não estou aqui a apanhar sol, só por sua causa, para poder estar comsigo, em liberdade, sem ter ninguem que nos oiça? Não vou á Avenida todas as tardes para o vêr? Não olho para si sempre no theatro? Não lhe digo os dias em que vou _shopping_ pelo Chiado? Para quê? Para estarmos juntos! Então que quer? Quer casar comigo? Mas sou casada e felizmente não ha o divorcio entre nós. MIGUEL (_tristemente_)--Felizmente? JOANNA--Sim! Felizmente. Primeiro, é contra a religião; depois, escusa a gente de se arrepender varias vezes de ter casado. Assim arrepende-se uma só. Não pode casar commigo. Então o que quer? (_Miguel olha-a estupefacto. Não encontra resposta. A expressão de Joanna é equivoca. Miguel não sabe se falla ingenuamente, se quer mystifical-o. Cala-se_). JOANNA--Então bem vê que não tem razão para se queixar de mim! MIGUEL (_Tem o ar de quem apanhou de surpresa uma grande pancada. Olha para Joanna, para si, para os outros. Pensa que o desfrutam. Acodem-lhe á boca frases energicas. Levanta-se, ageita o fraque e despede-se_).--Muito boa tarde! * * * * * ROMANTICO AO CONDE DE ARNOSO ROMANTICO --Ajude-me a servir o chá, primo... Levantou-se. Na quasi obscuridade da sala, que tinha uma luz violacea--coada pelos vitraes onde se curvam lirios roxos--Clara parecia nascer dos tapetes, como uma graciosa e alta flôr de espuma. «Toilette» branca e ligeira, como pennas de ave, toda em musselinas, apenas indicando a elegancia do seu corpo fino, ia morrer no tapete branco... Ia por entre os moveis, offerecendo as chavenas onde fumegava o chá perfumado, que da China trazem lentas caravanas, por tortuosos caminhos. O seu corpo agil descrevia carinhosas curvas. O ruido das conversas continuava... Um «flirt» a um canto murmurava, como se as palavras ficassem nos labios. Paulo, de grupo em grupo, uma chavena na mão, contente por ser alguma coisa, junto d'ella, tinha na bôcca um sorriso beato. N'aquella tarde nem conversava. Entravam e saiam as visitas, umas apressadas,--«apenas para saber de ti, Clara»--outras morosas, dando «rendez-vous» no salão elegante e discreto, onde na meia luz quasi se não conheciam as pessoas, podia-se estar sem ser visto. E Paulo, calado, n'um fauteuil a um canto, sorria para si proprio, olhando a figura indecisa de Clara, os cabellos loiros, na sala como enevoada onde apenas o fogão, por baixo do para-feu, tinha um brilho vermelho. Lembrava-se de todo o comprido caminho percorrido desde aquella noite em Cascaes, em que o impressionara a graciosidade de Clara, o seu aspecto de flôr fresca, sempre em «toilettes» leves, abundantes em gazas, crepons tenues. Certamente que, companheiro e parente, admirára sempre a belleza da prima, mas seguira outros caminhos, nunca reparára bem para o enigma perturbante dos olhos verdes, para a elegancia moderna, feita de graça, a gentil figurinha de Boldini, princeza de cera e de seda, cujas mãos eram dignas de vêr florir entre os dedos os anneis mais preciosos que Vever e Lalique inventam, em combinações de moribundas gemas. Nunca olhára bem para ella com olhos de vêr. Habituára-se desde a puberdade a vêl-a. E seus cubiçosos olhares procuravam outras mais distantes, que julgava conhecer menos, pelo encanto do imprevisto. Mas essa noite! Como lhe apparecia ainda, depois de tantos mezes, nitidamente, essa noite d'um ceu leitoso, com uma lua enevoada, que se espalhava sobre o mar, sem brilho. Na varanda do Casino, quasi deserta, os Auers incidiam fortemente sobre Clara. No mar, em baixo, fogachos prateados tremiam. E além, as raras luzes da Cidadella; na Esplanada os focos esverdeados tiravam da sombra manchas de palmeiras e listravam de luz a agua inquieta, gemebunda e misteriosa. Paulo, recostado n'uma cadeira, olhava a mancha mais negra do yacht real, apagado, apezar das suas lanternas que tremeluziam no mar. O charuto caíra-lhe da boca. Foi uma frase preciosa de Clara que o acordou: --Quem me dirá um dia a cantilena do mar? Como ella embala! Como seria bom dormir a ouvir junto de nós a suave cantilena! Paulo olhou para ella surprehendido. Pois quê? Clara, a ultima florescencia dos _raouts_ e dos _teas_, teria phrases de heroina de Rosseti, seria leitora de Ruskin? Foi então que reparou nos olhos cheios de sonhos e de misterio, na bocca dolorosa, a vermelha e fina bocca, no seu collo de infanta apenas nubil, em toda a adolescencia que se conservava intacta no corpo precioso, como um fructo no gelo. Começou então a seguil-a. Dura lhe foi a vida em theatros, jantares e bailes. Não faltava a uma _sauterie_, a uma _party_, que d'antes o deixavam indifferente, ficando nas interminaveis partidas de _bluff_. A dolorosa expressão que na bocca se vincára n'aquella noite do Casino desapparecera; um grande contentamento da vida parecia boiar á flor dos olhos garços e os movimentos rythmicos, que ella fazia, como se fosse ao som d'uma musica, eram livres, felizes, sem promessas. Não voltar o abandono d'aquella noite! Paulo desejava que Clara outra vez abrisse a sua alma, para elle sentir a caricia deliciosa. Mas a mulher amada conservava-se indifferente, risonha, um pouco _coquette_. Para os seus madrigaes escolhidos, preparados com antecedencia, buscados em livros de auctores novos, phrases perturbantes de Lorrain, perfumados disticos de Henri de Regnier, licenciosas palavras de Lionel des Rieux, com um sabor antigo, até o proprio d'Annunzio servira para a pilhagem,--para todos esses periodos carinhosos ella tinha o mesmo riso, que abria a bocca fina, descórada, que o traço de carmim violentaria a macerada pallidez da sua face: --Ah! Paulo! Ah! Paulo! Apaixonado por mim! Tenho-lhe conhecido tantas paixões? Só na semana passada, tres! --Se não penso senão em si! --Quando está commigo? Nem isso! --Clara! Clara! Se me conhecesse bem, veria como a minha alma se fez para si um fresco bordão de assucenas... E outro riso claro cantava na bocca exangue, a troçar da phrase pretenciosa. Uma tarde, n'um _garden party_, emquanto no _court_ de _tennis_ as palavras inglezas crusavam-se e os jogadores corriam, a _raquette_ no ar, elles um pouco afastados, juntos a um macisso de jasmineiros que floria, cobrindo-se d'uma renda fina e branca de pequeninos jasmins, Paulo, esquecendo-se das phrases decoradas nos romances, deixou sair da bocca, livremente, toda a força e toda a anciedade do amor que parecia abrir-lhe uma chaga no peito, teve palavras em que fulgiam desejos, os olhos brilhavam, enternecidos, agarrou-lhe nas mãos, encheu de beijos as palmas roseas, puxou-a para si, e pôde dar-lhe, de surpresa, um grande beijo na bocca, soffrego, que Clara não pôde evitar. Voltada a si do pasmo, espantada pelo insolito atrevimento que a sua ligeira _coquetterie_ não permitira, quiz zangar-se; mas voltou a rir-se, como se esse beijo, que lhe deixara na boca um calor de chama, tivesse sido apenas uma phrase, das grandes phrases de Annunzio, tão cheias de volupia que entontecem, como os largos calices das magnolias n'um pequeno jardim fechado. E sempre a sentir na bocca a impressão ardente d'esse beijo, Clara correu para o _tennis_, a querer jogar tambem para esquecer-se. Era d'esse beijo que Paulo vivia, tomado de assalto, como n'uma pilhagem de egreja. E, apesar de Clara continuar a ser indifferente e risonha para elle, lembrava-se da perturbação que levára á alma ligeira da preciosa bonequinha de Nuremberg; olhos abertos, continuava a sonhar que esmagava os labios exangues sobre a pressão da sua bocca ávida. Paulo era um romantico. Paulo vivia de pouco, como as aves do ceu. * * * * * A BISANTINA A LUIZ FERREIRA DE CASTRO A Bisantina No café, diante do _cocktail_ vulgar, eu esperava um amigo. Fôra mais cedo para a entrevista, de maneira que antes da hora lêra os jornaes, folheára as revistas, olhára para o relogio, consultára até o barometro, interessado. Iam saindo os clientes, aos poucos. Conforme se levantavam das mezas, o criado, n'um _crac_ apagava a lampada electrica. Eu ficára já, n'um canto, quasi na meia luz. No fundo da sala as lampadas faiscavam nos espelhos, telintavam os pratos, as discussões cruzavam-se. Esperava em vão... Comecei a ceiar. D'ahi a pouco um rapaz veiu sentar-se ao pé de mim. Conhecia-o de o vêr nos cafés nocturnos, quasi sempre em companhia de mulheres faceis, estardalhando, contando façanhas de orgias nas _vadrouilles_ de Montmartre; de quando em quando, como n'uma expansão, falava de um quadro que entrevira n'um museu, alguma luminosa festa da Renascença, um nú veneziano, ou preciosas figurinhas dos primitivos, simples e mal desenhadas, entre brocados de oiro. Mas nunca me ligára, correndo a minha vida n'outra direcção. N'essa noite, admirei-me de elle deixar a bulhenta sociedade que _sabrait le champagne_, para se acolher ao silencio, á quasi obscuridade. A principio bebeu a pequenos goles o Bucellas que mandou buscar. Tinha o ar de quem hesita em praticar um acto, o recolhimento subito d'um gesto esboçado, ensimesmava-se, enchia novamente o copo, lia attentamente o rotulo da garrafa. Por fim debruçou-se para a minha meza: --O senhor gosta de coisas exoticas, das mulheres finamente perversas, do brilho das podridões... --Ó, não! Apenas do _faisandé_!... --É uma questão de palavras... Tudo o que é ambiguo, perturbante, insexual, tenta-o; compraz-se no esmiuçamento das taras, é o chronista do irregular, do _à coté_. Prefere as monstruosas orchideas ás rosas, o enigma dos Vincis, á belleza forte dos Rubens. Deixa-me contar-lhe uma historia? Por certo que a minha phisionomia traiu o receio da maçada eminente. Toda a gente imagina que a sua vida é um «motivo» interessante para um livro. E eu tenho deixado cair, como folhas secas, tantos casos que me contam, compridamente, com meandros de detalhes! --O senhor tem o dever de me ouvir e não se arrependerá! O senhor é um psicologo... --Não faço profissão... --Não importa. Tem obrigação. --N'esse caso... Resignei-me. O noctambulo começou a contar. Tinha a linguagem pittoresca, imageada, parecia comprazer-se com a sua phrase. Notei-lhe grande copia de estrangeirismos. Mas o caso pareceu-me interessante. Aqui o deixo registado. --Comprehende que eu, _fetard_ cançado, que tenho visto museus entre duas ceias no Maxim ou no Carlton, que aprecio mais o _tea-room_ do Grand Hotel, de Roma, que o _Salon Carré_ do Louvre ou a sala de Velasquez, no Prado, só lhe poderei fallar da mulher ou do amor. E das mulheres que tenho conhecido, um pouco por todo o mundo, d'aquellas que teem ficado com um pouco da minha mocidade entre os dentes brancos ou os dedos esguios, só me recordo da ultima, que é a melhor e a peior, a que faz rir e soluçar, curva-nos n'uma somnolencia em que nos apparece muito mais bella do que é realmente, cingida com todas as joias com que a nossa phantasia a enfeita, mais cruel tambem, porque o amor torna mais cruciante as dores, intensifica o desespero, cria a halucinação da Magua, inventa a Chiméra da turtura, essa Chimera de afiadas garras que nos retalham... Estou muito eloquente. Faça-me signal, quando lhe parecer Cicero... Imagine que conheci, n'uma pequena cidade italiana onde me fôra curar d'uma paixoneta recente, uma creatura singular, cujo encanto me prendeu quasi de subito. Era uma figura de bisantina, atavismo talvez, influencia das pinturas de Ravenna, onde passára a mocidade. E, artista, cultivava essa feição, arranjava penteados hieraticos, sem complicadas e rutilantes gemas, que o cofre do pae, mediscatro qualquer, não era abundante, mas com flores, essas rosas vermelhas de Pæstum, que ella propria cultivava, amorosamente, no pequeno jardim de sua casa. O que tinha de bisantina realmente, era a bocca fresca, a bocca innocente que sorria apenas, n'uma candura de primeira commungante, uma bocca que deixava em nós a impressão de que era um seraphim a sorrir. E não apetecia beijal-a: apenas quedar-se a gente deante d'ella á espera que nascesse a claridade auroral do sorriso, em que mostrava levemente o traço branco dos pequeninos dentes. Mas os olhos escuros desmentiam toda a infantilidade da bocca, o aspecto angelical do seu corpo magro d'adolescente, o collo branco e purissimo. Os olhos brilhavam como n'um assalto, a ferir, sem ternura, no fundo uma repulsão ou um escarneo... Essa mulher tentou-me. Largos mezes fui todos os dias á sua casa onde me recebeu com palavras dulcissimas. Estendia-me a mão deliciosa para beijar, dizia-me frases que entonteciam como um vinho aspero, fazia passar por mim o perfume forte que punha nos longos cabellos, que ás vezes caíam pesadamente da cabeça, estendiam-se pelas costas, como uma rosa que se desfolha, d'uma vez, da haste. Ás vezes furtivamente, apertava-me a mão com força. E sorria-se ingenuamente a face de perola, eu via a innocencia de toda aquella figura, porque ella fechava os olhos, como se todo o seu ser adormecesse n'um espasmo. Ao sair, tinha remorsos de não ter beijado a bocca fresquissima, de não ter, sob a pressão dos meus labios, maguado os olhos maus. E toda a noite soluçava, enraivecido a desejal-a, até que de tarde ia visital-a, encontrava-a estendida, n'uma atitude de imperatriz, bisantina, em sedas _moirées_, toda a gama do verde e do lilaz, a garganta descoberta. E n'um gesto estudado, estendia-me a mão, que eu beijava longamente, essa mão em que as gemas não brilhavam: escuras, opacas, pedras finas, opalas, como gottas de agua d'um lago envenenado. E a scena repetia-se. Eram perturbadores oaristos, que deixavam os nervos tensos e vibrantes. Na voz amortecida e doce, dizia as palavras magicas que accendem fogachos. E quando ella via toda a minha Alma arremessada para ella, tinha o fechar de olhos, abria o sorriso celeste, e eu fugia com medo de mim e com medo d'ella. Como? Uma creança ingenua! Era preciso fugir! Um dia tive que partir. Tinha, na pequena cidade, perdido largos mezes. Fui a uma ultima entrevista, chorei como uma creança ao dizer-lhe a magua immensa de a deixar. Contei-lhe toda a tortura d'aquelle tempo de infinita delicia e infinita tortura; pela primeira vez disse-lhe claramente, entre lagrimas tristes, quanto amára todo o seu ser, todo o seu corpo flexivel, todo o seu espirito cançado, mas mesmo assim brilhante. Que me dissesse uma palavra de esperança, que me deixasse levar uma harmonia divina, uma palavra de amor! Teve uma frase, apenas, com uma expressão de immenso sentimento: --E não trouxe um fonografo! * * * * * MÁ-LINGUA A JOSÉ LEITE NOGUEIRA PINTO MÁ-LINGUA N'aquella mesa de _bluff_, era feroz a _debinage_... Apenas o Barros, que ganhava com uma _veine_ espantosa, sorria beatificamente, cheio de indulgencia, e para as arrojadas arremettidas dos parceiros, tinha sempre a mesma phrase: --Mais caridade, meus senhores... Eram sempre occasiões em que o Leite mostrava «quatro cartas» ou «street flesh.» O baile, na sala proxima, corria animado. As valsas, o pas-de-quatre e as quadrilhas martelladas ao piano, tinham concorrencia. E uma ou outra que fugia do calôr, para as salas de jogo, era apanhada na passagem, amarfanhada, esmiuçavam-lhe a chronica, apimentada de notas ineditas, calumnias talvez. --A Gracinda Fortes! O conde de Marvilla teve um sobresalto. Voltou-se para trás. A Gracinda vinha com um vestido de tonkin cinzento que mostrava toda a graça fragil do seu corpo magro. O conde commentou, eriçando mais o bigode loiro, cortado á ingleza: --Um cabide para vestidos!... --Mais caridade!... --Ah, já sei: tem pelo menos um flesh na mão... Passo! Depois, olhando ainda a figura esbelta que sahia... --Mas ella não é uma mulher--é uma boneca de Nuremberg!... Vejam o andar articulado, mechanico... Tudo aquillo se mexe por molas! E aquella cabeça d'arara a dar a dar, como se estivesse presa ás espaduas por um parafuso lasso? E depois, meus amigos, ella é toda postiça... O cabello loiro pertenceu já a tres cabeças... É uma mulher feita de collaboração por um cabelleireiro, um droguista e uma costureira. Tudo aquillo é sustentado por baleias e faixas, senão desabava, de lasso... Imaginam que o marido está arruinado por causa dos vestidos? Não: pelos cosmeticos... Á quantidade de drogas que anda por aquella pelle é inconcebivel. Já repararam em como se não decóta nunca, completamente, que o collo é sempre coberto por uma gaze ou uma renda? É que a pelle, estragada por uma pitiriasis qualquer, esfarella-se. Todas as manhãs a creada de quarto tira-lhe kilos de farellos da cama. E já não pode com o serviço de maquilhagem--tapar buracos, concertar rugas, pés-de-gallinha, disfarçar sardas e signaes de variola--manda chamar um trolha... --Seu amante? --Talvez... Para a rebocar. Para que ande, é preciso dar-lhe corda. Anda sempre da mesma maneira, ás continencias, cabeça para cima e para baixo, como um d'esses bonecos movidos por relojoarias. Imagina que aquillo é o andar rythmico das parisienses, esse andar leve e airoso como o d'um passaro... É parisiense, é: tambem são parisienses as macacas que nascem no _Jardin des Plantes_... Ainda por cima, velha. Não tem frescura nem mesmo nos olhos parados, conçados do espelho. A pelle despega-se da carne e na cara faz papeiras em feitio de bambinellas. E toda aquella pintura, ás chapadas, faz sombras, augmenta-lhe as papeiras... --Tens-lhe odio!... --Não, tenho olhos. Não é preciso mais. Por causa d'ella lá me fez você um _bluff_ sem eu dar por isso...--Conheço-a muito. Veiu da provincia e por ahi andou a mostrar ao Chiado e á Avenida as suas _toilettes_, como um manequim de loja de modas em furor de reclame. Ninguem a recebia, senão as casas em delirio de festas, onde a ida d'um conde, dos feitos ultimamente ás canastradas, enche de jubilo os amaveis donos da casa, como se diz nos jornaes. Mas a sua ambição era do podre-de-chic, e não podendo suppôr-se com sangue azul--a mercearia do pae, ainda lá está a falsificar--imaginava-se com o chá das cinco horas nas veias... Um chá requentado como o espirito d'ella, estudado em velhos almanachs. Emquanto não entrou na sociedade, vestia-se seis vezes ao dia, e nos intervallos injuriava o idiota do marido, essa bola de cebo com suissas brancas, que, atolambado, não lhe respondia que não tinha culpa de não convidarem uma amostra de cocotte do Maxim para casas de familias honestas. E era uma vida dura, atroz, n'aquella casa, ella de mau humôr, acre, dizendo horrores na voz impertinente, sem inflexões, monocorda, e elle angustiado, sempre em calculos diabolicos para saldar as contas monstruosas que lhe mandava o Goodefroy, dos cosmeticos e _postiches_ com que se engalanava a mulher. A vida n'aquella casa! Vocês não calculam a expressão dura, injuriosa, que se estampava n'aquella cara agora risonha, quando recolhia, á tarde, cançada de fazer a Avenida, quasi sem um chapeu a comprimental-a, sem meios para ter uma carruagem, olhando, gulosa, as pessoas chics que passavam, sorrindo ás saudações. E na mesa de jantar, silenciosa, apenas se ouvia o tilintar dos talheres e uma ou outra phrase grosseira ao Fortes, que abanava a cabeça, todo elle se agachava, no receio, talvez, d'um prato ou d'um copo arremessado na furia. Depois das refeições, separavam-se, elle para a rua tomar ar, fugindo da perigosa visinhança, ella a arrastar-se nos quartos, a enfeitar-se de joias, punha-as todas, enchia as mãos d'anneis, rodeava a garganta magra com todos os collares, enchia os braços de pulseiras quasi até o cotovello e via-se ao espelho estudando sorrisos, gestos de comprimento para os grandes bailes a que havia de ser convidada um dia. --Para fallar d'esse modo é preciso ter sido _éconduit_... O conde córou, encolheu os hombros: --Ás vezes não se levantava da cama em dias de chuva em que se tornava impossivel fazer a parada nas ruas, _troteuse_ á cata d'olhares: vestia uma camisa de noite de que cahiam _valenciennes_ e cobria a cabeça com pentes e travessas d'oiro com pedras finas, e as mãos floriam-se de toda a collecção d'anneis. Era oiro por toda a parte, sem fallar nos dentes em que se combinavam todos os metaes e todas as massas. Ouvi que se lhe podia dirigir o epigramma de Marcial: Não te rias porque só tens tres dentes e esses mesmos são de buxo. --Conheces tão intimamente? --Pela creada do quarto... Agora, saracoteia-se, esqueleto feito manequim, arrebanhando os rapasolas inexperientes para _flirts_--ó só _flirts_! não por virtude ou amor conjugal, mas porque a pitiriasis não permitte o desnudamento--_flirts_ que acabavam logo que um mais affoito fallasse em beijar a pelle perfumada. --Schiu! Lá vem ella! O conde olhou para a porta, por onde entrára, fina e flexivel como haste florida, a Gracinda Fortes. A bocca pequena, que o cosmetico fazia sangrar, abria-se n'um sorriso fresco, que mostrava os dentes brancos. E de todo esse corpo magro exhalava-se, como um perfume que entontece, um encanto perturbante. E seguiu-a com os olhos, commovidamente, até que desappareceu, como um sonho... * * * * * A RAINHA DE SABÁ A EUGENIO DE CASTRO A RAINHA DE SABÁ Balkis esperava. Entre as sumptuosidades do seu palacio de Mareb, a Rainha vivia, solitaria, escondida, só com a sua belleza. Em vão os povos e os senhores, ouvindo fallar da immaculada formosura accorriam dos remotos reinos onde a sua lei governava, Sabá, Mareb e Yemen, e, defronte do palacio immenso e fechado, pediam para vêr a deslumbrante adolescente. Em vão os sacerdotes quizeram vêr os olhos puros. Ninguem o conseguiu. Apenas uma velha ama a vira nua, quando menina. Era como um lirio o seu corpo. Sete aposentos eram os da Rainha. E cada uma das sete portas uma chave d'oiro fechava. E no ultimo, a rainha vivia. Grandes espelhos de cobre mandavam-se uns aos outros, como écos, a imagem quasi divina. E Balkis, apenas vestida de joias, passava os dias na contemplação dos intactos esplendores da sua adolescencia. Entravam pela janella que abria sobre o jardim fechado e callado, os pavões brancos e os pavões polichromos. Aquelles formavam, estendendo as caudas, pequenas luas macias; estes faziam fulgir constellações, doçuras de velludos, coruscantes gemmas. E Balkis era mais branca do que os pavões brancos, mais brilhavam as suas cinturas e manilhas pesadas do que as caudas scintillantes. Nas noites escuras sahia ao jardim. Deixava cair entre as moitas de flôres, a cintura, as manilhas, os anneis e o diadema. Soltavam-se-lhe os cabellos d'oiro, que eram, no ar azul escuro, como um cometa pallido; e nua, como uma flôr graciosa, dirigia-se para o tanque de marmore onde adormecera a agua perfumada. Os seus pés, ao entrar no tanque, eram como um raio de lua... Deitada no tanque, os braços abertos, as mãos á tona d'agua, como dois lótos brancos, Balkis espreitava o ceu onde se movia o doirado formigueiro d'astros. As estrellas vinham reproduzir-se na agua, como molhadas flôres d'oiro, em indecisos contornos; uma lhe brincava no seio, quasi á flôr d'agua. Era como uma joia a correr, com o movimento do corpo. Ás vezes, n'um gesto mais largo, a gemma cahia, para outra vez voltar, n'uma festa, a percorrer todo o corpo branco, que era, na agua escura, polvilhado de brilhos, como um nenuphar enorme, em que se agitassem grandes abelhas fulgentes. Depois, quieta, ouvindo sómente, de quando em quando, o ruido ligeiro das flôres que tombavam, murchas, na areia discreta do jardim, os braços a appoiar a cabeça, como um diadema feito de duas hastes d'açucenas, a Rainha pensava. E esperava... Balkis esperava o noivo que havia de vir. De todas as partes, chamados pela fama da sua belleza, dos seus thesouros ou dos seus exercitos, tinham acorrido os principes da Asia. Poetas uns, avaros outros, na maior parte guerreiros, todos vinham em cavalgadas surprehendentes, cobertos d'oiro e de joias. No seu throno altissimo d'oiro e prata, invisivel, mas a todos vendo, a Rainha ouvia as imagens aladas que fulgem e perfumam, a descripção dos poços profundos, abarrotados de barras d'oiro, de vasos de cobre, de moedas de todos os feitios, de pedrarias de todos os brilhos; diziam-lhe historias compridas de cruentas façanhas, batalhas mortiferas em que as flechas e as espadas, a bater contra os escudos, produziam chispas de incendio, contra os corpos, rios de sangue. Os guerreiros, com o desejo de augmentar os exercitos bellicosos, aprendiam uma eloquencia calorosa. Eram os que mais fallavam, regosijando-se com a recordação das chacinas. Mas a um signal da Rainha iam-se, despedidos, os poetas com as lagrimas nos olhos, as cabeças curvadas, como sobre o peso das mithras, os avaros e os guerreiros batendo com força, nos ladrilhos polichromos, as sandalias ligeiras. E Balkis voltava para o recuado aposento do seu palacio populoso. Alli, só, admirava nos espelhos a gracilidade do seu corpo esbelto e firme. Deixava cahir sobre o corpo branco, como uma flôr inundada de sol, o cabello loiro. Depois de admirar toda a sua belleza, Balkis dizia-se: --Aquelle que eu amar possuir-me-ha intacta, como uma flôr que vive no meio d'uma floresta guardada pelos Medos. Ninguem lhe aspirou o perfume, ninguem viu a côr deslumbrante, ninguem a maculou. N'esta terra cheia de sol, em que as côres não brilham, ardem, e as cassoletas não perfumam, estonteiam, eu sou branca, o sol nunca me viu. Entre os muros dourados dos meus sete aposentos, a vida é quieta e facil! Balkis esperava. Os mezes passavam ligeiros. No jardim fechado, as rosas desabrochavam, perfumavam e morriam. Outras vinham com egual brilho e egual frescura, enormes rosas escarlates, como boccas em que os beijos deixam feridas, do desejo intenso. Balkis conservava, no seu corpo nubil, intactos, os esplendores d'uma adolescencia eterna. Untava-se com oleos, alisava com pentes d'oiro os seus cabellos d'oiro. Vestia-se apenas com joias, joia ella mesma. E nos seus olhos azues, largos e serenos, brilhava a mocidade. Não a viam olhos humanos. Nenhum desejo maculou o seu corpo. E quando Salomão, filho de David, que no seu palacio de Jerusalem tinha mais concubinas que de estrellas ha no ceu n'uma noite de lua, quando Salomão a veiu buscar, ella entregou-se-lhe, pura, radiosa e immaculada, como uma flôr crescida n'uma floresta insondavel, cujo perfume ninguem aspirou. Virgens, guardae para o desconhecido Amado, o vosso corpo e a vossa alma, como, se é verdade a lenda arabe, para Salomão, filho de David, guardou Balkis, Rainha de Sabá! * * * * * CHIARA LILIAM A VICENTE D'ARNOSO. CHIARA LILIAM Barcelona e o seu porto com incendiados espelhamentos de sol nas aguas que se agitam em pequenas ondas, aguas-fortes de mastros a distancia, toda a geometria do horizonte cinzento cortado pelos perfis dos vapores! Ha dorsos vermelhos de navios, nodoas negras das barcaças de carvão, até a florescencia d'um yacht que emerge entre a poeira negra da fumaraça, e os fardos, e as pipas, como uma delgada flôr de prata... Para alem da cinta da docka, ao rez do mar, o ceu toma tons brancos que se esbatem e degradam na ascenção, accentuando-se na cupula um azul fino. E os vapores passam, pequeninos, carregados de vagas multidões para Barcelonete. Para alem da formidavel estatua de Colombo, as Ramblas sacodem os ramos verdes dos platanos e o Tibidabo recorta-se, escalvado. --É ámanhã o vapor para Mallorca, informam-me. Volto para traz, deixando o ruido dos guindastes e das sereias, a bulha dos catraeiros e descarregadores, para entrar n'outro bulicio tão grande, o zumbido dos milhares de boccas que cruzam a Rambla, as campainhadas dos tranvias, a buzina dos automoveis, com gritos diversos, pragas, pregões, injurias guturaes dos catalães furiosos. Sentira desejos de vêr Palma de Mallorca em que me fallára Teixeira Gomes, as suas egrejas caladas, os seus palacios antigos. Por elle sabia que a cidade conservára-se immovel, tipica, como no principio do seculo XIX. E a sua conversa luminosa e pittoresca acirrara-me o desejo de visitar uma terra que, na convulsa marcha do seculo industrial, immobilisára-se nos seus antigos sonhos de pedra. Aborrecera-me já Barcelona, commercial, trabalhadora, respirando pelas mil boccas das suas chaminés; parecia que a alma da cidade andava triturada pelos poderosos engenhos das suas fabricas. Vira os seus theatros, os seus museus, Santa Maria de la Mar perdida entre o casario; mas em toda a parte o commercio abria ruas, estendia fazendas, crusavam-se os _camions_. Ah! Salamanca parada e quieta, a morrer n'uma agonia d'oiro! As saudades que tive da paz das suas ruas bordadas de egrejas e de palacios, das cathedraes sumptuosas e desertas, das pequeninas parochias, onde se descobrem ainda, atravez dos vandalismos, curvas d'arcos romanicos, flores de capiteis graciosos; de Santo Esteban e o seu claustro que a hera invadiu, do balneario, antigo claustro de convento e do Monterrey maravilhoso, da Universidade quasi sem estudantes! Aborrecia-me Barcelona, toda entre arvores, Barcelona e o soturno Monjuich com a lenda dos supplicios dos anarchistas. Ainda um dia! Era preciso depois de jantar subir á _Gran Via_ e ir ao tumultuoso café ouvir a gritaria ensurdecedora, passear pelas Ramblas entre uma multidão compacta que espairece, vêr as caras angustiosas dos operarios, sempre na vespera d'uma revolta, e os pobres que nos perseguem pela esmola, e as raparigas sujas, enrugadas, que se offerecem, n'um chale rôto. Ao entrar no «Paseo de la Aduana» para esperar um tranvia que me levasse ao Parque, vi passar n'uma carruagem, fresca, toda vestida de branco, como um ramo de goivos brancos, Chiara Liliam, a cantora italiana que mezes antes conhecera em Genebra, no Kursaal, e com quem passeára no Leman, pelas tardes quietas de agosto e pelas noites de luar, ouvindo-a cantar, não as operas transcendentes com que regalava os suissos e inglezes, mas ligeiras canções napolitanas, que tomavam na sua bocca uma voluptuosidade mais fina e adormeciam, envenenando-as, as nossas Almas. Ah! Chiara Liliam! As tardes limpidas e serenas em que vimos a paisagem doce, fecunda, do cantão de Genebra, no vapor da carreira, alheiados das inglezas de Cook, de dentes monumentaes e _canotiers_ ridiculos! E as noites frias, em que deixavamos o Kursaal e os _petits chevaux_ e iamos, costeando o caes illuminado, n'um pequeno bote que o ruivo barqueiro conduzia serenamente, respirar a delicia do luar pastoso, que parecia ter em si um pouco da neve do Monte Branco! Lord Carnehan, o seu amante, acompanhava-nos. A tristeza da sua face, de todo o seu corpo cançado! Parecia ter sentido, aquelle rapaz de trinta annos, todo o travo da vida, visto desfolhar-se, uma a uma, todas as illusões, as ambições murchar, como quem assistisse ao incendio de todos os seus haveres e dos proprios castellos no ar que a sua mente creára. Nem alcoolico, nem etheromano, abominando a morfina e a cocaina, tomando uma leve taça de café, apenas, resignára-se na vida, «deixava-se morrer», dizia. Andava com Chiara, porque era preciso ter uma amante, como uma _ecurie_, um palacio em Londres, um castello na Escocia e uma villa na Riviera, decorada por Burne Jones. Chiara Liliam era a sua vontade. Ia para onde ella quizesse, para fazer alguma coisa e não ficar, no hall do Metropole Hotel, de olhos pasmados para os decotes largos das _ladies_, que liam jornaes. Mas nenhum amor, nem mesmo sabia, talvez, se era macia a pelle da cantora. E assim viviam, ella feliz pela liberdade, risonha como um galho d'_eglantines_, elle, com uma razão de viver: acompanhar Chiara. Chiara, que viu o meu cumprimento, mandou-me subir para o trem. --Venha comigo ao parque... se não tem melhor... --Ia justamente para lá aborrecer-me... --Então venho a proposito... Perguntei-lhe por lord Carnehan. --Ó meu Deus! Lord Carnehan tornou-se para mim uma obsessão. Era como um vidro negro que me punham nos olhos para eu vêr a vida. Nada me parecia claro, luminoso, florido. Julgava olhar sempre para dentro d'um poço secco. Essa creatura estragou-me alguns mezes de existencia. A principio ainda eu ria, pelo movimento adquirido. Mais tarde, porém, o riso desappareceu. Sempre aquelle somnolento homem que só abria a bocca para perguntar pelas horas, como se tivesse pressa d'alguma coisa, elle que não fazia nada, ou para dizer alguma sentença, um aphorismo de Schopenhauer ou d'alguns dos fulminantes catholicos, á maneira hespanhola, sombrios, repulsivos. Comecei a olhar para o espelho, a vêr se sabia rir. Não sabia. Vinha uma careta ao contrahir a bocca; parecia-me de pedra os labios, ao querer abril-os n'um sorriso. Quiz mortifical-o, fazer com que, atraz de mim, os amorosos corressem; empreguei, ante os seus olhos pardos, o requinte do coquetismo; mostrei todo o artificio de mulher e de actriz. Nada. Sempre lord Carnehan indifferente, a cabeça sobre o peito, as mãos pendidas, a perguntar-me periodicamente:--Que horas são? De quando em quando, sem lhe dizer aonde ia, deixava-o todo o dia; ás vezes, aborrecida, nem ia á rua. Ficava no meu quarto, as lagrimas nos olhos, a vêr o movimento dos _bateaux-mouches_ a atravessar o Leman; os raros automoveis que passavam pela rua e alguns ranchos de forasteiros arregimentados pelas agencias. Arrastava-se o tempo; defronte de mim, o lago que á esquerda se curva, limpido, transparente. Na outra margem, o parque Jean Jacques, alinhado e limpo, como um desenho do concurso. E era alli, á direita, a arvore que dera sombra, na tarde criminosa, em que o anarchista matára a Imperatriz Isabel. Pensava no fim tragico que ali procurara, sob um pequeno platano viçoso, a alma aventureira e poetica, a dama de todas as viagens, que vira tantos ceus ensolados e tantos mares em procella... Quando voltava, de proposito despenteada, com muito rouge na face, a fingir córada, lord Carnehan levantava com esforço os olhos para mim e perguntava-me, na voz pausada, sem um estremecimento: --Que horas são? Eu era o relogio, para elle! N'essa terra fria, geometrica, regular no andamento como uma machina--a alma de Genebra é um relogio--eu não era nada mais do que um chronometro em que se tem confiança. Um dia, furiosa, comprei um relogio e offereci-lh'o. Imagina que acabou a historia? Não. Comecei a fazer-lhe scenas, a dizer-lhe improperios em calão dos bairros infimos de Londres--uma artista conhece tudo e o resto--phrases de marujo; elle ouvia, ouvia, e depois tirava o relogio da algibeira e dizia-me: --Por força que este relogio atraza! Que horas são? Quiz matal-o. Uma noite entrei no seu quarto. A lamparina envolvia tudo em penumbra. Até a dormir tinha o ar cançado. Levava uma mascara de cloroformio... Conhece o conto de Lorrain sobre as mascaras de Londres? foi n'elle que me inspirei... Ia para lh'a pôr na cara e acabar com elle. Tropecei n'uma cadeira. Carnehan acordou sem sobresalto. Olhou para mim: --O quê? já manhã? Que horas são? Não! Não era possivel! Pensei em atirar-me da janella abaixo. Não podia mais com a vida. O diabo é que estragava o penteado! Resolvi fugir. Fiz as malas, guardei joias e dinheiro, rompi a escriptura com o emprezario, perguntei por minha vez que horas eram a Carnehan--a cara que elle fez!--e metti-me n'um comboio e vim para a Hespanha, onde ha sol, ha muito sol e não quero nunca saber que horas são!» A sua face parecia uma flôr de perola, e na bocca fortemente pintada um sorriso brilhou... * * * * * A MARCIA A SILVA GRAÇA. A MARCIA Aquella velha encarquilhada e ignobil que encontrei na estrada de Cascaes, pelo crepusculo suave, tinha uma historia. Estava bebeda. A bocca onde dois unicos dentes se mostravam, careados, no gargalhar, a bocca de beiços finos e roxos, sabendo a alcool e a podridão, tinha gritado dores, tinha tambem beijado. Contou-me tudo, como n'um vomito. Caiu-lhe d'um jacto toda a sua historia e toda a sua alma; e pareceu-me que o crepusculo que fazia de perola o horizonte longiquo e trazia a calma á ligeira inquietação do Mar, se enchia de gangrenas, extravasava lodo, manchava o Ceu purissimo em que nem um farrapo de nuvem a esgarçar-se perturbava o estranho socego. No mar azulado, pairavam, sem velas, as faluas da pesca. Ao longe esfumavam-se as montanhas que correm para o Espichel, mais acentuadas na poeira de cinza e de perola do horisonte. A baixo da estrada corre a fita d'oiro fosco do areal, que nas angras se alastra, para desapparecer nos cachopos violaceos. É toda debruada d'oiro a larga curva da Cidadella ao Hospital de Parede. As pequenas ondas, na tarde quieta, vinham franjar de renda branca a seda do areal. Eu seguia do Estoril para Cascaes. Queria vêr ainda o mar, fixar em imagens subtis a palpitação dos ultimos brilhos solares na agua, conhecer como vivem e estremecem, sob a agua azul, as longas petalas de luz multicôr e fina em que desabrocha o poente; diluir toda a minha alma na Paz da tarde, que, por ser tamanha, dava a illusão de ser eterna. E a velha não me deixava! Ia atraz de mim a gargalhar, desfiando, por entre os labios resequidos, palavras desconexas, chamando-me a attenção. O velho trapo! Na cabeça calva a cuia á banda era grotesca. E no movimento sacudido da embriaguez e do _delirium-tremens_, as vestes esgarçadas pareciam agitar bandeirolas, saia de farrapos, corpo de lona. E não me deixava! Comigo cruzou a linha ferrea, parando para, as mãos abertas sobre os olhos, espreitar se vinha algum comboio. Como sombra minha atravessou as ruellas de Cascaes, o passeio Maria Pia. Passámos a _villa_ Arnoso e a _villa_ O'Neill. A noite caía do Ceu resignadamente. O mar escurecia. Por certo que o ar fresco da tarde diminuira a embriaguez, porque as palavras formavam serie, embora as dissesse n'uma toada de cantilena. Sentei-me nos rochedos da Boca do Inferno. Ouvia-se o confuso lamento do mar na cova onde se agachava uma sombra mais densa. A velha não podia suster mais tempo a sua historia. Sentou-se ao pé de mim e contou-m'a. Ha pessoas que teem a alma pequena. As imagens intensas e poderosas não podem viver lá dentro. É preciso que as deitem para fóra. É por isso que os bebedos são em geral loquazes e indiscretos. A capacidade psychica conservando-se a mesma e engrandecendo-se as imagens pelo poder ampliatorio do vinho, elles fallam, confessam-se, vão sós pela rua a dizer os seus segredos; foi por isso que a velha me contou a historia, como a podia ter contado a um poste do telegrafo ou a um pedregulho da praia. --Se me visse quando eu era nova! Ih! Ih! Não tinha esta cara, não, nem só estes dois dentes--e um d'elles já abala! Era bonita! Era loira. Tinha os olhos azues. Que elles agora, de chorar pelas desgraças e de chorar com o vinho, já não teem côr. Olhe para elles, não tenha medo! Não tinham côr os olhos. Dentre as palpebras vermelhas e sem cilios eram deslavados e estupidos. --E os meus cabellos louros e finos! Tenho só algumas mechas brancas, porque começaram a cair aos punhados d'uma doença que tive. E fiquei assim com a cabeça... E embranqueceram-se os que ficaram... Tirou a cuia. Metia nojo essa bola em que luziam chagas. Raras mechas de cabello a enfeitavam. A velha tornou a rir-se, o mesmo ih! ih! contrafeito em que abria a bocca putrida. --O meu corpo era lindo, delgado e forte. Os seios eram brancos e firmes. Olhe como ficaram! Tirou, n'um sacão, da bluza encardida e rota, os seios murchos que bambolearam como dois figos a desprender-se d'um galho. E depois contou, atropellando as palavras, a querer acabar a historia, para se vêr livre d'ella, como se se esquecesse, m'a transmitisse, com o encargo da sua angustia, e podesse, sem esse pezo, caminhar mais ligeira, ferindo menos os pés descalços nas pedras das estradas e nas silvas dos atalhos. O pae era um pequeno lavrador, que vivia feliz entre as suas vinhas e os seus milhos. Um dia casou com a mãe, uma pobre rapariga da cidade, que cozia a dias. Louçã, fresca, de grandes olhos claros, gostava dos vestidos de seda, dos brincos d'oiro e das rendas. Depois do primeiro anno, tiveram Marcia, que poz no lar contente um ponto de luz. Em volta d'ella os carinhos adejaram. E as mãos habeis da mãe cançaram-se a arranjar-lhe touquinhas, camisinhas, pequenas coisas de linhos finos que iam á cidade comprar. Parecia uma filha de gente rica, tão garrida andava. E linda, com o seu cabellito loiro e os olhos azues muito largos, sempre abertos como a querer aprehender toda a vida, todo o mundo. Aos sete annos adoeceu gravemente. O medico ia duas e tres vezes a casa, cada dia. E á noite, depois de vêr a pequena, ficava ali, emquanto o pae somnoleava, a conversar com a mãe. O medico era novo, janota, tinha os bigodes pretos retorcidos e dizia versos. A mãe caiu-lhe nos braços, uma noite em que Marcia ficára livre de perigo. --O que eu vi! Vocemecê não acredita, mas vejo ainda! É como se estivesse diante d'elles na minha caminha! Elles punham-se aos beijos e aos abraços, pensando que eu dormia. Eu não dizia nada, nem sabia o que era. O pae ficava fóra, a dormitar, na salla de meza. Uma noite elle entrou e apanhou-os abraçados. Voltou sem fazer bulha para dentro. Trouxe uma foice comsigo. E degolou-os ali, o medico primeiro, a mãesinha depois. «Agarrou-o pelo cabello e foi como quem monda herva, só d'uma vez. E atirou para o chão a cabeça, de que escorria sangue. A mãe nem pôde gritar. Nem eu, que sentia um peso aqui, na garganta. Tambem degolou a mãe e atirou para o chão com a cabeça. A mãe custou mais. Foi aos sacões que a acabou. Depois poz as cabeças e os corpos fóra a pontapés. A pontapés! E então? Parecia doido! E o quarto parecia-me todo vermelho, e meu pae, e eu mesma sentia o sangue escorregar-me pelas mãos. E queria limpal-as e não podia. Parecia que tinha as mãos atadas e sangue na bocca! Depois, meu pae, que pensava que eu dormia, veiu lavar a casa, muito devagar, para não fazer bulha. Depois chamou os creados. Então todos choraram. Mas meu pae não chorou. Veiu para o pé de mim e passou toda a noite a vêr ao candieiro se tinha sangue nas mãos. Chegava-se muito á luz para vêr as unhas. Depois lavava as mãos e sentava-se, punha-se a olhar muito para ellas, a esfregal-as, e ia laval-as mais! A velha calou-se por momentos. Depois proseguiu: --É tal e qual! Vejo como se fosse vocemecê! As barbas do pae, que eram pretas, pareciam encarnadas. E tudo, tudo estava tingido de encarnado! «O pae foi preso, mas d'ahi a mezes saiu livre.» Olhou para mim, e com terror: --Parece que podia matar! «Fiquei em casa com a mulher que me servira d'ama e melhorei. Antes Deus me tivesse matado, que não tinha soffrido tanto! Lembro-me de tudo! De tudo! É por isso que bebo. Quando bebo muito, parece-me que os casos se deram com outros; parecem coisas que me contaram. E bebo muito, bebo sempre, mas nada me esquece, senão quando cáio na estrada a dormir!» E voltou á historia dolorosa da sua vida, sempre apressada, a querer acabal-a quanto antes. Ficára com o pae, sombrio sempre, que lhe dizia palavras severas d'uma moral cruel e sanguinaria. Foi crescendo sem alegria na casa de crime e de amor. Um dia alguem a possuiu tambem. Sentiu os beijos que são vermelhos como o sangue e como sangue embriagam, nas boccas amorosas. Sentiu os abraços que apertam como uma cadeia de flores venenosas. Não me disse o nome do amante, não me deu uma unica indicação. Tratava-o por «alguem», sem odio. Um dia sentiu que uma vida estranha se agitava dentro d'ella; confusa e alarmada, disse-o ao amante. --«Nunca mais appareceu. Escrevia-lhe, mas as minhas cartas ficavam sem resposta. Até que soube que «alguem» tinha abalado da terra.» Referiu-me com terror os mezes angustiosos que passou a querer esconder o seu «peccado», como ella dizia. Eram sobresaltos continuos. Não o queria confessar a ninguem, não queria confidentes. Mesmo na quaresma fingiu-se doente e não foi á desobriga. Até do padre tinha medo, não fosse elle dizel-o ao pae. Este não via nada, absorvido sempre, ensimesmado, como quem tinha dentro de si imagens sufficientes para não recorrer ao mundo exterior. Vivia do passado, enlisado na noite vermelha em que matára os amantes que se beijavam. Uma noite, no quarto escuro, onde não se atreveu a acender um candieiro, o filho nasceu entre estertores, ralos que Marcia mordia, para não despertar ninguem, para que ninguem suspeitasse do seu segredo. E n'essa noite, emquanto as dores do parto lhe rasgavam todas as fibras, estorciam todos os nervos e punham-lhe nos olhos a figura da morte horrivel, outras imagens se levantavam, nitidas, deante d'ella: o pae com a foice, os amantes que se abraçavam, e as cabeças decepadas a rolar no chão, com esguichos de sangue. O quarto era todo vermelho, outra vez, apezar da noite escura. E Marcia rasgava com os dentes os lençoes, mordia os travesseiros, e o linho tinha um gosto a sangue dos proprios labios, mas dos _outros_, pensava. O filho nasceu, n'um vagido. Marcia beijou-o, para o calar. Apezar de se sentir desmaiar, pegou n'elle amorosamente e embalou-o. Mas outro gemido saiu da massa informe. Parecia-lhe que era estridente, enchia todo o quarto, acordaria, talvez, a villa, como os sinos quando tocam, anciosos, a rebate. As suas mãos magras apertaram a garganta do pequenino ser. Nem um ai. O filho devia estar morto. Levantou-se, a cambalear. As pernas dobravam-se. Com o pequeno n'um braço, de rastos, os olhos cheios de sangue da allucinação, rojou-se pelo quarto, abriu a porta, desceu as escadas ás arrecuas, saiu á rua. Era uma noite clara, sem lua. As estrellas formigavam no ceu. A via latea, no azul escuro e transparente, era uma poeira de mica. As arvores faziam pastas de sombra na paisagem. Uma fonte doloridamente se lamentava, n'um tanque de pedra. Lembrava-se de todos os promenores. Na abegoaria mugiu uma vacca. E o cão veiu apressado e contente lamber-lhe as mãos. Ninguem sentira. Mas Marcia pensava ouvir passadas no estalido seco das folhas murchas que caíam e na brisa pelas ramadas, o mexer de vestes de pessoas a perseguil-a. Em cada canto mais denso de sombra, via olhos a espreital-a. E, em camisa, quiz correr, sem forças. De onde em onde, sentava-se, forçada, porque as pernas não podiam mais. Ouvia gritar a morta. E as suas unhas cravavam-se desvairadamente na garganta do innocente. Chegou ao fundo da quinta, um terreno de trigo já ceifado. Verão seco, a terra chistosa era dura. --Foi com as minhas mãos que cavei a terra. Como era dura! Parecia que eram pedras que eu partia com as mãos. E ellas encheram-se de sangue. E eu, no meio d'aquelle trabalho feroz, ainda ouvia o innocentinho gritar. E apertava-lhe mais a garganta. E voltava a cavar, queria cavar fundo, para que não dessem com o corpinho quando lavrassem a terra para semear de novo. E não havia maneira! Não tinha força nem coragem para ir procurar uma enxada, um ferro, qualquer coisa com que podesse abrir a terra tão dura, que me fazia doer tanto as mãos. Sentia que rasgava os dedos. E tinha medo de que amanhecesse. Olhava para o Ceu, a vêr se já despontava a claridade. E parecia-me sempre vêr o ceu mais claro, ás vezes até pensava que havia sol de meio dia. E voltava a cavar, os olhos fechados, com raiva, sem saber bem o que fazia!» Conseguiu fazer uma cova. Grande? Pequena? Não sabia dizel-o. Deitou terra por cima do cadaver ensanguentado, calcou-o com raiva, e então poude correr, por entre as arvores, a bater nos galhos e nos troncos, a rasgar a camisa e as carnes, até casa. Ia amanhecendo. Um traço alaranjado corria na nascente. Metteu-se na cama e dormiu. Calou-se. Estendeu-se nas pedras, de borco, a olhar fixamente para o mar. Era já noite. As estrellas palpitavam no céu transparente. O mar enchera-se de sombra. Os barcos tinham recolhido já. Ouvia-se apenas o quebrar das vagas na Bocca do Inferno. Marcia levantou-se e estendeu-me a mão, supplicante: --Dá-me um tostão para aguardente?! * * * * * O CEGO A ALBERTO D'OLIVEIRA. O CEGO O Pintor, que vivera intensamente na luminosa communhão das coisas bellas, no culto da Fórma e da Côr, sorvendo a Belleza religiosamente, como se aprecia um vinho velho, de repente cegára. E no tumulo do seu atelier de que haviam fugido os modelos, errava angustiado, querendo com a mão sentir a linha das figuras que o seu divino pincel traçara, nas manhãs claras, entre tapetes que amorteciam os passos e ás vezes a queda dos corpos dos divans acolhedores. Sentava-se no mesmo escabello veneziano, marchetado, tendo diante de si, no cavallete, uma tela. E vagarosamente ia traçando linhas, julgando ainda desenhar figuras, compôr peitos firmes, contornar curvas musicaes de quadris, illuminar olhos abertos, cheios de sonho e de volupia. Mas o pincel empastava tintas, inexperiente na mão do grande mestre, como na d'uma creança de peito. Depois do inutil esforço, não podendo vêr, lançava ao chão, com raiva, a tela, e punha-se a passear, cambaleante, hesitante, como um ebrio, as mãos estendidas, como se da ponta dos dedos nascessem olhos, a guial-o. E vivia apenas com um velho servo. O _atelier_ morria ao abandono. Para quê a molleza dos tapetes persas, os brilhos dos espelhos de Veneza, os marmores das estatuas e a radiosa formosura dos seus proprios quadros divinisando a Vida? Para quê? Se tudo adormeceu sob a cinza que se acumulára nos seus olhos d'antes d'um tamanho brilho, esses olhos leaes, sem ironia, cheios d'amor por tudo o que tivesse uma particula de Belleza? Fôra um grande pintor afamado. Retratára as mais elegantes senhoras da côrte, em vestidos sumptuosos que mostravam, n'um decóte largo, o cóllo nu, como uma enorme flôr. E nos seus quadros punha tanta voluptuosidade que a marqueza de Bouro, devota e pudica, recusára com horror o retrato; apesar do pequeno decóte, da garganta alva pareciam nascer rubras florescencias de desejos. E nunca mais pintou retratos. Ideou quadros em que a mulher e a vida eram divinisados. Fez bacchanaes, em que as sacerdotisas nuas agitam tirsos enramados, coroadas de flôres, numa loucura divina. Compôz uma scena das vindimas em que as mulheres comem as uvas, sob as latadas viçosas, das boccas dos amantes. Fez Leda e o cysne, em que, n'um lago transparente, as virgens descuidosas se banham. Um cysne apparece, airoso, vagaroso, o macio pescoço n'uma curva larga. E ellas querem apanhal-o á porfia. E esses quadros d'uma athmosphera tão clara, d'um ceu tão luminoso, com carnaduras frescas, admiraveis seios que exhalavam, como uma flôr de tropico, um perfume estonteante, tinham-lhe dado a riqueza e a gloria. A multidão apontava-o, nas ruas, com reverencia. As mulheres lançavam-lhe ternamente cobiçosos olhares. E o pintor gosava a vida, sem se prender, beijando as bôccas, aspirando o aroma das cabelleiras fartas, que caiam sobre as nucas, sobre as costas, como mantos finissimos. Até que um dia cegou. Fechou a sua casa, como se tivesse partido para uma longa viagem, não querendo deixar vêr a ninguem o espectaculo turturante da sua angustia. E continuava a querer pintar, ainda o cerebro povoado pelas risonhas imagens, concupiscentes seios, rios translucidos, gemas coruscantes, dobras sensuaes de sedas, sobre o ambar da pelle das morenas, sobre a magnolia das epidermes branquissimas. Um dia, soube-se. Vagamente correu na cidade que o pintor magnifico cegára. A curiosidade durou tres dias. Os possuidores dos quadros viram com prazer a sua valorisação. Os collegas secretamente exultaram pelo desapparecimento do rival vencedor... E tudo caiu, tudo esqueceu. Uma apenas se lembrou d'elle. Carinhosa, amorosa, forçou a porta teimosamente fechada. E entregou-se ao cego. Dias passaram cruzados de angustias e de intensos prazeres. Até que um dia o pintor lhe disse: --Eu tinha que coroar de rosas--a minha mão inutil nem para isso serve--a tua cabeça. Devia ajoelhar diante de ti e dar-te todo o meu sangue, pois que te dei já todas as minhas lagrimas. Vieste accender uma aurora no crepusculo eterno da minha cegueira. Permittiste que eu revisse a Belleza da Fórma. Com os meus dedos pude sentir como é pura a curva do teu seio, a linha das tuas espaduas e lindos os teus dedos. Trouxeste-me o aroma da carne moça, como uma brisa benefica leva a um prisioneiro o cheiro do feno. Senti outra vez a musica deliciosa das palavras de amor. E no teu corpo pequeno e flexivel, o teu rosto deve ser como o luar d'um lirio sobre a sua haste... Calou-se. Hesitou alguns momentos. Pareceu encher-se de coragem e continuou: --Mas não posso vêr-te! Vivo comtigo, como n'uma somnolencia--um pouco de realidade e um pouco de sonho. Pode ser que os annos tenham feito brancos os teus cabellos compridos; que alguma doença má tenha esverdeado a tua pelle macia. Nas palavras que dizes, oiço ás vezes uma promessa, outras um retraimento. Não posso vêr nos teus olhos palpitar a tua alma. É como se todos os dias me apparecesses, ás escuras, com uma mascara na cara, um dominó a velar-te o corpo. Entrevistas em jardins frondosos, ás escuras. Tudo silencio, mesmo na minha alma. Chegaria até nós, lugubremente, o adormecimento da vida. E não serias inteiramente minha, apenas uma parte de ti me pertenceria, e a outra, uma promessa vaga. «Penso que nos encontraremos, dirias... Etheromana em busca de excitantes, romantica, caçando aventuras, feia sem remedio a esconder aleijões e a querer ouvir palavras que nunca ouviu, sou mais que tudo isso, acredita, e menos que uma illusão!» Que importariam as tuas palavras? No arroubamento dos beijos sentir-se-hia o travo do prazer incompleto. E beijo-te um pouco como se beija um phantasma. Se eu te podesse vêr, dir-te-ia que arrancasses a mascara, ou que te fosses para sempre. Quereria ver-te, ou realidade inteira, deliciosa na pureza da atmosphera, ou sonho puro, como sei sonhar. Não posso com a tortura do meio mysterio que a nevoa dos meus olhos cegos cria... Podesses ser toda minha, conseguisse eu deitar abaixo a mascara, vêr-te na gloria da tua formosura, mesmo na miseria de alguma incuravel doença, fixaria na tela, com estrellas fulgentes, com sucos magicos de flôres desconhecidas, essa radiosa Belleza, ou essa deformidade, que se illuminaria, subiria aos ceus, como S. Julião quando beijou a bocca gangrenada do leproso. Apparecesses tu! Mas não. Ficas na meia luz como um phantasma! E o cego, em passadas incertas, as mãos estendidas, saiu do atelier, onde a unica nota de vida era o soluçar da amante. * * * * * A GLORIA A CARLOS MALHEIRO DIAS. A GLORIA Qu'est-ce que ça fait que je sois une grande artiste, si je ne suis pas heureuse? Anatole France--_Histoire Comique_. Gonçalo Freire, o escriptor que um romance intenso tornára celebre, estava triste e desanimado no seu gabinete de trabalho. Os candelabros Luiz XV brilhavam nas multiplas velas brancas, faziam saltar faiscas dos cobres doirados, das faianças onde corriam idilios em jardins frondosos. O seu _studio_ era sempre luminoso, quer de manhã, com as largas janellas abertas sobre o rio, quer de noite com as resplandecencias das luzes. Dizia que assim a imagem surgia mais precisa, mais clara, mais _latina_. Gonçalo não gostava do nevoeiro que os escriptores do Norte deixam entre os seus periodos. Amava o sol e os ceus macios, o mar incendiado, as praias do Algarve d'areia doirada, os rios transparentes, onde, á tarde sómente, boia um fumo tenue. Esse romance, «A Face do Homem» revelava esse amor da clareza e do equilibrio. Pondo de parte os intuitos sociaes que prevertiam a literatura moderna, ligára quadros d'uma emarcessivel belleza por um enredo forte, interessante e commovido. Pessimista á feição de Nietzche, descrevera a miseria da face humana, depois de arrancada a mascara; puzera o homem diante de si, n'um espelho, e o homem sentira-se asqueroso. Mas, crendo no culto dionisico, esperava pela Arte cobrir a fealdade da vida. E, perto do homem, a mulher, florida pelo amor, representava o Sonho, a Illusão que cobre com um veo azul, a distancia, os montes escarpados. O publico gostára. Seis edições successivas se tinham esgotado, entre aclamações, em dois mezes. Os jornaes tinham publicado o seu retrato com artigos encomiasticos, comparando-o a Camillo, pela riqueza e propriedade do vocabulario, a Eça pela ironia, a Fialho pelo vigor do descritivo, sendo superior a todos pelo interesse e pela suprema Belleza do seu ideal de latino. Era um d'Annunzio com mais sinthese. Todas as revistas e jornaes sollicitavam a preciosa colaboração; o _Suisso_ chamára-lhe plagiario e idiota, apontára-lhe seis erros de concordancia, descobrira que em Coimbra roubára versos a Anthero do Quental, n'um poemeto que correra impresso, _Sunt lacrimae rerum_, em que Gonçalo Freire acreditava no Inconsciente, segundo Hartman e na Vontade, segundo Schopenhauer. Quasi todos os dias o editor lhe mandava molhos de cartas de admiradoras, umas apenas a dizer a palavra quente da sua admiração, outras pedindo autografos e uma ou outra marcando, misteriosa, uma entrevista, n'um _coupé_, em sitio escuso. N'essa noite, ao entrar em casa depois d'uma _bridge party_, fora sentar-se, a querer trabalhar n'uma novella, de que esboçara já o plano. O creado levou-lhe a correspondencia que Gonçalo abriu, aborrecido. Uma carta d'um editor que lhe pedia um livro para lançar a sua livraria; uma actriz nova e elegante, que lhe lembrava a vaga promessa d'uma peça, duas amorosas a pedir-lhe entrevistas e um escriptor hespanhol que solicitava auctorisação para traduzir «A Face do Homem». A lapis azul, no summario do _Mercure de France_, chamavam-lhe a attenção para um longo artigo de Philéas Lebesgue, em que o critico entoava um hymno em seu louvôr, enaltecendo a harmoniosa belleza do romance, «mais subtil, como psychologia do que Bourget, mais moderno que Jean Lorrain, e tão puro de estylo como Anatole France». Recommendava-o a Herelle, como sendo a obra d'um Annunzio mais intenso. Era a gloria, vinda do anonymo, não a celebridade feita pelos amigos. Moço ainda, trinta annos, rico, representante d'uma casa antiquissima com o brazão registado muito antes de D. João III, parecia um d'aquelles principes que as fadas assistem no baptismo, dando-lhes todas as venturas. Mas, triste, Gonçalo foi á janella e rasgou cada uma d'aquellas cartas, lançando ao vento os pedaços de papel, que baixavam, pareciam hesitar e sumiam-se no escuro. Na noite sem lua pareciam nascer no espaço as luzes dos navios, que punham na agua um reflexo de estrella. Encostado ao parapeito, Gonçalo muito tempo olhou para a escuridão que enchia o rio. Um ou outro ruido de carro chegava até elle, sem o despertar; de quando em quando na rua, ao longe, brilhava por um instante um electrico, como um meteóro. E Gonçalo poz-se a pensar no amor que dentro de si trazia, sem esperanças, um amôr que tivera uma demorada cristalisação. Essa mulher surgia, luminosa e florida, deante d'elle, no escuro. Via o seu corpo magro e esbelto, a florescencia clara do rosto um pouco duro, o olhar indiferente. Era sempre assim. E, ensimesmando-se, a figura aparecia-lhe, como uma obsessão, para acentuar o alheiamento, atormental-o mais. Muitas vezes, quando compunha, largava a pena, porque a mulher vinha para defronte d'elle e não havia maneira de fechar-se no seu pensamento, continuar o periodo interrompido pela visita. E punha-se a recordar de como nascera aquelle amôr. Vira-a muitas vezes nas festas, nas ruas, nos theatros, indiferentemente. Uma mulher elegante e nada mais, feita talvez pelas costureiras que dispõem de espartilhos, de faixas que apertam os quadris, de _bouffants_ que disfarçam chatezas de peito, de tecidos leves, que dão a aparencia de ligeireza aos corpos. Não a conhecia. Nunca fôra forçoso conhecel-a e como não o interessava, não se aproximou. Era a Maria do Amparo. Quando ella passava pelo _Turf_, alguem dizia, ou o proprio Gonçalo: --A Ampáro vae hoje bem. --É uma mulher interessante. --Veste-se bem, principalmente. E tanto tempo a vêl-a, outras o chamaram, trouxe o seu coração envolvido em outros amores risonhos, quasi sem se prender. E a Maria do Amparo continuava a aparecer em toda a parte, elegante, um pouco preciosa, viva, um sorriso na boca fina que mordia para avivar o traço roseo dos labios. Uma noite, em S. Carlos, n'uma visita a um camarote, Gonçalo encontrou-a. Amparo falou-lhe nos artigos que Gonçalo publicara n'um jornal, chronicas vivas sobre o Culto da Belleza, a belleza na cidade, nos monumentos, nos jardins e nas praças, belleza no lar cheio de flores, com moveis elegantes e comodos, belleza na mulher, artificialmente rectificada, por maquilhagens habeis e vestidos sabiamente confeccionados por mãos peritas. Attraiu-o a conversa. Amparo tocou com intelligencia e tacto nos pontos mais originaes, mostrou comprehender e sentir a Belleza, rodeou-o de frases amaveis, em que havia, ora no sentido, ora na entoação, alguma coisa de carinhoso, poz em campo toda a seducção de mulher elegante, chamando-o a si, lançando-lhe a perturbante luz dos seus olhos claros. A conversa, apesar de curta, um entreacto e o começo d'um acto, acabara n'um _flirt_. Gonçalo procurou vêl-a. Esperou-a attento e ancioso no Chiado, frequentou as casas onde poderia encontral-a. E as tardes de recepções, os raouts, as sauteries, e mesmo as empertigadas recepções diplomaticas, eram leves _flirtations_, que o deixavam absorto, andando pelas ruas sem attender a nada, sorrindo-se ás vezes de alguma palavra dita por ella, de um gesto mais expontaneo. Todos os elementos de seducção foram postos em pratica por Amparo. E na alma de Gonçalo começara a cristalisação; a rede ia-o apertando, avassalava-o a mulher deliciosa, como os antigos retiarios os seus adversarios nos circos romanos. Gonçalo já não pensava em mais nada. Logo depois do almoço, em vez de sentar-se á meza, a trabalhar, ia para a rua sem destino, com a vaga esperança de a encontrar, de a vêr na carruagem. E em todas as festas se aborrecia até chegar a Amparo. No Gremio pedia todos os jornaes, sem poder lêr nenhum, porque se alheava, recordava os momentos felizes, idealisava impossiveis sonhos, uma fuga para algum paiz onde ninguem o conhecesse, e Amparo vivesse só para elle, esquecida do hediondo marido, de todas as caricias, de toda a vida interior. Se por acaso lhe passava pela mente a ideia justa de que Amparo nunca deixaria a vida mundana, a «consideração», a «situação», logo Gonçalo a sacudia por importuna, e enlevava-se no sonho. Era uma vida feliz, apesar do pouco que ella dava--olhares, commovidas palavras, promessas n'um futuro remoto e impreciso, e, um ou outro beijo nas mãos que tinha macias, palidas, mãos entre sensuaes e misticas da Gioconda, sem a aristocracia das mãos de Velasquez ou Van Dick, sem a luxuria que rosea os dedos das figuras do pintor de Verona. De repente, porém, começou a esquivar-se a Amparo. Houve palavras dubias, falou de consciencia e de dever; prometeu um amor eterno, mas ideal, sem pecado, um amor que lhes cubrisse a vida com uma gaze leve, como um zaimpho. E mais e mais se foi esquivando, emquanto em Gonçalo o amôr se tornava mais forte, enchia-lhe o peito de desespero, amachucava-lhe todas as energias e dava-lhe a sensação de ter, dentro de si a alma, como o chapeu alto d'um clown. E diante da noite, rasgando as cartas d'amor das outras e as aclamações do publico, Gonçalo, a chorar, repetia a frase da heroina da _Histoire Comique_: --Que importa que eu seja um grande artista, se não sou feliz? * * * * * A FESTA DE MAIO A M. TEIXEIRA GOMES. A FESTA DE MAIO --Violante! Violante! gritou o marquez para o jardim. André, no cimo da escada, d'onde ageitava ramos no entablamento, conseguiu desenroscar-se dos molhos de madre-silvas que o coroavam, o envolviam, e voltou-se. Ao ver o pae sorriu-se. --Admira-se? --A estas horas, já levantado, e em casa? André abriu na bocca pallida um sorriso exangue; mesmo assim o sorriso brilhou nos olhos negros, fez viver toda aquella adolescencia, que parecia finar-se lentamente: --Não me deitei. --Ouves, Violante? Não se deitou! A marqueza apareceu á porta, n'uma blusa clara, tremente nas rendas amarelladas, ainda aberto o guarda-sol lilaz, por onde se filtrava o sol, que extranhamente lhe coloria o cabello. --Ó André! Que tolice! --Prometti vir ajudar-te, e mesmo que não promettesse, no dia da tua festa, eu não deixaria de vir arranjar a capella. Não está linda? Digam... --Lindissima. A pequena capella, em estylo da Renascença italiana, branca nos seus marmores puros, sobria d'ornatos, sorria nos festões de madre-silva, nas grinaldas de rosas, nos vasos trabalhados de que escorriam glicinias roxas, nas peanhas onde santos olhavam, suaves, os grandes lyrios abertos, em toda a florida vegetação que manchava a nitidez do marmore pallido, correndo sobre os frisos, despenhando-se pelas janellas largas, envolvendo-se ás columnas, vindo morrer no lagedo claro do chão. Toda aquella architectura, feminina, sensual,--até na figura do Baptista o esculptor puzera um quebranto--brilhava e vivia uma vida lasciva e fina, ornatos delicados, sem exhuberancias, curvas que lembravam a doçura calida de corpos nus, no tom ambarino do marmore velho. André desceu. A marqueza trazia nas mãos, ainda molhadas da rega, um molho de grandes orchideas d'um azul doente, listrado de esverdinhadas veias como feridas a apodrecer. --E estas orchideas, onde as hei de pôr? --Aqui não! Para o mez de Maria, para a festa de maio, orchideas não. Ponha-as no gabinete do papá, junto das estampas de Goya... Aqui não! --Tens razão, annuiu o marquez. Antes tragam maias... --Vou eu buscal-as, lembraram André e a marqueza. --Não. --Não. Vou eu, Violante! insistiu André. --Vamos ambos... --Querem que eu tambem vá? offereceu sem enthusiasmo o marquez. --Não. Deixe-se estar; vamos nós. Ao sahir da capella, passando os pinheiros mansos, em circulo, como a formar um adro, descia uma escada balaustrada, n'uma curva larga, ladeada de roseiras. Depois dois caminhos direitos, onde branquejavam estatuas, cantavam repuxos esguios que no alto se abriam, como lirios de cristal perpetuamente a florir e a quebrar n'um ruido claro. --Onde ha maias? perguntou André. --Não sabes? É alli no fim, uma grande encosta, por baixo do tanque dos tristões... Não conheces a quinta! --Como queres que a conheça? Não venho cá nunca! --Hei de mostrar-te a quinta, agora... Has de gostar. Vaes-lhe tomar gosto. Olha, é aqui... No fundo verde abriam-se, sorriam, na manhã clara, como pequenas estrellas, as maias d'oiro. Desde o caminho apertado entre fitas de marmores que as roseiras invadiam, marinhando pelas estatuas dos deuses e das graças, luziam maias. A fonte despejava, pelas buzinas brancas de tres tristões, cujas caudas se enroscavam, fitas d'agua. Tudo cantava, tudo era alegre, na manhã radiosa. A encosta descia, verde da relva, das arvores copadas, mosqueada pela brancura dos marmores, brilhos de flores, sobre tudo rosas-chá, enormes e delicadas, flores de cera e flores de carne, sensuaes e finas, como um beijo em que os labios mal se tocam, na pressa, mas em que as almas se confundem, n'uma vertigem. Em baixo continuava a descida rapida da colina, viam-se tectos angulosos de casas, faiscas que o sol levantava das janellas, linhas tortuosas de ruas, arvores de praças, o Rocio, como um lago de fogo a brilhar nas pedras claras, a Avenida n'uma chapada verde; vivamente um monte subia em apertadas casarias, alastrava-se por todos os lados a cidade, perdiam-se na perspectiva os telhados irregulares, até os montes violacios da Outra Banda, que se esbatiam no ceu claro, no ceu risonho e roseo da manhã de primavera. No rio embandeiravam-se navios ligeiros e airosos. Velas de faluas passavam, largas, pandas, como monstruosas gaivotas n'um vôo sereno. E do rio sahia uma grande alegria, como um fumo: fazia tremular as bandeiras, doirava mais o sol, percorria toda a cidade, extraía das ruas acordadas um ruido confuso, chiar de carros, pregões, coleras, risadas, que se misturavam, fundiam-se, e lá cima chegavam n'uma voz unica como um rumor de vaga. --Vamos a vêr quem apanha mais! E a marqueza deixando a sombrinha, desceu por entre as maias, afagando-as com as mãos brancas.--Que lindas são! Como sorriem para mim... Tenho pena de cortal-as. --Vê se caes... Eu dou-te o braço. E André alcançou-a. --Não. Não. Vamos apanhal-as! Vamos a vêr quem apanha mais! Vamos a vêr! Febrilmente, começaram a apanhal-as, a cortar grandes braçadas. Ás vezes as suas mãos encontravam-se, apertavam-as e riam-se. --Não são maias... são os meus dedos. E continuavam, já corados, a marqueza curvada, a cabeça d'um loiro quente quasi entre as maias. --Estou cançada. Estou cançada! --Que lindo quadro. Todo de flores! Espera, vou enfeitar-te. E André coroou-a de maias, toda a sua cabeça ficou florida. E a marqueza, risonha e córada, protestava a rir-se: --Olha que me despenteias! --Que importa? Que importa? Estás melhor assim... Agora este ramo para o peito... Mais estas... Um grande ramo... Como estás linda; oiro e lilaz! E o teu cabello é d'oiro. O papá vae ficar encantado quando te vir assim... Subiram, ainda a rir-se. André deu-lhe o braço e foram, quasi a correr. Ao passar por um repuxo: --Vamos molhar as flôres, ficam mais bonitas, como se tivesse acabado de cahir o rócio. --Pois sim, pois sim. O cristal dos repuxos altos cahiu sobre as grandes braçadas de maias. --Vamos lá, vamos lá, que se faz tarde para o almoço! No altar da Virgem estavam apenas largas rosas brancas, flôres d'um aroma subtil e angelico. --Onde pôr as maias? --No chão, junto ao altar. São as primicias da primavera oferecidas á Virgem. --Pagão! censurou a marqueza. --Não importa. Ficam bem. Aqui no chão, como um monte de estrellas, aos pés da Virgem: Para que fosses mais formosa Deus deu-te a lua por chapins e as estrellas por caminho. A sineta tocou para o almoço. Rodearam a casa e entraram pela estufa, cheia de begonias e de cravos. Emquanto André se vestia, o marquez perguntou se Violante se não admirava do seu procedimento. --Ha quantos annos não fica elle em casa? Tresnoitado, entrando muitas vezes quando eu já rodo pelo jardim, escondendo-me d'elle, para fingir ignorar os desatinos, elle dormia e almoçava aqui, fóra d'horas, escondido da Felicia, que resmunga contra elle coisas terriveis, chama-lhe perdido, sustenta que está possesso... --Uma paixoneta, que trata de curar... Disse-me tambem, que agora ia começar vida nova, talvez fosse para a Quinta dos Limoeiros, para se desaffeiçoar... Isto passa-lhe... Para a semana lá o teremos na mesma vida; theatros, actrizes, ceias... --E se o pudesses reter em casa! Vê se o divertes... Fal-o sahir comtigo. Agora que vou a Paris podias conseguir que te acompanhasse a visitas, bailes, _soirées_... Já o quiz interessar com as estampas, mas perguntou-me se eu julgava que havia de passar os dias a vêr bonecos... O almoço foi alegre. Violante e André fallaram no que era preciso fazer, nas passadeiras a pôr na egreja, nas cadeiras, na disposição dos bancos no adro, á sombra dos velhos pinheiros, até sob o arco dos limoeiros pôr cadeiras, que convidassem os flirts a recolherem-se na discreta arcada. André promptificou-se a tudo fazer; sahiu para o jardim, illuminado pelo sol, cantante nas aguas abundantes dos tanques e cascatas, misterioso nas sombras que o arvoredo formava, rico de côr, verdes diversos, vermelhos, azues, lilazes das flores, mosto fresco das olaias floridas; mas, sob a copa larga e tremente d'um choupo do Canadá, deitou-se e adormeceu profundamente. O jardim antigo, desenhado por um artista italiano, não tinha as placas relvosas dos parques inglezes e o seu frio alinhamento. Cresciam por toda a parte altas e poderosas arvores, que apertavam a architectura renascença do palacio; por toda a parte cantavam em fontes, em cascatas, em repuxos, aguas claras. Havia macissos de roseiras que cresciam livremente e se enrolavam aos marmores, aos soclos, iam florescer e perfumar nos collos brancos dos bustos, entre braços finos dos grupos mitologicos, rondas de estações, danças das Horas, cheias de movimento e de belleza. Escadas brancas de balaustradas ligavam as depressões de terreno; e por toda a parte uma grande alegria de flôres e de arvores viçosas, pinheiros, carvalhos, arbustos de folhas variados, jasmineiros trepadeiros, que sorriam, trementes, nos minusculos jasmins, entre a folhagem verde. Por toda a parte uma exhuberancia de flores, que nasciam em canteiros, amores perfeitos de velludos quentes, pequeninos myosotis, quasi brancos no seu azul virginal; outras que subiam pelas arvores; estrelavam-se clematites, umas roxas, outras brancas, enroscavam-se aos troncos, iam florir na copa larga dos castanheiros. Em pequenas sebes de cana os craveiros inclinavam-se, cravos vermelhos d'um perfume que entontece, cravos brancos, mosqueados de violeta, cravos estranhos como nodoas nas epidermes. Tudo sorria, tudo gritava, na confusão da manhã clara; estendia-se pelo ceu o sol, batia nos flocos de nuvens que se doiravam, extraindo de toda a terra uma alegria immensa, que subia no fumo, que cantava na viração leve arrastando-se pelas arvores altas, manifestava-se nas folhagens claras, envolvia tudo. Em grandes placas floresciam as maias e, no inverno, violetas de Parma, d'um lilaz moribundo. Por toda a parte flores, estendendo-se pela terra, ou subindo e perfumando. E as aguas cantavam, cristallinas, corriam, iam beijar nos regos abertos folhas viridentes. Era a Quinta Alegre, o jardim magico. Nos ornatos das janellas e das portas, nos baixos relevos e nas pinturas das salas, reproduziam-se em linhas puras os motivos de volupia e de belleza. Até na capela havia uma exuberancia de vida. Viam-se figuras nuas, como nas Loggias do Vaticano. Os monstros não tinham, como nos ornamentos goticos, uma aparencia terrivel: eram elegantes, d'uma aparencia risonha e as retorcidas caudas terminavam, estilisadas, em caules de flores. A vida era triunfante nos collos sensuaes das mulheres, nos cachos de fructos, romãs abertas de que sahia um riso vermelho, laranjas doiradas, cepas que subiam espalhando-se em ramos com grossas uvas, como a de Corinto, figuras aladas, sensuaes, antes amôres contentes, do que anjos misticos e salvadores. Havia uma volupia fina, uma delicada sensualidade cada um dos ornatos, como em cada um dos caminhos da Quinta Alegre. A mesma latada verde clara, em que se via a poeira dos cachos que cresciam, se reproduzia e multiplicava nos marmores das sallas e da capella; e os corpos alvos das ninfas, das graças, hamadriadas contentes, dos faunos lascivos levantavam-se e sorriam no marmore das estatuas. Era alli que todo o anno viviam os marquezes de Runa, salvo um mez na Bretanha, setembro, em alguma praia tranquilla e ensolada, d'onde voltavam, apressados, logo aos primeiros frios, apenas uma pequena paragem em Paris, para as necessarias visitas da marqueza a Redfern, Paquin, e pequenas e especialissimas lojas d'outros fornecedores. O marquez, Christiano Spinola d'Acciaioli, descendia de duas familias italianas, os marquezes Spinolas e os marquezes d'Acciaioli, que foram duques d'Athenas, de que vieram ramos para Portugal. No seculo XVII fôra um seu tio, Simão de Vasconcellos Acciaioli casar a Florença com a filha unica do marquez d'Acciaioli, para não acabar o nome. E d'ahi os dois ramos conservaram sempre relações intimas, visitas dos portuguezes e italianos, e mesmo o marquez passára parte da sua mocidade em Florença na casa senhorial de seus avós. Novo, voltára a Portugal e amára com um tranquillo amôr sua primeira mulher D. Estevaninha Henriques, descendente do celebre conde D. Henrique Henriques. Vira-a por uma manhã de sol a atravessar o pateo branco e calado do seu palacio de Sevilha. E a languidez do seu andar, o seu ar triste, n'aquella casa quasi morta--calado e morto é o tanque esbelto e branco e sobre os arcos apenas touristes passam, silenciosos--impressionavam. Os seus olhos habituaram-se a vêr nas praças, nas ruas ensombradas pelos toldos, a face branca, onde ardiam os grandes olhos pretos de D. Estevaninha, a risca sensual e fina dos labios vermelhos, como num traço de sangue, que a faziam mais pallida. Conhecendo os duques de Medina, facil lhe foi ajustar o casamento. Depois d'uma luzida boda, aberta de par em par a Puerta del Pardon da Catedral para a passagem dos convidados entre os quaes a infanta, que representava a Rainha, vieram para Lisboa esconder o seu amôr na Quinta Alegre, cheia de rumores d'aguas e de folhagens que gemiam e riam á passagem da brisa. Mas aquella casa alegre, onde tudo era voluptuoso, d'uma volupia fina, em que todos se tinham habituado a amar a vida em todas as suas manifestações, parecera hostil ao sentimento hespanhol da doce Estevaninha, na nudez dos corpos, até no desabrochar das flores de marmore, que pareciam tentar. Certamente, que junto de si, para a amparar e dirigir, estava sempre, rotundo e oleoso, o conego D. Benito, que com ella viera de Sevilha, e na capella risonha e branca constantemente ardiam lumes fumarentos de tochas; certamente, que as missas, as novenas, as trezenas, lausperennes--fôra difficilimo conseguir do Senhor Patriarcha um dia de lausperenne, cada mez, mas conseguira-o a protecção decidida da baronesa d'Angra--todas as festas e macerações da egreja se sucediam na capella clara; as confissões, as comunhões multiplicavam-se; um cilicio de crina fazia, ás sextas-feiras, gemer a branca noiva, mas tudo parecia falso, porque a capella tinha sempre o ar de rir e de tentar, nas volutas floridas dos seus capiteis, nas figuras nuas, que mostravam em cada ruga da pelle, em cada grão de marmore, um desejo impuro que era uma tentação e um escarneo. E a marqueza não se sentia feliz. Preferia o seu viver austero na sua casa d'Andaluzia, entre paisagens asperas, crueza de sol pelos desolados campos onde as piteiras aguçam as pontas de suas folhas curvas, e as egrejas hespanholas, severas e sem luz; em vão lhe dizia D. Benito que um sátiro confessára Christo a S. Jeronymo, e lhe trouxera flôres para enfeitar o altar do verdadeiro Deus; debalde lhe assegurou o frade affeiçoado ás sombras quietas da quinta, aos tuneis de verdura, onde a pretexto de ler o breviario, nas tardes calmosas de verão, adormecia ecclesiasticamente, que as apparencias nada eram e que a verdade estava em Deus--D. Estevaninha redobrava de supplicios, os jejuns, as penitencias rudes que abalavam o delicado corpo magro e gracil, que palpitava na aproximação do marido, cheia d'angustioso terror e de volupia; e pouco a pouco se definhou, e pela noite fria do Natal, á hora em que na egreja, entre resplendores de cirios e uma chuva de flores, se festeja o Nascimento de Christo, morreu aos gritos, ao dar á luz André. Para o marquez a morte de D. Estevaninha não foi um desastre dos que abrem no coração um vinco duradoiro. Gostára d'aquella face triste e habituára-se ao ardôr receoso do corpo fino e doirado da andaluza; mas a casa fina, elegante e pagã, ia tomando aspectos sombrios. Na ante-camara, como nos corredores episcopaes, murmuravam grupos de padres. E atravessaram a Quinta fallando baixo, olhando para as areias dos caminhos, dizendo sempre palavras unctuosas, a querer vender o ceu. Monsenhores de cintas arroxeadas, bispos imponentes, a cruz d'oiro a brilhar no peito, camareiros de S. Santidade, frades que batiam as sandalias n'um ruido surdo, cruzavam-se nas escadas, junctos sahiam, sempre a mesma maneira hypocrita d'olhar as coisas, sempre os mesmos labios mentirosos e distilar frases decoradas. O marquez recolhera-se á bibliotheca onde dispunha a sua collecção de estampas, por que dia a dia se apaixonara mais. Vinham da Italia e da Allemanha e da França e da Inglaterra em rolos, em caixotes, que os agentes enviavam, ás dezenas. Reunira uma preciosa collecção de aguas-fortes de Rembrandt e as gravuras de Dürer; tinha desenhos de Vinci, de Raphael, esboços de Ticiano e de Ribera. Tudo o que fosse arte, desde o balbuciar dos primeiros «primitivos», até á exuberancia formidavel de Rubens, misterios de sombra de Rembrandt, torcionarias figuras de Ribera, suaves santas carnudas de Murillo, extranhas mascaras de angustia ou de grotesco de Goya, tudo o que fosse arte e não tivesse côr o seduzia, proves avant la lettre, exemplares rotos, em que se visse uma mancha bem posta, elle os guardava, catalogando, apenas se distrahindo em passeios pelo parque, grandes voltas, descendo até o extremo da quinta, onde repousava, vendo o multiplo esguicho que saía das duplas flautas de tres aulitridas, n'um gesto elegante de dança nas transparentes tunicas que tornavam mais attrahentes a nudez dos seus corpos. Com a morte da marqueza, o palacio voltou a ser mais silencioso e mais claro. Parecia que na quinta as aves cantavam mais. Apenas D. Benito ficára, «por amor al niño de la señora marqueza», protestava, mas porque se afeiçoára ás sombras frescas, onde dormia. André foi crescendo livremente entre os creados e D. Benito. Aos tres annos andava pela quinta, arrancando flôres, quebrando vasos, e interrompendo com gritarias e surpresas as prolongadas séstas do conego. André foi crescendo livremente, em correrias doidas, traquinas e imprudentes, subindo ás arvores, despindo-se e atirando-se para as bacias de marmore, sempre perseguido pela miss loira e terna, que lhe ensinava inglez. As feições da mãe reproduziam-se, graciosas, no filho. O pae via, com inquietação o mesmo fallar da mãe, os mesmos olhos tristes, a mesma boca fina, apenas, em André, mais exangue. Teve medo que a intellectualidade desequilibrada da devota tivesse continuado no filho a vida de pavores christãos, e ao conego e á miss recommendou que o deixassem livre, que o fizessem um animal forte e feliz, com poucas resas e pouca grammatica. Quiz que elle aprendesse a ter o Amôr da Vida, que aquelles pulmões respirassem sem medo e sem pecado as grandes rosas que desabrochavam lentamente, petala a petala nos caminhos da quinta. Que visse no canto das aguas um hymno d'alegria, no chilrear dos passaros e no balançar dos ramos uma festa da Natureza, que elle proprio tivesse a alma constantemente em festa. Assim lhe foi ensinado o pensamento dos antigos. Disse-lhe a alegria imortal das fabulas gregas, os deuses que no vôo rapido desciam do recurvo Olympo e vinham á terra violar os corpos nubeis das filhas dos reis; a dança dos satyros e das faunezas nas clareiras das florestas quietas, as festas da lavoura, as procissões a Céres no tempo em que os trigaes amadurecem, a Dyonisos, quando os cachos são côr de rubim e de esmeralda. Levou-o ás suas terras do Douro a vêr as vindimas, quando elle tinha sete annos. Pelos montes verdes, onde a vinha ri, rasteira, curvada ao peso dos cachos, bandos de trabalhadores curvados cortam, cantando, os cachos e levantam-se um pouco para os lançar nos cestos; de quando em quando a fileira move-se, forma-se em semi-circulo, desdobrando-se como um exercito n'um movimento largo, agrupam-se para debandar outra vez, com rythmo e graça. E as camisas brancas contrastam com os lenços vermelhos, e riem as faces trigueiras, ha uma grande alegria, cantam as boccas, e o mesmo movimento regular dos bustos que se levantam, dos braços que deitam, n'um movimento largo a uva nos balseiros escuros. Depois das vindimas, os balseiros cheios despejam-se nas dornas, nos lagares. O vinho ferve, com um aroma forte. E os trabalhadores cantam, como no tempo da Hellada, glorificando a Terra e glorificando os Deuses. Habituou-o a vêr coisas bellas, a reparar nas minucias das plantas, na finura dos sarmentos, na delicadeza dos coloridos das flôres, quiz que elle amasse as paisagens quietas. E com o pae, André ia contente; não lhe ensinava resas, nem o obrigava a saber lições. O conego e a miss, por um momento accordados, esquecendo as rivalidades das Egrejas Catholica e Reformada, que os separavam e os traziam n'uma lucta constante, censuravam o marquez por aquella educação original, que seria muito bem cabida n'um gentio, mas não n'um cavalleiro portuguez. E o conego desolava-se: --É para admirar que a alma da senhora marqueza não tenha ainda apparecido... Que se ella vivesse, isto era tamanha mortificação, que morreria de desgosto. E miss Lucy, fazendo com a linda boca vermelha um gesto de desdem, terminava n'um tom cortante: --Improper! E André ia crescendo. Gostava da miss, porque era linda, tinha uns olhos verdes, côr do mar, e uma pelle fina, branca como as gardenias, e o cabello tão loiro, que André lhe perguntava se aquillo era oiro. Mas não gostava do conego, porque, em o apanhando nas correrias do costume pelo jardim, logo o prendia entre os joelhos e o fazia recitar, durante muito tempo tantos rosarios d'Avés, padrenossos, de credos, salve rainhas, actos de contricção que André chorava no fim. E D. Benito alegrava-se, dizia que era o Diabo que fugia do corpo del niño. André não se aventurava já a puxar pela batina enodoada do conego, quando elle dormitava no jardim: limitava-se a gritar de longe, e quando D. Benito sobresaltado acordava e voltava para elle a face gorda, André corria a esconder-se no regaço virginal da miss, que se fingia severa: --Aoh! Naughty boy! Very naughty boy. What did you do to D. Benito? Mas ria-se das partidas d'André e beijava a face pallida, os olhos tristes. De vez em quando apparecia a baroneza d'Angra a visitar o marquez. Mal a presentia, André ia esconder-se n'algum recanto misterioso do parque, atraz d'uma estatua, entre buxos altos. Não era que não achasse agradavel estar com a baroneza, pequenina e gentil, com uns lindos olhos frescos e em quem sentia, quando a beijava, um perfume doce; e mesmo os labios d'ella eram mais vermelhos ainda do que os da miss, que os tinha tão vermelhos e emanava d'elles tamanho ardor sensual, que a creança o sentia confusamente. Mas, passadas as primeiras ternuras, a baroneza fazia-lhe um minucioso exame de doutrina, diante do marquez que enrugava a testa, descontente. --Diga lá o menino os mandamentos!... André dizia contrafeito e arrastado. --E os artigos da fé?... E as virtudes cardeaes?... E os Novissimos do Homem?... --Mundo... Diabo... Carne... --Carne, não, interrompia o marquez. Osso! Não é verdade, prima? André não comprehendia, mas gostava, porque a baroneza deixava-o logo e voltando-se para o marquez: --O primo tem esta creança como um filho d'heretico. Já conheci um inglez, e era protestante, que ensinava o catecismo aos filhos! Mas o primo que tem papas na familia... --Chegam para salvar o resto. Escusamos nós de pensar nisso, sorria. --É pena ser seu filho. Tão lindo! Vê aquelles olhos tristes?... --Gostava mais que fossem alegres!... --Ora!... O primo não entende nada d'isto... Que lindos olhos!... Bem... Bem... Tenho de ir á novena. Ao sair, sempre a mesma frase a proposito da escada onde figuras nuas se perseguiam, num lavor elegante e sobrio: --O primo tem a casa cheia de indecencias! Acabo por não voltar cá! André, porem, ia a fazer doze annos; não podia continuar entre o catecismo de D. Benito e o inglez doce da miss. O marquez mandou-o para o colégio. Mas á tarde, quando o conego o trouxe para casa, André abraçou-se ao pae a chorar e a pedir-lhe para não voltar ali. A disciplina escolar, os olhos curiosos dos camaradas que o troçavam, o olhar duro dos mestres, o mau cheiro, a falta d'ar fizeram-lhe ter medo do colégio. E prometeu ao pae tudo, para não voltar. --Até aprender as resas de D. Benito e as da tia Angra! Com grande escandalo de D. Benito, o marquez anuiu. --Escusas de aprender resas. Vou-te arranjar, quando a miss se fôr embora, uma mestra franceza e professores que virão a casa dar-te lições. André ficou admirado. Então a miss ia-se embora? Porquê? --Acaba o seu contracto... André foi, a correr, perguntar á miss. Cheio d'angustia, com uma suplica na voz: --Então vae deixar-me? --Yes, yes, my little André... E afagou-lhe os cabelos. André agarrou-se a miss Lucy a soluçar nervosamente. A miss acariciava-o, queria beijal-o, chorava tambem, comovida, lagrimas de prata que se prendiam nos compridos cilios d'oiro. Fôra a miss, até então, a unica mulher de que André gostára. A ella fazia as suas confidencias, contava-lhe as proezas de brigas terriveis com os amigos, as diabruras feitas ao conego. E a miss tinha sempre um sorriso e um afago para a creança, nunca lhe ensinára orações, não o castigava por não saber a lição, falta que se repetia a miudo; apenas lhe dera uma biblia com gravuras recomendando-lhe a leitura--sem resultado. Á noite contava-lhe lendas poeticas da Inglaterra, castelãs brancas e tristes, almas de mortos que vagueiam e a voz dorida dos pagens soluçando d'amor... Muitas vezes, quando era mais mocinho, fôra a miss, no inverno, aconchegar-lhe a roupa no pequenino leito. Ao adormecer, a sensação branda das mãos delgadas de Lucy na sua face. E cantava como uma musica, a voz que dizia, ao fechar mansamente a porta: --Good night, my little André. Mas a miss partiu em lagrimas dolorosas. André foi acompanhal-a ao vapor com o velho «footman». Já ia longe o navio e ainda André acenava, os olhos molhados, o soluço a contrair a garganta; a miss tambem agitava o lenço, chorando... Tempo depois apareceu em casa, de manhã cedo, quando André andava a regar os seus canteiros, a professora franceza que chegára de Paris. O seu andar era ligeiro e miudo como o dum passaro e evolavam-se d'ella uma gracilidade suave, desde os cabellos palidos até a curva rapida da cinta delgada. Tinha nos pequenos olhos cinzentos uma malicia e um riso. André, que se voltára, ficou boquiaberto. Certamente que a miss era linda como uma santa e doces as suas mãos e a tia Angra tinha os labios vermelhos e um perfume delicioso; mas nunca vira creatura assim airosa, alta e delgada, que balançava o seu corpo quando andava, como se fosse uma flôr, como um bloco de gracilidade a deslocar-se. Ao saber, porém, que era a mestra franceza, não a quiz vêr mais; nem a cumprimentou. Estava persuadido de que era culpada da partida da miss e guardava-lhe no peito, antes de a conhecer, um grande rancor. Fugiu, a correr, para o fundo da quinta e ali ficou a chorar com saudades da miss. Ao almoço André foi repreendido. Ficou calado, os olhos baixos sem explicar o procedimento. O marquez disse-lhe que ia ter outros mestres, pois não podia ficar a saber apenas o latim, as vagas e erroneas noções de coisas que lhe dera D. Benito e as poeticas baladas de miss Lucy. A principio a vida foi dura para André entre os professores indifferentes que tomavam as lições sonoleando, e mademoiselle Renée, hostil, que, pensava elle, tinha causado a partida da miss, linda como uma dessas santas serenas e indulgentes, que teem sempre, nos dedos em fuso, o gesto da benção. André olhava para Renée, disfarçadamente; admirava a graça do seu corpo de que saia um perfume tenue, as mãos brancas, as unhas cuidadosamente tratadas, e, quando ella se abaixava, o palido reflexo da sua nuca doirada. O perfume era subtil e perturbante. Respondia com maneiras bruscas ás perguntas feitas numa voz macia e quente, falava-lhe muitas vezes inglez, fingindo ignorar os termos franceses, para lhe ser desagradavel. Mas Renée Viardot tudo suportava com paciencia, lançava-lhe olhares enternecidos, queria afagal-o até, beijal-o num impeto em que brilhavam os seus olhos claros; mas André fugia logo, apesar dos quatorze annos, como uma creança indocil. No verão davam as lições na quinta, em baixo, junto aos tritões, numa rotunda assombreada. Numa tarde quieta e quente, como estivessem juntos e Renée tivesse ao cólo um livro que interessava André e de que lhe explicava uma passagem, elle inclinou-se mais sobre o seu braço, quasi a tocar-lhe na musselina transparente da blusa, poude sentir o perfume brando e sensual e, interrompendo mademoiselle, perguntou-lhe bruscamente: --Que perfume usa? Nos seus olhos negros havia um quebranto e na face palida duas rosas vivas despertaram. Renée agarrou-lhe na cabeça e mergulhando-lh'a na musselina da blusa: --Est-ce que tu aimes mon parfum? Dis! A impressão foi demasiadamente violenta. André fugiu, a tremer; foi sentar-se sobre o arco verde e doirado dos limoeiros, a tremer, os olhos parados, pensando na sensação deliciosa e rude que tivera. O aroma das rosas que lentamente se desfolhavam, o perfume dos lilazes brancos e dos lilazes roxos que punham nos lilazeiros uma espuma branca e uma espuma roxa, mesmo o cheiro acre dos limões maduros não conseguiram vencer o aroma subtil e sensual do peito farto de mademoiselle. Dias seguidos, André pretextou enxaquecas, fugiu de Renée, espreitando-a de longe com receio e com desejo de se approximar d'ella, outra vez mergulhar a cara na frescura da musselina e muito tempo sorver o inibriante aroma. Um dia, na estufa aberta, examinava langorosamente os cravos que iam já a murchar. Havia-os de toda a côr. Todos os vermelhos, desde a purpura sombria, até ás descolorações das rosas anemicas; gritavam alguns côr de vinho, surgiam roseos e triumphantes, até que desmaiavam rosados puros de geraneos, como bocas novas que querem beijar. E aos vermelhos, quer heroicos, quer tenues, uniam-se outras côres, outras n'elles se fundiam ou se embutiam, perpassavam em alguns laivos fortes de violetas, n'outros espraiava-se um branco que hesitava em ser rosa; aqui um, desesperado, as petalas revoltas, como em arrepelos, era d'um violeta ardido, além outro era todo branco, d'uma quasi irreal alvura, como se anjos os houvessem beijado nas horas suaves em que do ceu cae o rócio... Outro, tambem branco, beijos de abelhas o tinham mordido, n'elle gotejava um sangue avermelhado; mas os vermelhos combatiam, aqui vinho, além quasi roxo, havia como uma lucta de que resaltavam gotejos, que pareciam cristalisar em coraes; em certos, o vermelho do fundo degradava-se, triunfava fortalecido, até que nas pontas recurvas se franjava de roxo. Havia retalhos de tunica do Senhor dos Passos, carnes a apodrecer, pedaços de pelles virginaes, estriados, franzidos, sempre frizados, raiados de côres diversas: aquelles eram «modern style» em côres estranhas que se reuniam, certos cremes onde se dilue o vermelho, tons sem brilho, onde a luz morre, côres de tijollo, esverdeados longiquos que pareciam dormir sob os roseos. Mas todos tinham frescura, todos viviam uma vida impertinente que se affirmava no odor sensual, perturbante e voluptuoso, todos eram d'uma ardente mocidade, quer saissem dos tubos, entre folhas de musgo, quer baloiçassem em hastes longas de craveiros, como que ejaculados, tal a sua soberba. E mesmo os que eram enormes e faziam vergar a haste, como um corpo cançado, na seda fina das petalas tinham sempre sorrisos, um sorriso que excitava. Eram todos sensuaes. Faziam lembrar _croupes_ fortes de espanholas d'olhos languidos e cabeleiras negras mordidas por pentes d'oiro. O langor das flôres, junto á puberdade que nascia e se afirmava e entontecia, como as grandes olaias de marfineo calice, pelos jardins calados nas noites d'agosto, perturbavam, embriagavam André, tal um copo de capitoso vinho que se bebe d'um trago n'uma convalescença. Pé ante pé, Renée entrou e, curvando o corpo n'uma atitude provocante, agarrou-lhe na mão e segredou-lhe: --Quer saber o meu perfume? A bocca vermelha e seca ria-se, contrafeita. --Ha dias, não tive tempo para lhe dizer... Aproximou-se d'André, apertou-lhe as mãos, deitava-lhe, ao falar, um halito perfumado e quente. --Quer saber?--insistiu. André córou e quiz fugir; mas mademoiselle agarrou-o mais, tomou-lhe a outra mão e apertando-lh'as, n'uma caricia sabia, palma com palma: --Não faço segredo: é uma mistura de resedá e jasmim do cabo. Quer vêr? Sem que lhe désse tempo para responder, poz-se nos bicos dos pés, mãos nas mãos, olhos nos olhos, e approximou-lhe da face o cólo tremente. Largando-lhe as mãos deitou para trás a cabeça palida de adolescente e reavivou com um longo beijo a flôr exangue dos seus labios virgens. André beijou-a tambem, os olhos fechados, os corpos unidos, arcobotados um contra o outro. Quando terminou o demorado abraço, André olhou para ella a medo. E por sua vez agarrou na cabecita linda e beijou-lhe a boca longamente, sofregamente... A noite, para André, foi toda de revoltas no leito, olhos abertos, labios em febre, franzidos, a procurar outros labios que não vinham, a desejar beijos, como se elles adejassem esparsos pelo ar e podessem pousar na sua boca. Comparava os beijos suaves da miss com os beijos de fogo que lhe dera Renée. E como era doce dormir depois de sentir as mãos alvas de Lucy a afagar-lhe os cabellos n'um somno tranquillo e doce! e como lhe era difficil adormecer, a revirar-se na cama, apagava e acendia a luz, sempre a lembrar-se da caricia extranha e inedita, do perfume estonteante, do calor dos labios secos, da macieza do cabello loiro, como se fosse de seda, de todo o corpo fino e flexivel que se colára ao seu, e n'elle deixára como cauterisadas placas de feridas, era bom e era terrivel. E toda a noite passou assim, até que de madrugada adormeceu murmurando em segredo o nome de Renée. Era a puberdade que aparecia subitamente, irrompendo d'um jacto, como um poço artesiano de repente aberto. Longo tempo durou esse noivado vermelho. Certa tarde, D. Benito que ainda se arrastava pelo palacio, achacoso e velho, fazendo do dia uma comprida sésta, surprehendeu-os a beijarem-se. Clamando contra as iniquidades da terra, foi-se encontrar com o marquez, que á sombra d'uma tilia meditava Marco Aurelio, e contou-lhe, vermelho, esquecido do reumatismo que lhe tolhia as pernas, entremelando a lingua numa algaravia inconcebivel, a abominação das abominações. O marquez, que pousára sobre o banco de marmore o livro antigo, mostrou-lhe uma haste toda coberta de goivos brancos: --Vê esta planta, D. Benito? É algum peccado que na época propria se cubra de flôres? Repare para ellas. Com que voluptuosidade mergulham-se na atmosfera! Riem n'uma alegria clara e vívida por terem nascido. Da raiz sobe, triunfante, a seiva para as alimentar. Perfumam hoje, morrerão ámanhã, sem pecado, felizes por terem integralmente vivido. O seu polen voará para fecundar outras flores, D. Benito. Deixe que a vida se manifeste, deixe que todos sejam felizes! O conego arriscou uma apoplexia ao ouvir a blasfemia do fidalgo. Teve forças para ir para casa embrulhar as escassas roupas e na mesma noite partiu para Sevilha--queria morrer entre gente cristã, dizia. Não se despediu d'André, nem de mademoiselle, apenas um comprimento seco ao marquez. Fingiu este ignorar o que entre o filho e a mestra se passava. Continuavam no seu idilio. Mas os annos passavam, André fez os seus estudos e o marquez mandou-o para Florença. Renée regressou a França. Partiram juntos, por mar, para Barcelona. Foi entre beijos, que sulcaram o Mediterraneo calmo e transparente, aqui azul-ferrete, além verde-claro, logo ensolado e doirado, sempre transparente. E de noite iam vêr, sós, as mãos nas cintas, muitas vezes os braços se uniam--a fosforescencia que se levantava na prôa, brilhante, n'uma espuma fina, como uma poeira de mica. Como dois amorosos que acabam de dar o primeiro beijo, e logo, na ancia, querem contar mais de mil, mal viram Cadiz branca e pequena, a luzir no recurvo golfo azul; em Malaga não repararam no ar dolente das flamencas, que cantam cheias de volupia, e mesmo no _Paseo_ sacodem as ancas, como n'um convite para uma volupia triste, e os seus vinhedos claros; apenas na cathedral feia e banal, se extasiaram diante d'um quadro, imagem de uma santa. Qual? Não o souberam e chamaram-lhe Nossa Senhora do Desejo insatisfeito. N'uma pequena tela um busto de mulher trigueira, andaluza, forte, pelle doirada, olha para o ceu. Os olhos teem a expressão dolorosa de quem muito deseja. E o vermelho dos labios carnudos, as narinas dilatadas, dizem o que ha de sensual n'aquella expressão ardente. O collo é aberto. E as mãos, ao tapal-o com um lenço vermelho, ainda mais aquecem o tom quente do collo doirado. Indifferentes, viram Valencia entre vergeis, clara e voluptuosa na planicie fertil e o Grao rumoroso, onde moirejam descarregadores nas docas e operarios nas fabricas. E Barcelona que se alastra em renques de arvores nas ruas largas, com seus palacios, suas avenidas, as Ramblas onde se apertam catalães silenciosos, os mercados de flôres cheios de gardenias, de jasmins e rosas, pareceu-lhes triste, porque alli se deviam separar. Em vão subiram ao Tibidabo; donde se vê toda a Barcelona estendida, como um tapete, cortada de ruas; correm, ora direitas, ora em sinuosidades, linhas claras de platanos. Estendem-se as casas até junto ao mar azul, de onde em onde raras torres se levantam e entre ellas sobresahe o vulto gothico e afilado de Santa Maria de la Mar. A ligeira neblina que se levanta do porto e envolve a estatua de Colombo, negra sobre a pedra branca da doca, parecia que envolvia tudo, que dava ás coisas a tristeza que estava n'elles. E Renée chorava, abraçava-se muito a André, obrigava-o a prometer-lhe longas e amiudadas cartas e uma viagem a Paris, quando voltasse, no anno seguinte, de Florença. E assim, por uma tarde triste, conseguiu André leval-a, pelo passeio da Aduana fóra, entre as palmeiras, á estação. E os beijos cantaram, demorados e angustiosos, nas bocas dos amantes, até que uma voz rouca gritou:--Viajeros, al tren!--e o comboio silvou e partiu. André ficou a vêr o lenço de Renée e o comboio que se perdeu n'uma curva, fumegando. Dolorosa foi, para André, essa noite. Pareceu-lhe vasia e silenciosa a pequena alcova onde durante uma semana tinham dormido. Perseguia-o a lembrança do perfume, a macieza e a côr do cabello d'um loiro palido como um sol convalescente, a frescura da pelle fina, todo o encanto e todo o Amôr da deliciosa Renée que o iniciára e que o amára e de quem sentia ainda as lagrimas amargas que se misturavam aos beijos tristes que ella lhe dera nos curtos dias da despedida. E André chorou. Na manhã seguinte partiu para Genova n'um _liner_ da Liguria. Com elle regressavam á Italia cantoras do Liceu. Notou uma comprimaria delgada de cabellos e olhos pretos, que trazia do mercado da Rambla um grande mólho de flôres. Olhou para ella com desejo e n'esse desejo se surpreendeu, quasi esquecido de Renée. Facilmente feito o conhecimento, os dois dias de viagem foram rapidos em inconsequentes flirts, alegrias de dança na tolda e leves concertos no salão. Em Genova se separaram e André partiu para Florença ligeiro e esquecido, com um certo prazer de se ter separado de Renée, que, agora o sentia, começava a pesar-lhe. Em Italia a vida foi-lhe facil entre monumentos e mulheres, em cujos olhos boia uma grande alegria de viver. Teve paixões e conquistas; quiz realisar quadros dos mestres florentinos que diariamente via no Pitti e nos Uffizi; procurou por toda a parte os typos ambiguos, perturbantes no seu enigma, entre efebos e mulheres, adolescentes sempre, ovaes perfeitos de rostos brancos, bocas sensuaes e vermelhas. Nos _corsos_ da Italia passeou em cavallos inglezes; em Veneza poetisou, no Grande Canal, pelas noites claras, sentindo humidade e paixão, até que aos dezoito annos voltou a Lisboa sempre a mesma palôr na face, os mesmos olhos tristes e boca exangue. O marquez aprestava o seu casamento com Violante Cerquedo, filha dos condes de Cerquedo. Só no palacio, sem os risos do filho, procurou distrações na vida mundana. Novo ainda, puzera-se a amar Violante, graciosa e intelligente, cujos vinte annos cantavam triunfantes, como uma primavera florida. Seduziu Violante a intelligencia do marquez, a sua figura aristocratica e a maneira amorosa como a olhava, como se fosse uma obra d'arte. Pouco tempo depois do regresso de André, por um inverno chuvoso e frio, a capella do palacio encheu-se de lumes e casaram. André não deixou os costumes que trouxera de Italia. Paixonetas diversas amorteciam-lhe o coração, até que um dia, perseguindo Martha, uma actriz loura e chique, que lhe fugia um pouco, a tornar-se difficil e desejada, julgou ter «a verdadeira paixão da sua vida», como confessára, depois d'uma ceia fausta e turbulenta, a Jacintho Roquette, seu irmão em letras e seu confidente. André lançára-se, á volta de Italia, doidamente na literatura. Frequentava redações e jornaes, theatros e cafés onde se reuniam jovens escriptores cheios de esperanças e de imprecações, revolvendo as ideias e os livros sem cerimonia, com o ar de quem, do alto d'uma montanha inaccessivel á plebe, residencia olimpica de escolhidos, considerou já os homens e as coisas. Instintivamente fugira d'elles, da sua imperturbavel confiança, do azedume que d'elles suava quando se lembravam d'um exito. Ligou-se ainda mais com Jacintho Roquette, caustico e risonho, com um real talento que desperdiçava em cavaqueiras de café e em artigos feitos a trouxe-mouxe para jornaes e revistas, sempre a luzirem, atravez da luneta, os olhos azues, que dir-se-hiam infantis, no fundo uma grande bondade e um caracter firme. As primeiras impressões d'André tinham tido um certo exito pelo seu paganismo, uma maneira leve de escrever, lembrando a finura que teem os mestres florentinos nas suas medalhas nitidas. Dissera recantos de paisagens, brilhos de mares azues, figurinhas que tinham passado, subtis, pela sua vista, desaparecendo logo, na rapidez das viagens, no imprevisto das caminhadas pelos campos serenos da Toscana. Ser delicado e cético, saboreou a ironia viva e o céticismo escarnica de Jacintho Roquette e juntos andavam pelos theatros, vendo retalhos de peças e demorando-se pelos camarins em flirts com actrizes, ceias pacatas, que as companheiras não supportavam, by their own respectability, orgias triunfaes, até que se apaixonou por Martha, essa actriz magrisella, que guerreava a velhice com pastas de cosmeticos e massagens, a unica mesmo que conhecia e usava os processos parisienses para a guerra da galanteria. Martha tinha uma vida irregular, tecida em mentiras, misterios, certos hiatos de treva, na sua vida, até para os mais intimos. Nunca um só amante, nunca num trimestre inteiro o seu leito conheceu o mesmo corpo, antes variavam, mudavam, com sinceros _beguins_, ás vezes o seu coração e o seu corpo pareciam uma estalagem de entroncamento, como um vertiginoso vae-vem de passageiros. André, n'uma noite feliz, em que uma joia brilhou ante os olhos de Martha, teve a ventura de a acompanhar a casa n'um trem que se desarticulava, guiado por um batedor experimentado. E de manhã, ao almoço, satisfez, contente uma pequena conta de chapeus. Reconhecida a uma generosidade tal, Martha, durante tres dias, foi fiel a André. Mas ao quarto dia, pretextando enxaqueca, recusou-lhe o leito de pau santo e os braços brancos, ferteis em caricias. As enxaquecas repetiram-se e André entrou a desconfiar, a carpir-se tristemente da infidelidade de Martha, a Jacintho Roquette que chasqueava: --Ella recebe-os ambos ao mesmo tempo? Não. Que te importa então? Os beijos que ella te dá teem o mesmo sabôr? Teem. Que te importa o resto? Encontras um perfume estranho no seu corpo? Mas é uma _coquetterie_ o querer variar de perfume. Então? As rasões aduzidas não convenciam André e, lentamente, o que fôra talvez um capricho, o desejo infantil de possuir a mulher da moda que era chic possuir, foi-se transformando em obsessão, em ideia fixa, tinha a necessidade de estar com ella constantemente, rondar-lhe o camarim, espreitava-a entre os bastidores á espera da _deixa_, ia ao meio dia esperal-a á porta do theatro, quando entrava para o ensaio, e, nas noites de enxaqueca, desolado, nervoso, ia com o Roquette dizer mal d'ella, pôr-lhe a nu todos os defeitos, inventando alguns, mas tendo sempre um secreto desejo de a possuir, mesmo nas passagens mais verrinosas surgia a imagem de Martha, nua, a bocca pequena espremida n'um beijo, a offerecer-se-lhe. E André redobrava de violencia, dizia a vida postiça e infame da amante, a teia de mentiras que urdia, as suas baixezas, com um prazer cruel enumerava o rol comprido dos amantes, e terminava quasi a soluçar: --C'est une catin; il faut la tuer; «morte la catin, mort le chagrin.» --Mais uma filipica! concluiu, rindo-se, o Roquette. Vou-te apresentar hoje uma das minhas amigas, a Princeza das Botas Cambadas. Curar-te-hei pela hom½pathia: dentada de cabra, com pello de cabra se cura. Mas Miguel sentia-se frio e aborrecido, e triste, diante das princesas do Roquette, até que um dia, sem dizer nada, decidiu-se a recolher-se á Quinta Alegre, onde havia cinco annos não se demorava, pois depois da sua viagem, tivera uma vida de estroina, que o fazia fugir de casa após o almoço tardio, para só recolher a altas horas ou noite, até madrugada clara. Fizera de Violante sua confidente, e a ella contou, polidas as asperezas, o mal d'amor de que soffria, e o desejo de o curar. --Vou ser teu medico. Deste-te mal com as mulheres... Experimenta as flôres. São mais lindas e fazem sofrer menos. Dirigirás o jardim. Manda fazer as obras que quizeres. Precisamente tens aqui no «Studio» um artigo sobre a architectura dos jardins. Faze modificações á tua vontade. O teu pae concorda; eu ajudo-te, travamos relações, porque, para dizer a verdade, mal nos conhecemos. Desde que foste para Florença que não fallo comtigo, senão á pressa, quando te preparas para sahir. Ainda te vejo menos do que quando eu era uma menina grave e te batia em casa da tia Talleiros, pelas tuas partidas. Olha, ámanhã começa o mez de Maria... Enfeita a capella. Tens ás tuas ordens o jardineiro e o jardim todo. Tens invenção e gosto... olha que eu exijo genio!... --Oh! Genio... sabes?... --Bom; contento-me com talento. --Vá lá, prometto... Apanhando um grande ramo de lilazes brancos, poz-lh'o na cabeça, como um diadema: --Está enfeitada a Santa! * * * * * TIBIDABO AO SR. BARÃO DE S. PEDRO. TIBIDABO Na tarde de agosto quente, fugira de Barcelona para a escalvada montanha que a fanfarronada hespanhola bátisou de Tibidabo, o sitio da Judeia onde Satan prometeu a Christo as grandezas do Mundo e os fulgores do Peccado. O monte levanta-se, precipitadamente, do fundo da planicie em que Barcelona ondeia. E querem dizer talvez na sua os catalães, que Satanaz ergue as creaturas que quer tentar e, firmando-as nos cimos d'este monte, oferece-lhes a cidade, imagem brilhante dos esplendores mundanos. Sob o toldo do restaurante deserto me acolhi, a sentir a brisa preguiçosa. Espalmava-se em baixo a cidade. Corriam as suas avenidas arborisadas, as «Ramblas» que se seguem como uma bicha, e a «Gran-Via», a infindavel «Cortes», que corta Barcelona em diagonal. Quedava-se o Parque enorme e, ao fundo, n'um vago de nevoeiro, o mar azul, riscado pela linha cinzenta da doca, onde os navios acolhidos eram imoveis. Vinha caindo a tarde sobre as raras torres das egrejas. Brilhavam um a um os bicos de gaz e as janellas em que o poente puzera uma luz de oiro. Longo tempo ali estive. Sonhei? Foi real? Não sei. Um mancebo pallido e triste abeirou-se de mim: --Vês a noite a cair? D'aqui a pouco as ruas vão brilhar do fremito luminoso dos desejos das multidões. A cubiça e a luxuria porão brazas nas almas que incendiarão os olhos. As mulheres mostrarão nos bailes e nos theatros o maculado esplendor dos seios perfumados. Nos mostradores das lojas, á luz das lampadas electricas, as joias farão percorrer nas mãos desejos de roubo. A Besta ergue-se--olha como se ilumina a cidade! Vês um clarão que nasce, sobe e se perde no Ceu? Julgas que é dos candieiros? Não, é das almas! é toda debruada de vermelho como as chamas dos incendios. Como é bella a cidade quando é culpada! Voltei-me para o mancebo, tranquilamente. Vi que era o Diabo. Não que tivesse chifres ou cheirasse a enxofre, mas pela belleza triste, de quem conhece tudo. Não lhe tive horror. O Diabo é o gnomo subtil que trabalha na sombra as filagranas das tentações. É o Diabo que amontôa as cidades, inspira os artistas, empurra o homem para as civilisações que apodrecem e brilham. Não lhe respondi... N'um fogacho violaceo, o sol apagára-se no mar. Era tudo cinzento. Pelos canaes das ruas, por entre as arvores, n'uma sombra mais densa, cintillavam os bicos e os mostradores das lojas. O Diabo continuou: --Quero a tua alma... Olhei-o atonito. Para quê a minha Alma? O grande colecionador tinha um museu estranho em que brilhavam todas as taras possiveis. Assassinos vulgares, ladrões de taberna, mães que vendem as filhas, incestuosos, ganindo de luxuria, velhos abades macerados e corroidos pelas disciplinas, que as ilusões vãs de Satanaz venceram, bispos, cardeaes simoniacos, todos os pecados que se engastam como gemas e possuem um fulgor lugubre, como se as pedras dos diademas ardessem nas cabeças, as gargantilhas nos pescoços, as manilhas e pulseiras nos braços, os compridos cintos nas cinturas! Satan tudo possuia, tragicos homicidas, capitães que entregam os seus soldados, reis que mancham os altares, velhas dementes que ululam nas monstruosas orgias, rojando pelo chão os cabellos pintados, crispando as boccas maquilhadas nos espasmos lancinantes, poetas que arrastam a lira pelos lameiros, virgens que se vendem sem amor e sem vicio, toda a constelação dos sete pecados, como sete soes nocturnos, envenenados pela treva, corroidos pela lepra, um museu formidavel, sombrio, apesar de todos os brilhos, frio e angustiante, como um corredor que leva a presentida cilada--era tudo de Satan e queria-me! O pasmo pintou-se na minha cara. --Quero a tua alma! Falta-me na coléção. É por isso que hoje abandonei as ruas das cidades e seus encobertos vicios para subir a esta montanha, que tem o nome de outra, onde prometi tudo e tudo me recusaram. É o nome da derrota. Não sou supersticioso. Tens uma alma de amoroso. Amas pelo Amor. Idealista e sensual, a Fórma bella comove-te como um poema e mais nada. Não tens as crispações dos lascivos. Amas uma mulher e uma estatua da mesma maneira profunda, serena e harmoniosa. O amor não rebenta em beijos violentos, como as folhas das arvores pelas primaveras risonhas--floresce em imagens. Eu, que não posso amar, que soluço angustiosamente pela minha impotencia, quero a tua alma! Quando o Diabo fallou do amor, do negrume da noite que se apoiara já fortemente sobre a cidade e o monte, vi passar, no seu andar musical e casto, tal uma deusa, a Bem-Amada. Foi como se uma via-lactea suave se accendesse e florissem as flôres da terra sobre as estrelas do Ceu... --Não te dou a minha alma. --Vão abrir-se, d'aqui a pouco, na cidade enigmatica, as portas escuras das casas de jogo. Dar-te-hei o segredo de sempre ganhar. Farei correr por ti os cubos amarelecidos dos dados. As pintas pretas far-se-hão olhos e verão onde apontas. As bolas das roletas saltarão por ti nas arestas de cobre... Conhecerás o prazer de ver amontoar na tua frente as notas e as moedas de oiro, de observar, ironico, os rostos, que a angustia encarquilha, dos jogadores que perdem. E os sobresaltos do banqueiro, imovel, mas de olhar esgazeado, far-te-hão rir... --Que importa? Jogarei com os sorrisos que brincam nos beiços finos de Livia. Ganharei sempre porque, quer ella sorria ou não, vel-a-hei e, por vel-a, andarei contente... --Ensinar-te-hei os segredos das cotas, dir-te-hei as confidencias que a si mesmos mal ousam segredar os financeiros internacionaes. E farás cair as grandes emprezas que vão dar ao mundo um aspéto novo. Arruinarás povos inteiros, farás baquear os tronos em que rainhas hirtas se assentam, no pavor das revoltas. Serás o ordenador magnifico dos cracks, e, de paiz em paiz, o teu nome correrá, nos fios dos telegrafos, espalhando o sobresalto e a ruina. --Não quero. Basta que o meu nome seja pronunciado n'uma voz suave pela Bem-Amada. Dito por ella, o meu nome vae, de flôr em flôr, espalhar o perfume da sua bocca. --Amas a mulher? Dar-te-hei as cortezãs vestidas de joias, como idolos antigos. Virão, de rojo, abraçar-te os joelhos, como escravas. E dos corpos alvos e brilhantes subirão perfumes que entontecem... Dos seus braços frescos, como as grinaldas que se entretecem com jasmins, fugirão as caricias. Terão vozes magoadas a suplicar beijos. E, mais que as suas joias, brilharão os seus grandes olhos... --As joias são flores mortas, retalhos de astros que sucumbiram... Essas mulheres são como as joias: os beijos puzeram nos seus corações a dureza, a frieza e a geometrica forma das pedras lapidadas. Prefiro, a todas ellas, o gesto lento e curvo da Bem-Amada quando compõe o seu cabello preto. --A mulher carinhosa e pura é como uma flôr sem perfume. É preciso que o vicio lhes ponha um estremecimento. Dar-te-hei aquellas que envenenam a sorrir, que atraiçoam entre duas caricias, a amante que vae surpreender, n'um beijo, o segredo do amante, o segredo que leva á Forca, aquellas que descobriram ineditas lascivias, corrutas e artificiaes, que eu mesmo vestirei com tecidos fantasticos, que espalham um amavío! --Que amavío maior do que ver a Bem-Amada quando descança a face branca sobre as mãos cruzadas, n'um vagaroso gesto cheio de doçura? --Dar-te-hei a alegria e a insaciedade, a embriaguez que exalta, o redomoinho dos desejos que estrangulam, as bocas avidas e perseguir-te com beijos e dentadas, toda a loucura incendiaria, a profanação de todos os cultos, o poder de corromper, os venenos subtis que matam lentamente e de longe, as misteriosas aguas e misteriosos pós, que fazem definhar, como flores que se fanam, as creaturas... Serás o senhor das almas e dos corpos. --Basta-me vel-a guardar, a sorrir-se, a carta que lhe escrevo... --Entregar-t'a-hei! Poderás tel-a entre os braços, morder a boca fina, sentir sobre o teu peito o arfar apressado do seu collo amoroso, ver os olhos cerrar-se como n'uma agonia doce... A sua figura fragil aconchegar-se-ha entre os teus braços, aquecerás a sua frieza, será tua, reconhecida, amorosa, fremente de paixão... Queres? Dá-me a tua alma! Tive um sobresalto, como quem, passeando n'um jardim florido, pisa um sapo: --Não. Basta-me sentir nas noites claras, quando lhe fallo á varanda, o seu olhar cair gotta a gotta sobre os meus olhos extacticos! O creado veiu dizer-me que ia fechar-se o restaurante. A treva escorregava pelo monte. Um clarão vinha da cidade estendida a meus pés. E vago, confuso, o ruido da cidade com os seus vicios, seus tumultos, o cio que começava. Desci. E, a acompanhar-me, senti a Bem-Amada, perto de mim, carinhosa, a olhar-me longamente com os seus largos olhos pretos. * * * * * A PRINCEZA PERDIDA AO SR. JOSÉ DE SOUSA MONTEIRO. A PRINCEZA PERDIDA N'aquella serena tarde de primavera, a princeza descera com as pequeninas aias e a camareira-mór as escadas de marmore branco e de marmore roseo do sumptuoso palacio real. Era n'uma côrte de complicada pragmatica. Os movimentos eram feitos consoante regras antigas; cada passo, cada mesura, cada sorriso, vinham marcadas no grosso livro que um mordomo-mór colligira, a exemplo do que fizera um imperador bysantino. Apesar d'isso, porém, na côrte esplendida havia um pouco de mocidade. E detraz dos leques de varetas rendilhadas, os labios abriam-se em sorrisos os olhos franziam-se, quando estava distante a hirta, camareira-mór. Os bailes tinham solemnidade como os officios divinos; mas as cores frescas das raparigas, a ligeiresa com que dançavam, a graciosidade que florescia nas suas atitudes rapidamente desmanchadas, logo substituidas, davam-lhes o ar de festas. No grande palacio brilhante, as gentes andavam lentamente, como em procissão. No rosto do mais alegre era preciso espelhar-se, sombria, a tristeza que emagrecia a face pallida do rei. Era mister que ninguem perturbasse, com o tenir fresco d'um riso, a dôr real. Se alguma vez as donzellas deixavam passar o riso atravez das rendas finas dos seus leques, logo a camareira-mór intervinha, sevéra, a repreender. Nos tapetes morriam os sons dos passos; os grossos reposteiros abafavam o ruido das vozes. O silencio era eterno, como essa grande e aniquilladora magua que abatera a vigorosa mocidade do Rei. Em tempo, o palacio vibrára com o clamor das festas; as musicas saltitantes riam nas amplas sallas. Os vestidos claros, em cujos decótes os peitos brancos se mostram, sublinhavam a alegria. Um bobo pequenino e monstruoso punha um chocalhar de guiso em cada frase. E junto da Rainha, loira, pallida, delgada, o Rei tambem sorria, a olhar a flôr preciosa e fragil que pelo braço levava, em movimentos musicaes, como uma ave. Junto á sua frescura luminosa, as joias pareciam flores. E o diadema pesado, sobre os cabellos loiros, era como uma aureola maior n'essa cabeça fina. Ella tambem sorria, olhando os olhos escuros do Rei. E pela bocca vermelha havia como um palpitar de beijos. A festa continuava. Havia no ambiente claro de tantas luzes, tantas joias, tantos olhos contentes, uma alegria maior. Vaporisavam-se os movimentos. As rendas tremiam nos vestidos das mulheres, nos gibões de seda dos gentishomens. As conversas d'amor faziam arfar os seios... O Rei e a Rainha continuavam a sorrir-se, como dois amantes rusticos, que se encontram na vinha, por um suave outomno. Uma noite, porém, a dôr entrou n'esse palacio claro. Ligeiros, para não fazer ruido, como sombras, os cortesãos, as damas d'honor, as aias, passavam, murmurando resas, ou trocando, baixinho, as impressões. Era como um ciciar leve de brisa sobre um campo de flores. Os vultos cruzavam-se: --Então? --Na mesma... --Impossivel salvar-se... --O fisico não atina com o remedio... Era a Rainha, que, como certos arbustos que morrem, depois de florir, finava-se ao dar á luz a pequena princeza. A dôr tragica e calada do moço Rei! Nem uma palavra se lhe ouviu da bocca crispada. Nem um grito na luctuosa camara onde carpiam as senhoras da côrte. De joelhos junto ao leito magnifico, onde se postára depois de ter cerrado os largos olhos garços, o Rei chorava em silencio. Os frades diziam monotonamente, como um esvoaçar de insectos, as resas rituaes. Um ou outro soluço, a desolação d'um ai, cortavam a funebre quietude; mas o rei, entre as suas as mãos finas e amarellecidas da Rainha, não tinha um grito, nem uma palavra. Nos labios da morta ainda havia o sorriso, esboçado a olhar para o marido... O Rei mandou retirar a todos do quarto. Quiz elle proprio vestir aquella que tanto amára. Beijou-lhe os olhos de palpebras azuladas, beijou os cabellos, que na imprecisa penumbra, tinham um brilho d'oiro... Outra vez caiu de joelhos. Então as palavras de dôr, abundantes, sairam dos labios tanto tempo represos. Disse-lhe o grande amôr e a grande magua. Prometteu-lhe viuvez eterna; que a sua alma se conservaria fechada, como um relicario, a guardar a imagem quasi divina da mulher primeira amada, unica... Longo tempo se conservou, as mãos frias da morta entre as suas, no quarto silencioso, onde apenas os seus queixumes davam uma nota de vida. No lampadario já se extinguiam as luzes, que, de quando em quando lançavam, altas, dentadas, labaredas azues e d'oiro. A madrugada clara entrou pelas janellas, como um chilrear de passaros. A vida renascia, musical, da noite escura. No coração do Rei a dôr fizera uma sombra eterna. Entre os brandões acesos levaram o cadaver, vestido por mãos mercenarias, que as do Rei nem tinham forças para o peso dos anneis... Filas de bispos mitrados, graves e compungidos, seguiam o feretro atravez as ruas da cidade e por estradas risonhas, até o convento magnifico em cuja egreja jaziam todos os numerosos reis e rainhas da casa real; seguiram os fidalgos como seus escudeiros de lucto; seguiu, commovido, o povo, que pranteou a morte d'aquella que fôra linda e nas ruas sorria ás criancinhas pobres, que lhe pediam a benção... Era uma comprida fila que se perdia nas corcôvas da estrada. As confrarias, os conventos mandaram os irmãos e os frades, com as insignias. E áquelle radioso sol d'agosto, que punha na athmosphera uma tremura, tudo resplandecia, como uma apotheose. Brilhavam as lanças, brilhavam os ouros, brilhavam os báculos e sobretudo refulgiam as insolitas pedrarias dos bispos, caminhando magestosos e tristes. E o psalmejar dos padres, ouvido ao longe, perdia a nota de lamento: era como o ultimo echo d'um canto de victoria, no dia glorioso... No palacio quasi deserto, o Rei ficára no quarto vazio. Como arredal-o de lá? De joelhos ainda, pensava talvez ter entre as suas mãos os dedos finos da Rainha morta. De quando em quando um soluço parecia estalar a garganta. E as lagrimas desciam pela face, iam morrer na barba perfumada. Olhava para o grande espelho, onde a Rainha costumava ageitar, á noite, os cabellos fartos. Lembrava-se de ter alli visto o gesto gracil, aquelle pó d'oiro, e o corpo que tinha a frescura e a elegancia d'uma flôr que vae a desabrochar. Porque não guardam os espelhos as imagens reflectidas? Teria alli, viva, a Rainha, na attitude de compôr as sedas das suas tranças... Mas os espelhos deixam tudo escapar. Assim os lagos não guardam, no seio ligeiro, voluvel, o vôo curvo das pombas que fogem... E para alli se quedava, vivendo do passado, como um velho... Que importava que as guerras na fronteira distante assolassem o paiz? Que tinha que os povos gemessem, que as catastrophes aluissem as cidades fulgentes ao luar e ao sol nas suas cathedraes preciosas, que os rios, saltando os leitos, invadissem as aldeias claras? Que importava a vida se elle só vivia da morte? Mergulhassem os outros no passado os olhos cubiçosos e vivessem de tanto explendor de batalhas e de riquezas que listravam de clarões a historia do reino afortunado. Na miseria presente, que se recordassem! A propria princeza entre as mãos das açafatas, delicada e linda, ia vivendo, nos grandes olhos verdes, uma tristeza, como quem sabia... No palacio sevéro, lugubre, sem os tinidos das alabardas e os mantos que formavam lagôas, nas alcatifas, ninguem se via. E ella, a pequena princeza, não aprendera a rir e tambem não chorava. Uma vez ou outra, ao atravessar silencioso e só as camaras, o Rei via a princeza; machinalmente as suas mãos pallidas passavam pelos cabellos loiros da filha. E seguia, taciturno, sempre diante de si a imagem d'aquella que morrera a sorrir e o esperava na crípta silenciosa do austero templo gothico. Ensinavam as aias á princezinha, não relatos crueis de contendas, nomes temidos dos reis seus avós, mas historias maravilhosas. Diziam-lhe que á noite, os grandes calices das magnolias abriam-se, com um ruido musical. E de dentro saiam côrtes de fadas minusculas, vestidas com mantos tecidos com raios de luas-cheias. Pelo parque andavam livremente entre as roseiras explendidas... Contavam-lhe que á meia-noite, as arvores se desprendem da terra e vão beber, como os gados, ás limpidas ribeiras. Ella sabia que entre si os animaes falavam, as andorinhas nos bicos dos telhados, os cisnes brancos nas lagôas azues, os pavões sobre as arvores, quando espalmam as enjoalhadas caudas, as pombas brancas á beira dos poços, sobre o marmore polido. Conhecia os trabalhos ligeiros dos gnomos, que nas cavernas escuras trabalhavam o oiro e o ferro; distinguia os alfagemes, que afiam as espadas mortiferas, e os ourives, que afilagranam os metaes. Diziam-lhe as lendas floridas dos amantes, de cujos tumulos saem sorrisos carregados de rosas, que n'um arco perfumado se abraçam a misturar os perfumes... Mas a pobre princeza, apenas nubil, não conhecia a Vida, nem o Amor, nem o Riso. Um dia, pois, a princeza, com as pequenas aias, desceu ao jardim do sumptuoso palacio. Misterioso por tantas sombras, tantos caminhos que se contorciam por entre rugosos troncos, tantas aguas que cantavam nos marmores brancos, tantas flores que dentre a verdura perfumavam... De socalco em socalco abriam-se, em leques, as escadarias; saltavam as aguas das cascatas, despenhavam-se as trepadeiras floridas, rastejavam as hervas, rosas de toucar e jasmins lançavam os ramos frageis. Junto ao palacio o jardim era cuidado, como uma cabeça garrida. As largas flores espargiam os aromas; os repuxos finos esguichavam fios de prata, pelas ruas areiadas passavam, magestosos os pavões solemnes... Mas depois, começava a floresta. As altas arvores luctavam, estorcidas: algumas subiam, magras como pedintes, n'uma aspiração, muito direitas para o sol. Outras torciam-se, esta sem forças, esgarçava-se mirrada. E a hera crescia, vestia os troncos, até nas arvores secas vicejava, como uma mascara risonha n'uma face de morto. Alguns troncos de seculares carvalhos continham grutas escuras. E os passaros, dentre os galhos, ao ruido dos passos, levantavam vôo, alvoroçados. Era o «Caminho das Rosas», que alli levava. Rosas de toda a côr: ensanguentadas, brancas, côr de mel e de marfim, côr de carne, rosas para florir peitos de danados e para tranças de primeiras commungantes, rosas que abrem chagas no verde das roseiras, outras que chamam beijos, como colos nus em festas illuminadas, rosas que teem toda a pureza d'uma noiva, outras toda a garridice d'uma amante, rosas para tumulos, brancas, mortas quasi, rosas cheias de vida, que pareciam querer saltar das hastes, e offerecer-se, lascivas... Vinha do seu conjuncto um perfume entontecedor. Por tanto aroma lançarem no ar, nas noites quentes d'agosto, algumas damas da côrte caiam, em deliquio. E todas tinham medo d'aquelle portico encantado, que parecia abrir para um paraiso, mas que podia descer a algum abismo. Foi para ali, que, correndo atraz d'uma borboleta, se dirigiu a princeza. Em vão lhe prenderam as vestes de seda os espinhos das roseiras, em vão a chamaram as pequenas aias; mesmo foi debalde que a voz secca da camareira-mór gritou por ella, entre respeitosa e auctoritaria. A princeza, a rir, córada, continuava atraz da grande borboleta, deixando tiras de seda nos galhos em flôr que, sacudidos, lançavam sobre a sua cabeça petalas finas. Ninguem, comtudo, se atreveu a ir atraz d'ella. Corria no palacio e na cidade uma lenda extranha sobre a floresta, que continuava o jardim, depois do perfumado «Caminho das Rosas». Dizia-se que n'uma epoca remota, no tempo em que pela cidade luminosa e culpada ainda passavam os santos ensinando a Lei e edificando as gentes, governava o reino uma rainha pagã. No jardim murmuroso e claro havia fremitos de beijos. Nas aguas dos tanques brilhavam corpos ligeiros. Nas sallas que as tochas e os lampadarios illuminavam, mulheres quasi nuas dançavam levemente ao som de musicas alegres. E o vinho levava das taças lavradas ás boccas vermelhas a alegria e o Amôr. Por toda a parte havia flores, havia risos, havia festas. Os cavalleiros, nas justas, paravam; morriam as scentelhas em que ardem as espadas no choque dos combates, e das boccas frescas saíam vozes a cantar a formosura das florestas, a elegancia das mulheres, a limpidez das aguas cantantes. Um dia, um santo bispo entrou, andrajoso e cançado, a pedir pousada; a rainha, ao vel-o tão miseravel, mandou-o recolher no canil, com os creados das matilhas. Os cães, piedosamente, foram lamber os pés em sangue do santo homem. Mas a Rainha não o quiz receber. Como de S. João Baptista, as palavras subiam para as portas, asperas e condemnatorias. Toda a noite a sua voz rude annunciava o castigo. A Rainha, cançada de ouvir a voz rouca, mandou-o açoitar e expulsar do palacio, em que reviveu a alegria. Mas durou pouco, porque um dia uma lingua de fogo saiu da terra, e agitou-se no ar, de sangue e oiro; espavorida, toda a côrte fugiu, para não mais voltar, para a floresta misteriosa, que ninguem sabia ao certo onde acabava. E todo o reino teve medo, como d'um inferno, d'essa floresta que começava por uma extranha floração de rosas e terminava porventura pelos eternos gelos, pelas labaredas, talvez... Por ali seguira a princeza, a rir-se. Em vão o Medo guardou durante seculos a misteriosa entrada. Em vão as rosas se agitaram, como turibulos, para a entontecer com o perfume, e os galhos a prenderam, e os espinhos lhe rasgaram as rendas e as sedas. Foi correndo. A borboleta enorme parecia uma joia a fugir por entre as flores. A princeza era como uma ave, delgada e linda, atraz d'ella. Subitamente a paisagem modificou-se. Do dia glorioso que estava no jardim do palacio, nasceu um crepusculo doirado, como um velho damasco amarello. A luz parecia um convalescente a rir-se por cima das arvores, pelos tanques quietos, pelos marmores. E as folhas das arvores tremiam fazendo brilhar os filamentos d'oiro. As flores tinham todas um aroma ligeiro, como os frascos de perfumes, que durante longos annos se guardam, vasios, nos armarios fechados. Eram brancas todas as rosas e as petalas enrugadas, como pelles finas de velhas, que viveram nos claustros, entre cosmeticos. Quando a princeza deu pela mudança da luz e da paisagem lembrou-se da lenda pavorosa que afastava as gentes da floresta e do Caminho das Rosas. --Onde estão as linguas avidas do fogo? perguntava-se. Onde os gelos que prendem e matam? Onde os dragões? A paisagem era toda serena e d'um riso triste. Dir-se-iam anemicas as flores palidas, as anemonas de seda velha, de cera transparente, que por toda a parte deixavam cair, de cançadas, as petalas finas. E nos caminhos a areia preta era crusada pelos veios das hervas rasteiras, coberta pelos galhos dos arbustos, aqui sacudiam-se rosas, alem os geranios frescos. Pelos troncos direitos das arvores a hera enroscava-se, a subir. Nas curvas dos tanques, dormiam os nenuphares. Nos marmores dos poços as trepadeiras cobriam os lavores. Havia um silencio leve, por onde perpassava o espirito d'um canto, como um aroma que a brisa traz de longe. Os templos tinham as portas abertas. A princeza para elles entrou, a medo, a espreitar, afastando os loureiros e os mirtos, que quasi fechavam a entrada. Ninguem. Apenas os deuses de marmore, calmos, esperavam as oferendas. Mas as aras dos sacrificios tinham humidade da lavagem recente. As cinzas eram quentes; no templo d'uma deusa havia grinaldas de rosas e pennas de pombas brancas soltas pelo chão. Alguem ali vivia, pensava a princeza. Mas quem? Genio malfazejo, que a mataria, ou fada carinhosa? Seria ali que nas noites claras virião passear as côrtes sumptuosas que moram nos calices das magnolias? Habituada ao silencio sombrio da côrte não a inquietava aquelle silencio leve. E continuava a explorar a encantada floresta, onde parecia agitar-se um simulacro de vida. Como um coração que vive da saudade dos tempos remotos, assim ali parecia existir a repercursão d'uma vida antiga. A cada passo a princeza encontrava signaes de sandalias, flores cortadas, uma fita, indicios de vida. Mas d'onde partiam? Quem os deixava? Viveria ali, n'aquelle paiz de luz anemica, uma côrte de feiticeiras tragicas, que esperam, para sair das cavernas, as badaladas lugubres da meia-noite? Mas não. As feiticeiras escolhem as montanhas altas e escarpadas onde chegue o canto soturno do mar revolto, sem arvores que impeçam o vôo incendiario das blasphemias e das imprecações para o ceu sem lua e sem estrellas. Ia caminhando a princeza. Via ribeiros claros que escorregavam sobre seixos brancos; lagôas azues, fachadas de templos, quincuncios bordados por buxos altos. E as ruas seguiam entre filas d'altas arvores formando tunel, até serem cortadas por novas ruas, com arvores ou flores. Cançou-se a pequena princeza. Um vago terror a invadiu. Quiz regressar ao palacio, mas não podia. As ruas d'arvores, os templos, os ribeiros, as estatuas, sucediam-se. Parecia-lhe estar n'um complicado labirintho. Como conseguir o magico fio? Uma noite, que parecia artificial, espalhara-se pelo ceu e envolvia as coisas. Á tonalidade doirada, succedia uma tonalidade branca, como se tudo fosse feito de prata. A princeza sentou-se n'um banco, a chorar. Ouviu de longe como um passar de brisa leve por harpas suspensas em arvores. Escutou. Era um canto que um côro fazia subir, ligeiro como um fumo. Mais se approximava. As vozes eram cançadas, mas limpidas. Cantavam a vida e as festas, o rir das flôres, a alegria das arvores na primavera. Cada vez se approximavam mais. Dirigiam-se, certamente, para o sitio onde ficára a princeza, um jardim junto d'um templo de marmore verde. Já via as canephoras, com açafates de flores, seguidas pelas escravas com tamboretes; depois a numerosa theoria de mulheres, com archotes, que, ao queimar-se, illuminavam e perfumavam. Não havia homens. Certamente que vinham para a festa atheniense das Thesmophorias. Eram as habitantes da floresta. Caminhavam lentamente, as cunharicas fluctuantes sobre as tunicas amarellas. As hidrophoras traziam as urnas na cabeça. N'um gesto gracioso, seguravam-as com uma das mãos; os braços nus eram tão brancos como os marmores transparentes das urnas. Quando viram a princeza, medrosa, a esconder-se entre as arvores, a procissão parou, as vozes calaram-se, a meio do canto. Em voz baixa concertavam entre si a resolução a tomar. A princeza ouvia apenas um zumbido confuso, como os das abelhas, quando nos dias quentes se cruzam pelos jardins floridos. Colada a um tronco, palida como um ex-voto de cera, viu com pavor approximar-se d'ella uma das habitantes da floresta. Era porém, tamanha a sua beleza e a sua gracilidade, que o medo tombou do espirito da princeza. Pensava-se ver uma haste florida a andar. Vagarosa, os seus gestos curvos e lentos pareciam fazer nascer no ar quieto uma harmonia... --Perdi-me aqui! Perdi-me aqui! --D'onde vens? --Do palacio. Sou a princeza. As minhas aias não se atreveram. Eu corri para apanhar uma borboleta. A borboleta fugiu. Fiquei sem saber onde estava, que caminho tomar. Isto é tão lindo! Mas faz tanto medo não se saber onde se está! --E queres voltar? Deixaste teu pae e tua mãe... --Minha mãe morreu. Meu pae não o vejo... quasi nunca. É um velho triste e duro, que não fala... Tenho medo da camareira-mór. E as aias estão a chorar ás escondidas d'ella como sempre... A vida é triste, triste, no palacio... --Preferes ficar comnosco? A boca fina pareceu sorrir-se. A princeza olhava para as mais que se tinham acercado. Eram todas lindas e moças, mas sem frescura, como as rosas que abrem pelas chuvas e ventanias. --Se me quiserem. Se me quiserem. --Pois ficarás! Ficarás! Vem comnosco! Poz-se em marcha o cortejo, novamente. Entraram no templo com a princeza. E a princeza ali ficou, porque nos rostos se conservava a mocidade e não havia a dôr, nem o constrangimento. Tudo era claro e sereno. E não voltou mais ao palacio, onde as aias choravam e a camareira-mór, seca e hirta, tinha uma voz esganiçada e autoritaria. * * * * * NOITE DE FESTA A ARMANDO NAVARRO. NOITE DE FESTA Era o jantar de despedida de Dowanov, que partia para o Mexico, promovido a ministro. Jantar de secretarios de legação, que formam uma confraria, para, na critica dos chefes, tirar uma consolação do exilio, correra um pouco triste. A minha intimidade com o novo plenipotenciario, que viera da communidade de vistas sobre a numismatica bisantina, abrira em meu favor uma excepção. No pequeno gabinete do Avenida Palace, a conversa versára sobre diplomatas e postos. Dowanov, como todo o bom russo, suspirava por Paris, onde estivera adido. Contava as suas tribulações junto do embaixador solemne e desdenhoso, que, sabendo-o apaixonado por corridas, nos dias de steeples e handicaps sensacionaes, sob pretexto de serviço o mandava chamar com urgencia, mas realmente para o impedir de divertir-se em Auteil e Longchamps. Apesar de tudo, porem, sorriam-se-lhe os olhos ao lembrar-se das pequenas colhidas _un peu partout_. A minha presença não permitia as confidencias sobre a monotonia da pequena cidade da provincia que é Lisboa. Havia um constrangimento. Por isso falaram de companheiros, indicaram silhuetas vistas um momento, logo esquecidas. --O que será feito d'esse roliço Kordst, que estava, no meu tempo, encarregado de negocios em Bucharest? Nunca mais soube d'elle? Devia ter morrido da falta d'um bilhete. Lembro-me que ia provocando uma questão internacional, porque o ministro d'Austria, ao apresentar-lhe o adido russo, disse primeiro o nome de Kordst. Moravamos no mesmo hotel. Foi procurar-me apoplético: --O que terá contra mim o ministro d'Austria? Não lhe fiz coisa alguma!... Não me lembro. Ainda hontem, na recepção, lhe dei o meu logar no sofá!... --Kordst? Com o amor que tinha aos bilhetes de visita, fez-se litografo, provavelmente... Sabem de Camusot, o adido militar francez, que tinha uma mulher que andava aos saltos, como uma pêga? Não conheceram? Você, Poliano? Não me disse que tinha estado com elle em Vienna?... --Não. Encontrei-o em Roma. A mulher realisava o typo perfeito da _gaffeuse_... Em que liquidou? --_Croupier_ de batota, em Spa... Tinha ar... Um dia, no Jockey, perceberam que corrigia a sorte, no baccará. --E Blumen, o chanceller da embaixada allemã, que conheci, de relance, em Madrid? --Em missão junto de Menelick. Emborracha-se com o Negus, formidavelmente, com cerveja de Munich. Tem a simpatia dos ras; ouvi que iam crear em sua honra a ordem do Bock, na Abyssinia... --Era o intimo do conde de Strifforth... Que é feito de Strifforth? Herdou já o _peerage_? Diziam-o muito considerado no Foreign Office. Pensou-se n'elle para sub-secretario de Estado... --Nunca lhes contei a morte de Strifforth? --Morreu? --Vi-o suicidar-se. Acompanhei-o nos ultimos dias. Foi em Sevilha. Tinha-o conhecido em Londres, no seu ultimo _congé_; quando fui promovido para Madrid démo-nos muito ali. Morreu d'uma maneira singular, n'uma festa da marqueza de Carrillos, na sua quinta de Eritaña... A melhor festa de Hespanha... A mais elegante e romanesca; dava a sensação da embriaguez d'uma boneca de Saxe, n'um Walpurgis. Havia feiticeiras novas, ou melhor, ninfas. A quinta é deliciosa, um pouco acima de Sevilha; o rio corta-a e para passar d'um lado a outro ha pequenas gondolas com camaras para duas pessoas sómente. A Carrillos, um pouco artista, um quasi nada doida, levou uma ranchada de gente para o seu palacio, do tempo de Pedro, o Cru, para uma festa de mascaras pela Piñata. Era tudo gente nova, salvo uma ou outra mãe que ia fazer a decencia. Mas achavam-se deslocadas no meio da nossa alegria e, intelligentemente, retiravam-se para sensacionaes partidas de bridge. Só nos viamos ás refeições. Uma _party_ deliciosa, que acabou n'uma tragedia, um pouco de _guignol dernier bateau_, entre musicas leves... É melhor contar tudo, ab ovo... --Sim... Desde o congresso de Vienna. O pae foi secretario d'um dos plenipotenciarios inglezes... --Ainda de peito? --Não. Strifforth era filho de velho... Isso explica muito o seu temperamento. --Vá, psicologo! --Este Mumm não me diz nada! Traga Montebello! É um pouco da Carreira. --Por afinidade? --Então o antigo embaixador? --_En disgrace?_ --Sim. Ao quarto filho da czarina elle criticou:--«Ce n'est pas une femme--c'est une pondeuse!» --Conta a historia tragica! --A marqueza de Carrillos levára a sua filha, aquella inquieta Mathilde, noiva por sport, tecendo e desarranjando os casamentos, como Penelope a famosa teia. Para ella não havia flirts: tudo noivados. É possivel que, de a experimentar tanto, a grinalda nupcial estivesse já enxovalhada. Conheceu a Carrillos? Você? Você? Ninguem? Fina como uma _flûte_ de cristal cheia de champagne _mousseux_, ondulosa, sempre pronta para o ataque e para a resposta, fazia a chuva e o bom tempo na sociedade, e tinha um dom especial para pôr alcunhas que logo faziam o giro de Madrid e crismavam as creaturas. N'um dos seus numerosos noivados a mãe, oppondo-se, disse-lhe:--«Que sogra vaes ter!» A Mathilde, sem pestanejar:--«E elle, mamã? E elle?» A marqueza ria-se perdidamente com os ditos da filha, regosijando-se:--És digna de mim! --E Strifforth? --Lá vae. Ora fez-se a festa. O costume Luiz XV era de rigor. Por uma noite estrellada, espalhámo-nos pelo jardim. Pelas janellas do palacio corriam grinaldas de fogo das _bandes souples_ que as ligavam. Eram tulipas de todos os córtes que d'entre a folhagem se uniam, pondo um traço florido entre o incendio que vinha das multiplas janellas abertas sobre o parque e sobre o caes. Pelos troncos das arvores envolviam-se em espiras as serpentes luminosas, marchetadas, e abriam-se em mil luzes nas copas, davam, ao longe, o aspecto de uma joalheria que ardesse na noite quieta e calada, essas noites amorosas da Andaluzia em que tudo parece estacar n'um beijo supremo... Pela margem do rio a mesma florescencia, mergulhando na agua, dando ao rio a aparencia fantastica de um ceu que se afundasse. De repente musicas invisiveis tocaram as melodias leves, _gavottes_ suspiradas, em que ha um pouco de amor, um pouco de dança, como num flirt. E do escuro d'uma angra moveram-se gondolas ligeiras, em que ardiam e estremeciam largos balões venezianos. Os remadores, ensaiados, iam quasi ao compasso ligeiro das _gavottes_. Tinhamos a impressão d'uma dança de gondolas, um sonho estranho de veneziano, pelas horas misteriosas em que as coisas inanimadas tomam vida. Do levantar dos remos das aguas, saltavam cintillações de pedrarias. E a linha tortuosa de balões augmentava o incendio, na vibração de tantas reluzentes joias a agitarem-se na agua do rio... Fomo-nos metendo nas gondolas. Os _novios_ acolheram-se prestes ás gondolas mais pequenas. Uma maior levou muitos de nós, descazalados, a Mathilde Carrillos, Strifforth, a condessa de Valdelar... --Conheci-a em Roma... --O marido foi gentil-homem do Papa. Preciso falar d'ella. Foi a principal figura d'este drama. Typo de hespanhola? Não. Mais italiana do que hespanhola, com uns largos olhos pretos, cheios de doçura. O seu gesto era harmonioso e curvo, sem uma aresta, sem um angulo, uns nascendo dos outros sem solução, como as frases d'uma melodia. Tinha-se, ao vêl-a, a sensação de que se ouvia uma musica dolente, vagarosa. E os proprios olhos moviam-se lentamente, como pesados de tanta luz e tanta belleza... Enigmatica, guardando n'um jardim encantado a sua alma, ninguem prudente ousára definil-a... Poetica talvez, ou simplesmente aborrecida, fugia em S. Sebastian do Casino e do Hotel du Palais e ia, á tarde, só, vêr as crispações do poente nas vagas que eriçam de espuma o mar azul. Sentava-se n'um dos rochedos, ás vezes desenhando, outras a cabeça a descançar na mão, e ali se quedava a tarde inteira, alma talvez de sereia a chorar pelo mar, a querer aprehender no perfume da brisa, alguma palpitação do oceano. Nenhum de nós se atreveu nunca a interrompel-a, apezar da attracção que todos sentiamos pela sua figura gracil como uma amphora, da sua _toilette_, de toda a elegancia pessoal e do misterio da alma ávidamente guardada... Strifforth apaixonou-se por ella. E, solitario, deixando as excursões amiudadas que fazia ao Casino de Biarritz, andava de barco para vêr, isolada no rochedo, sem uma tristesa na face, a condessa de Valdelar, certamente a mais formosa, a mais perturbante das senhoras de Madrid. O conde de Valdelar ficava no hotel, gottoso, na leitura de livros licenciosos, que salpicava de casquinadas nervosas, irritantes, indifferente á belleza e á alma da mulher. Strifforth conhecia-a e procurava todos os raros momentos em que ella apparecia, de manhã na praia, á tarde no boulevard e, uma ou outra vez, pelas grandes festas, no Casino, que atravessava n'um andar leve, dando-nos a sensação que tinha azas que a sustentavam. Nada lhe permitira ainda uma declaração. A condessa fallava-lhe, como a todos nós, em coisas indifferentes, em festas, touradas, partidas de tennis, impressões rapidas de viagem e deixava-o sem pressa, mas sem pezar, absoluctamente correcta. Elle fallava-lhe do mar, mas a condessa tinha uma phrase banal, mudava d'assunto, como se tivesse pudor d'esse sentimento, que parecia absorver toda a sua vida. Foi n'esse tempo que Strifforth começou a picar-se com morphina difficilmente adquirida, a beber perfumes, com horror aos cognacs, e a arrastar uma vida d'automato, sempre com esperança de a vêr, de lhe fallar. E, em a encontrando, pousava sobre ella os olhos tristes, largas horas, inconvenientemente. Em Madrid, todo o inverno foi assim, com menos occasiões de a vêr, porque a condessa frequentava pouco o Retiro e a Castellana e raramente aparecia na sociedade, demorando-se o bastante para não parecer aborrecida, mas saindo logo, com um tacto perfeito. Á vida escondida da condessa correspondia uma outra vida secreta de Strifforth, ebrio, em desesperos que o alcool longe de adormecer intensificava, fugindo a tudo o que fôra d'antes o seu enlevo, até do Museu do Prado, onde ia todas as manhãs--á minha missa, dizia elle--para vêr os Velasquez e os Grecos... Mas, quando tinha que ir a alguma parte com esperança de encontrar a condessa, o meu amigo não bebia para poder gozar inteiramente a presença e a voz d'aquella que amava. Depois a embriaguez exagerava a impressão, dava-lhe, quasi real, a presença da Valdelar. Meteu-se no ether, alem da morphina e dos frascos de perfume--Parece que como flores, explicou-me--arruinando por completo a saude, tornando mais agudas as crises de desesperos, mais asperas, pelo enigma que para todos nós era essa mulher esplendidamente artificial, que trazia uma mascara na sua face calada. Coquette? Decerto, mas egualmente para todos, porque os seus movimentos eram regrados por uma musica ineffavel. Mas talvez coquette só para si, porque nem um só olhar ou palavra auctorisou ninguem a dizer-lhe um galanteio atrevido. Fallou-se na festa da Carrillos, organisou-se a lista, e Strifforth, que não tinha relações com a marqueza, logo que soube que a Valdeler era da partida, solicitou, pondo de parte sem hesitação o seu orgulho exagerado, uma apresentação e um convite, logo alcançados, não só por ser muito _choyé_, mas tambem porque transpirára a paixão e todos se interessavam pelo pobre rapaz, havendo até censuras á Valdelar, que de nada era culpada. Fomos n'um expresso vagaroso, atravessando desoladas paisagens, até Sevilha. Não conhecem Sevilha? É a cidade mais feminina e voluptuosa que conheço. Á tarde, vista da Giralda, ella se nos oferece, nua, ondulosa, apenas com a cinta azul do seu rio e as joias das cupulas e das janellas que scintillam ao poente. Parece que estaca o movimento, e que, na alcova enorme que é a planicie, Sevilha se estende, com flôres no cabello e uma volupia extrema em todo o seu ser. Anda no ar um amavio. Tudo nos falla d'amor sensual e quente, até os olhos largos das sevilhanas, que parecem recortados n'esses enormes amôres perfeitos de velludo. Foi ali que tivemos a festa de que lhes fallei. Imaginem que na margem esquerda, a dois kilometros da quinta da Carrillos, ha uma _venta_, cuja varanda se debruça entre trepadeiras, sobre o rio. A marqueza tomára-a sem custo por sua conta e alli varias musicas nos tocaram, não _gavottes_ leves, mas doridas malagueñas em que se arrasta um langor, como um beijo em que toda a alma succumbe. Um jacto de luz inundou a gondola. A condessa levava as mãos dentro de agua, curvada ella propria para o rio. Strifforth ia sentado sobre a borda. Deixou-se escoar vagarosamente. --Caiu um! --Strifforth! Logo os braços se estenderam, um dos gondoleiros deitou-se á agua e poude tirar Strifforth, todo ensopado no seu fato de seda.--Borracho! Borracho! _Mais vous êtez ivre! Dites_!--Strifforth, não bebera uma gotta. Eu ficára proximo d'elle. Os musicos não tinham dado por nada. A musica continuava dolorosa e amorosa. A gondola seguiu, deixando o traço de luz que brilhava e se quebrava d'encontro ás leves vagas. Houve risos. Rodearam-o com grinaldas. A Valdelar teve, como os outros um riso.--Escorreguei!... explicou apenas o conde. Mais adiante, porem, já a musica se ouvia em surdina, Strifforth deixou-se cair outra vez.--É demais! Está bebedo! gritaram. As cabeças empoadas inclinaram-se novamente para a agua. A Valdelar, que tornára a mergulhar no rio os braços nus em que escorriam as rendas molhadas, ao sentir a queda, agarrou-o por um braço, indiferente. Strifforth, porem, deu um vigoroso impulso e desprendeu-se d'ella... Houve um panico. Foram buscar archotes. Não calculam o macabro das nossas figuras de _petits-abbés_ e gentishomens procurando, nos barcos, que de tanta luz pareciam incendiados, um homem que se queria suicidar. Os gritos cruzavam. Das pequenas gondolas surgiam vultos negros iluminados á maneira d'um Rembrandt que tivesse adivinhado Turner e Whistler, em chapadas de luz multicôr. Na nossa gondola um borborinho correra. Alguem desmaiára, até. As cabeças empoadas agitavam-se. Ao longe, as malagueñas continuavam num suspiro lascivo e preguiçoso. A Valdelar voltára á sua primitiva posição: brincava com a agua, que lhe passava entre os dedos abertos, pondo-lhe aneis que fugiam, logo substituidos. Não tornamos a saber de Strifforth. O cadaver nunca apareceu. * * * * * CLARA A JULIO DE SOUSA. CLARA Friorenta, encolhida no fundo do coupé, tudo era indeciso na figurinha que passou rapidamente, na tarde a escurecer. Nascia da penumbra, sem presisão nos contornos, como certos retratos de Columbano e de Henner. E entre o chapeu preto e a face branca, o cabello loiro punha uma esmaecida aureola como uma tenue poeira d'ambar. A boa, de _renard bleu_, ainda aumentava o indeciso, o fluctuante d'essa mulher; os olhos claros não brilhavam; o vermelho da bocca desmaiava... Figurinha de cera e de seda, que passava, olhando para a rua sem attentar talvez em ninguem, levando o nosso desejo de decifrar enigmas, indefferente, graciosa, impressionou-me... Ao amigo que me acompanhava recorri para saber d'ella. Quando me voltei para perguntar, vi que Roberto se pusera pallido; parecia que á bocca se lhe afivelára uma boqueira de pedra, mascara trágica a emudecer. Seguiu com os olhos a carruagem que trotava pela Avenida até se perder entre as arvores em Valle de Pereiro. --Quem é? gaguejou. Alguma aventureira cosmopolita que veiu _faire le Portugal_. Um pastel de Antonio de la Gandara, maquilhada como uma infanta de Velasquez, mais artificial que uma boneca de Nuremberg, sem vicio, talvez, amante enternecida d'algum _croupier_ de _Cercle_ ordinario... Sei lá!... encolheu, impaciente, os hombros, a concluir. Houve um silencio. Raras carruagens passavam. Estava triste a Avenida. Descemos. Abriam, simultaneamente, as grandes flôres geladas e luminosas das lampadas electricas. Rapidos, fulgiam os americanos. Outra vez a mulher passou, mais indeciso o vulto, apenas destincto o palôr da face branca no _coupé_ escuro. --Porque teria vindo cá, essa mulher? perguntou Roberto, colerico. --Conhecel-a? --Se a conheço?! Tenho querido arrancal-a de mim, como se arranca d'um boi uma farpa--violentamente. Tenho querido fugir de mim, para a esquecer! E quando estou quasi a conseguil-o, quando a tortura da sua lembrança é em mim apenas uma cicatriz, eil-a que apparece a reavivar a chaga antiga, a tornal-a mais dolorosa! Clara veiu aqui só por minha causa, ouves? Para fazer-me soffrer! Agarrava-se-me ao braço, a apertal-o violentamente. Na bocca accentuava-se-lhe, aspero, o vinco da amargura. --Foi esta mulher que me fez fugir de tudo, perder o amor a tudo, desterrar-me para esta passividade, eu que amava a vida dolorosamente, gosando com tudo, intensamente! «Conhecia-a em Hespanha! N'um inverno humido deixei Lisboa e acolhi-me a Sevilha. Os dias gloriosos de sol que lá gosei pelas margens do Guadalquivir azul! Andava ebrio de tanta luz que enchia d'oiro e de triumpho a cidade alegre. Saia para os campos, logo de manhã, a rir-me com os trigaes e com as flôres. Ia ao parque vêr o sol fulgir nas caudas abertas dos pavões orgulhosos; descia ao caes para vêr brilhar na agua incendiada os cobres polidos dos navios; enchiam-me de prazer a barulheira dos carregadores, o chiar aspero dos guindastes, o estridulo das sereias, nos vapores que partiam... Tudo era alegria na cidade maravilhosa mesmo á noite, as lampadas incendiavam a _Sierpee_ brilhante, onde se apertava uma multidão palradora. Das janellas dos casinos, das portas dos cafés, dos mostradores das lojas, vinham chapadas de luz. Misturava-me a toda aquella vida insolente, ria com todos os risos, todos os labios frescos me chamavam, rodeavam-me todas as cabelleiras fartas, cheias de flôres. O donaire das andaluzas d'olhar de volupia fazia-me achar mais bella a Vida. Era como um poema a enaltecer a obra de Deus. Por todos amar, não amava nenhuma. Comprei o sineiro da Cathedral. Do alto da Giralda, uma noite, possui a cidade, senti que todo o tumulto confuso que até mim chegava, era o seu sangue que pulsava por mim nas suas arterias; aquella resplandecencia, brilho de joias com que cobria a nudez. Os tranvias iluminados, cortando em mil direcções a cidade, eram pedrarias, aqui se apagando uma, para alem se accender outra, conforme as ia eu tocando com os meus olhos amorosos. Ella, em baixo, abria os seus braços, entregava todo o seu corpo, a morena Sevilha, offegante e lasciva! «Era feliz, poderosamente feliz. Sentia, em cada palpitação cardiaca, o sangue remoçado que se espraiava pelo corpo. Foi então que conheci Clara. Ella passava pela _Sierpes_, junto ao _Credit_, enygmatica, como a viste. A elegancia do seu porte, ultima florescencia da moda franceza, quasi immaterial, contrastava com a forte humanidade das sevilhanas cheias de vida, de sangue e de desejos. Todos se voltaram para ella e lhe abriram caminho, como se passasse um andor. Fui logo preso pelo encanto decadente e artificial, esqueci a Vida e a gloria de viver ao sol nos campos fecundos. Regressei á hyper-civilisação; segui-a e alegre entrei, atraz d'ella, para o seu e meu hotel. «Vergonhosamente a segui como um cão fiel. Vergonhosamente mendiguei um olhar dos seus olhos parados; e contente fiquei ao vel-a um dia no salão da leitura, por que pude dirigir-lhe a palavra e pedir-lhe licença para fumar. Apesar da resposta secca, insisti e entabolámos conhecimento. «Doces foram para mim os dias, em que visitámos Sevilha. A casa de Pilatos e as suas penumbras em que esmaecem estuques e o patio claro de marmores harmoniosos ouviram as palavras aladas que lhe disse; diante das Assumpções do Murillo e dos frades de Zurbaran, no museu deserto, contei-lhe o poema do meu desejo; na _Caridad_, a mostrar-lhe a estatua de Herrera, ouviu a perfumada e embaladora cantilena. Na Giralda, a vêr Sevilha doirada, deitada na planicie que ondulava, até perder-se no horisonte circular, offereci-lhe toda a minha alma e toda a minha vida. Houve momentos em que seus braços foram a levantar-se para apertar o meu pescoço; julguei sentir o seu peito leve arfar de commoção: muitas vezes a boca se apertou para a florescencia dos beijos e seus olhos verdes se encheram de luz; mas rapido, tudo se desmanchava, e um sorriso tremia na boca desmaiada, a mostrar a linha branca dos dentes. O flirt desabrochava. Uma tarde, nos jardins do Alcaçar, á porta dos banhos de Maria Padilla, passou por mim o corpo delgado, agil, pela cara roçou o cabello que tinha um perfume penetrante; fallou-me do seu corpo e, sentados no salão dos Embaixadores, estendia a perna, para mostrar o tornosello fino e a meia _ajourée_, que deixou vêr a pele branquissima. Todas as noites eu pensava, que no dia seguinte beijaria a boca perfumada. E todas as manhãs via cair a minha esperança, como as folhas murchas que o vento sacode dos ramos seccos. «Certamente que as minhas palavras deviam ser perturbantes, porque sahiam d'um coração perturbado. E, pesadas de tanto amor, cahiam da boca vagarosamente. Ás vezes os cilios de oiro abatiam-se sobre os olhos, como n'um espasmo. Mas logo o sorriso abria-lhe a pequenina boca! «Longos dias, longas semanas, durou o encantado oaristo. Já não cuidava da gloria da natureza; das apoteóses do sol sobre as aguas azues do rio. Só pensava n'ella, só vivia d'ella. «Um dia, porem, eu soube! Alguem, com palavras que julgou caridosas, veiu pôr no meu coração as sete espadas! A creaturinha delicada e deliciosa, princeza de balada d'hoje, urna de perfume, a quem me entregava como um collegial, era uma aventureira das que frequentam a _Riviera_ no inverno, Aix no verão, Paris na primavera, e que a Sevilha viera atraz d'um clown, que no circo fazia rebentar estrépitos de gargalhadas... Ao seu morbido encanto me prendera, e atraz d'ella me fui a soluçar, flor de lameiro em que puz todo o perfume suave... Fôra nas mãos d'ella um saxe fragil como que se brinca! «Ah, meu amigo! O desespero e a raiva puzeram mãos assassinas a estrangular-me! N'um impeto, como uma aura que se nos levanta do peito e nos atira para o ataque epileptico, decidi-me. Levei-a n'um trem para o campo, para alem da Cartuja, com um cocheiro de confiança. E alli, desapiedadamente, bati-lhe, arranquei-lhe as sedas e as rendas--parecia, nua entre os trigaes verdes, uma magnolia enorme!--e o seu corpo cobriu-se todo de sangue. Clara gemeu, implorando; as lagrimas empastavam a maquilhagem; via-a sordida, enrolando-se para escapar ás chicotadas, e fugi, ebrio, doido, a correr, diante do cocheiro espantado que me metteu no trem e me levou a Sevilha. --Senorito, la navaja era mejor, aconselhou-me. «Parti. Nunca mais soube d'ella. Trouxe-a dentro de mim como um espinho. A dôr que lhe causei augmentou a minha pena. De ter visto o corpo magro e branco, ficou-me a ancia de o beijar. Andei de noite, pelas ruas, a correr sem forças para fugir de mim e d'ella, porque a figura surgia deante dos meus olhos, bella de toda a perversidade e de toda a lascivia, como uma invencivel tentação, a que o maior santo succumbe. «Ás vezes conseguia distrahir-me; de repente ella surgia, sentava-se na minha frente, mostrava os vergões das chicotadas, todo o corpo impudico perfumava e brilhava, e a boca sorria a escarnecer de mim! «Foi algum philtro que me deu. «Ia a esquecel-a e eil-a que novamente me apparece, a prender-me, a levar-me, outra vez para a allucinação, a atiçar o incendio que me queimava! «Talvez queira vingar-se! Não. Não queria vingar-se. Clara veiu a Lisbôa, soube-o mais tarde, atraz d'um comprimario de S. Carlos, seu _amant de coeur_. * * * * * IDILIO TRISTE A EDUARDO VALERIO VILLAÇA. IDILIO TRISTE No jardim, a tarde de oiro era perfumada pelas rosas e pelos cravos. Nos canteiros, os cravos levantavam-se impertinentes, risonhos, em delgadas hastes. E, por toda a parte, entremeiando-se com os buxos, enroscando-se a uma macieira em flôr, serpenteando pelos muros, subindo pelas sebes, uma opulenta floração de rosas de toda a côr, rosas de oiro pallido, rosas roseas, rosas vermelhas a estremecer, como labios de que vão cair os beijos, rosas escuras, enormes, sensuaes e dolorosas, umas ainda em botão, misteriosas como as adolescentes, outras já totalmente abertas, sem enigma, como as amantes antigas--todas ellas misturavam o seu perfume no jardim quieto, em que as pombas arrulhavam, beijavam-se e depois partiam em vôos curvos, as azas brancas a brilhar ao sol. Os dois amantes iam calados, elle a olhal-a intensamente, como a querer apreendel-a, como se os olhos fossem bocas e podessem beijar, braços e conseguissem abraçar--ella um pouco aborrecida, a desfazer entre os dedos longos uma orchidea azul listrada de vergões esverdinhados. --Pensei em ti sempre, dizia elle. No Prado, diante dos tapetes de Goya, disse o teu louvor. As raparigas esbeltas, que vão á fonte, as bilhas esguias á cabeça, como as princezas de Homero, não tinham a tua elegancia... Ás infantas de Velazquez, artificiaes, cadaveres de bonecas, em que apenas os olhos attonitos teem vida, faltava a tua belleza. As santas hirtas de Memling não tinham na bôca a primavera que ruboresce os teus labios... Só na curva do braço de Danae, de Ticiano, pude ver uma attitude como tens... Por todo o museu me perseguia a tua imagem, como um canon, para avaliar as obras. As gordurosas flamengas de Rubens, as cigarreiras sensuaes e extaticas de Murillo, as energicas mulheres de salteadores em que Ribera se compraz, eram muito diferentes de ti, d'ellas fugia o meu olhar. Em Raphael havia alguma coisa da tua doçura risonha, mas demasiado passiva; em Greco, a tua distincção, mas severa; apenas Leonardo te saberia pintar, quasi irreal por seres tão bella, indecifravel, como uma esfinge sem segredos... Como uma esfinge sem segredos... Que segredos teria a suave mulher do Jocondo? Que segredos terás, alheia a tudo, passando pela vida, ligeiramente, como a agua que vae n'um ribeiro, correndo e cantando? Vi-te em toda a parte. Levei-te sempre commigo! Talvez o Moro te tivesse pintado... --Viste bem o museu... --Vi, porque te buscava... Um dia, ao aproximar-me da escadaria, vi fugir, n'um automovel ligeiro, uma mulher, que se parecia comtigo... Era um carro vermelho... Por toda a parte tive a _hantise_ dos automoveis vermelhos. No _Retiro_ e na _Castellana_, o meu olhar prescrutava, revolvia todos os automoveis, todas as carruagens, a ver se te encontrava. Todas as manhãs, pelo museu, andava á tua espera, embora te soubesse aqui, indiferente. Como te não encontrava, procurei vêr o teu retrato, n'algum quadro antigo. E puz, em muitos, o reflexo da tua belleza, porque n'uma atitude, n'um olhar, havia alguma coisa de ti... --O governo hespanhol agradeceu-te a valorisação dos quadros? --Ri-te. Ri-te de mim... A tua boca, ao abrir-se n'um riso, é uma flor de nácar e prata...--A principio, procurei-te... Depois, como a tortura fosse muita, quiz fugir da tua imagem. Fui para Sevilha onde tudo é Amor e resplandece. Deixáras de escrever-me... Só sabia que não pensavas em mim. Ali, tudo é alegre e luminoso. O sol é o sangue da cidade... Doira a planicie e as palmeiras de S. Fernando. Levanta scintillações do calado Guadalquivir azul e da cupula inflamada da Torre del Oro. Enche de vida o jardim do Alcazar, com seus repuxos com enjoalhadas lagrimas. Tudo é luminoso e perfumado. O amor, ali, não aniquilla, escalda. Entre os cravos que guarnecem as grades das janellas, as mulheres olham os seus namorados com um olhar d'assalto. Ha uma voluptuosidade suspensa no ar. Tudo vive, tudo ama, parece que tudo é feliz. Ha uma embriaguez de côr. E nas varetas dos leques saltitam os beijos que caem das bocas. A Sierpes, á noite, palpita com todo o anceio de tumultuosa cidade... Nos pateos, sob as pequenas palmeiras e musas, os flirts sussurram palavras de entontecer... Como tudo brilha! Só o meu coração se apagava e murchava com saudades... Nos banhos silenciosos de Maria Padilla, pensei no afortunado amor de favorita, nos lentos passeios pelo jardim, nas casas de fresca sombra, onde luzem os estuques policromos e os azulejos... E não deixei de sentir-te ao meu lado... --Acredita que não foi por minha culpa... --Fugias-me. Deixavas-me a tua imagem, para torturar-me. Mandavas-m'a, a envenenar-me de longe... A belladona é doce e envenena... Muito mel embriaga... Tão real a sentia, que, á noite, olhos fechados, queria abraçar-te, e tinha a desillusão de Pan, quando perseguiu a ninfa Seringe... Como quem corre atraz do sol e se encontra encerrado n'um bêco. Nunca mais me escreveste! Deixaste cair o teu amor do peito, como as flores que levaste ao baile... --Depois d'uma noite de baile, as flores já não perfumam. O amor precisa do viço. É necessario podar o coração... --Bem sei. Não te recrimino. Lamento-me... --Lamartiniano!... Julgava-te mais forte e mais moderno. Parecia-me que a cultura intensiva do Eu tornava impossivel um amor sem esperanças... Filosofos!... --Amar-te, não é para mim uma função: é a propria essencia do meu ser. Julgo ás vezes que não existes, material e tangivel, que existes mais real: nasceste e vives no meu cerebro, tanto se casa a tua figura ao meu sonho de belleza. Pintor, se idealisasse uma mulher, o meu quadro pareceria o teu retrato, embora nunca te tivesse visto. Poeta, o teu misterio seduz-me, alma que se guarda, avidamente, sem que ninguem a adivinhe. Todos passam por ti, sem a possuir, como as quilhas dos navios que cortam as ondas não maculam a eterna virgindade do mar... Foi ao ver o mar, que mais pensei em ti. Pelo Mediterraneo socegado, estudei a onda, sem conseguir conhecel-a. As ondas são graciosas, as suas curvas teem ternos desenvolvimentos: dir-se-iam mulheres que brincam na relva fresca. E desfazem-se em flocos de espuma, quebram-se umas contra as outras com fragilidade de cristaes, são leves como leques, e no emtanto matam, levantam-se em vagalhões que sacodem os couraçados, despedaçam os navios. Carinhosas, riem e fogem, como tu; a onda de esmeralda que saltita, enfeitada de rendas, subitamente é uma gigantesca aza d'abutre que se curva, para apreender... É um abismo que ri... As mutações rapidas do mar fizeram-me lembrar o teu amor que desapareceu sem se saber porquê... Nem sequer recrimino. «Não me esqueço», prometeste. E as tuas palavras que guardei, como guardaria uma estrella, ainda cantam nos meus ouvidos. E ha tanto que te esqueceste! Vivo do passado. Vive o meu coração do passado, como as velhinhas, que foram actrizes, e no asilo se lembram das aclamações quando faziam papeis de rainhas sumptuosas com luzidas cortes a seguil-as e galãs esbeltos a segredar frases d'amor... Mas o passado esgota-se, como as cisternas, quando durante muito tempo não chove...» Ella cortara e desfolhára as margaridas de uma moita viridente. O sol ia a morrer, n'uma catástrofe... Um rebanho de nuvens encharcava-se em sangue. N'uma fita delgada, um repuxo subia, dobrava-se e estilhaçava-se na agua do tanque. O amante chorava... * * * * * PERFIL D'AVENTUREIRO A EDUARDO DE MAYA CARDOZO. PERFIL D'AVENTUREIRO Desvairada, a ministra da Esclavonia perseguia sir Arnold Davis, que, de sala para sala, passava em revista as senhoras em toilettes de baile. Ia-lhe na piugada, metia-se pelos corredores, apressadamente, para crusar-se com elle, receber um olhar, fazel-o parar, prendel-o no vão d'uma janella, onde os seus olhos pareciam tomar d'assalto o rosto glabro de sir Arnold, mordia a boca fortemente carminada, como para reter os beijos, que queriam saír. As suas mãos magras e longas, as mãos que teem as doadoras e as santas nos quadros góticos, tremiam ao apertar as de sir Arnold onde opalas desmaiavam, maléficas e misteriosas. Carlota von Hameghen não via o baile, não se rodeava, como de costume, de politicos e diplomatas, a sondal-os, a irrital-os, _allumeuse_ internacional á cata de segredos, para vender a todas as chancelarias que pagassem, generosas e discretas. A condessa Carlota von Hameghen, mulher do ministro de Esclavonia, era quasi fiel ao marido. Apenas grande necessidade, um aperto de dinheiro, um segredo muito importante, que só se confia nas horas de completo aniquilamento, depois dos beijos, é que a faziam esquecer o marido, ainda novo, que trepára na «Carreira» empurrado pela mulher, apesar de morphimano e um pouco imbecil. Fóra disto, esposa exemplar. Espirito d'honestidade? Não: impassibilidade; a cirurgia, com uma operação dolorosa, em Londres, tirára-lhe o vigor da sensação. Vivia para a ambição, uma vida farta, proporcionada pelos cheques de varias embaixadas e legações, menos a de Esclavonia que pagava pouco e, por complicações de finanças internas, a más horas. Alguns diplomatas, ao facto do temperamento da condessa, estranhavam aquelle assalto insistente ao moço inglez, alheio aos segredos das chancelarias, pouco rico para a condessa, servedoiro de milhões. O ministro da Dinamarca, ageitando, como de costume a unica farripa de cabello que lhe guarnecia o craneo rubro: --Ha de ser uma desforra! Sir Arnold vingar-nos-ha... --Não ha de levar a melhor... --Aposto! Não sabem a força de sir Arnold. Conheço-o muito bem. --A Hameghen é uma fortaleza inexpugnavel. --Praça sitiada, praça tomada... --Mas quem sitía é a condessa!... --Estão enganados. Com o ar de quem se defende, sir Arnold ataca vigorosamente. Conheço-lhe a tática. É toda de sapa. Minas e conminas. O campo parece tranquilo e mil picaretes abrem galerias. É de primeira força! Praça a saque, d'aqui a duas semanas, o maximo. --Não seja como Port-Arthur que todos os dias é tomado... --Verão. Vae custar á condessa, coisa d'um milhão. Sir Arnold lança pesadas contribuições de guerra. --Que paiz pagará? --Mr. Alphonse? --Il faut vivre. Il n'y a pas de sot metier. A Mariam Ringen... --Aquella judia fanhosa? --Sim. E que tinha seis dedos em cada pé... Gastou mais de dez mil libras em tres mezes. --É ante-semita. É _bien né_, o ser-se ante-semita! O começo da liquidação... E depois, douze dedos. Parecia-lhe menos. --Contava muito depressa... 12 de cada vez... --Se é que contava pelos pés! --Sir Arnold interessa-me. Tenho-o examinado, na batalha. É impassivel. Nunca procura primeiro uma mulher. Aquelle bello corpo d'Apollo adrescente fascina. Os olhos claros, misteriosos, desequilibram os nervos das nossas mulheres. E as opalas cheias de maleficios, que para elle são _porte-bonheur_, dão um quebranto magico. A terrivel fama de que tão justamente gosa e o precede como uma tenebrosa arauto faz-lhe um halo. Luz do inferno, que importa? É uma aureola. Se não tivesse motivos para ter um tal nome, caluniar-se-ia. É capaz de tudo, até d'uma boa ação... que o não prejudique. Não faz o mal por arte. Para fazer o mal por principio é necessario afirmar. Sir Arnold nada afirma nem nega. Negar é, d'alguma fórma, afirmar. E isso é um esforço que elle se não permite. Se quizesse ser diplomata, estaria hoje embaixador, membro do Tribunal da Haya, ministro dos negocios estrangeiros. Encaminharia a politica ingleza com menos soberba que Salisbury e mais firmeza que Lansdowne, sem a literatura, o romantismo de Rosebery. Nos tempos da vadiagem diplomatica, dos verdadeiros plenipotenciarios--hoje os nossos plenos poderes ficam na secretaria, que nol-os vae mandando por conta e pelo telegrafo--nesse tempo, talharia um imperio para o soberano que o empregasse. Não, para si. Sir Arnold é um egoista formidavel. Julga-se o centro do Universo. Nihil humani a me alienum puto. Nada do que pertence ao homem lhe é alheio, isto é tem direitos sobre tudo, traduz elle. Não tem outra moral. Nietzche estabeleceu os principios que nelle eram instinto. Cuido que nunca se deu ao trabalho de ler um só volume do discipulo de Stirner... A conversa não interessava já. O dinamarquez tinha um pouco a mania oratoria. O grupo dispersou-se, pelas salas, onde os pares deslisavam ao som d'uma valsa da moda, langorosa e morbida... Fiquei com elle. Fomo-nos dirigindo para a estufa. O ministro continuou: --Gósto de sir Arnold... pelo lado scientifico, como filósofo. É um poderoso dissolvente. Todas as dissoluções apressam a evolução. Davis é um força social. --Na boca d'um ministro d'um paiz monarchico, essas palavras são imprevistas, sorri-me. --Tenho uma opinião como diplomata e outra como filósofo. Como diplomata, sou conservador, como filósofo, anarchista... mas anarchista com palacios, festas, condecorações... Quando quero pensar como diplomata, visto a farda, ponho duas gran-cruzes, uma para cada lado--tenho a Corôa da Prussia--e todas as placas. Quando me decido a pensar como filósofo, cólo umas barbas postiças, fico em _robe-de-chambre_. Defronte da minha psyché imperio, dou-me a ideia d'uma Diogenes limpo. O mais usual, porem, é não pensar... Estou dispepético: o pensamento é terrivel para nós. Isto não impede que lhe conte um episodio da vida de Davis. Simpatiso com elle, dou-me até com elle. Conheci-o em Aix-les-Bains ha seis ou sete annos. Estavamos no mesmo hotel. Os nossos aposentos eram seguidos. A sacada era a mesma. Conversavamos muito. Venha para aqui. Fomos para um canto isolado da estufa onde agonisavam, minadas por um mal estranho, orchideas esverdeadas. Nasciam chagas nas suas petalas recurvas, torcidas, listradas de vergões, varioladas. Sentamo-nos num sofá. O ministro ofereceu-me um cigarro de Nestor Gianaclis, perfumado e adormecedor. Escutei-o. --Como lhe disse, sir Arnold é um egoista. Quer aumentar o poder, para empregar a formula de Nietzche. Desenvolve energicamente a personalidade, segundo ou contra a moral, é-lhe indiferente, torneando os preceitos dos codigos penaes e os usos sociaes, de maneira a se lhe não fecharem os palcos onde se exibe, os salões cosmopolitas, mais faceis e, sobre tudo, mais indulgentes. Elle não diz como o poeta: «je porte fiérement la honte d'être beau»; não, para Davis não é uma vergonha, pelo contrario, trata de fazer valer, por toilettes e atitudes longamente estudadas, por meios artificiaes, a sua belleza clara, loira, a que os olhos transparentes dão um encanto misterioso, uma sedução que empolga, fascina, arrasta os pobres mulheres que desmaiam, sucumbem, diante desse Apollo adolescente e terno, cuja força se adivinha apenas nas mãos, de dedos firmes, de pelle, apesar dos cosmeticos, um pouco aspera. Viu-o bem? Reparou em como todo o seu corpo harmonioso d'atléta toma atitudes cançadas, como os seus olhos pareciam dissolver-se, ao olhar para a pequena Von Hameghen e a sua boca de labios finos e imberbes, se contraíam para o espasmo d'um beijo? Ha sete annos era o mesmo. Parece que para elle o mundo e os dias se conservam imoveis. Dir-se-hia que essa adolescencia se guarda no gelo. Que pacto teria feito este homem com o demonio? --Talvez o mesmo que Dorian Grey... --Bah! Dorian Grey matou Basil... Julga que será Sargent, realista, amando a força concentrada e não a belleza, quem fará o novo retrato magico! Ou Lazló? Já não ha Basil. Talvez em Hespanha... Sorolla ou Zuloaga... Mas os hespanhoes são naturalistas e republicanos. Veja Ibañez... A «Catedral» liquida em artigo de fundo. --E Davis? atalhei, pondo um dique á divagação abundante. O ministro sorriu-se. Certamente que se lembrou do epigrama de Marcial. --Ah, sim! Davis e Aix-les-Bains. Estou prolixo como o bom Tito Livio. Entro em materia. Ali, no canto da estufa, abaixando a voz quando alguem se aproximava, para o afastar, o dinamarquez contou: --Estava no «Splendide» lady Hanswell, que depois de tratar do reumatismo, com massagens e duchas, chorava poeticamente, pelas alturas vicejantes do Bourget, os dez annos de casamento feliz com lord Vivian Hanswell esse extraordinario homem, misto de Heroe, de Poeta e de doido, que, começando por fazer odes extranhas aos venenos, aos assassinios e ás traições, acabára em Middlefontain, voluntario da Rainha, o primeiro na escalada d'uma collina, o monoculo entalado no olho, um livro de versos na algibeira do kaki enlameado e a cartucheira já vasia, de tantos tiros dados friamente, como nas suas coutadas ferteis da Irlanda. A viuva amára em seu marido a belleza adolescente, todo aquelle ar gracioso como o d'uma mulher, os largos olhos claros, transparentes, como gotas d'agua azul; amára o seu espirito extranho de comedor d'opio, cambiante e misterioso, deleitando-se na posse de coisas frageis, de flôres que, mal cortadas se fanam, os cristaes finos, as filigranas, as ceras, os linhos que envolvem, fumos, as mumias egipcias e quasi se pulverisam ao tocar-se-lhes, os leques de rendas; o imprevisto das suas áções sem logica, que nada faziam prever, quasi sem realidade, como essas arvores que teem um metro de raizes fóra da terra. Lady Hanswell, já passado o segundo anno de viuvez ainda carpia nas palavras baixas em que recordava o marido, nos olhos que de tantas lagrimas regadas eram frescos como fetos nascidos á beira dos regatos, nas toilettes lilas, com que se vestia, foncées de manhã, claras á noite, nas perolas cinsentas com que se enfeitava, gargantilhas pesadas, collares multiplos, caindo sobre o collo, anneis de castães largos, que, á luz, pareciam cinzas... Foi sobre ella que Davis se lançou, decidido, acirrado não só pelos seus dois milhões de libras, mas tambem pela pelle fina, mate, macerada em banhos prolongados de perfumes, pelos olhos em que brilhava uma volupia indecisa, a afogar-se na tristeza, como um reflexo impreciso de estrella num tanque. --A mulher deve ser como o Champagne: _extra dry_. Vi-o n'esse cerco, a sitiar a praça, a fazer-se valer, fugindo de lady Hanswell, de todos, indo pouco ao Grand Cercle e á Villa des Fleurs, tomando, de manhã, nos Banhos, e á meza, atitudes d'uma tristeza profunda, maniaca, que interessasse. Só á noite, quando fumavamos o derradeiro charuto na varanda, sacudia a mascara e falava-me do desenvolvimento da personalidade, toda a theoria de Spencer e de Stirner, poetisada e dramatisada por Nietzche, nelle menos literaria, menos filosofica, mas mais sincera, floração inconsciente do seu Ego, sumula emfim da sua maneira de ser, animal forte, que sabe que a Vida existe e quer apreender sem esforço, desenvolver-se avidamente, até com detrimento dos outros. --É necessario viver a nossa vida, disse-me. N'essa noite, Davis, que era d'uma sobriedade exemplar, por calculo talvez, para impressionar byronicamente lady Hanswell ou por impulso atavico--gerações a alascar-se em Port-Wine pesam esmagadoramente--por qualquer motivo, Davis acompanhou todo o jantar de Cliquot. Saimos juntos, tomamos pelo _Boulevard des Côtes_, que vae contornando a montanha e mostrando-nos, em cada curva, um aspecto novo d'Aix e do campo, aqui a massa d'arvores illuminadas dos parques dos dois casinos, alem a rua de _Genéve_, apagada e quieta, mais alem as montanhas cujos perfis se recortam docemente no ceu enluarado, n'um outro cotovello o lago do Bourget, que parece, na noite clara, de mercurio incendiado. Caminhavamos apressados, subindo sempre, até á nascente d'essa agua choca que os medicos nos fazem beber de manhã, em jejum. Sir Arnold falava com fluencia: --Todas as creaturas devem ser, para nós, elementos de desenvolvimento do poder, utilidades. Extraido d'ellas o que nos pode servir devemos pol-as á margem. É o que o organismo faz, inconscientemente... Quem sobrecarrega com sentimentos inuteis o seu coração, apodrece, morre. Devo todo este ensinamento filosofico, não aos livros, nem ás conferencias, mas a uma pobre _caissière_, Eva Farland, d'um pequeno restaurante do Strand onde eu jantava economicamente nos dias em que não encontrava emprego para o meu mister agradavel de _pique-assietes_. Ali, por um shelling e meio tinha uma boa talhada de _mutton_ e uma caneca de cerveja, para desalterar. Essa pobre rapariga prendeu-se nos olhos azues de Davis; prenderam-a seus braços fortes, a sua boca que ao beijar mordia. E foi para elle como uma escrava, atenta, paciente, devotada, gastando o seu ultimo penny em futilidades que Davis atirava para o lado, com desdem, dando-lhe quarto, copiando á noite escritas, para pagar a luz, a lenha, a agua, porque Davis fôra viver com ella, por economia--era um periodo de _guigne_ extraordinaria!--persuadindo-se a pobre Eva que era por amôr. Doce e abençoada mentira que a tornava feliz, dava-lhe coragem para continuar a vida dura, fornecia-lhe a energia necessaria para estar á caixa todo o longo dia, esperar, ás vezes, por elle toda a inferminavel noite, quando o jogo o segurava com a caricia aspera das suas mãos de aço; resignar-se ás longas ausencias, porque Sir Arnold, em ganhando alguns guineus, reentrava na sociedade, ia jantar ao club, frequentava os _music-halls_ nos camarotes do club, reencadernava-se, emfim, de gentleman. Eva era o seu cão, mas cão de cego, util, chorando ás escondidas e pouco, para não afear o soberbo rosto, não avermelhar os grandes olhos sensuaes e tristes. N'um periodo mais largo de miseria, não chegando para os dois o salario da amante, nem as copias, ella punha o chapeu, á noite, e ia pelo Picadilly, misturando-se aos soldados, a fazer-lhes concorrencia, á caça do guineu pondo em cada sorriso, um soluço. Davis via-a sofrer, indiferente, achando rasoavel que por elle outrem penasse, continuando descuidado, até que um dia a fortuna sorriu-lhe pela boca desdentada d'uma rainha de qualquer coisa na America, porco salgado ou azeite de fóca. Nunca mais soube d'Eva, de quem nem sequer se despediu, e que, se não morreu de dor--o que é pouco provavel--teve com certeza uma lancinante crise de desespero. Ora essa mulher, que por elle fez todos os sacrificios, incluindo o do pudor da amante, considerava-a elle o seu mestre de egoismo, pois habituára-o a pensar que o amôr pode ser um modo de vida e a belleza extranha e fascinante suprir as aptidões para a lucta pela vida. Foi a confissão que me fez n'uma noite de vinho, em que o Cliquot d'oiro levára ao seu coração impassivel o desejo de expandir-se. Não tornámos a falar no assunto, persuadi-me até de que elle não tinha consciencia da propria indiscrição e continuei a examinal-o no interessante combate travado com lady Hanswell. Parece que a embriaguez produziu o seu efeito, porque lady Hanswell começou a lançar-lhe, por vezes, obliquamente, olhares em que punha alguma coisa de caloroso, as lagrimas deixaram de borbulhar-lhe nos olhos, que andavam secos do desejo que ardia dentro. Ao começo d'ataque da ingleza, respondeu sir Arnold com um simulacro de retirada, um mergulho na sua aparente tristeza, abstinencia de comida, que o levava ás escondidas ao American Bar todas as noites, a leitura constante do resignado Shelley e do desesperado Byron, cujos livros deixava ficar sobre as mezas com marcas nos versos adequados á circunstancia pensando que lady Hanswell não deixaria de ir folhear os volumes. Ia realmente, sofrega, já esquecida do marido, estudando toilettes, não já ruskinianas, com toda a tristeza doce das figuras dos primitivos, mas as que fizessem realçar a sua elegancia, largos decótes que mostravam a flor nevada do seu cólo opulento, fulgiam-lhe nas mãos os largos costões esverdeados de berilos que Lalique lançára n'esse anno, remoçava a sua boca escarlate uma primavera de beijos, que se ofereciam, como as laranjeiras que nos quintaes murados veem sacudir para a estrada as laranjas d'oiro. Lady Hanswell atacava vigorosamente, num assalto de desespero, pondo na conquista de Davis toda a pertinacia da raça, toda a galantaria e vaidade do sexo. Davis fugia, mas forneceu-lhe a ocasião d'ella se lhe dirigir, entabolaram relações, elle mais dobrou a sua alma, melancolicamente, falara-lhe de amôres purissimos, que vicejam nas almas candidas, como desbotadas flores nas planicies geladas da Noruega. Falou-lhe n'uma especie de amor duplo, um amôr platonico por uma, em que a alma vae em primeira cumungante, e o desejo se dirige para outra. E, diante d'ella, passeou pelas alamedas da Villa des Fleurs com Blanche Lely, e, ostensivamente, durante alguns dias recolheu de manhã, a hora em que lady Hanswell costumava sair para o banho. A tristeza voltou á face branca da ingleza. Durante o jantar olhava para a porta constantemente, a cada movimento do _paravent_ estremecia, lançava nos olhares para mim curiosas innterrogações que a minha face muda deixava sem resposta. Voltou a chorar depois das ducha e das massagens, como antigamente pelo defunto marido, e, de manhã, quando se encontrava com sir Arnold o seu olhar tinha caricias, parecia que lhe lambia a face linda. Foi ella que o levou, fremente, na ancia de não perder a presa, já no carro a cerral-o entre os braços, para as Gorges du Sierroz, onde, depois do almoço, no gabinete do restaurante rustico, os beijos arderam e ella poude morder a boca em sangue de sir Arnold. Quanto custaram á consolada viuva esses beijos? N'esse momento, sir Arnold Davis passou, levando pelo braço a franzina Carlota Von Hameghen, que lhe encostava a cabeça ao hombro olhando para elle n'uma suplica, que o sorriso dos labios finos apoiava fortemente. * * * * * FUMO A LUIZ O'NEIL. FUMO Para fugir da exotica humanidade que enchia as salas do Kursaal de Genebra, saimos, apezar da noite fria, para o amplo terraço sobre o Léman tranquillo. Eu levára Roberto ali para mostrar-lhe Chiara, a dançarina italiana, que nas suas danças bisantinas me surpreendera e comovera no Alhambra de Londres. Era a Volupia feita luz e feita dança. N'um _maillot_ de seda, parecia nua. Uma cintura de oiro, marchetada de largas pedras brilhantes segurava-lhe os seios firmes. Grossas manilhas mordiam os braços finos e os tornozellos. Um diadema apertava a massa luminosa dos seus cabellos loiros. E, na face branca, eram d'um brilho de gema os olhos azues, quasi violeta-de-Parma. A musica que a acompanhava tinha um envenenado langor. Chiara deslisava, mal pousando os pés nús sobre o tapete de Smyrna. E do brilho das joias, como da florescencia musical dos gestos, brotavam lascivias, ardiam desejos, que faziam correr fremitos por toda a sala incendiada por lampadas poderosas. Aquella dança sabia, apenas ritmada pelas vozes das flautas e das liras que tocadoras de flauta e tocadoras de lira, vestidas á grega, no palco tocavam! Uma ou outra vez um pé nú fazia vibrar o bronze dos crotalos. Era como um grito de vitória, um beijo mordido n'uma boca sedenta. Chiara tomava então uma atitude de entrega, todo o seu corpo flexivel e delgado parecia tombar, como uma haste fragil que cede ao explendor de uma enorme rosa vermelha, e verga e sucumbe. A grande flôr d'oiro e luz, em que as abelhas das joias picavam e pareciam morder, fixas nas lhamas dos engastes! Como a vejo ainda nitidamente, ramo d'oiro e de rosas, fazendo nascer desejos cintillantes, chuveiros d'elles, rapidos, fulgentes, descendo como estrellas d'oiro, como os bocados de astros que voam no ar escuro, nas noites quietas d'agosto! E preso á tentação de vêr a dançarina, deixei Aix e as duchas, _Villa des Fleurs_ e o seu rebanho de cocottes e, com Roberto, á pressa envergados os smokings, fomos para o Kursaal. Mas no salão, um aviso e um certificado medico diziam a doença de Chiara. Um grande desanimo abateu-me as espaduas. Como passar uma noite na cidade alinhada e mecanica como um relogio? Em todo o Kursaal, nem um rosto interessante. Ranchos do Cook, das segundas classes, lyonezas rotundas e vermelhas, suissas frescas, que parecem esculpidas em manteiga e em cujas faces contentes os olhos são parados e azues... Caixeiros de Lyon, aproveitando comboios a preços reduzidos, apertavam-se em volta das compridas mezas dos _petits chevaux_. Dois americanos silenciosos chupavam por palhinhas os violentos cocktails. Fugimos. Na noite escura, o lago era azul escuro. Os focos electricos dos caes punham na agua fitas brancas, que dançavam e se quebravam contra as ondas. Pareciam pestanejar as pequenas lanternas vermelhas dos _bateaux-mouches_. Tudo parecia dormir. Uma brisa ligeira trazia até junto de nós o silencio da cidade. Apenas do Kursaal as luzes coavam-se pelas ramadas e, amortecidas, as walsas que acompanhavam mimambos e acrobatas. Um de nós disse: --Talvez fosse melhor não ter visto Chiara. Um com a recordação, de que viu, outro com a imaginação, teem uma imagem mais bella, por incompleta, e em parte mentirosa, da dançarina e do seu bailado. A melhor maneira de gosar é criar imagens, viver dentro de nós, alheio ao mundo. Recordando, vive-se na imprecisão, sem as arestas. Tudo mergulha num nevoeiro, que, deformando a real aparencia, nimba de misterio; desejando, ilumina-se mais. Viver deve ser recordar e desejar. --Pode-se viver recordando e desejando apenas, no momento presente; mas para recordar é necessario ter vivido, para desejar é preciso conhecer. O desejo ilimitado põe a angustia na alma. É mister alguma coisa de definido a desejar. --Quando chegamos á nossa edade, já vivemos tudo. Conhecemos o efemero feminino. Andámos com o coração por todos os amores, por todas as angustias. Provámos todos os _crús_, atravessámos mares, dormimos sob todos os ceus. Podemos recordar. E, como conhecemos tudo, podemos escolher e desejar. --A vida do homem é, como a de toda a natureza, um continuo movimento, fluxo e refluxo permanentes. --Então é preciso agir? --É fatal. --S. Simeão Stylita gastou anos sobre uma coluna, a orar. Vinham de desencontradas partes os crentes á espera de milagres. Esposas estereis tocavam no plinto, certas de que tempo depois amamentariam o filho desejado; os leprosos, os cegos, os atacados do «mal divino», arrastavam-se pelos desertos queimados, até á coluna onde o santo resava... E elle, indiferente, como indiferente era aos soes asperos, ás ventanias e ás chuvas, continuava a orar. Viveu dentro de si. A vida deve ser toda interior. --A vida do espirito é toda interior, como a vida digestiva. Precisamos do mundo exterior para d'elle apreendermos as imagens e os alimentos. --_Ter comido_, é melhor que _comer_. _Ter gosado_ é melhor que _gosar_. O momento da posse é doloroso e vão. É melhor recordar. --Recordar implica esquecer. E quando das imagens não ficar senão uma mancha, como preencher a vida? --Desejando. --Mas a faculdade de desejar desapparece com os annos. O velho dos Goncourt, quando no restaurante lhe perguntam:--O que deseja? responde:--Desejava ter um desejo. Viver é agir. Colher todas flores e todos os espinhos, violar todos os cimos, mergulhar em todos os lodos, sentir intensamente, pensar todas as doutrinas, apreender do Universo tudo o que fôr possivel, ver tudo, ouvir tudo! Viver é entrar na harmonia do Mundo! É ser como o eucalipto, subir para o sol, triunfalmente, lançar ramadas por todos os lados, espalhar avidas raizes egoistas e crueis! --Viver é recordar e desejar. A vida deve ser feita por nós, como a composição d'um quadro é arranjada por um pintor. Não devemos ser o espelho de mostrador que refléte toda a rua, mas a psiché do _boudoir_ d'uma mulher elegante que só refléte atitudes graciosas, sedas, rendas, brilhos de pedrarias... --Viver... Despejava-se o Kursaal. Apagaram-se as lampadas. Fomos para a estação esperar o expresso de Paris. FIM INDICE A escola de flirt Flirts Logica Romantico A Bisantina Má-lingua A rainha de Sabá Chiara Liliam A Marcia O cego A gloria A festa de maio Tibidabo A princeza perdida Noite de festa Clara Idilio triste Perfil d'aventureiro Fumo *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK FLIRTS *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. 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START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. 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