Nota de editor:
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Rita
Farinha (Junho 2013)
O PRIMO BAZILIO
PORTO: TYPOGRAPHIA DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA
Rua da Cancella Velha, 70
EÇA DE QUEIROZ
O PRIMO BAZILIO
EPISODIO DOMESTICO
SEGUNDA EDIÇÃO, REVISTA
LIVRARIA INTERNACIONAL
DE
ERNESTO CHARDRON
|
ERNESTO CHARDRON
|
Porto
|
Braga
|
1888
Porto: 1878—Typ. do A. J. da Silva Teixeira, Cancella Velha, 62
O PRIMO BAZILIO
I
Tinham dado onze horas no
cuco da sala de
jantar. Jorge fechou o volume de Luiz Figuier que
estivera folheando devagar, estirado na velha
voltaire
de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e
disse:
—Tu não te vaes vestir, Luiza?
—Logo.
Ficára sentada á mesa, a lêr
o Diario de Noticias,
no seu roupão de manhã de fazenda preta,
bordado a
soutache, com largos botões de
madreperola;
o cabello louro um pouco desmanchado, com
um tom secco do calor do travesseiro, enrolava-se,
torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito;
a sua pelle tinha a brancura tenra e lactea das
louras: com o cotovêlo encostado á mesa acariciava
[6]
a orelha, e, no movimento lento e suave dos seus
dedos, dous anneis de rubis miudinhos davam scintillações
escarlates.
Tinham acabado d'almoçar.
A sala esteirada, alegrava, com o seu tecto de
madeira pintado a branco, o seu papel claro de ramagens
verdes. Era em julho, um domingo: fazia
um grande calor; as duas janellas estavam cerradas,
mas sentia-se fóra o sol faiscar nas vidraças, escaldar
a pedra da varanda; havia o silencio recolhido
e somnolento de manhã de missa; uma vaga
quebreira
amollentava, trazia desejos de séstas, ou de
sombras fôfas debaixo d'arvoredos, no campo, ao pé
d'agua; nas duas gaiolas, entre as bambinellas de
cretone azulado, os canarios dormiam; um zumbido
monotono de moscas arrastava-se por cima da mesa,
pousava no fundo das chavenas sobre o assucar mal
derretido, enchia toda a sala d'um rumor dormente.
Jorge enrolou um cigarro, e muito repousado,
muito fresco na sua camisa de chita, sem collete, o
jaquetão de flanella azul aberto, os olhos no tecto,
pôz-se a pensar na sua jornada ao Alemtejo. Era engenheiro
de minas, no dia seguinte devia partir para
Beja, para Evora, mais para o sul até S. Domingos;
e aquella jornada, em julho, contrariava-o como
uma interrupção, affligia-o como uma injustiça.
Que massada por um verão d'aquelles! Ir dias e
dias sacudido pelo chouto d'um cavallo d'aluguel,
por esses descampados do Alemtejo que não acabam
nunca, cobertos d'um rastolho escuro, abafados n'um
[7]
sol baço, onde os moscardos zumbem! Dormir nos
montados, em quartos que cheiram a tijolo cozido,
ouvindo em redor, na escuridão da noite torrida,
grunhir as varas dos porcos! A todo o momento
sentir entrar pelas janellas, passar no ar o bafo
quente das queimadas! E só!
Tinha estado até então no ministerio, em commissão.
Era a primeira vez que se separava de Luiza;
e perdia-se já em saudades d'aquella salinha,
que elle mesmo ajudára a forrar de papel novo nas
vesperas do seu casamento, e onde, depois das felicidades
da noite, os seus almoços se prolongavam
em tão suaves preguiças!
E cofiando a barba curta e fina, muito frisada,
os seus olhos iam-se demorando, com uma ternura,
n'aquelles moveis intimos, que eram do tempo da
mamã: o velho guarda-louça envidraçado, com as
pratas muito tratadas a gesso-cré, resplandecendo
decorativamente; o velho painel a oleo, tão querido,
que vira desde pequeno, onde apenas se percebiam,
n'um fundo lascado, os tons avermelhados de
cobre d'um bojo de cassarola e os rosados desbotados
d'um mólho de rabanetes! Defronte, na outra
parede, era o retrato de seu pai: estava vestido á
moda de 1830, tinha a physionomia redonda, o olho
luzidio, o beiço sensual; e sobre a sua casaca abotoada
reluzia a commenda de Nossa Senhora da Conceição.
Fôra um antigo empregado do ministerio da
fazenda, muito divertido, grande tocador de flauta.
Nunca o conhecera, mas a mamã affirmava-lhe «que
[8]
o retrato só lhe faltava fallar». Vivera sempre
n'aquella casa com sua mãi. Chamava-se Isaura: era
uma senhora alta, de nariz afilado, muito apprehensiva;
bebia ao jantar agua quente; e ao voltar um
dia do lausperenne da Graça, morrera de repente,
sem um ai!
Physicamente Jorge nunca se parecera com ella.
Fôra sempre robusto, d'habitos viris. Tinha os dentes
admiraveis de seu pai, os seus hombros fortes.
De sua mãi herdára a placidez, o genio manso.
Quando era estudante na Polytechnica, ás 8 horas
recolhia-se, accendia o seu candieiro de latão, abria
os seus compendios. Não frequentava botequins, nem
fazia noitadas. Só duas vezes por semana, regularmente,
ia vêr uma rapariguita costureira, a Euphrasia,
que vivia ao Borratem, e nos dias em que o Brazileiro,
o seu homem, ia jogar o boston ao club, recebia
Jorge com grandes cautelas e palavras muito
exaltadas; era engeitada, e no seu corpinho fino e
magro havia sempre o cheiro relentado d'uma pontinha
de febre. Jorge achava-a
romanesca, e
censurava-lh'o.
Elle, nunca fôra sentimental: os seus condiscipulos,
que liam Alfred de Musset suspirando e desejavam
ter amado Margarida Gautier, chamavam-lhe
proseirão, burguez: Jorge ria; não lhe faltava um
botão
nas camisas, era muito escarolado, admirava Luiz
Figuier, Bastiat e Castilho, tinha horror a dividas, e
sentia-se feliz.
Quando sua mãi morreu, porém, começou a
achar-se só: era no inverno, e o seu quarto nas trazeiras
[9]
da casa, ao sul, um pouco desamparado, recebia
as rajadas do vento na sua prolongação uivada
e triste; sobretudo á noite, quando estava debruçado
sobre o compendio, os pés no capacho, vinham-lhe
melancolias languidas; estirava os braços, com o
peito cheio d'um desejo; quereria enlaçar uma cinta
fina e dôce, ouvir na casa o frou-frou d'um vestido!
Decidiu casar. Conheceu Luiza, no verão, á noite, no
Passeio. Apaixonou-se pelos seus cabellos louros, pela
sua maneira d'andar, pelos seus olhos castanhos
muito grandes. No inverno seguinte foi despachado,
e casou. Sebastião, o seu intimo, o bom Sebastião,
o Sebastiarrão, tinha dito, com uma oscillação grave
da cabeça, esfregando vagarosamente as mãos:
—Casou no ar! casou um bocado no ar!
Mas Luiza, a Luizinha, sahiu muito boa dona de
casa: tinha cuidados muito sympathicos nos seus arranjos;
era aceada, alegre como um passarinho, como
um passarinho amiga do ninho e das caricias do
macho: e aquelle serzinho louro e meigo veio dar á
sua casa um encanto serio.
—É um anjinho cheio de dignidade!—dizia então
Sebastião, o bom Sebastião, com a sua voz profunda
de
basso.
Estavam casados havia tres annos. Que bom que
tinha sido! Elle proprio melhorára; achava-se mais
intelligente, mais alegre... E recordando aquella existencia
facil e dôce, soprava o fumo do charuto, a
perna traçada, a alma dilatada, sentindo-se tão bem
na vida como no seu jaquetão de flanella!
[10]
—Ah!—fez Luiza de repente, toda admirada
para o jornal, sorrindo.
—Que é?
—É o primo Bazilio que chega!
E leu alto, logo:
«Deve chegar por estes dias a Lisboa, vindo de
Bordeus, o snr. Bazilio de Brito, bem conhecido da
nossa sociedade. S. exc.
a que, como é sabido, tinha
partido para o Brazil, onde se diz reconstituira a sua
fortuna com um honrado trabalho, anda viajando pela
Europa desde o começo do anno passado. A sua
volta á capital é um verdadeiro jubilo para os amigos
de s. exc.
a que são numerosos».
—E são!—disse Luiza, muito convencida.
—Estimo, coitado!—fez Jorge, fumando, anediando
a barba com a palma da mão.—E vem com
fortuna, hein?
—Parece.
Olhou os annuncios, bebeu um gole de chá, levantou-se,
foi abrir uma das portadas da janella.
—Oh Jorge, que calor que lá vai fóra, santo
Deus!—Batia as palpebras sob a radiação da luz
crua e branca.
A sala, nas trazeiras da casa, dava para um terreno
vago, cercado d'um taboado baixo, cheio d'hervas
altas e d'uma vegetação d'acaso; aqui, alli,
n'aquella verdura crestada do verão, largas pedras
faiscavam, batidas do sol perpendicular; e uma velha
figueira brava, isolada no meio do terreno, estendia
a sua grossa folhagem immovel, que, na brancura
[11]
da luz, tinha os tons escuros do bronze. Para
além eram as trazeiras d'outras casas, com varandas,
roupas seccando em cannas, muros brancos de quintaes,
arvores esguias. Uma vaga poeira embaciava,
tornava espesso o ar luminoso.
—Cahem os passaros!—disse ella cerrando a
janella.—Olha tu pelo Alemtejo, agora!
Veio encostar-se á
voltaire de Jorge, passou-lhe
lentamente a mão sobre o cabello preto e annelado.
Jorge olhou-a, triste já da separação: os dous primeiros
botões do seu roupão estavam desapertados;
via-se o começo do peito de uma brancura muito
tenra, a rendinha da camisa: muito castamente Jorge
abotoou-lh'os.
—E os meus colletes brancos?—disse.
—Devem estar promptos.
Para se certificar chamou Juliana.
Houve um ruido domingueiro de saias engommadas,
Juliana entrou, arranjando nervosamente o collar
e o broche. Devia ter quarenta annos, era muitissimo
magra. As feições, miudas, espremidas, tinham
a amarellidão de tons baços das doenças de
coração. Os olhos grandes, encovados, rolavam n'uma
inquietação, n'uma curiosidade, raiados de sangue,
entre palpebras sempre debruadas de vermelho. Usava
uma cuia de retroz imitando tranças, que lhe fazia
a cabeça enorme. Tinha um
tic nas azas do nariz.
E o vestido chato sobre o peito, curto da roda,
tufado pela gomma das saias—mostrava um pé pequeno,
[12]
bonito, muito apertado em botinas de duraque
com ponteiras de verniz.
Os colletes não estavam promptos, disse com
uma voz muito lisboeta, não tivera tempo de os
metter em gomma.
—Tanto lhe recommendei, Juliana!—disse Luiza.—Bem,
vá. Veja como se arranja! Os colletes
hão-de ficar á noite na mala!
E apenas ella sahiu:
—Estou a tomar odio a esta creatura, Jorge!
Ha dous mezes que a tinha em casa, e não se
podera acostumar á sua fealdade, aos seus tregeitos,
á maneira aflautada de dizer
chapieu,
tisoiras, de
arrastar um pouco os
rr, ao ruido dos seus tacões
que tinham laminasinhas de metal: ao domingo, a
cuia, o pretencioso do pé, as luvas de pellica preta
arripiavam-lhe os nervos.
—Que antipathica!
Jorge ria:
—Coitada, é uma pobre de Christo!—E depois
que engommadeira admiravel! No ministerio examinavam
com espanto os seus peitilhos!—O Julião diz
bem, eu não ando engommado, ando esmaltado!
Não é sympathica, não, mas é aceada, é apropositada...
E levantando-se, com as mãos nos bolsos das suas
largas calças de flanella:
—E, emfim, minha filha, a maneira como ella
se portou na doença da tia Virginia... Foi um anjo
[13]
para ella!—Repetiu com solemnidade:—De dia, de
noite, foi um anjo para ella! Estamos-lhe em divida,
minha filha!—E começou a enrolar um cigarro, com
a physionomia muito séria.
Luiza, calada, fazia saltar com a pontinha da
chinella a orla do roupão; e examinando fixamente
as unhas, a testa um pouco franzida, poz-se a dizer:
—Mas emfim, se eu embirro com ella, não me
importa, posso bem mandal-a embora.
Jorge parou, e raspando um phosphoro na sola
do sapato:
—Se eu consentir, minha rica. É que é uma
questão de gratidão, para mim!
Ficaram calados. O
cuco cantou meio dia.
—Bem, vou á vida—disse Jorge. Chegou-se ao
pé d'ella, tomou-lhe a cabeça entre as mãos.
—Viborasinha!—murmurou, fitando-a muito
meigamente.
Ella riu. Ergueu para elle os seus magnificos
olhos castanhos, luminosos e meigos. Jorge enterneceu-se,
poz-lhe sobre as palpebras dous beijos
chilreados. E torcendo-lhe o beicinho, com uma meiguice:
—Queres alguma cousa de fóra, amor?
Que não viesse muito tarde.
Ia deixar uns bilhetes, ia n'uma tipoia, era um
pulo...
E sahiu, feliz, cantando com a sua boa voz de
barytono:
[14]
Dio del oro,
Del mondo signor.
La la ra, la ra.
Luiza espreguiçou-se. Que sécca ter de se ir vestir!
Desejaria estar n'uma banheira de marmore côr
de rosa, em agua tepida, perfumada, e adormecer!
Ou n'uma rede de sêda, com as janellas cerradas,
embalar-se, ouvindo musica! Sacudiu a chinellinha:
esteve a olhar muito amorosamente o seu pé pequeno,
branco como leite, com veias azues, pensando
n'uma infinidade de cousinhas:—em meias de sêda
que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para
a jornada, em tres guardanapos que a lavadeira perdera...
Tornou a espreguiçar-se. E saltando na ponta do
pé descalço, foi buscar ao aparador por detraz d'uma
compota um livro um pouco enxovalhado, veio estender-se
na
voltaire, quasi deitada, e, com o gesto
acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha, começou
a lêr, toda interessada.
Era a
Dama das Camelias. Lia muitos romances;
tinha uma assignatura, na Baixa, ao mez. Em solteira,
aos 18 annos, enthusiasmára-se por Walter-Scott
e pela Escocia; desejára então viver n'um
d'aquelles castellos escocezes, que teem sobre as
ogivas os brazões da
clan, mobilados com arcas
gothicas
e tropheus d'armas, forrados de largas tapecerias,
onde estão bordadas legendas heroicas, que
o vento do lago agita e faz viver: e amára Ervandálo,
Morton e Ivanhoé, ternos e graves, tendo sobre
[15]
o gorro a penna d'aguia, presa ao lado pelo cardo
d'Escocia d'esmeraldas e diamantes. Mas agora
era o
moderno que a captivava, Paris, as suas
mobilias,
as suas sentimentalidades. Ria-se dos trovadores,
exaltára-se por Mr. de Camors; e os homens
ideaes appareciam-lhe de gravata branca, nas hombreiras
das salas de baile, com um magnetismo no
olhar, devorados de paixão, tendo palavras sublimes.
Havia uma semana que se interessava por Margarida
Gautier: o seu amor infeliz dava-lhe uma melancolia
ennevoada: via-a alta e magra, com o seu longo
chale de cachemira, os olhos negros cheios da avidez
da paixão e dos ardores da tisica; nos nomes
mesmo do livro—Julia Duprat, Armando, Prudencia,
achava o sabor poetico d'uma vida intensamente
amorosa; e todo aquelle destino se agitava, como
n'uma musica triste, com ceias, noites delirantes,
afflicções de dinheiro, e dias de melancolia no fundo
d'um coupé, quando nas avenidas do Bois, sob um
céo pardo e elegante, silenciosamente cahem as primeiras
neves.
—Até logo, Zizi—gritou Jorge do corredor, ao
sahir.
—Olha!
Elle veio, com a bengala debaixo do braço, apertando
as luvas.
—Não appareças muito tarde, hein? Escuta, traze-me
uns bolos do Baltresqui para a D. Felicidade.
Ouve. Vê se passas pela madame François que me
mande o chapéo. Escuta.
[16]
—Que mais, bom Deus?
—Ah! não! Era para ires pelo livreiro que me
mande mais romances... Mas está fechado!
Foi com duas lagrimas a tremer-lhe nas palpebras
que acabou as paginas da
Dama das Camelias.
E estendida na
voltaire, com o livro cahido no
regaço,
fazendo recuar a pellicula das unhas, pôz-se a
cantar baixinho, com ternura, a aria final da
Traviata:
Addio, del passato...
Lembrou-lhe de repente a noticia do jornal, a
chegada do primo Bazilio...
Um sorriso vagaroso dilatou-lhe os beicinhos
vermelhos e cheios.—Fôra o seu primeiro namoro,
o primo Bazilio! Tinha ella então 18 annos! Ninguem
o sabia, nem Jorge, nem Sebastião...
De resto fôra uma criancice: ella mesmo, ás vezes,
ria, recordando as pieguices ternas d'então, certas
lagrimas exageradas! Devia estar mudado o primo
Bazilio. Lembrava-se bem d'elle—alto, delgado,
um ar fidalgo, o pequenino bigode preto levantado,
o olhar atrevido, e um geito de metter as mãos nos
bolsos das calças fazendo tilintar o dinheiro e as chaves!
Aquillo começára em Cintra, por grandes partidas
de bilhar muito alegres, na quinta do tio João
[17]
de Brito, em Collares. Bazilio tinha chegado então
d'Inglaterra: vinha muito
bife, usava gravatas
escarlates
passadas n'um annel d'ouro, fatos de flanella
branca, espantava Cintra! Era na sala de baixo pintada
a oca, que tinha um ar antigo e morgado; uma
grande porta envidraçada abria para o jardim, sobre
tres degraus de pedra. Em roda do repuxo havia romanzeiras,
onde elle apanhava flôres escarlates. A
folhagem verde-escura e polida dos arbustos de camelias
fazia ruasinhas sombrias; pedaços de sol faiscavam,
tremiam na agua do tanque; duas rôlas,
n'uma gaiola de vime, arrulhavam dôcemente;—e,
no silencio aldeão da quinta, o ruido secco das bolas
de bilhar tinha um tom aristocratico.
Depois, vieram todos os episodios classicos dos
amores lisboetas passados em Cintra: os passeios em
Sitiaes ao luar, devagar, sobre a relva pallida, com
grandes descanços calados no Penedo da Saudade,
vendo o valle, as arêas ao longe, cheias d'uma luz
saudosa, idealisadora e branca; as séstas quentes,
nas sombras da Penha Verde, ouvindo o rumor fresco
e gottejante das aguas que vão de pedra em pedra;
as tardes na varzea de Collares, remando n'um
velho bote, sobre a agua escura da sombra dos freixos,—e
que risadas quando iam encalhar nas hervagens
altas, e o seu chapéo de palha se prendia
aos ramos baixos dos choupos!
Sempre gostára muito de Cintra! Logo ao entrar
os arvoredos escuros e murmurosos do Ramalhão lhe
davam uma melancolia feliz!
[18]
Tinham muita liberdade, ella e o primo Bazilio.
A mamã, coitadinha, toda scismatica, com rheumatismo,
egoista, deixava-os, sorria, dormitava: Bazilio
era rico, então, chamava-lhe tia Jójó, trazia-lhe cartuchos
de dôce...
Veio o inverno, e aquelle amor foi-se abrigar na
velha sala forrada de papel
sangue-de-boi da rua da
Magdalena. Que bons serões alli! A mamã resonava
baixo, com os pés embrulhados n'uma manta, o volume
da
Bibliotheca das Damas cahido sobre o regaço.
E elles, muito chegados, muito felizes no sophá!
O
sophá! Quantas recordações! Era estreito e baixo,
estofado de casimira clara, com uma tira ao centro,
bordada por ella, amores perfeitos amarellos e roxos
sobre um fundo negro. Um dia veio o
final. João
de Brito, que fazia parte da firma Bastos & Brito, falliu.
A casa d'Almada, a quinta de Collares foram
vendidas.
Bazilio estava pobre, partiu para o Brazil. Que
saudades! Passou os primeiros dias sentada no sophá
querido, soluçando baixo, com a photographia
d'elle entre as mãos. Vieram então os sobresaltos
das cartas esperadas, os recados impacientes ao escriptorio
da Companhia, quando os paquetes tardavam...
Passou um anno. Uma manhã, depois d'um grande
silencio de Bazilio, recebeu da Bahia uma longa
carta, que começava: «Tenho pensado muito e entendo
que devemos considerar a nossa inclinação como
uma criancice...»
[19]
Desmaiou logo. Bazilio affectava muita dôr em
duas laudas cheias d'explicações: que estava ainda
pobre; que teria de luctar muito antes de ter para
dous; o clima era horrivel; não a queria sacrificar,
pobre anjo; chamava-lhe minha «pomba» e assignava
o seu nome todo, com uma firma complicada.
Viveu triste durante mezes. Era no inverno; e
sentada á janella, por dentro dos vidros, com o seu
bordado de lã, julgava-se desilludida, pensava no
convento, seguindo com um olhar melancolico os
guarda-chuvas gottejantes que passavam sob as cordas
d'agua; ou sentando-se ao piano, ao anoitecer,
cantava Soares de Passos:
Ai! adeus, acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado...
ou o final da
Traviata, ou o fado do Vimioso, muito
triste, que elle lhe ensinára.
Mas então o catarrho da mamã aggravou-se; vieram
os sustos, as noites veladas. Na convalescença
foram para Bellas: ligou-se alli muito com as Cardosos,
duas irmãs magras, estouvadas e esguias,
sempre colladas uma á outra, com um passinho trotado
e secco, como um casal de galgos. O que riam,
Jesus! O que fallavam dos homens! Um tenente de
artilheria tinha-se apaixonado por ella. Era vesgo,
mandou-lhe uns versos,
Ao Lyrio de Bellas:
Sobre a encosta da collina
Cresce o lyrio virginal...
[20]
Foi um tempo muito alegre, cheio de consolações.
Quando voltaram no inverno tinha engordado,
trazia boas côres. E um dia, tendo achado n'uma gaveta
uma photographia que logo ao principio Bazilio
lhe mandára da Bahia, de calça branca e chapéo
panamá,
fitou-a, encolhendo os hombros:
—E o que eu me ralei por esta figura! Que
tôla!
Tinham passado tres annos quando conheceu Jorge.
Ao principio não lhe agradou. Não gostava dos
homens barbados: depois percebeu que era a primeira
barba, fina, rente, muito macia de certo; começou
a admirar os seus olhos, a sua frescura. E
sem o amar, sentia ao pé d'elle como uma fraqueza,
uma dependencia e uma quebreira, uma vontade
d'adormecer encostada ao seu hombro, e de ficar
assim muitos annos, confortavel, sem receio de nada.
Que sensação quando elle lhe disse: Vamos casar,
hein! Viu de repente o rosto barbado, com os
olhos muito luzidios, sobre o mesmo travesseiro, ao
pé do seu! Fez-se escarlate. Jorge tinha-lhe tomado
a mão: ella sentia o calor d'aquella palma larga penetral-a,
tomar posse d'ella: disse que
sim, ficou
como idiota, e sentia debaixo do vestido de merino
dilatarem-se dôcemente os seus seios. Estava noiva,
emfim! Que alegria, que descanço para a mamã!
Casaram ás oito horas, n'uma manhã de nevoeiro.
Foi necessario accender luz para lhe pôr a corôa e o
véo de tulle. Todo aquelle dia lhe apparecia como
[21]
ennevoado, sem contornos, á maneira d'um sonho
antigo—onde destacava a cara balofa e amarellada
do padre, e a figura medonha d'uma velha, que estendia
a mão adunca, com uma sofreguidão colerica,
empurrando, rogando pragas, quando, á porta da
igreja, Jorge commovido distribuia patacos. Os sapatos
de setim apertavam-na. Sentira-se enjoada da
madrugada, fôra necessario fazer-lhe chá verde muito
forte. E tão cançada á noite n'aquella casa nova,
depois de desfazer os seus bahus!—Quando Jorge
apagou a véla, com um sopro tremulo, SS luminosos
faiscavam, corriam-lhe diante dos olhos.
Mas era o seu marido, era novo, era forte, era
alegre: pôz-se a adoral-o. Tinha uma curiosidade
constante da sua pessoa e das suas cousas, mexia-lhe
no cabello, na roupa, nas pistolas, nos papeis.
Olhava muito para os maridos das outras, comparava,
tinha orgulho n'elle. Jorge envolvia-a em delicadezas
d'amante, ajoelhava-se aos seus pés, era muito
dengueiro. E sempre de bom humor, com muita
graça: mas nas cousas da sua profissão ou do seu
brio tinha severidades exageradas, e punha então
nas palavras, nos modos uma solemnidade carrancuda.
Uma amiga d'ella romanesca, que via em tudo
dramas, tinha-lhe dito: é homem para te dar uma
punhalada. Ella que não conhecia ainda então o temperamento
placido de Jorge acreditou, e isso mesmo
creou uma exaltação no seu amor por elle. Era o seu
tudo,—a sua força, o seu fim, o seu destino, a sua
religião, o seu homem!—Pôz-se a pensar, o que
[22]
teria succedido se tivesse casado com o primo Basilio.
Que desgraça, hein! Onde estaria? Perdia-se em
supposições d'outros destinos, que se desenrolavam,
como pannos de theatro: via-se no Brazil, entre coqueiros,
embalada n'uma rede, cercada de negrinhos,
vendo voar papagaios!
—Está alli a snr.
a D. Leopoldina—veio dizer
Juliana.
Luiza ergueu-se surprehendida.
—Hein? A snr.
a D. Leopoldina? Para que mandou
entrar?
Poz-se a abotoar á pressa o roupão. Jesus! Olha
se Jorge soubesse! Elle que lhe tinha dito tantas vezes
«que a não queria em casa!» Mas se já estava na
sala, agora, coitada!
—Está bom, diga-lhe que já vou.
Era a sua intima amiga. Tinham sido visinhas,
em solteiras, na rua da Magdalena, e estudado no
mesmo collegio, á Patriarchal, na Rita Pessoa, a côxa.
Leopoldina era a filha unica do visconde de Quebraes,
o devasso, o cachetico, que fôra pagem de D.
Miguel. Tinha feito um casamento infeliz com um
João Noronha, empregado da alfandega. Chamavam-lhe
a «Quebraes»; chamavam-lhe tambem a «Pão e
queijo».
Sabia-se que tinha amantes, dizia-se que tinha
vicios. Jorge odiava-a. E dissera muitas vezes a Luiza:
Tudo, menos a Leopoldina!
[23]
Leopoldina tinha então vinte e sete annos. Não
era alta, mas passava por ser a mulher mais bem
feita de Lisboa. Usava sempre os vestidos muito collados,
com uma justeza que accusava, modelava o
corpo como uma pellica, sem largueza de roda, apanhados
atraz. Dizia-se d'ella, com os olhos em alvo:
é uma estatua, é uma Venus! Tinha hombros de
modêlo, d'uma redondeza descahida e cheia; sentia-se
nos seus seios, mesmo através do corpete, o desenho
rijo e harmonioso de duas bellas metades de
limão; a linha dos quadris rica e firme, certos quebrados
vibrantes de cintura faziam voltar os olhares
accesos dos homens. A cara era um pouco grosseira;
as asas do nariz tinham uma dilatação carnuda; na
pelle, muito fina, d'um trigueiro quente e córado,
havia signaesinhos desvanecidos d'antigas bexigas.
A sua belleza eram os olhos, d'uma negrura intensa,
afogados n'um fluido, muito
quebrados, com grandes
pestanas.
Luiza veio para ella com os braços abertos, beijaram-se
muito. E Leopoldina, sentada no sophá, enrolando
devagarinho a sêda clara do guarda-sol, começou
a queixar-se: Tinha estado adoentada, muito
seccada, com tonturas. O calor matava-a. E que tinha
ella feito? Achava-a mais gorda.
Como era um pouco curta de vista, para se affirmar
piscava ligeiramente os olhos, descerrando os
beiços gordinhos, d'um vermelho calido.
[24]
—A felicidade dá tudo, até boas côres!—disse,
sorrindo.
O que a trazia era perguntar-lhe a morada
da franceza que lhe fazia os chapéos. E ha tanto
tempo que a não via, já tinha saudades, tambem!
—Mas não imaginas! Que calor! Venho morta.
E deixou-se cahir sobre a almofada do sophá, encalmada,
com um sorriso aberto, mostrando os dentes
brancos e grandes.
Luiza disse-lhe a morada da franceza, gabou-lh'a;
era barateira e tinha bom gosto. Como a sala estava
escura foi entre-abrir um pouco as portadas da
janella. Os estofos das cadeiras e as bambinellas
eram de reps verde-escuro; o papel e o tapete com
desenhos de ramagens tinham o mesmo tom, e n'aquella
decoração sombria destacavam muito—as
molduras douradas e pesadas de duas gravuras (a
Medea de Delacroix e a
Martyr de
Delaroche), as encadernações
escarlates dos dois vastos volumes do
Dante de G. Doré, e entre as janellas o oval d'um
espelho onde se reflectia um napolitano de
biscuit
que, na console, dançava a
tarantella.
Por cima do sophá pendia o retrato da mãi de
Jorge, a oleo. Estava sentada, vestida ricamente de
preto, direita no seu corpete espartilhado e secco:
uma das mãos, d'um livido morto, pousava nos joelhos
sobrecarregada d'anneis; a outra perdia-se entre
as rendas muito trabalhadas d'um mantelete de
setim; e aquella figura longa, macilenta, com grandes
[25]
olhos carregados de negro, destacava sobre uma
cortina escarlate, corrida em pregas copiosamente
quebradas, deixando vêr para além céos azulados e
redondezas d'arvoredos.
—E teu marido?—perguntou Luiza, vindo sentar-se
muito junto de Leopoldina.
—Como sempre. Pouco divertido—respondeu,
rindo. E, com um ar serio, a testa um pouco franzida:—Sabes
que acabei com o Mendonça?
Luiza fez-se ligeiramente vermelha.
—Sim?
Leopoldina deu logo detalhes.
Era muito indiscreta, fallava muito de si, das
suas sensações, da sua alcova, das suas contas. Nunca
tivera segredos para Luiza; e na sua necessidade
de fazer confidencias, de gozar a admiração d'ella,
descrevia-lhe os seus amantes, as opiniões d'elles,
as maneiras d'amar, os
tics, a roupa, com grandes
exagerações! Aquillo era sempre muito picante,
cochichado ao canto d'um sophá, entre risinhos: Luiza
costumava escutar, toda interessada, as maçãs do
rosto um pouco envergonhadas, pasmada, saboreando,
com um arzinho beato. Achava tão curioso!
—D'esta vez é que bem posso dizer que me enganei,
minha rica filha!—exclamou Leopoldina erguendo
os olhos desoladamente.
Luiza riu.
—Tu enganas-te quasi sempre!
Era verdade! Era infeliz!
—Que queres tu? De cada vez imagino que é
[26]
uma paixão, e de cada vez me sahe uma massada!
E picando o tapete com a ponta da sombrinha:
—Mas se um dia acerto!
—Vê se acertas—disse Luiza.—Já é tempo!
Ás vezes na sua consciencia achava Leopoldina
«indecente»; mas tinha um fraco por ella: sempre
admirára muito a belleza do seu corpo, que quasi lhe
inspirava uma attracção physica. Depois desculpava-a:
era tão infeliz com o marido! Ia atraz da Paixão,
coitada! E aquella grande palavra, faiscante e
mysteriosa, d'onde a felicidade escorre como a agua
d'uma taça muito cheia, satisfazia Luiza como uma
justificação sufficiente: quasi lhe parecia uma heroina;
e olhava-a com espanto como se consideram os
que chegam d'alguma viagem maravilhosa e difficil,
d'episodios excitantes. Só não gostava de certo cheiro
de tabaco misturado de
feno, que trazia sempre
nos vestidos. Leopoldina fumava.
—E que fez elle, o Mendonça?
Leopoldina encolheu os hombros, com um grande
tedio:
—Escreveu-me uma carta muito tôla, que a final
bem considerado era melhor que acabasse tudo,
porque não estava para se metter em camisa d'onze
varas! Que imbecil! Até devo ter aqui a carta.
Procurou na algibeira do vestido: tirou o lenço,
uma carteirinha, chaves, uma caixinha de pó de
arroz; mas encontrou apenas um programma do
Price.
Fallou então do circo.—Uma semsaboria. O melhor
[27]
era um rapaz que trabalhava no trapezio. Lindo
rapaz, bem feito, uma perfeição!
E de repente:
—Então teu primo Bazilio chega?
—Assim li hoje no
Diario de Noticias. Fiquei
pasmada!
—Ah! outra cousa que te queria perguntar antes
que me esqueça. Com que guarneceste tu aquelle
teu vestido de xadrezinho azul? Vou mandar fazer
um assim.
Tinha-o guarnecido d'azul tambem, um azul mais
escuro.—Vem vêr. Vem cá dentro.
Entraram no quarto. Luiza foi descerrar a janella,
abrir o guarda-vestidos. Era um quarto pequeno,
muito fresco, com
cretones d'um azul pallido. Tinha
um tapete barato, de fundo branco, com desenhos
azulados. O toucador, alto, estava entre as duas janellas,
sob um docel de renda grossa, muito ornado
de frascos facetados. Entre as bambinellas, em mesas
redondas de pé de gallo, plantas espessas, Begonias,
Makoamas, dobravam decorativamente a sua
folhagem rica e forte, em vasos de barro vermelho
vidrado.
Aquelles arranjos confortaveis lembraram de certo
a Leopoldina felicidades tranquillas. Pôz-se a dizer
devagar, olhando em roda:
—E tu, sempre muito apaixonada por teu marido,
hein? Fazes bem, filha, tu é que fazes bem!
Foi defronte do toucador, applicar pó d'arroz no
pescoço, nas faces:
[28]
—Tu é que fazes bem!—repetia—Mas vá lá
uma mulher prender-se a um homem como o
meu!
Sentou-se na
causeuse com um ar muito abandonado;
vieram as queixas habituaes sobre seu marido:
era tão grosseiro! era tão egoista!
—Acreditarás que ha tempos para cá, se não
estou em casa ás quatro horas, não espera, põe-se á
mesa, janta, deixa-me os restos! E depois desleixado,
enxovalhado, sempre a cuspir nas esteiras... O
quarto d'elle—nós temos dous quartos, como tu sabes—é
um chiqueiro!
Luiza disse com severidade:
—Que horror! A culpa tambem é tua.
—Minha!—e endireitou-se, luziam-lhe os olhos,
mais largos, mais negros.—Não me faltava mais
nada senão occupar-me do quarto do homem!
Ah! era muito desgraçada, era a mulher mais
desgraçada que havia no mundo!
—Nem ciumes tem, o bruto!
Mas Juliana entrou, tossiu, e arranjando ainda o
collar e o broche:
—A senhora sempre quer que engomme os colletes
todos?
—Todos, já lhe disse. Hão-de ficar á noite na
mala antes de se ir deitar.
—Que mala? Quem parte?—perguntou Leopoldina.
—O Jorge. Vai ás minas, ao Alemtejo.
—Então estás só, posso vir vêr-te! Ainda bem!
[29]
E sentou-se logo ao pé d'ella, com um olhar que
se fizera dôce.
—É que tenho tanto que te contar! Se tu soubesses,
filha!
—O quê? Outra paixão?—fez Luiza rindo.
A face de Leopoldina tornou-se grave.
Não era p'ra rir. Estava de todo! Era por isso
até que tinha vindo. Sentira-se tão só em casa, tão
nervosa!—Vou até Luiza, vou palrar um bocado!
E com a voz mais baixa, quasi solemne:
—D'esta vez é serio, Luiza!—Deu os detalhes.
Era um rapaz alto, louro, lindo! E que talento! É
poeta!—Dizia a palavra com devoção, prolongando
o som das syllabas.—É poeta!
Desapertou devagar dous botões do corpete, tirou
do seio um papel dobrado. Eram versos.
E muito chegada para Luiza, com as narinas dilatadas
pela delicia da sensação, leu baixo, com orgulho,
com pompa:
A TI
Pharol da Guia, 5 de junho.
Quando scismo á hora do poente
Sobre os rochedos onde brame o mar...
Era uma elegia. O rapaz contava, em quadras, as
longas contemplações em que a via a ella, Leopoldina,
visão radiosa que deslisas leve, nas aguas dormentes,
[30]
nas vermelhidões do occaso, na brancura
das espumas. Era uma composição delambida, d'um
sentimentalismo reles, com um ar tisico, muito lisboeta,
cheia de versos errados. E terminando dizia-lhe,
que não era «nos esplendores das salas» ou nos
«bailes febricitantes» que gostava de a vêr: era alli,
n'aquelles rochedos,
Onde todos os dias ao sol posto
Eu vejo adormecer o mar gigante.
—Que bonito, hein!
Ficaram caladas, com uma commoçãosinha.
Leopoldina, com os olhos perturbados, repetia a
data, amorosamente:
—Pharol da Guia, 5 de junho!
Mas o relogio do quarto deu quatro horas. Leopoldina
ergueu-se logo, atarantada, metteu o poema
no seio.
Tinha de se ir já! Fazia-se tarde, senão o outro,
punha-se á mesa. Tinha um ruivo assado para o jantar.
E peixe frio era a cousa mais estupida!
—Adeus. Até breve, não?—E agora que Jorge
ia para fóra, havia de vir muito.—Adeus. Então a
franceza, rua do Ouro, por cima do estanque?
Luiza foi com ella até ao patamar. Leopoldina já
no fundo da escada, ainda parou, gritou:
—Sempre te parece que guarneça o vestido
d'azul, hein?
Luiza debruçou-se sobre o corrimão:
—Eu assim fiz, é o melhor...
[31]
—Adeus! Rua do Ouro, por cima do estanque.
—Sim. Rua do Ouro. Adeus.—E com um gritinho:—Porta
á direita, Madame François.
Jorge voltou ás cinco horas, e logo da porta do
quarto, pondo a bengala a um canto:
—Já sei que tiveste cá uma visita.
Luiza voltou-se, um pouco córada. Estava diante
do toucador já penteada, com um vestido de linho
branco, guarnecido de rendas.
Era verdade, tinha vindo a Leopoldina. Juliana
mandára-a entrar... Ficára mais contrariada! Era
por causa da
adresse da franceza dos chapéos.
Tinha-se
demorado dez minutos.—Quem te disse?
—Foi a Juliana: que a snr.
a D. Leopoldina tinha
estado toda a tarde.
—Toda a tarde! que tolice, esteve dez minutos,
se tanto!
Jorge tirava as luvas, calado. Chegou-se á janella,
pôz-se a sacudir as duras folhas d'uma Begonia malhada
d'um vermelho doente, com uma baba prateada.
Assobiava baixo; e parecia todo occupado em conchegar
um botão d'Amarilis aninhado entre a sua folhagem
luzidia, como um pequenino coração assustado.
Luiza ia passando o seu medalhão d'ouro n'uma
longa fita de velludo preto: tinha uma tremura nas
mãos, estava vermelha.
—O calor tem-lhes feito mal—disse.
[32]
Jorge não respondeu. Assobiou mais alto, foi á
outra janella, bateu com os dedos nas folhas elasticas
d'uma Makoama de tons verdes e sanguineos,
e, alargando impacientemente o collarinho como um
homem suffocado:
—Ouve lá, é necessario que deixes por uma
vez de receber essa creatura. É necessario acabar
por uma vez!
Luiza fez-se escarlate.
—É por causa de ti! é por causa dos visinhos!
é por causa da decencia!
—Mas foi a Juliana...—balbuciou Luiza.
—Mandasse-l'a sahir outra vez. Que estavas fóra!
que estavas na China! que estavas doente!
Parou, com um tom desconsolado, abrindo os braços:
—Minha rica filha, é que todo o mundo a conhece.
É a Quebraes! É a
Pão e queijo! É uma vergonha!
Citava-lhe os seus amantes, exasperado: O Carlos
Viegas, o magro, de bigode cahido, que escrevia
comedias para o Gymnasio! O Santos Madeira, o picado
das bexigas, com uma gaforinha! O Melchior
Vadio, um
gingão desossado, com um olhar de carneiro
morto, sempre a fumar n'uma enorme boquilha!
O Pedro Camara, o bonito! O Mendonça dos callos!
Tutti quanti!
E encolhendo os hombros, exasperado:
—Como se eu não percebesse que ella esteve
aqui! Só pelo cheiro! Este horrivel cheiro de feno!
[33]
Vossês foram creadas juntas, etc., tudo isso é muito
bom. Has-de desculpar, mas se a encontro na escada,
corro-a! Corro-a!
Parou um momento, e commovido:
—Ora, vamos, Luiza, confessa. Tenho ou não
razão?
Luiza punha os brincos, ao espelho, atarantada:
—Tens—disse.
—Ah! bem!
E sahiu, furioso.
Luiza ficou immovel. Uma lagrimasinha redonda,
clara, rolava-lhe pela aza do nariz. Assoou-se muito
doloridamente. Aquella Juliana! Aquella bisbilhoteira!
De má! Para fazer sizania!
Veio-lhe então uma colera. Foi ao quarto dos engommados,
atirou com a porta:
—Para que foi vossê dizer quem esteve ou quem
deixou d'estar?
Juliana, muito surprehendida, pousou o ferro:
—Pensei que não era segredo, minha senhora.
—Está claro que não! Tola! quem lhe diz que
era segredo? E para que mandou entrar? Não lhe
tenho dito muitas vezes que não recebo a snr.
a D.
Leopoldina?
—A senhora nunca me disse nada—replicou,
toda offendida, cheia de verdade.
—Mente! Cale-se!
Voltou-lhe as costas; veio para o quarto, muito
nervosa, foi encostar-se á vidraça.
O sol desapparecera; na rua estreita havia uma
[34]
sombra igual, de tarde sem vento: pelas casas, de
uma edificação velha, escuras, estavam abertas as varandas
onde em vasos vermelhos se mirrava alguma
velha planta miseravel, manjaricão ou cravo; ouvia-se,
no teclado melancolico d'um piano, a
Oração de
uma virgem, tocada por alguma menina, no sentimentalismo
vadio do domingo; e na sua janella, defronte,
as quatro filhas do Teixeira Azevedo, magrinhas,
com os cabellos muito riçados, as olheiras pisadas,
passavam a sua tarde de dia santo, olhando
para a rua, para o ar, para as janellas visinhas, cochichando
se viam passar um homem—ou debruçadas,
com uma attenção idiota, faziam pingar saliva
sobre as pedras da calçada.
Jorge tinha razão, coitado! pensava Luiza. Mas,
tambem, que podia ella fazer? Já não ia a casa de
Leopoldina, tirára o seu retrato do album da sala, vira-se
obrigada a confessar-lhe a repugnancia de Jorge,
tinham chorado ambas, até! Coitada! Só a recebia
de longe a longe, uma raridade, um momento! E
emfim, depois d'ella estar na sala, não a havia d'ir
empurrar pela escada abaixo!
Um homem grosso, de pernas tortas, curvado sob
um realejo, appareceu então ao alto da rua; as suas
barbas pretas tinham um aspecto feroz; parou, poz-se
a voltear a manivella, levantando em redor, para
as janellas, um sorriso triste de dentes brancos, e a
Casta Diva! com uma sonoridade metallica e secca,
muito tremida, espalhou-se pela rua.
Gertrudes, a criada e a concubina do doutor de
[35]
mathematica, veio encostar logo aos caixilhos estreitos
da janella a sua vasta face trigueira de quarentona
farta e estabelecida; adiante, na sacada aberta
d'um segundo andar, debruçou-se a figura do Cunha
Rosado, magro e chupado, com um boné de borla,
o aspecto desconsolado do doente d'intestinos, conchegando
com as mãos transparentes o robe-de-chambre
ao ventre. Outras faces enfastiadas mostraram-se
entre as bambinellas de caça.
Na rua, a estanqueira chegou-se á porta, vestida
de luto, estendendo o seu carão viuvo, os braços cruzados
sobre o chale tingido de preto, esguia nas longas
saias escoadas. Da loja, por baixo da casa Azevedo,
veio a carvoeira, enorme de gravidez bestial,
o cabello esguedelhado em repas seccas, a cara oleosa
e enfarruscada, com tres pequenos meio nús, quasi
negros, chorões e hirsutos, que se lhe penduravam
da saia de chita. E o Paula, com loja de trastes velhos,
adiantou-se até ao meio da rua; a pala de verniz
do seu boné de pano preto nunca se erguia de
cima dos olhos; escondia sempre as mãos, como para
ser mais reservado, por traz das costas, debaixo das
abas do seu casaco de cotim branco; o calcanhar sujo
da meia sahia-lhe para fóra da chinella bordada a
missanga; e fazia roncar o seu pigarro chronico de
um modo despeitado. Detestava os reis e os padres.
O estado das cousas publicas enfurecia-o. Assobiava
frequentemente a
Maria da Fonte; e mostrava-se nas
suas palavras, nas suas attitudes, um patriota exasperado.
[36]
O homem do realejo tirou o seu largo chapéo
desabado e, tocando sempre, ia-o estendendo em redor
para as janellas, com um olhar necessitado. As
Azevedos tinham logo fechado violentamente a vidraça.
A carvoeira deu-lhe uma moeda de cobre;
mas interrogou-o; quiz de certo saber de que paiz
era, por que estradas tinha vindo, e quantas peças
tinha o instrumento.
Gente endomingada começava a recolher, com um
ar derreado do longo passeio, as botas empoeiradas:
mulheres de chale, vindas das hortas, traziam ao collo
as crianças adormecidas da caminhada e do calor:
velhos placidos, de calça branca, o chapéo na mão,
gozavam a frescura, dando um giro no bairro: pelas
janellas, bocejava-se: o céo tomava uma côr azulada
e polida, como uma porcelana: um sino repicava a
distancia o fim d'alguma festa d'igreja: e o domingo
terminava, com uma serenidade cançada e triste.
—Luiza—disse a voz de Jorge.
Ella voltou-se, com um vago—hein?
—Vamos jantar, filha; são sete horas.
No meio do quarto, tomou-a pela cinta, e fallando-lhe
baixo, junto á face:
—Tu zangaste-te ha bocado?
—Não! Tu tens razão. Conheço que tens razão.
—Ah!—fez elle com um tom victorioso, muito
satisfeito.—Está claro,
Quem melhor conselheiro e bom amigo
Que o marido que a alma m'escolheu?
[37]
E com uma ternura grave:
—Minha querida filha, esta nossa casinha é tão
honesta, que é uma dôr d'alma vêr entrar essa mulher
aqui, com o cheiro do
feno, do cigarro, e do
resto!...
Mà, di questo no parlaremo più, o donna mia!
Á sopa!
II
Aos domingos á noite havia em casa de Jorge
uma pequena reunião, uma
cavaqueira, na sala, em
redor do velho candieiro de porcelana côr de rosa.
Vinham apenas os intimos. «O Engenheiro», como
se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas.
Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco
á estudante.
Luiza fazia crochet, Jorge cachimbava.
O primeiro a chegar era Julião Zuzarte, um parente
muito afastado de Jorge, e seu antigo condiscipulo
nos primeiros annos da Polytechnica. Era um
homem secco e nervoso, com lunetas azues, os cabellos
compridos cahidos sobre a gola. Tinha o curso
de cirurgião da Escóla. Muito intelligente, estudava
desesperadamente, mas, como elle dizia, era um
tumba.
Aos trinta annos, pobre, com dividas, sem clientella,
[40]
começava a estar farto do seu quarto andar na
Baixa, dos seus jantares de doze vintens, do seu paletot
coçado d'alamares; e entalado na sua vida mesquinha,
via os outros, os mediocres, os superficiaes,
furar, subir, installar-se á larga na prosperidade!
«Falta de
chance», dizia. Podia ter aceitado um
partido
da camara n'uma villa da provincia, com pulso
livre, ter uma casa
sua, a
sua
creação no quintal.
Mas tinha um orgulho resistente, muita fé nas suas
faculdades, na sua sciencia, e não se queria ir enterrar
n'uma terriola adormecida e lugubre, com tres
ruas onde os porcos fossam. Toda a provincia o aterrava;
via-se lá obscuro, jogando a manilha na Assembléa,
morrendo de cachexia. Por isso não «arredava
pé»; e esperava, com a tenacidade do plebeu
sofrego, uma clientella rica, uma cadeira na Escóla,
um coupé para as visitas, uma mulher loura com
dote. Tinha certeza do seu direito a estas felicidades,
e como ellas tardavam a chegar ia-se tornando
despeitado e amargo; andava amuado com a vida;
cada dia se prolongavam mais os seus silencios hostis,
roendo as unhas: e, nos dias melhores, não cessava
de ter ditos sêccos,
tiradas azedadas—em que
a sua voz desagradavel cahia como um gume gelado.
Luiza não gostava d'elle; achava-lhe um
ar nordeste,
detestava o seu tom de pedagogo, os reflexos
negros da luneta, as calças curtas que mostravam o
elastico roto das botas. Mas disfarçava, sorria-lhe,
porque Jorge admirava-o, dizia sempre d'elle: Tem
muito espirito! tem muito talento! grande homem!
[41]
Como vinha mais cedo ia á sala de jantar, tomava
a sua chavena de café; e tinha sempre um
olhar de lado para as pratas do aparador e para as
toilettes frescas de Luiza. Aquelle parente, um
mediocre,
que vivia confortavelmente, bem casado, com
a carne contente, estimado no ministerio, com alguns
contos de reis em inscripções—parecia-lhe uma
injustiça e pezava-lhe como uma humilhação. Mas
affectava estimal-o; ia sempre ás noites, aos domingos;
escondia então as suas preoccupações, cavaqueava,
tinha pilherias,—mettendo a cada momento
os dedos pelos seus cabellos compridos, seccos
e cheios de caspa.
Ás nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade
de Noronha. Vinha logo da porta com os braços
estendidos, o seu bom sorriso dilatado. Tinha
cincoenta annos, era muito nutrida, e, como soffria
de dyspepsia e de gazes, áquella hora não se podia
espartilhar e as suas fórmas transbordavam. Já se
viam alguns fios brancos nos seus cabellos levemente
annelados, mas a cara era lisa e redonda, cheia,
d'uma alvura baça e molle de freira; nos olhos papudos,
com a pelle já engelhada em redor, luzia uma
pupilla negra e humida, muito mobil; e aos cantos
da bocca uns pellos de buço pareciam traços leves
e circumflexos d'uma penna muito fina. Fôra a intima
amiga da mãi de Luiza, e tomára aquelle habito
de vir vêr a
pequena aos domingos. Era fidalga, dos
Noronhas de Redondella, bastante aparentada em Lisboa,
um pouco devota, muito da Encarnação.
[42]
Mal entrava, ao pôr um beijo muito cantado na
face de Luiza, perguntava-lhe baixo, com inquietação:
—Vem?
—O conselheiro? Vem.
Luiza sabia-o. Porque o conselheiro, o conselheiro
Accacio, nunca vinha aos
chás de D. Luiza, como
elle dizia, sem ter ido na vespera ao ministerio das
obras publicas procurar Jorge, declarar-lhe com gravidade,
curvando um pouco a sua alta estatura:
—Jorge, meu amigo, ámanhã lá irei pedir a sua
boa esposa a minha chavena de chá.
Ordinariamente acrescentava:
—E os seus valiosos trabalhos progridem? Ainda
bem! Se vir o ministro, os meus respeitos a s.
exc.
a Os meus respeitos a esse formoso talento!
E sahia, pisando com solemnidade os corredores
enxovalhados.
Havia cinco annos que D. Felicidade o amava.
Em casa de Jorge riam-se um pouco com aquella
chamma. Luiza dizia: Ora! é uma caturrice d'ella!
Viam-na córada e nutrida, e não suspeitavam que
aquelle sentimento concentrado, irritado semanalmente,
queimando em silencio, a ia devastando como
uma doença e desmoralisando como um vicio.
Todos os seus ardores até ahi tinham sido inutilisados.
Amára um official de lanceiros que morrêra, e
apenas conservava o seu daguerreotypo. Depois apaixonára-se
muito occultamente por um rapaz padeiro,
da visinhança, e vira-o casar. Dera-se então toda a
[43]
um cão, o
Bilro; uma criada despedida deu-lhe por
vingança rolha cozida; o
Bilro rebentou, e tinha-o
agora empalhado na sala de jantar. A pessoa do conselheiro
viera de repente, um dia, pegar fogo áquelles
desejos, sobrepostos como combustiveis antigos.
Accacio tornára-se a sua
mania: admirava a sua
figura
e a sua gravidade, arregalava grandes olhos
para a sua eloquencia, achava-o n'uma «linda posição».
O conselheiro era a sua ambição e o seu vicio!
Havia sobretudo n'elle uma belleza, cuja contemplação
demorada a estonteava como um vinho forte:
era a calva. Sempre tivera o gosto perverso de certas
mulheres pela calva dos homens, e aquelle appetite
insatisfeito inflammára-se com a idade. Quando
se punha a olhar para a calva do conselheiro, larga,
redonda, polida, brilhante ás luzes, uma transpiração
anciosa humedecia-lhe as costas, os olhos dardejavam-lhe,
tinha uma vontade absurda, avida de lhe
deitar as mãos, palpal-a, sentir-lhe as fórmas, amassal-a,
penetrar-se d'ella! Mas disfarçava, punha-se a
fallar alto com um sorriso parvo, abanava-se convulsivamente,
e o suor gottejava-lhe nas rôscas anafadas
do pescoço. Ia para casa rezar estações, impunha-se
penitencias de muitas corôas á Virgem; mas
apenas as orações findavam, começava o temperamento
a latejar. E a boa, a pobre D. Felicidade tinha
agora pesadêlos lascivos, e as melancolias do hysterismo
velho! A indifferença do conselheiro irritava-a
mais: nenhum olhar, nenhum suspiro, nenhuma revelação
amorosa o commovia! Era para com ella glacial
[44]
e polido. Tinham-se ás vezes encontrado a sós,
á parte, no vão favoravel d'uma janella, no isolamento
mal alumiado d'um canto do sophá,—mas apenas
ella fazia uma demonstração sentimental, elle erguia-se
bruscamente, afastava-se, severo e pudico. Um dia
ella julgára perceber que, por traz das suas lunetas
escuras, o conselheiro lhe deitava de revés um olhar
apreciador para a abundancia do seio; fôra mais clara,
mais urgente, fallára em
paixão, disse-lhe baixo:
Accacio!... Mas elle com um gesto gelou-a—e de
pé, grave:
—Minha senhora,
As neves que na fronte se accumulam
Terminam por cahir no coração...
É inutil, minha senhora!
O martyrio de D. Felicidade era muito occulto,
muito disfarçado; ninguem o sabia; conheciam-lhe
as infelicidades do sentimento, ignoravam-lhe as torturas
do desejo. E um dia Luiza ficou attonita, sentindo
D. Felicidade agarrar-lhe o pulso com a mão
humida, e dizer-lhe baixo, os olhos cravados no conselheiro:
—Que regalo d'homem!
Fallava-se n'essa noite do Alemtejo, d'Evora e
das suas riquezas, da capella dos ossos, quando o
conselheiro entrou com o paletot no braço. Foi-o dobrar
solicitamente n'uma cadeira a um canto, e no
seu passo aprumado e official, veio apertar as mãos
[45]
ambas de Luiza, dizendo-lhe com uma voz sonora,
de
papo:
—Minha boa snr.
a D. Luiza, de perfeita saude,
não? O nosso Jorge tinha-m'o dito. Ainda bem! Ainda
bem!
Era alto, magro, vestido todo de preto, com o
pescoço entalado n'um collarinho direito. O rosto
aguçado no queixo ia-se alargando até á calva, vasta
e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os
cabellos que d'uma orelha á outra lhe faziam collar
por traz da nuca—e aquelle preto lustroso dava,
pelo contraste, mais brilho á calva; mas não tingia
o bigode: tinha-o grisalho, farto, cahido aos cantos
da bocca. Era muito pallido; nunca tirava as lunetas
escuras. Tinha uma covinha no queixo, e as orelhas
grandes muito despegadas do craneo.
Fôra, outr'ora, director geral do ministerio do
reino, e sempre que dizia—El-rei! erguia-se um
pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos,
mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviaes;
não dizia
vomitar, fazia um gesto indicativo e
empregava
restituir. Dizia sempre «o nosso Garrett, o
nosso Herculano». Citava muito. Era author. E sem
familia, n'um terceiro andar da rua do Ferregial,
amancebado com a criada, occupava-se d'economia
politica: tinha composto os
Elementos genericos
da sciencia da riqueza e sua distribuição,
segundo
os melhores authores, e como sub-titulo:
Leituras
do serão! Havia apenas mezes publicára a
Relação
de todos os ministros d'estado desde o
[46]
grande marquez de pombal até nossos dias, com
datas cuidadosamente averiguadas de seus nascimentos
e obitos.
—Já esteve no Alemtejo, conselheiro?—perguntou-lhe
Luiza.
—Nunca, minha senhora—e curvou-se.—Nunca!
E tenho pena! sempre desejei lá ir, porque me dizem
que as suas curiosidades são de primeira ordem.
Tomou uma pitada d'uma caixa dourada, entre
os dedos, delicadamente, e acrescentou com pompa:
—De resto, paiz de grande riqueza suina!
—Ó Jorge, averigua quanto é o partido da camara
em Evora—disse Julião do canto do sophá.
O conselheiro acudiu, cheio de informações, com
a pitada suspensa:
—Devem ser seiscentos mil reis, snr. Zuzarte, e
pulso livre. Tenho-o nos meus apontamentos. Porquê,
snr. Zuzarte, quer deixar Lisboa?
—Talvez!...
Todos desapprovaram.
—Ah! Lisboa sempre é Lisboa!—suspirou D.
Felicidade.
—Cidade de marmore e de granito, na phrase
sublime do nosso grande historiador!—disse solemnemente
o conselheiro.
E sorveu a pitada com os dedos abertos em leque,
magros, bem tratados.
D. Felicidade disse então:
—Quem não era capaz de deixar Lisboa, nem á
mão de Deus Padre, era o conselheiro!
[47]
O conselheiro, voltando-se vagarosamente para
ella, um pouco curvado, replicou:
—Nasci em Lisboa, D. Felicidade, sou lisboeta
d'alma!
—O conselheiro—lembrou Jorge—nasceu na
rua de S. José.
—Numero setenta e cinco, meu Jorge. Na casa
pegada áquella em que viveu, até casar, o meu prezado
Geraldo, o meu pobre Geraldo!
Geraldo, o seu pobre Geraldo, era o pai de Jorge.
Accacio fôra o seu intimo. Eram visinhos. Accacio
tocava então rebeca, e, como Geraldo tocava
flauta, faziam duos, pertenciam mesmo á Philarmonica
da rua de S. José. Depois Accacio, quando entrou
nas repartições do Estado, por escrupulo e por dignidade,
abandonou a rebeca, os sentimentos ternos,
os serões joviaes da Philarmonica. Entregou-se todo
á estatistica. Mas conservou-se muito leal a Geraldo;
continuou mesmo a Jorge aquella amizade vigilante;
fôra padrinho do seu casamento, vinha vêl-o todos
os domingos, e, no dia de seus annos, mandava-lhe
pontualmente, com uma carta de felicitações,
uma lampreia d'ovos.
—Aqui nasci—repetiu, desdobrando o seu bello
lenço de sêda da India—e aqui conto morrer.
E assoou-se discretamente.
—Isso ainda vem longe, conselheiro!
Elle disse, com uma melancolia grave:
—Não me arreceio d'
ella, meu Jorge. Até já fiz
construir, sem vacillar, no Alto de S. João, a minha
[48]
ultima morada. Modesta, mas decente. É ao entrar,
no arruamento á direita, n'um lugar abrigado, ao pé
da choça dos Verissimos amigos.
—E já compoz o seu epitaphio, snr. conselheiro?—perguntou
Julião, do canto, ironico.
—Não o quero, snr. Zuzarte. Na minha sepultura
não quero elogios. Se os meus amigos, os meus patricios
entenderem que eu fiz alguns serviços, teem
outros meios para os commemorar; lá teem a imprensa,
o communicado, o necrologio, a poesia mesmo!
Por minha vontade quero apenas sobre a lapide
lisa, em letras negras, o meu nome—com a minha
designação de conselheiro—a data do meu nascimento
e a data do meu obito.
E com um tom demorado, de reflexão:
—Não me opponho todavia a que inscrevam por
baixo, em letras menores:
Orai por elle!
Houve um silencio commovido, e á porta uma
voz fina, disse:
—Dão licença?
—Oh Ernestinho!—exclamou Jorge.
Com um passo miudinho e rapido, Ernestinho
veio abraçal-o pela cintura:
—Eu soube que tu que partias, primo Jorge...
Como está, prima Luiza?
Era primo de Jorge. Pequenino, lymphatico, os
seus membros franzinos, ainda quasi tenros, davam-lhe
um aspecto debil de collegial; o buço, delgado,
empastado em cêra-mostache, arrebitava-se aos cantos
em pontas afiadas como agulhas; e na sua cara
[49]
chupada, os olhos repolhudos amorteciam-se com um
quebrado langoroso. Trazia sapatos de verniz com
grandes laços de fita; sobre o collete branco, a cadêa
do relogio sustentava um medalhão enorme,
d'ouro, com fructos e flôres esmaltadas em relevo.
Vivia com uma actrizita do Gymnasio, uma magra,
côr de melão, com o cabello muito riçado, o ar tisico,—e
escrevia para o theatro. Tinha traducções,
dous originaes n'um acto, uma comedia em
calembourgs.
Ultimamente trazia em ensaios nas Variedades
uma obra consideravel, um drama em cinco
actos, a
Honra e Paixão. Era a sua estreia séria. E
desde então, viam-no sempre muito atarefado, os
bolsos inchados de manuscriptos, com localistas, com
actores, muito prodigo de cafés e de
cognacs, o
chapéo
ao lado, descórado, e dizendo a todos: Esta vida,
mata-me! Escrevia todavia por paixão entranhada
pela Arte—porque era empregado na alfandega,
com bom vencimento, e tinha quinhentos mil reis de
renda das suas inscripções. A Arte mesmo, dizia, obrigava-o
a desembolsos: para o acto do baile da
Honra
e Paixão mandára fazer, á sua custa, botas de
verniz para o
galan, botas de verniz para o
pai-nobre!
O seu nome de familia era Ledesma.
Deram-lhe um lugar, e Luiza notou logo, pousando
o bordado, que estava abatido! Queixou-se então
das suas fadigas: os ensaios arrazavam-no, tinha
turras com o empresario: na vespera, vira-se forçado
a refazer todo o final d'um acto! todo!
—E tudo isto—acrescentou muito exaltado—porque
[50]
é um pelintra, um parvo, e quer que se passe
n'uma sala, o acto que se passava n'um abysmo!
—N'um quê?—perguntou surprehendida D. Felicidade.
O conselheiro, muito cortez, explicou:
—N'um abysmo, D. Felicidade, n'um despenhadeiro.
Tambem se diz, em bom vernaculo, um
vortice.—Citou:
N'um espumoso vortice se arroja...
—N'um abysmo?—perguntaram.—Porquê?
O conselheiro quiz conhecer o
lance.
Ernestinho, radioso, esboçou largamente o enredo:—Era
uma mulher casada. Em Cintra tinha-se
encontrado com um homem fatal, o conde de Monte-Redondo.
O marido arruinado, devia cem contos de
reis ao jogo! Estava deshonrado, ia ser preso. A mulher,
louca, corre a umas ruinas acastelladas, onde
habita o conde, deixa cahir o véo, conta-lhe a catastrophe.
O conde lança o seu manto aos hombros, parte,
chega no momento em que os beleguins vão levar
o homem.—É uma scena muito commovente,
dizia, é de noite, ao luar!—O conde desembuça-se,
atira uma bolsa d'ouro aos pés dos beleguins, gritando-lhes:
Saciai-vos, abutres!...
—Bello final!—murmurou o conselheiro.
—Emfim—acrescentou Ernesto, resumindo—aqui
ha um enredo complicado: o conde de Monte-Redondo
e a mulher amam-se, o marido descobre,
arremessa todo o seu ouro aos pés do conde, e mata
a esposa.
—Como?—perguntaram.
[51]
—Atira-a ao abysmo. É no quinto acto. O conde
vê, corre, atira-se tambem. O marido cruza os braços,
e dá uma gargalhada infernal. Foi assim que eu
imaginei a cousa!
Calou-se, offegante: e, abanando-se com o lenço,
rolava em redor os seus olhos langorosos, prateados
como os d'um peixe morto.
—É uma obra de cunho, embatem-se grandes
paixões!—disse o conselheiro, passando as mãos
sobre a calva.—Os meus parabens, snr. Ledesma!
—Mas que quer o empresario?—perguntou Julião,
que escutára de pé, attonito—que quer elle?
Quer o abysmo n'um primeiro andar, mobilado pelo
Gardé?
Ernestinho voltou-se, muito affectuosamente:
—Não, snr. Zuzarte,—a sua voz era quasi meiga—quer
o desfecho n'uma sala. De modo que eu—e
fazia um gesto resignado—a gente tem de condescender,
tive d'escrever outro final. Passei a noite
em claro. Tomei tres chavenas de café!...
O conselheiro acudiu, com a mão espalmada:
—Cuidado, snr. Ledesma, cuidado! Prudencia
com esses excitantes! Por quem é, prudencia!
—A mim não me faz mal, snr. conselheiro—disse
sorrindo.—Escrevi-o em tres horas! Venho de
lh'o mostrar agora. Até o tenho aqui...
—Leia, snr. Ernesto, leia!—exclamou logo D.
Felicidade.
Que lêsse! que lêsse! porque não lia?
Era uma massada!... Era um rascunho!... Emfim,
[52]
como queriam!... E radiante desdobrou, no silencio,
uma grande folha de papel azul pautado.
—Eu peço desculpa. Isto é um borrão. A cousa
não está ainda com todos os FF e RR.—Fez então
voz theatral:—
Agatha!... É a mulher; isto aqui é
a
scena com o marido, o marido já sabe tudo...
agatha (cahindo de joelhos nos pés de Julio)
«Mas mata-me! Mata-me, por piedade! Antes a
morte, que vêr, com esses desprezos, o coração
rasgado fibra a fibra!»
julio
«E não me rasgaste tu tambem o coração? Tiveste
tu piedade? Não. Retalhaste-m'o! Meu Deus,
eu que a julgava pura, n'essas horas em que arrebatados...»
O reposteiro franziu-se. Sentiu-se um fino tilintar
de chavenas. Era Juliana, d'avental branco, com o chá.
—Que pena!—exclamou Luiza.—Depois do
chá se lê. Depois do chá.
Ernesto dobrou o papel, e, com um olhar de lado
para Juliana, rancoroso:
—Não vale a pena, prima Luiza!
—Ora essa! É lindo!—affirmou D. Felicidade.
Juliana pousava sobre a mesa o prato das fatias,
os biscoutos d'Oeiras, os bolos do Cócó.
—Aqui tem o seu chá fraco, conselheiro—dizia
[53]
Luiza.—Sirva-se, Julião. As torradas ao snr. Julião!
Mais assucar! Quem quer? Uma torrada, conselheiro?
—Estou amplamente servido, minha prezada senhora—replicou,
curvando-se.
E declarou, voltado para Ernestinho, que achava
o dialogo opulento.
Mas, perguntaram, o que quer o empresario mais
agora? Já tem a sala...
Ernestinho, de pé, excitado, com um bolo d'ovos
na ponta dos dedos, explicou:
—O que o empresario quer é que o marido lhe
perdôe...
Foi um espanto:
—Ora essa! É extraordinario! Porque?
—Então!—exclamou Ernestinho, encolhendo os
hombros,—diz que o publico que não gosta! Que
não são cousas cá para o nosso paiz.
—A fallar a verdade—disse o conselheiro—a
fallar a verdade, snr. Ledesma, o nosso publico não
é geralmente affecto a scenas de sangue.
—Mas não ha sangue, snr. conselheiro!—protestava
Ernestinho, erguendo-se sobre os bicos dos
sapatos—mas não ha sangue! É com um tiro. É
com um tiro pelas costas, snr. conselheiro!
Luiza fez a D. Felicidade—
pst! e, n'um áparte,
com um sorriso:
—D'esses bolinhos d'ovos. São muito frescos!
Ella respondeu, com uma voz lamentosa:
—Ai, filha, não!
[54]
E indicou o estomago, compungidamente.
No entanto o conselheiro aconselhava a Ernestinho
a clemencia: tinha-lhe posto a mão no hombro
paternalmente, e com uma voz persuasiva:
—Dá mais alegria á peça, snr. Ledesma. O espectador
sahe mais alliviado! Deixe sahir o espectador
alliviado!
—Mais um bolinho, conselheiro?
—Estou repleto, minha prezada senhora.
E, então, invocou a opinião de Jorge. Não lhe parecia
que o bom Ernesto devia perdoar?
—Eu, conselheiro? De modo nenhum. Sou pela
morte. Sou inteiramente pela morte! E exijo que a
mates, Ernestinho!
D. Felicidade acudiu, toda bondosa:
—Deixe fallar, snr. Ledesma. Está a brincar. E
elle então que é um coração d'anjo!
—Está enganada, D. Felicidade—disse Jorge,
de pé, diante d'ella.—Fallo serio e sou uma fera!
Se enganou o marido, sou pela morte. No abysmo,
na sala, na rua, mas que a mate. Posso lá consentir
que, n'um caso d'esses, um primo meu, uma
pessoa da minha familia, do meu sangue, se ponha
a perdoar como um lamecha! Não! Mata-a! É um
principio de familia. Mata-a quanto antes!
—Aqui tem um lapis, snr. Ledesma—gritou Julião,
estendendo-lhe uma lapiseira.
O conselheiro, então, interveio, grave:
—Não—disse—não creio que o nosso Jorge
falle serio. É muito instruido para ter idéas tão...
[55]
Hesitou, procurou o adjectivo. Juliana poz-se-lhe
diante com uma bandeja, onde um macaco de prata
se agachava comicamente, sob um vasto guarda-sol
erriçado de palitos. Tomou um, curvou-se, e concluiu:
—...Tão anti-civilisadoras.
—Pois está enganado, conselheiro, tenho-as—affirmou
Jorge.—São as minhas idéas. E aqui tem,
se em lugar de se tratar d'um final d'acto, fosse um
caso da vida real, se o Ernesto viesse dizer-me: sabes,
encontrei minha mulher...
—Oh Jorge!—disseram, reprehensivamente.
—...Bem, supponhamos, se elle m'o viesse dizer,
eu respondia-lhe o mesmo. Dou a minha palavra
d'honra, que lhe respondia o mesmo: mata-a!
Protestaram. Chamaram-lhe
tigre,
Othello,
Barba-Azul.
Elle ria, enchendo muito socegadamente o seu
cachimbo.
Luiza bordava, calada: a luz do candieiro, abatida
pelo
abat-jour, dava aos seus cabellos tons de
um louro quente, resvalava sobre a sua testa branca
como sobre um marfim muito polido.
—Que dizes tu a isto?—disse-lhe D. Felicidade.
Ella ergueu o rosto, risonha, encolheu os hombros...
E o conselheiro logo:
—A snr.
a D. Luiza diz com orgulho o que dizem
as verdadeiras mães de familia:
Impurezas do mundo não me roçam
Nem a fimbria da tunica sequer.
[56]
—Ora muito boas noites—disse, á porta, uma
voz grossa.
Voltaram-se.
Ó Sebastião! Ó snr. Sebastião! ó Sebastiarrão!
Era elle, Sebastião, o grande Sebastião, o Sebastiarrão,
Sebastião
tronco d'arvore,—o intimo, o camarada,
o
inseparavel de Jorge, desde o latim, na
aula de frei Liborio, aos Paulistas.
Era um homem baixo e grosso, todo vestido de
preto, com um chapéo molle desabado na mão. Começava
a perder um pouco na frente, os seus cabellos
castanhos e finos. Tinha a pelle muito branca, a
barba alourada e curta.
Veio sentar-se ao pé de Luiza.
—Então d'onde vem? d'onde vem?
Vinha do Price. Rira muito com os palhaços.
Houvera a brincadeira da pipa.
O seu rosto, em plena luz, tinha uma expressão
honesta, simples, aberta: os olhos pequenos, azues
d'um azul claro, d'uma suavidade séria, adoçavam-se
muito quando sorria: e os beiços escarlates, sem pelliculas
seccas, os dentes luzidios, revelavam uma
vida saudavel e habitos castos. Fallava devagar,
baixo, como se tivesse medo de se manifestar ou de
fatigar. Juliana trouxera-lhe a sua chavena, e remexendo
o assucar com a colhér direita, os olhos ainda
a rir, um sorriso bom:
—A pipa tem muita graça. Muita graça!
Sorveu um gole de chá e depois d'um momento:
—E tu, maroto, sempre partes ámanhã? Não ha
[57]
umas tentaçõesinhas d'ir por ahi fóra com elle, minha
cara amiga?
Luiza sorriu. Tomára ella! Quem dera! Mas era
uma jornada tão incommoda! Depois a casa não podia
ficar só, não havia que fiar em criados...
—Está claro, está claro—disse elle.
Jorge, então, que abrira a porta do escriptorio,
chamou-o:
—Ó Sebastião! Fazes favor?
Elle foi logo com o seu andar pesado, o largo
dorso curvado: as abas do seu casaco mal feito tinham
um comprimento ecclesiastico.
Entraram para o escriptorio.
Era uma saleta pequena, com uma estante alta e
envidraçada, tendo em cima a estatueta de gesso,
empoeirada e velha, d'uma bacchante em delirio. A
mesa, com um antigo tinteiro de prata que fôra de
seu avô, estava ao pé da janella: uma collecção empilhada
de
Diarios do Governo, branquejava a um
canto: por cima da cadeira de marroquim escuro,
pendia, n'um caixilho preto, uma larga photographia
de Jorge: e sobre o quadro, duas espadas encruzadas
reluziam. Uma porta, no fundo, coberta com um
reposteiro de baeta escarlate, abria para o patamar.
—Sabes quem esteve ahi de tarde?—disse logo
Jorge, accendendo o cachimbo—Aquella desavergonhada
da Leopoldina! Que te parece, hein?
—E entrou?—perguntou Sebastião, baixo, correndo
por dentro o pesado reposteiro de fazenda listrada.
[58]
—Entrou, sentou-se, esteve, demorou-se! Fez o
que quiz! A Leopoldina, a
Pão e queijo!
E arremessando o phosphoro violentamente:
—Quando penso que aquella desavergonhada
vem a minha casa! Uma creatura que tem mais
amantes que camisas, que anda pelo Dá-fundo em
troças, que passeava nos bailes, este anno, de dominó,
com um tenor! A mulher do Zagallão, um devasso
que falsificou uma letra!
E quasi ao ouvido de Sebastião:
—Uma mulher que dormiu com o Mendonça dos
callos! Aquelle sebento do Mendonça dos callos!
Teve um gesto furioso, exclamou:
—E vem aqui, senta-se nas minhas cadeiras,
abraça minha mulher, respira o meu ar!... Palavra
d'honra, Sebastião, se a pilho—procurou mentalmente,
com o olhar acceso, um castigo sufficiente—dou-lhe
açoutes!
Sebastião disse devagar:
—E o peor é a visinhança.
—Está claro que é!—exclamou Jorge.—Toda
essa gente ahi pela rua abaixo sabe quem ella é!
Sabem-lhe os amantes, sabem-lhe os sitios. É a
Pão
e queijo! Todo o mundo conhece a
Pão e
queijo.
—Má visinhança—disse Sebastião.
—De tremer.
Mas então! estava acostumado á casa, era sua,
tinha-a arranjado, era uma economia...
—Senão! Não parava aqui um dia!
Era um horror de rua! Pequena, estreita, acavallados
[59]
uns nos outros! Uma visinhança a postos, avida
de mexericos! Qualquer bagatella, o trotar d'uma
tipoia, e apparecia por traz de cada vidro um par
d'olhos repolhudos a cocar! E era logo um badalar
de linguas por ahi abaixo, e conciliabulos, e opiniões
formadas! fulano é indecente, fulana é bebeda!
—É o diabo!—disse Sebastião.
—A Luiza é um anjo, coitada—dizia Jorge, passeando
pela saleta—mas tem cousas em que é criança!
Não vê o mal. É muito boa, deixa-se ir. Com
este caso da Leopoldina, por exemplo; foram creadas
de pequenas, eram amigas, não tem coragem
agora para a pôr fóra. É acanhamento, é bondade.
Elle comprehende-se! Mas emfim as leis da vida tem
as suas exigencias!...
E depois d'uma pausa:
—Por isso, Sebastião, em quanto eu estiver fóra,
se te constar que a Leopoldina vem por cá, avisa
a Luiza! Porque ella é assim: esquece-se, não
reflexiona. É necessario alguem que a advirta, que
lhe diga:—Alto lá, isso não póde ser! Que então
cahe logo em si, e é a primeira!... Vens por ahi,
fazes-lhe companhia, fazes-lhe musica, e se vires
que a Leopoldina apparece ao largo, tu logo:—Minha
rica senhora, cuidado, olhe que isso não! Que
ella, sentindo-se apoiada, tem decisão. Senão, acanha-se,
deixa-a vir. Soffre com isso, mas não tem
coragem de lhe dizer: Não te quero vêr, vai-te! Não
tem coragem p'ra nada: começam as mãos a tremer-lhe,
[60]
a seccar-se-lhe a bocca... É mulher, é muito
mulher!... Não te esqueças, hein, Sebastião?
—Então havia de me esquecer, homem?
Sentiram então o piano na sala, e a voz de Luiza
ergueu-se, fresca e clara, cantando a
Mandolinata:
Amici, la notte é bella,
La luna va spontari...
—Fica tão só, coitada!...—disse Jorge.
Deu alguns passos pelo escriptorio, fumando,
com a cabeça baixa:
—Todo o casal bem organisado, Sebastião, deve
ter dous filhos! Deve ter pelo menos um!...
Sebastião coçou a barba em silencio—e a voz
de Luiza, elevando-se com um certo esforço aspero,
nos
altos da melodia :
Di cà, di là, per la cità
Andiami a transnottari...
Era uma tristeza secreta de Jorge—não ter um
filho! Desejava-o tanto! Ainda em solteiro, nas vesperas
do casamento, já sonhava aquella felicidade:
o seu filho! Via-o de muitas maneiras: ou gatinhando
com as suas perninhas vermelhas, cheias de rôscas,
e os cabellos annelados, finos como fios de sêda;
ou rapaz forte, entrando da escóla com os livros,
alegre e d'olho vivo, vindo mostrar-lhe as boas notas
dos mestres: ou, melhor, rapariga crescida, clara
[61]
e rosada, com um vestido branco, as duas tranças
cahidas, vindo pousar as mãos nos seus cabellos
já grisalhos...
Vinha-lhe, ás vezes, um medo de morrer sem
ter tido aquella felicidade completadora!
Agora, na sala, a voz aguda de Ernestinho perorava,
depois, no piano Luiza recomeçou a
Mandolinata,
com um
brio jovial.
A porta do escriptorio abriu-se, Julião entrou:
—Que estão vossês aqui a conspirar? Vou-me
safar, que é tarde! Até á volta, meu velho, hein?
Tambem ia comtigo tomar ar, respirar, vêr campos,
mas...
E sorriu com amargura.—
Addio! Addio!
Jorge foi alumiar-lhe ao patamar, abraçal-o outra
vez. Se quizesse alguma cousa do Alemtejo!...
Julião carregou o chapéo na cabeça:
—Dá cá outro charuto, por despedida! Dá cá
dous!
—Leva a caixa! Eu em viagem só fumo cachimbo.
Leva a caixa, homem!
Embrulhou-lh'a n'um
Diario de Noticias; Julião
metteu-a debaixo do braço, e descendo os degraus:
—Cuidado com as sezões, e descobre uma mina
d'ouro!
Jorge e Sebastião entraram na sala. Ernestinho,
encostado ao piano, torcia as guias do bigodinho, e
Luiza começava uma valsa de Strauss—o
Danubio
Azul.
Jorge disse, rindo, estendendo os braços:
[62]
—Uma valsa, D. Felicidade?
Ella voltou-se, com um sorriso. E porque não?
Em nova era fallada! Citou logo a valsa que dançára
com o sr. D. Fernando, no tempo da Regencia,
nas Necessidades. Era uma valsa linda, d'essa época:
A Perola d'Ophir.
Estava sentada ao pé do conselheiro, no sophá.
E como retomando um dialogo mais querido—continuou,
baixo para elle, com uma voz meiga:
—Pois creia, acho-o com optimas côres.
O conselheiro enrolava vagarosamente o seu lenço
de sêda da India.
—Na estação calmosa passo sempre melhor. E
D. Felicidade?
—Ai! Estou outra, conselheiro! Muito boas digestões,
muito livre de gazes... Estou outra!
—Deus o queira, minha senhora, Deus o queira—disse
o conselheiro, esfregando lentamente as mãos.
Tossiu, ia levantar-se, mas D. Felicidade pôz-se
a dizer:
—Espero que esse interesse seja verdadeiro...
Córou. O corpete flaccido do vestido de sêda
preta enchia-se-lhe com o arfar do peito.
O conselheiro recahiu lentamente no sophá,—e
com as mãos nos joelhos:
—D. Felicidade sabe que tem em mim um amigo
sincero...
Ella levantou para elle seus olhos pisados, d'onde
sahiam revelações de paixão e supplicas de felicidade:
[63]
—E eu, conselheiro!...
Deu um grande suspiro, pôz o leque sobre o
rosto.
O conselheiro ergueu-se seccamente. E com a cabeça
alta, as mãos atraz das costas, foi ao piano,
perguntou a Luiza curvando-se:
—É alguma canção do Tyrol, D. Luiza?
—Uma valsa de Strauss—murmurou-lhe Ernestinho,
em bicos de pés, ao ouvido.
—Ah! Muita fama! Grande author!
Tirou então o relogio. Eram horas, disse, de ir
coordenar alguns apontamentos. Aproximou-se de
Jorge, com solemnidade:
—Jorge, meu bom Jorge, adeus! Cautela com
esse Alemtejo! O clima é nocivo, a estação traiçoeira!
E apertou-o nos braços com uma pressão commovida.
D. Felicidade punha a sua manta de renda negra.
—Já, D. Felicidade?—disse Luiza.
Ella explicou-lhe, ao ouvido:
—Já, sim, filha, que tenho estado a abarrotar,
comi umas bajes e tenho estado!... E aquelle homem,
aquelle gêlo! O snr. Ernesto vem para os
meus sitios, hein?
—Como um fuso, minha senhora!
Tinha vestido o seu paletot d'alpaca clara, fumava
chupando, com as faces encovadas, por uma boquilha
enorme, onde uma Venus se torcia sobre o
dorso d'um leão domado.
[64]
—Adeus, primo Jorge, saudinha e dinheiro,
hein? Adeus. Quando fôr a
Honra e Paixão cá mando
um camarote á prima Luiza. Adeus! Saudinha!
Iam a sahir. Mas o conselheiro, á porta, voltando-se
subitamente, com as abas do paletot deitadas
para traz, a mão pomposamente apoiada no castão
de prata da bengala que representava uma cabeça
de mouro, disse, com gravidade:
—Esquecia-me, Jorge! Tanto em Evora, como
em Beja, visite os governadores civis! E eu lhe digo
porquê: deve-lh'o como primeiros funccionarios do
districto, e podem-lhe ser de muita utilidade nas
suas peregrinações scientificas!
E curvando-se profundamente:
—
Al rivedere, como se diz em Italia.
Sebastião tinha ficado. Para arejar do fumo de
tabaco Luiza foi abrir as janellas; a noite estava
quente e immovel, de luar.
Sebastião pozera-se ao piano, e com a cabeça
curvada, corria devagar o teclado.
Tocava admiravelmente, com uma comprehensão
muito fina da musica. Outr'ora, compozera mesmo
uma
Meditação, duas
Valsas, uma
Ballada: mas
eram estudos muito trabalhados, cheios de reminiscencias,
sem estylo.—Da cachimonia não me sahe
[65]
nada—costumava elle dizer com bonhomia, batendo
na testa, sorrindo—mas lá com os dedos!...
Pôz-se a tocar um
Nocturno de Choppin. Jorge
sentára-se no sophá ao pé de Luiza.
—Já tens prompto o teu farnelzinho!—disse-lhe
ella.
—Bastam umas bolachas, filha. O que quero é o
cantil com
cognac.
—E não te esqueças de mandar um telegramma
logo que chegues!
—Pudera!
—Tu d'aqui a quinze dias, vens!
—Talvez...
Ella teve um gesto amuado.
—Ah, bem! Se não vieres, vou ter comtigo! A
culpa é tua.
E olhando em redor:
—Que só que vou ficar!
Mordeu o beicinho, fitou o tapete. E de repente,
com a voz ainda triste:
—Pst, Sebastião! A
malaguenha, faz favor?
Sebastião começou a tocar a
malaguenha. Aquella
melodia calida, muito arrastada, encantava-a. Parecia-lhe
estar em Malaga, ou em Granada, não sabia:
era sob as laranjeiras, mil estrellinhas luzem;
a noite é quente, o ar cheira bem; por baixo d'um
lampeão suspenso a um ramo, um cantador sentado
na tripeça mourisca faz gemer a guitarra; em redor
as mulheres com os seus corpetes de velludilho encarnado
batem as mãos em cadencia: e ao largo
[66]
dorme uma Andaluzia de romance e de zarzuela,
quente e sensual, onde tudo são braços brancos que
se abrem para o amor, capas romanticas que roçam
as paredes, sombrias viellas onde luz o nicho do
santo e se repenica a viola, serenos que invocam a
Virgem Santissima cantando as horas...
—Muito bem, Sebastião! Gracias!
Elle sorriu, ergueu-se, fechou cuidadosamente o
piano, e indo buscar o seu chapéo desabado:
—Então ámanhã ás sete? Cá estou, e vou-te
acompanhar até ao Barreiro.
Bom Sebastião!
Foram debruçar-se na varanda para o vêr sahir.
A noite fazia um silencio alto, d'uma melancolia
placida; o gaz dos candieiros parecia mortiço; a sombra
que se recortava na rua, com uma nitidez brusca,
tinha um tom quente e dôce; a luz punha nas
fachadas brancas claridades vivas, e nas pedras da
calçada faiscações vidradas; uma clara-boia reluzia,
a distancia, como uma velha lamina de prata; nada
se movia; e instinctivamente os olhos erguiam-se
para as alturas, procuravam a lua branca, muito séria.
—Que linda noite!
A porta bateu, e Sebastião de baixo, na sombra:
—Dá vontade de passear, hein?
—Linda!
Ficaram á varanda preguiçosamente, olhando, detidos
pela tranquillidade, pela luz. Puzeram-se a fallar
[67]
baixo da jornada. Áquella hora onde estaria elle?
Já em Evora, n'um quarto d'estalagem, passeando
monotonamente sobre um chão de tijolo. Mas voltaria
breve; esperava fazer um bom negocio com o
Paco, o hespanhol das minas de Portel, trazer talvez
alguns centos de mil reis, e teriam então a doçura
do mez de setembro; poderiam fazer uma jornada
ao Norte, irem ao Bussaco, trepar aos altos,
beber a agua fresca das rochas, sob a espessura humida
das folhagens: irem a Espinho, e pelas praias,
sentar-se na arêa, no bom ar cheio d'azote, vendo o
mar unido, d'um azul metallico e faiscante, o mar
do verão, com algum fumo de paquete que passa
para o Sul ao longe muito adelgaçado. Faziam outros
planos com os hombros muito chegados: uma
felicidade abundante enchia-os deliciosamente. E Jorge
disse:
—Se houvesse um pequerrucho, já não ficavas
tão só!
Ella suspirou. Tambem o desejava tanto! Chamar-se-hia
Carlos Eduardo. E via-o no seu berço dormindo,
ou no collo, nú, agarrando com a mãosinha o
dedo do pé, mamando a ponta rosada do seu peito...
Um estremecimento d'um deleite infinito correu-lhe
no corpo. Passou o braço pela cinta de Jorge. Um
dia seria, teria um filho de certo! E não comprehendia
o seu filho homem nem Jorge velho: via-os ambos
do mesmo modo: um sempre amante, novo,
forte; o outro sempre dependente do seu peito, da
maminha, ou gatinhando e palrando, louro e côr de
[68]
rosa. E a vida apparecia-lhe infindavel, d'uma doçura
igual, atravessada do mesmo enternecimento amoroso,
quente, calma e luminosa como a noite que os
cobria.
—A que horas quer a senhora que a venha acordar?—disse
a voz secca de Juliana.
Luiza voltou-se:
—Ás sete, já lhe disse ha pouco, creatura.
Fecharam a janella. Em torno das velas uma
borboleta branca esvoaçava. Era bom agouro!
Jorge prendeu-a nos braços:
—Vai ficar sem o seu maridinho, hein?—disse
tristemente.
Ela deixou pesar o corpo sobre as mãos d'elle
cruzadas, olhou-o com um longo olhar que se ennevoava
e escurecia, e envolvendo-lhe o pescoço com
o gesto lento, harmonioso e solemne dos braços,
pousou-lhe na bocca um beijo grave e profundo. Um
vago soluço levantou-lhe o peito.
—Jorge! Querido!—murmurou.
III
Havia doze dias que Jorge tinha partido e, apesar
do calor e da poeira, Luiza vestia-se para ir a
casa de Leopoldina. Se Jorge soubesse, não havia
de gostar, não! Mas estava tão farta de estar só!
Aborrecia-se tanto! De manhã, ainda tinha os arranjos,
a costura, a
toilette, algum romance... Mas de
tarde!
Á hora em que Jorge costumava voltar do ministerio,
a solidão parecia alargar-se em torno d'ella.
Fazia-lhe tanta falta o
seu toque da campainha, os
seus passos no corredor!...
Ao crepusculo, ao vêr cahir o dia, entristecia-se
sem razão, cahia n'uma vaga sentimentalidade: sentava-se
ao piano, e os fados tristes, as cavatinas
apaixonadas gemiam instinctivamente no teclado, sob
[70]
os seus dedos preguiçosos, no movimento abandonado
dos seus braços molles. O que pensava em tolices
então! E á noite, só, na larga cama franceza,
sem poder dormir com o calor, vinham-lhe de repente
terrores, palpites de viuvez.
Não estava acostumada, não podia estar só. Até
se lembrára de chamar a tia Patrocinio, uma velha
parenta pobre que vivia em Belem: ao menos era
alguem: mas receou aborrecer-se mais ao pé da sua
longa figura de viuva taciturna, sempre a fazer meia,
com enormes oculos de tartaruga sobre um nariz
d'aguia.
N'aquella manhã pensára em Leopoldina, toda
contente d'ir tagarellar, rir, segredar, passar as horas
do calor. Penteava-se em collete e saia branca:
a camisinha decotada descobria os ombros alvos
d'uma redondeza macia, o collo branco e tenro, azulado
de vêasinhas finas; e os seus braços redondinhos,
um pouco vermelhos no cotovêlo, descobriam
por baixo, quando se erguiam prendendo as tranças,
fiosinhos louros, frisando e fazendo ninho.
A sua pelle conservava ainda o rosado humido
da agua fria: havia no quarto um cheiro agudo de
vinagre de
toilette: os transparentes de linho
branco
descidos davam uma luz baça, com tons de leite.
Ah! positivamente devia escrever a Jorge, que
voltasse depressa! Que o que tinha graça era ir surprehendel-o
a Evora, cahir-lhe no Tabaquinho, um
dia, ás tres horas! E quando elle entrasse empoeirado
e encalmado, de lunetas azues, atirar-se-lhe ao
[71]
pescoço! E á tardinha, pelo braço d'elle, ainda quebrada
da jornada, com um vestido fresco, ir vêr a
cidade. Pelas ruas estreitas e tristes admiravam-na
muito. Os homens vinham ás portas das lojas. Quem
seria? É de Lisboa. É a do Engenheiro.—E diante
do toucador, apertando o corpete do vestido, sorria
áquellas imaginações, e ao seu rosto, no espelho.
A porta do quarto rangeu devagarinho.
—Que é?
A voz de Juliana, plangente, disse:
—A senhora dá licença que eu vá logo ao medico?
—Vá, mas não se demore. Puxe-me essa saia
atraz. Mais. O que é que vossê tem?
—Enjôos, minha senhora, peso no coração. Passei
a noite em claro.
Estava mais amarella, o olhar muito pisado, a
face envelhecida. Trazia um vestido de merino preto
escoado, e a cuia da semana de cabellos velhos.
—Pois sim, vá—disse Luiza.—Mas arranje tudo
antes. E não se demore, hein ?
Juliana subiu logo á cozinha. Era no segundo
andar, com duas janellas de sacada para as trazeiras,
larga, ladrilhada de tijolo diante do fogão.
—Diz que sim, snr.
a Joanna—disse á cozinheira—que
podia ir. Vou-me vestir. Ella tambem está
quasi prompta. Fica vossemecê com a casa por
sua!
A cozinheira fez-se vermelha, poz-se a cantar,
foi logo sacudir, estender na varanda um velho tapete
[72]
esfiado; e os seus olhos não deixavam, defronte,
uma casa baixa, pintada d'amarello, com um
portal largo,—a loja de marceneiro do tio João Galho,
onde trabalhava o Pedro, o seu amante. A pobre
Joanna «babava-se» por ele. Era um rapazola
pallido e afadistado; Joanna era minhota, de Avintes,
de familia de lavrador, e aquella figura delgada
de lisboeta anemico seduzia-a com uma violencia
abrazada. Como não podia sahir á semana, mettia-o
em casa, pela porta de traz, quando estava só; estendia
então na varanda para dar signal o velho tapete
desbotado, onde ainda se percebiam os paus de
um veado.
Era uma rapariga muito forte, com peitos d'ama,
o cabello como azeviche, todo lustroso do oleo de
amendoas dôces. Tinha a testa curta de plebêa teimosa.
E as sobrancelhas cerradas faziam-lhe parecer
o olhar mais negro.
—Ai!—suspirou Juliana.—A snr.
a Joanna é
que a leva!
A rapariga ficou escarlate.
Mas Juliana acudiu logo:
—Olha o mal! fosse eu! Boa! faz muito bem!
Juliana lisongeava sempre a cozinheira: dependia
d'ella: Joanna dava-lhe caldinhos ás horas de
debilidade, ou, quando ella estava mais adoentada,
fazia-lhe um bife ás escondidas da senhora. Juliana
tinha um grande medo de «cair em fraqueza», e a
cada momento precisava tomar a «sustancia». De
certo, como feia e solteirona detestava aquelle «escandalo
[73]
do carpinteiro»; mas protegia-o, porque elle
valia muitos regalos aos seus fracos de gulosa.
—Fosse eu!—repetiu—dava-lhe o melhor da
panella! Se a gente ia a ter escrupulos por causa
dos amos, boa! Olha quem! Vêem uma pessoa a
morrer, e é como fosse um cão.
E com um risinho amargo:
—Diz que me não demorasse no medico. É como
quem diz, cura-te depressa ou espicha depressa!
Foi buscar a vassoura a um canto, e com um
suspiro agudo:
—Todas o mesmo, uma récua!
Desceu, começou a varrer o corredor.—Toda a
noite estivera doente: o quarto no sotão, debaixo
das telhas, muito abafado, com um cheiro de tijolo
cozido, dava-lhe enjôos, faltas d'ar, desde o começo
do verão: na vespera até vomitára! E já levantada
ás seis horas, não descançára, limpando, engommando,
despejando, com a pontada no lado e todo o
estomago embrulhado!—Tinha escancarado a cancella,
e com grandes ais, atirava vassouradas furiosas
contra as grades do corrimão.
—A snr.
a D. Luiza está em casa?
Voltou-se. Nos ultimos degraus da escada estava
um sujeito, que lhe pareceu «estrangeirado». Era
trigueiro, alto, tinha um bigode pequeno levantado,
um ramo na sobrecasaca azul, e o verniz dos seus
sapatos resplandecia.
—A senhora vai sahir—disse ela olhando-o
muito.—Faz favor de dizer quem é?
[74]
O individuo sorriu.
—Diga-lhe que é um sujeito para um negocio.
Um negocio de minas.
Luiza, diante do toucador, já de chapéo, mettia
n'uma casa do corpete dous botões de rosa de chá.
—Um negocio!—disse muito surprehendida—Deve
ser algum recado para o snr. Jorge, de certo!
Mande entrar. Que especie de homem é?
—Um janota!
Luiza desceu o véo branco, calçou devagar as
luvas de
peau de suède claras, deu duas pancadinhas
fofas ao espelho na gravata de renda, e abriu a porta
da sala. Mas quasi recuou, fez
ah! toda escarlate.
Tinha-o reconhecido logo. Era o primo Bazilio.
Houve um
shake-hands demorado, um pouco tremulo.
Estavam ambos calados:—ella com todo o
sangue no rosto, um sorriso vago; elle fitando-a
muito, com um olhar admirado. Mas as palavras, as
perguntas vieram logo, muito precipitadamente:—Quando
tinha elle chegado? Se sabia que elle estava
em Lisboa? Como soubera a morada d'ella?
Chegára na vespera no paquete de Bordeus. Perguntára
no ministerio: disseram-lhe que Jorge estava
no Alemtejo, deram-lhe a
adresse...
—Como tu estás mudada, Santo Deus!
—Velha?
—Bonita!
[75]
—Ora!
E elle, que tinha feito? Demorava-se?
Foi abrir uma janella, dar uma luz larga, mais
clara. Sentaram-se. Elle no sophá muito languidamente;
ella ao pé, pousada de leve á beira d'uma poltrona,
toda nervosa.
Tinha deixado o
degredo—disse elle.—Viera
respirar um pouco á velha Europa. Estivera em Constantinopla,
na Terra Santa, em Roma. O ultimo anno
passára-o em Paris. Vinha de lá, d'aquella aldeola
de Paris!—Fallava devagar, recostado, com um
ar intimo, estendendo sobre o tapete, commodamente,
os seus sapatos de verniz.
Luiza olhava-o. Achava-o mais varonil, mais trigueiro.
No cabello preto annelado havia agora alguns
fios brancos: mas o bigode pequeno tinha o antigo
ar moço, orgulhoso e intrepido; os olhos, quando ria,
a mesma doçura amollecida, banhada n'um fluido.
Reparou na ferradura de perola da sua gravata de
setim preto, nas pequeninas estrellas brancas bordadas
nas suas meias de sêda. A Bahia não o vulgarisára.
Voltava mais interessante!
—Mas tu, conta-me de ti—dizia elle com um
sorriso, inclinado para ela.—És feliz, tens um pequerrucho...
—Não—exclamou Luiza rindo.—Não tenho!
Quem te disse?
—Tinham-me dito. E teu marido demora-se?
—Tres, quatro semanas, creio.
Quatro semanas! Era uma viuvez! Offereceu-se
[76]
logo para a vir vêr mais vezes, palrar um momento,
pela manhã...
—Pudera não! És o unico parente, que tenho,
agora...
Era verdade!... E a conversação tomou uma intimidade
melancolica: fallaram da mãi de Luiza, a
tia Jójó, como lhe chamava Bazilio. Luiza contou a
sua morte, muito dôce, na poltrona, sem um ai...
—Onde está sepultada?—perguntou Bazilio com
uma voz grave; e acrescentou, puxando o punho da
camisa de chita:—Está no nosso jazigo?
—Está.
—Hei-de ir lá. Pobre tia Jójó!
Houve um silencio.
—Mas tu ias sahir!—disse Bazilio de repente,
querendo erguer-se.
—Não!—exclamou—Não! Estava aborrecida,
não tinha nada que fazer. Ia tomar ar. Não saio, já.
Elle ainda disse:
—Não te prendas...
—Que tolice! Ia a casa d'uma amiga passar um
momento.
Tirou logo o chapéo; n'aquelle movimento os
braços erguidos repuxaram o corpete justo, as fórmas
do seio accusaram-se suavemente.
Bazilio torcia a ponta do bigode devagar; e vendo-a
descalçar as luvas:
—Era eu antigamente quem te calçava e descalçava
as luvas... Lembras-te?... Ainda tenho esse
privilegio exclusivo, creio eu...
[77]
Ella riu-se.
—De certo que não...
Bazilio disse então, lentamente, fitando o chão:
—Ah! Outros tempos!
E poz-se a fallar de Collares: a sua primeira
idéa, mal chegára, tinha sido tomar uma tipoia e ir
lá: queria vêr a quinta; ainda existiria o balouço
debaixo do castanheiro? ainda haveria o caramanchão
de rosinhas brancas, ao pé do Cupido de gesso
que tinha uma aza quebrada?...
Luiza ouvira dizer que a quinta pertencia agora
a um brazileiro: sobre a estrada havia um mirante
com um tecto chinez, ornado de bolas de vidro; e a
velha casa morgada fôra reconstruida e mobilada
pelo Gardé.
—A nossa pobre sala de bilhar, côr d'oca, com
grinaldas de rosas!—disse Bazilio; e fitando-a:—Lembras-te
das nossas partidas de bilhar?
Luiza, um pouco vermelha, torcia os dedos das
luvas; ergueu os olhos para elle, disse, sorrindo:
—Eramos duas crianças!
Bazilio encolheu tristemente os hombros, fitou as
ramagens do tapete: parecia abandonar-se a uma
saudade remota, e com uma voz sentida:
—Foi o bom tempo! Foi o meu bom tempo!
Ella via a sua cabeça bem feita, descahida n'aquella
melancolia das felicidades passadas, com uma
risca muito fina, e os cabellos brancos—que lhe dera
a separação. Sentia tambem uma vaga saudade encher-lhe
o peito: ergueu-se, foi abrir a outra janella,
[78]
como para dissipar na luz viva e forte aquella
perturbação. Perguntou-lhe então pelas viagens, por
Paris, por Constantinopla.
Fôra sempre o seu desejo viajar—dizia—ir ao
Oriente. Quereria andar em caravanas, balouçada no
dorso dos camêlos; e não teria medo, nem do deserto,
nem das feras...
—Estás muito valente!—disse Bazilio.—Tu eras
uma maricas, tinhas medo de tudo... Até da adega,
na casa do papá, em Almada!
Ella córou. Lembrava-se bem da adega, com a
sua frialdade subterranea que dava arripios! A candêa
d'azeite pendurada na parede alumiava com uma
luz avermelhada e fumosa as grossas traves cheias
de têas d'aranha, e a fileira tenebrosa das pipas bojudas.
Havia alli ás vezes, pelos cantos, beijos furtados...
Quiz saber então o que tinha feito em Jerusalém,
se era bonito.
Era curioso. Ia pela manhã um bocado ao Santo
Sepulchro; depois d'almoço montava a cavallo...
Não se estava mal no hotel, inglezas bonitas... Tinha
algumas intimidades illustres...
Fallava d'ellas, devagar, traçando a perna: o
seu amigo o patriarcha de Jerusalém, a sua velha
amiga a princeza de La Tour d'Auvergne! Mas o melhor
do dia era de tarde—dizia—no Jardim das
Oliveiras, vendo defronte as muralhas do templo de
Salomão, ao pé a aldêa escura de Bethania onde
Martha fiava aos pés de Jesus, e mais longe, faiscando
[79]
immovel sob o sol, o mar Morto! E alli passava
sentado n'um banco, fumando tranquillamente
o seu cachimbo!
Se tinha corrido perigos?
De certo. Uma tempestade de arêa no deserto de
Petra! Horrivel! Mas que linda viagem, as caravanas,
os acampamentos! Descreveu a sua
toilette:—uma
manta de pelle de camêlo ás listras vermelhas
e pretas, um punhal de Damasco n'uma cinta de
Bagdad, e a lança comprida dos Beduinos.
—Devia-te ficar bem!
—Muito bem. Tenho photographias.
Prometteu dar-lhe uma, e acrescentou:
—Sabes que te trago presentes?
—Trazes?—E os seus olhos brilhavam.
O melhor era um rosario...
—Um rosario?
—Uma reliquia! Foi benzido primeiro pelo patriarcha
de Jerusalém sobre o tumulo de Christo, depois
pelo papa...
Ah! Porque tinha estado com o papa! Um velhinho
muito aceado, já todo branquinho, vestido de
branco, muito amavel!
—Tu d'antes não eras muito devota—disse.
—Não, não sou muito caturra n'essas cousas—respondeu
rindo.
—Lembras-te da capella de nossa casa em Almada?
Tinham passado alli lindas tardes! Ao pé da velha
capella morgada havia um adro todo cheio de altas
[80]
hervas floridas,—e as papoulas, quando vinha
a aragem, agitavam-se como azas vermelhas de borboletas
pousadas...
—E a tilia, lembras-te, onde eu fazia gymnastica?
—Não fallemos no que lá vai!
Em que queria ella então que elle fallasse? Era
a sua mocidade, o melhor que tivera na vida...
Ella sorriu, perguntou:
—E no Brazil?
Um horror! Até fizera a côrte a uma mulata.
—E porque te não casaste?...
Estava a mangar! Uma mulata!
—E de resto—acrescentou com a voz d'um
arrependimento triste—já que me não casei quando
devia,—encolheu os hombros melancolicamente—acabou-se...
Perdi a vez. Ficarei solteiro.
Luiza fez-se escarlate. Houve um silencio.
—E qual é o outro presente, então, além do rosario?
—Ah! Luvas. Luvas de verão, de
peau de suède,
de oito botões. Luvas decentes. Vossês aqui usam
umas luvitas de dous botões, a vêr-se o punho, um
horror!
De resto pelo que tinha visto, as mulheres em
Lisboa cada dia se vestiam peor! Era atroz! Não dizia
por ella; até aquelle vestido tinha
chic, era
simples,
era honesto. Mas em geral, era um horror. Em
Paris! Que deliciosas, que frescas as
toilettes
d'aquelle
verão! Oh! mas em Paris!... Tudo é superior!
[81]
Por exemplo, desde que chegára ainda não pudera
comer. Positivamente não podia comer!—Só em
Paris se come—resumiu.
Luiza voltava entre os dedos o seu medalhão de
ouro, preso ao pescoço por uma fita de velludo preto.
—E estiveste então um anno em Paris?
Um anno divino. Tinha um
appartamento lindissimo,
que pertencera a lord Falmouth, rue Saint
Florentin, tinha tres cavallos...
E recostando-se muito, com as mãos nos bolsos:
—Emfim, fazer este valle de lagrimas o mais
confortavel possivel!... Dize cá, tens algum retrato
n'esse medalhão?
—O retrato de meu marido.
—Ah! deixa vêr!
Luiza abriu o medalhão. Elle debruçou-se; tinha
o rosto quasi sobre o peito d'ella. Luiza sentia o aroma
fino que vinha de seus cabellos.
—Muito bem, muito bem!—fez Bazilio.
Ficaram calados.
—Que calor que está!—disse Luiza.—Abafa-se,
hein!
Levantou-se, foi abrir um pouco uma vidraça. O
sol deixára a varanda. Uma aragem suave encheu as
pregas grossas das bambinellas.
—É o calor do Brazil—disse elle.—Sabes que
estás mais crescida?
Luiza estava de pé. O olhar de Bazilio corria-lhe
as linhas do corpo; e com a voz muito intima,
[82]
os cotovêlos sobre os joelhos, o rosto erguido para
ella:
—Mas, francamente, dize cá, pensaste que eu te
viria vêr?
—Ora essa! Realmente, se não viesses zangava-me.
És o meu unico parente... O que tenho pena
é que meu marido não esteja...
—Eu—acudiu Bazilio—foi justamente por elle
não estar...
Luiza fez-se escarlate. Bazilio emendou logo, um
pouco corado tambem:
—Quero dizer... talvez elle saiba que houve
entre nós...
Ella interrompeu:
—Tolices! Eramos duas crianças. Onde isso vai!
—Eu tinha vinte e sete annos—observou elle,
curvando-se.
Ficaram calados, um pouco embaraçados. Bazilio
cofiava o bigode, olhando vagamente em redor.
—Estás muito bem installada aqui—disse.
Não estava mal... A casa era pequena, mas muito
commoda. Pertencia-lhes.
—Ah! estás perfeitamente! Quem é esta senhora,
com uma luneta d'ouro?
E indicava o retrato por cima do sophá.
—A mãi de meu marido.
—Ah! vive ainda?
—Morreu.
—É o que uma sogra póde fazer de mais amavel...
[83]
Bocejou ligeiramente, fitou um momento os seus
sapatos muito aguçados, e com um movimento brusco,
ergueu-se, tomou o chapéo.
—Já? Onde estás?
—No Hotel Central. E até quando?
—Até quando quizeres. Não disseste que vinhas
ámanhã com o rosario?
Elle tomou-lhe a mão, curvou-se:
—Já se não póde dar um beijo na mão d'uma
velha prima?
—Porque não?
Pousou-lhe um beijo na mão, muito longo, com
uma pressão dôce.
—Adeus!—disse.
E á porta, com o reposteiro meio erguido, voltando-se:
—Sabes, que eu, ao subir as escadas, vinha a
perguntar a mim mesmo, como se vai isto passar?
—Isto quê? Vêrmo-nos outra vez? Mas, perfeitamente.
Que imaginaste tu?
Elle hesitou, sorriu:
—Imaginei que não eras tão boa rapariga.
Adeus. Ámanhã, hein?
No fundo da escada accendeu o charuto, devagar.
—Que bonita que ella está!—pensou.
E arremessando o phosphoro, com força:
—E eu, pedaço d'asno, que estava quasi decidido
a não a vir vêr! Está de appetite! Está muito melhor!
E sósinha em casa, aborrecidinha talvez!...
[84]
Ao pé da Patriarchal fez parar um
coupé vazio;
e estendido, com o chapéo nos joelhos, em quanto
a parelha esfalfada trotava:
—E tem-me o ar de ser muito aceada, cousa
rara na terra! As mãos muito bem tratadas! O pé
muito bonito!
Revia a pequenez do pé, poz-se a fazer por elle
o desenho mental de outras bellezas, despindo-a,
querendo adivinhal-a... A amante que deixára em
Paris era muito alta e magra, d'uma elegancia de tisica;
quando se decotava viam-se as saliencias das
suas primeiras costellas. E as fórmas redondinhas de
Luiza decidiram-no:
—A ella!—exclamou com appetite:—A ella,
como S. Thiago aos mouros!
Luiza, quando o sentiu em baixo fechar a porta
da rua, entrou no quarto, atirou o chapéo para a
causeuse, e foi-se logo vêr ao espelho. Que
felicidade
estar vestida! Se elle a tivesse apanhado em roupão,
ou mal penteada!... Achou-se muito afogueada,
cobriu-se de pós de arroz. Foi á janella, olhou
um momento a rua, o sol que batia ainda nas casas
fronteiras. Sentia-se cançada. Áquellas horas, Leopoldina
estava a jantar já, de certo... Pensou em escrever
a Jorge «para matar o tempo», mas veio-lhe
uma preguiça; estava tanto calor! Depois não tinha
que lhe dizer! Começou então a despir-se devagar
[85]
diante do espelho, olhando-se muito, gostando
de se vêr branca, acariciando a finura da pelle, com
bocejos languidos d'um cansaço feliz.—Havia sete
annos que não via o primo Bazilio! Estava mais trigueiro,
mais queimado, mas ia-lhe bem!
E depois de jantar ficou junto á janella, estendida
na
voltaire, com um livro esquecido no regaço.
O vento cahira, e o ar, de um azul forte nas alturas,
estava immovel; a poeira grossa pousára, a tarde
tinha uma transparencia calma de luz; passaros chilreavam
na figueira brava; da serralheria proxima
sahia o martellar continuo e sonoro de folhas de ferro.
Pouco a pouco o azul desbotou; sobre o poente,
laivos de côr de laranja desmaiada esbateram-se como
grandes pinceladas desleixadas. Depois tudo se
cobriu de uma sombra diffusa, calada e quente, com
uma estrellinha muita viva que luzia e tremia. E
Luiza deixára-se ficar na
voltaire esquecida,
absorvida,
sem pedir luz.
—Que vida interessante a do primo Bazilio!—pensava.—O
que elle tinha visto! Se ella podesse
tambem fazer as suas malas, partir, admirar aspectos
novos e desconhecidos, a neve nos montes, cascatas
reluzentes! Como desejaria visitar os paizes que conhecia
dos romances—a Escocia e os seus lagos
taciturnos, Veneza e os seus palacios tragicos; aportar
ás bahias, onde um mar luminoso e faiscante
morre na arêa fulva; e das cabanas dos pescadores,
de tecto chato, onde vivem as Graziellas, vêr azularem-se
ao longe as ilhas de nomes sonoros! E ir a
[86]
Paris! Paris sobretudo! Mas, qual! Nunca viajaria de
certo; eram pobres; Jorge era caseiro, tão lisboeta!
Como seria o patriarcha de Jerusalém? Imaginava-o
de longas barbas brancas, recamado d'ouro,
entre instrumentações solemnes e rolos de incenso!
E a princeza de La Tour d'Auvergne? Devia ser bella,
de uma estatura real, vivia cercada de pagens,
namorára-se de Bazilio.—A noite escurecia, outras
estrellas luziam.—Mas de que servia viajar, enjoar
nos paquetes, bocejar nos wagons, e, n'uma diligencia
muita sacudida, cabecear de somno pela serra
nas madrugadas frias? Não era melhor viver n'um
bom conforto, com um marido terno, uma casinha
abrigada, colxões macios, uma noite de theatro ás
vezes, e um bom almoço nas manhãs claras quando
os canarios chalram? Era o que ella tinha. Era bem
feliz! Então veio-lhe uma saudade de Jorge; desejaria
abraçal-o, tel-o alli, ou quando descesse ir encontral-o
fumando o seu cachimbo no escriptorio,
com o seu jaquetão de velludo. Tinha tudo, elle,
para fazer uma mulher feliz e orgulhosa: era bello,
com uns olhos magnificos, terno, fiel. Não gostaria
de um marido com uma vida sedentaria e caturra:
mas a profissão de Jorge era interessante; descia
aos poços tenebrosos das minas, um dia aperrára as
pistolas contra uma malta revoltada; era valente, tinha
talento! Involuntariamente, porém, o primo Bazilio
fazendo fluctuar o seu
burnous branco pelas
planicies
da Terra Santa; ou em Paris, direito na almofada,
governando tranquillamente os seus cavallos
[87]
inquietos—davam-lhe a idéa d'uma outra existencia
mais poetica, mais propria para os episodios do sentimento.
Do céo estrellado cahia uma luz diffusa: janellas
alumiadas sobresahiam ao longe, abertas á noite abafada:
vôos de morcegos passavam diante da vidraça.
—A senhora não quer luz?—perguntou á porta
a voz fatigada de Juliana.
—Ponha-a no quarto.
Desceu. Bocejava muito, sentia-se quebrada.
—É trovoada—pensou.
Foi á sala, sentou-se ao piano, tocou ao acaso
bocados da
Lucia, da
Somnambula,
o
Fado; e parando,
os dedos pousados de leve sobre o teclado,
poz-se a pensar que Bazilio devia vir no dia seguinte:
vestiria o roupão novo de
foulard côr de castanho!
Recomeçou o
Fado, mas os olhos cerravam-se-lhe.
Foi para o quarto.
Juliana trouxe o rol e a lamparina. Vinha arrastando
as chinellas, com um casabeque pelos hombros,
encolhida e lugubre. Aquella figura com um ar
de enfermaria irritou Luiza:
—Credo, mulher! Vossê parece a imagem da
morte!
Juliana não respondeu. Pousou a lamparina; apanhou,
placa a placa, sobre a commoda, o dinheiro
das compras; e com os olhos baixos:
—A senhora não precisa mais nada, não?
—Vá-se, mulher, vá!
[88]
Juliana foi buscar o candieiro de petroleo, subiu
ao quarto. Dormia em cima, no sotão, ao pé da cozinheira.
—Pareço-te a imagem da morte!—resmungava,
furiosa.
O quarto era baixo, muito estreito, com o tecto
de madeira inclinado; o sol, aquecendo todo o dia
as telhas por cima, fazia-o abafado como um forno;
havia sempre á noite um cheiro requentado de tijolo
escandecido. Dormia n'um leito de ferro, sobre um
colxão de palha molle coberto d'uma colcha de chita;
da barra da cabeceira pendiam os seus
bentinhos e
a rêde enxovalhada que punha na cabeça; ao pé tinha
preciosamente a sua grande arca de pau, pintada
de azul, com uma grossa fechadura. Sobre a mesa
de pinho estava o espelho de gaveta, a escova
de cabello ennegrecida e despellada, um pente d'osso,
as garrafas de remedio, uma velha pregadeira
de setim amarello, e, embrulhada n'um jornal, a
cuia de retroz dos domingos. E o unico adorno das
paredes sujas, riscadas da cabeça de phosphoros,—era
uma lithographia de Nossa Senhora das Dôres por
cima da cama, e um daguerreotypo onde se percebia
vagamente, no reflexo espelhado da lamina, os bigodes
encerados e as divisas de um sargento.
—A senhora já se deitou, snr.
a Juliana?—perguntou
a cozinheira do quarto pegado, d'onde sahia
[89]
uma barra de luz viva cortando a escuridão do corredor.
—Já se deitou, snr.
a Joanna, já. Está hoje com
os azeites. Falta-lhe o homem!
Joanna, ás voltas, fazia ranger as madeiras velhas
da cama. Não podia dormir! Abafava-se! Ouf!
—Ai! e aqui!—exclamou Juliana.
Abriu o postigo que dava para os telhados, para
deixar arejar; calçou as chinellas de tapete, e foi ao
quarto de Joanna. Mas não entrou, ficou á porta; era
criada de dentro, evitava familiaridades. Tinha
tirado
a
cuia, e com um lenço preto e amarello amarrado
na cabeça, o seu rosto parecia mais chupado, e
as orelhas mais despegadas do craneo; a camisa decotada
descobria as claviculas descarnadas; a saia
curta mostrava as canellas muito brancas, muito
seccas. E com o casabeque pelos hombros, coçando
devagarinho os cotovêlos agudos:
—Diga-me cá, snr.
a Joanna—disse com a voz
discreta—aquelle sujeito demorou-se muito? Reparou?
—Tinha sahido n'aquelle instantinho, quando
vossemecê entrou. Ouf!
Encalmada, quasi descoberta, com as pernas muito
abertas, Joanna coçava-se furiosamente por baixo
da grossa camisa com folhos á minhota que lhe descobria
os peitos. Não podia parar com os persevejos!
O raio do quarto tinha ninhos! Até sentia o estomago
embrulhado.
—Ai! é um inferno!—disse com lastima Juliana.—Eu
[90]
só adormeço com dia. Mas ainda eu agora
reparo... Vossemecê tem S. Pedro á cabeceira. É
devoção?
—É o santo do meu rapaz—disse a outra. Sentou-se
na cama. Ouf! E então tinha estado toda a
noite com uma sêde!...
Saltou para o chão, com passadas rijas que faziam
tremer o soalho, foi ao jarro, pôl-o á bocca,
bebeu uma tarraçada. A camisa justa, feita de pouca
fazenda, mostrava as fórmas rijas e valentes.
—Pois eu fui ao medico—disse Juliana. E com
um grande suspiro:—Ai! isto só Deus, snr.
a Joanna!
Isto só Deus!
Mas porque se não resolvia a snr.
a Juliana a ir
á mulher de virtude? Era a saude certa. Morava ao
Poço dos Negros; tinha orações e unguentos para
tudo. Levava meia moeda pelo
preparo...
—Que isso são humores, snr.
a Juliana. O que
vossemecê tem, são humores.
Juliana tinha dado dous passos para dentro do
quarto. Quando se tratava de doenças, de remedios,
tornava-se mais familiar.
—Eu já me tenho lembrado... eu já me tenho
lembrado de ir á mulher. Mas, meia moeda!
E ficou a olhar, tristemente, reflectindo.
—É o que eu tenho junto para umas botinas de
gaspia!
Eram o seu vicio, as botinas! Arruinava-se com
ellas: tinha-as de duraque com ponteiras de verniz,
de cordovão com laço, de pellica com pespontos de
[91]
côr, embrulhadas em papeis de sêda, na arca, fechadas—guardadas
para os domingos!
Joanna censurou-a.
—Ai! eu, em se tratando do corpo, do interior,
que o diabo leve os arrebiques!
Queixou-se tambem da sua miseria. Tinha pedido
á senhora um mez adiantado! Estava sem camisas!
As duas que tinha eram uns trapos! Pelo gosto da
que trazia, a desfazerem-se!
—Mas, então!—suspirou—O meu rapaz precisou
um dinheiro...
—Vossemecê tambem, snr.
a Joanna, deixa-se
cardar pelo homem!
Joanna sorriu.
—Ainda que eu tivesse de roer ossos, snr.
a Juliana,
a ultima migalha havia de ser p'ra elle!
Juliana teve um risinho secco, e com a voz arrastada:
—Vale lá a pena!
Mas invejava asperamente a cozinheira pela posse
d'aquelle amor, pelas suas delicias. Repetiu, contrafeita:
—Vale lá a pena! Perfeito rapaz—continuou—o
que veio hoje vêr a senhora! Melhor que o homem!
E depois d'uma pausa:
—Então esteve mais de duas horas?
—Tinha sahido quando vossemecê entrou.
Mas o candieiro de petroleo apagava-se, com um
cheiro fetido e uma fumarada negra.
[92]
—Boa noite, snr.
a Joanna. Ainda vou rezar a
minha corôa.
—Ó snr.
a Juliana!—disse a outra d'entre os lençoes—Se
vossemecê quer rezar tres salvè-rainhas
pela saude do meu rapaz que tem estado adoentado,
eu cá lhe rezava tres pelas melhoras do peito.
—Pois sim, snr.
a Joanna!
Mas reflectindo:
—Olhe. Eu do peito vou melhor; dê-m'as antes
p'ra allivio das dôres de cabeça. A Santa Engracia!
—Como vossemecê quizer, snr.
a Juliana.
—Se faz favor. Boa noite! Fica-lhe ahi um cheiro!
Credo!
Foi para o quarto. Rezou, apagou a luz. Um calor
molle continuo cahia do forro; começou a faltar-lhe
o ar: tornou a abrir o postigo, mas o bafo quente
que vinha dos telhados enjoava-a; e era assim
todas as noites, desde o começo do estio! Depois as
madeiras velhas fervilhavam de bicharia! Nunca,
nunca, nas casas que servira, tinha tido um quarto
peor. Nunca!
A cozinheira começou a resonar ao lado. E acordada,
ás voltas, com afflicções no coração, Juliana
sentia a vida pesar-lhe, com uma amargura maior!
Nascera em Lisboa. O seu nome era Juliana Couceiro
Tavira. Sua mãi fôra engommadeira; e desde
pequena tinha conhecido em casa um sujeito, a quem
[93]
chamavam na visinhança—
o fidalgo, a quem sua
mãi chamava—o snr. D. Augusto. Vinha todos os dias,
de tarde no verão, no inverno de manhã, para a
saleta onde sua mãi engommava, e alli estava horas
sentado no poial da janella que dava para um quintalejo,
fumando cachimbo, cofiando em silencio um
enorme bigode preto. Como o poial era de pedra,
punha-lhe em cima, com muito methodo, uma almofada
de vento, que elle mesmo soprava. Era calvo,
e trazia ordinariamente uma quinzena de velludo
castanho e chapéo alto branco. Ás seis horas levantava-se,
esvaziava a almofada, estava um bocado a
esticar as calças para cima, e sahia, com a sua grossa
bengala de cana da India debaixo do braço, gingando
da cinta. Ella e sua mãi iam então jantar na
mesinha de pinho da cozinha debaixo d'um postigo,
diante do qual se balouçavam, de verão e d'inverno,
galhos magros d'uma arvore triste.
Á noite o snr. D. Augusto voltava; trazia sempre
um jornal; sua mãi fazia-lhe chá e torradas, servia-o,
toda enlevada n'elle. Muitas vezes Juliana a vira
chorar de ciumes.
Um dia uma visinha má, a quem ella não quizera
ajudar a lavar a roupa, enfureceu-se, e atirando-lhe
injurias dos degraus da porta,—gritou-lhe que
sua mãi era uma desavergonhada, e que seu pai estava
na Africa por ter morto o
Rei de Copas!
Pouco tempo depois foi servir. Sua mãi morreu
d'ahi a mezes, com uma doença d'utero. Juliana só
uma vez tornou a vêr o snr. D. Augusto,—uma tarde,
[94]
com uma opa rôxa, lugubre, na procissão de
Passos!
Servia, havia vintes annos. Como ella dizia,
mudava de amos, mas não mudava de sorte. Vinte annos
a dormir em cacifros, a levantar-se de madrugada,
a comer os restos, a vestir trapos velhos, a
soffrer os repellões das crianças e as más palavras
das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital
quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava
a saude!... Era de mais! Tinha agora dias em que
só de vêr o balde das aguas sujas e o ferro d'engommar
se lhe embrulhava o estomago. Nunca se acostumára
a servir. Desde rapariga a sua ambição fôra
ter um negociosito, uma tabacaria, uma loja de capellista
ou de quinquilherias, dispôr, governar, ser
patrôa: mas, apesar d'economias mesquinhas e de
calculos sôfregos, o mais que conseguira juntar foram
sete moedas ao fim d'annos: tinha então adoecido;
com o horror do hospital fôra tratar-se para casa
d'uma parenta; e o dinheiro, ai! derretera-se! No
dia em que se trocou a ultima libra, chorou horas
com a cabeça debaixo da roupa.
Ficou sempre adoentada desde então, perdeu toda
a esperança de se estabelecer. Teria de servir até
ser velha, sempre, d'amo em amo! Essa certeza dava-lhe
uma desconsolação constante. Começou a azedar-se.
E depois não tinha
geito, não sabia tirar partido
das casas: via companheiras divertir-se, visinhar,
janellar, bisbilhotar, sahir aos domingos ás hortas e
[95]
aos retiros, levar o dia cantando, e quando as patrôas
iam ao theatro, abrir a porta aos derriços—e
patuscar pelos quartos! Ella não. Sempre fôra embezerrada.
Fazia a sua obrigação, comia, ia estirar-se
sobre a cama; e aos domingos, quando não passeava,
encostava-se a uma janella, com o lenço sobre
o peitoril para não roçar as mangas, e alli estava
immovel, a olhar, com o seu broche de filigrana e
a cuia dos dias santos! Outras companheiras eram
muito das amas, faziam-se muito humildes, sabujavam,
traziam de fóra as historias da rua, e cartinhas
levadas e recadinhos e p'ra dentro e p'ra fóra, muito
confidentes,—muito presenteadas tambem! Ella
não podia. Era
minha senhora isto! minha senhora
aquillo! E cada uma no seu lugar! Era genio.
Desde que servia, apenas entrava n'uma casa
sentia logo, n'um relance, a hostilidade, a malquerença:
a senhora fallava-lhe com seccura, de longe;
as crianças tomavam-lhe birra; as outras criadas,
se estavam chalrando, calavam-se, mal a sua figura
esguia apparecia; punham-lhe alcunhas—
a isca sêcca,
a fava torrada,
o saca-rolhas;
imitavam-lhe os
trejeitos nervosos; havia risinhos, cochichos pelos
cantos; e só tinha encontrado alguma sympathia nos
gallegos taciturnos, cheios d'uma saudade morrinhenta,
que veem de manhã quando ainda os quartos
estão escuros, com as suas grossas passadas, encher
os barris, engraxar o calçado.
Lentamente, começou a tornar-se desconfiada,
cortante como um nordeste; tinha respostadas, questões
[96]
com as companheiras; não se havia de deixar
pôr o pé no pescoço!
As antipathias que a cercavam faziam-na assanhada,
como um circulo d'espingardas enraivece um
lobo. Fez-se má; beliscava crianças até lhe ennodoar
a pelle; e se lhe ralhavam, a sua colera rompia em
rajadas. Começou a ser despedida. N'um só anno esteve
em tres casas. Sahia com escandalo, aos gritos,
atirando as portas, deixando as amas todas pallidas,
todas nervosas...
A inculcadeira, a sua velha amiga, a tia Victoria,
disse-lhe:
—Tu acabas por não ter onde te arrumar, e falta-te
o bocado do pão!
O pão! Aquella palavra que é o terror, o sonho,
a difficuldade do pobre assustou-a. Era fina, e dominou-se.
Começou a fazer-se «uma pobre mulher»,
com affectações de zelo, um ar de soffrer tudo, os
olhos no chão. Mas roia-se por dentro: veio-lhe a
inquietação nervosa dos musculos da face, o
tic de
franzir o nariz: a pelle esverdeou-se-lhe de bilis.
A necessidade de se constranger trouxe-lhe o habito
d'odiar: odiou sobretudo as patrôas, com um
odio irracional e pueril. Tivera-as ricas, com palacetes,
e pobres, mulheres d'empregados, velhas e raparigas,
colericas e pacientes;—odiava-as a todas,
sem differença. É patrôa e basta! Pela mais simples
palavra, pelo acto mais trivial! Se as via sentadas:—Anda,
refestela-te, que a moura trabalha! Se as
via sahir:—Vai-te, a negra cá fica no buraco! Cada
[97]
riso d'ellas era uma offensa á sua tristeza doentia;
cada vestido novo uma affronta ao seu velho vestido
de merino tingido. Detestava-as na alegria dos filhos
e nas prosperidades da casa. Rogava-lhes pragas. Se
os amos tinham um dia de contrariedade, ou via as
caras tristes, cantarolava todo o dia em voz de falsete
a
Carta adorada! Com que gosto trazia a conta
retardada d'um credor impaciente, quando presentia
embaraços na casa! «Este papel!—gritava com uma
voz estridente—diz que não se vai embora sem
uma resposta!» Todos os lutos a deleitavam,—e sob
o chale preto, que lhe tinham comprado, tinha palpitações
de regosijo. Tinha visto morrer criancinhas,
e nem a afflicção das mães a commovera; encolhia
os hombros: «Vai d'alli, vai fazer outro. Cabras!»
As boas palavras mesmo, as condescendencias
eram perdidas com ella, como gotas d'agua lançadas
no fogo. Resumia as patrôas na mesma palavra—
uma
récua! E detestava as boas pelos vexames que
soffrera das más. A ama era para ella o Inimigo, o
Tyranno. Tinha visto morrer duas,—e de cada vez
sentira, sem saber porquê, um vago allivio, como se
uma porção do vasto peso, que a suffocava na vida,
se tivesse desprendido e evaporado!
Sempre fôra invejosa; com a idade aquelle sentimento
exagerou-se de um modo aspero. Invejava
tudo na casa: as sobremesas que os amos comiam, a
roupa branca que vestiam. As noites de
soirée, de
theatro, exasperavam-na. Quando havia passeios projectados,
se chovia de repente, que felicidade! O aspecto
[98]
das senhoras vestidas e de chapéo, olhando
por dentro da vidraça com um tedio infeliz, deliciava-a,
fazia-a loquaz:
—Ai minha senhora! É um temporal desfeito!
É a cantaros, está para todo o dia! Olha o ferro!
E muito curiosa: era facil encontral-a, de repente,
cosida por detraz de uma porta com a vassoura
a prumo, o olhar aguçado. Qualquer carta que vinha
era revirada, cheirada... Remexia subtilmente em
todas as gavetas abertas, vasculhava em todos os
papeis atirados. Tinha um modo de andar ligeiro e
surprehendedor. Examinava as visitas. Andava á
busca de um
segredo, de um
bom
segredo! Se lhe
cahia um nas mãos!
Era muito gulosa. Nutria o desejo insatisfeito de
comer bem, de petiscos, de sobremesas. Nas casas
em que servia ao jantar, o seu olho avermelhado seguia
avidamente as porções cortadas á mesa; e qualquer
bom appetite que repetia exasperava-a, como
uma diminuição da sua parte. De comer sempre os
restos ganhára o ar aguado,—o seu cabello tomára
tons seccos, côr de rato. Era lambareira: gostava de
vinho; em certos dias comprava uma garrafa de oitenta
reis, e bebia-a só, fechada, repimpada, com
estalos da lingua, a orla do vestido um pouco erguida,
revendo-se no pé.
E nunca tivera um homem, era virgem. Fôra
sempre feia, ninguem a tentára: e, por orgulho, por
birra, com receio de uma desfeita, não se offerecera,
como vira muitas, claramente. O unico homem que a
[99]
olhára com desejo tinha sido um criado de cavalhariça,
atarracado e immundo, de aspecto facinora: a sua magreza,
a sua
cuia, o seu ar domingueiro tinham excitado
o bruto. Fitava-a com um ar de
bull-dog. Causára-lhe
horror,—mas vaidade. E o primeiro homem
por quem ella sentira, um criado bonito e alourado,
rira-se d'ella, pozera-lhe o nome da
Isca sêcca! Não
contou mais com os homens, por despeito, por desconfiança
de si mesma. As rebelliões da natureza,
suffocava-as; eram
fogachos, flatos. Passavam. Mas
faziam-na mais secca; e a falta d'aquella grande consolação
aggravava a miseria da sua vida.
Um dia teve, emfim, uma grande esperança. Entrára
para o serviço da snr.
a D. Virginia Lemos, uma
viuva rica, tia de Jorge, muito doente, quasi a morrer
com um catarrho de bexiga. A tia Victoria, a inculcadeira,
preveniu-a:
—Tu trata a velha, apaparica-a, que ella o que
quer é uma enfermeira que a soffra. É rica, não é
nada apegada ao dinheiro, é capaz de te deixar uma
independencia!
Durante um anno Juliana, roída de ambição, foi
a enfermeira da velha. Que zelos! que mimos!
Virginia era muito rabugenta, a idéa de morrer
enfurecia-a; quanto mais ella ralhava com a sua voz
guttural, mais Juliana se fazia serviçal. A velha, por
fim, estava enternecida: gabava-a ás pessoas que a
vinham vêr, chamava-lhe a sua
providencia. Tinha-a
recommendado muito a Jorge.
—Não ha outra! não ha outra!—exclamava.
[100]
—Pois apanhaste!—dizia-lhe a tia Victoria.—Pelo
menos deixa-te o teu conto de reis.
Um conto de reis! Juliana, de noite, em quanto
a velha gemia no seu antigo leito de pau santo, via
o conto de reis á claridade morbida que dava a lamparina,
reluzir em pilhas de ouro inesgotavel e prodigioso.
Que faria com o dinheiro? E, á cabeceira da
doente, com um cobertor pelos hombros, os olhos dilatados
e fixos, planeava: poria uma loja de capellista!
Vinham-lhe logo lampejos vivos de outras felicidades:
um conto de reis era um dote, poderia casar,
teria um homem!
Estavam acabadas as canceiras. Ia jantar, emfim,
o
seu jantar! Mandar, emfim, a
sua criada! A
sua
criada! Via-se a chamal-a, a dizer-lhe, de cima para
baixo:—Faça, vá, despeje, sáia!—Tinha contracções
no estomago, de alegria. Havia de ser boa ama.
Mas que lhe andassem direitas! Desmazelos, más respostas,
não havia de soffrer a criadas!—E, impellida
por aquellas imaginações, arrastava subtilmente
as chinellas pelo quarto, fallando só.—Não, desmazelos,
não havia de soffrer! Mantel-as bem, de certo,
porque quem trabalha precisa metter p'ra dentro!
Mas havia de lh'o tirar do corpo. Ah! lá isso, haviam
de lhe andar direitas...—A velha tinha então
um gemido mais afflicto.
—É agora!—pensava—Morre!
E o seu olhar ancioso ia logo para a gaveta da
commoda, onde estava de certo o dinheiro, os papeis.
Mas não! a velha queria beber, ou voltar-se...
[101]
—Como se sente?—perguntava Juliana, com
uma voz plangente.
—Melhor, Juliana, melhor—murmurava.
Suppunha-se sempre melhor.
—Mas a senhora tem estado desinquieta!—dizia
Juliana, despeitada da melhora.
—Não—suspirava—dormi bem!
—Isso não tem dormido... Tenho-a ouvido gemer!
Tem estado toda a noite a gemer!
Queria argumentar com ella, convencel-a que estava
peor! Convencer-se a si mesma que o allivio
era ephemero, que ia morrer depressa! E todas as
manhãs seguia o dr. Pinto até á porta, com os braços
cruzados, a face triste:
—Então, snr. doutor, não ha esperança?
—Está por dias!
Queria saber os dias: dous? cinco?
—Sim, snr.
a Juliana—dizia o velho, calçando
as suas luvas pretas—uns dias, sete, oito.
—Oito dias!
E como a felicidade se aproximava, já tinha de
olho tres pares de botinas que vira na vidraça do
Manoel Lourenço!
A velha, emfim, morreu. Nem a mencionava no
testamento!
Veio-lhe uma febre. Jorge, agradecido pelos cuidados
d'ella com a tia Virginia, pagou-lhe um quarto
no hospital, e prometteu tomal-a para criada de dentro.
A que tinha, uma Emilia muito bonita, ia casar.
Quando sahiu do hospital para casa de Jorge, começava
[102]
a queixar-se mais do coração. Vinha desilludida
de tudo, tinha ás vezes vontade de morrer. Ouviam-se
todo o dia pela casa os seus
ais. Luiza achava-a
funebre.
Quiz despedil-a ao fim de duas semanas. Jorge
não consentiu, estava em divida com ella, dizia. Mas
Luiza não podia disfarçar a sua antipathia;—e Juliana
começou a detestal-a: poz-lhe logo um nome:—a
piorrinha! depois, d'ahi a semanas viu vir os
estofadores: renovava-se a mobilia da sala! A tia
Virginia deixára tres contos de reis a Jorge,—e ella,
ella que durante um anno fôra a enfermeira, humilde
como um cão e fixa como uma sombra, aturando
o monstrengo, tinha em paga ido para o hospital,
com uma febre, das noitadas, das canceiras! Julgava-se
vagamente roubada. Começou a odiar a casa.
Tinha para isso muitas razões, dizia: dormia
n'um cubiculo abafado; ao jantar não lhe davam vinho,
nem sobremesa; o serviço dos engommados era
pesado; Jorge e Luiza tomavam banho todos os dias,
e era um trabalhão encher, despejar todas as manhãs
as largas bacias de folha: achava despropositada
aquella mania de se pôrem a chafurdar todos os
dias que Deus deitava ao mundo; tinha servido vinte
amos, e nunca vira semelhante desproposito! A
unica vantagem—dizia ella á tia Victoria—era não
haver pequenos; tinha horror a crianças! Além d'isso
achava que o bairro era saudavel; e como tinha a
cozinheira «na mão», não é verdade? havia aquelle
regalo dos caldinhos, de algum prato melhor de
[103]
vez em quando! Por isso ficava; senão, não era
ella!
Fazia no entanto o seu serviço, ninguem tinha
nada que lhe dizer. O olho aberto sempre e o ouvido
á escuta, já se vê! E como perdera a esperança de
se estabelecer, não se sujeitava ao rigor de economisar:
por isso ia-se consolando com algumas pinguinhas,
de vez em quando; e satisfazia o seu vicio,—trazer
o pé catita. O pé era o seu orgulho, a
sua mania, a sua despeza. Tinha-o bonito e pequenino.
—Como poucos—dizia ella—não vai outro ao
Passeio!
E apertava-o, aperreava-o; trazia os vestidos curtos,
lançava-o muito para fóra. A sua alegria era ir
aos domingos para o Passeio Publico, e alli, com a
orla do vestido erguida, a cara sob o guarda-solinho
de sêda, estar a tarde inteira na poeira, no calor,
immovel, feliz,—a mostrar, a expôr o pé!
IV
Pelas tres horas da tarde, Juliana entrou na cozinha
e atirou-se para uma cadeira, derreada. Não
se tinha nas pernas de debilidade! Desde as duas
horas que andava a arrumar a sala! Estava um chiqueiro.
O peralta na vespera até deixára cinza de
tabaco por cima das mesas! A negra é que as pagava.
E que calor! Era de derreter! Ouf!
—O caldinho ha-de estar prompto, hein!—disse,
adocicando a voz.—Tira-m'o, snr.
a Joanna, faz favor?
—Vossemecê hoje está com outra cara—notou
a cozinheira.
—Ai! sinto-me outra, snr.
a Joanna! Pois olhe
que adormeci com dia. Já luzia o dia!
—E eu!—Tinha tido cada sonho! Credo! Uma
avantesma côr de fogo a passear-lhe por cima do
corpo, e cada pancada na bocca do estomago, como
quem pisava uvas n'um lagar!
[106]
—Enfartamento—disse sentenciosamente Juliana,
e repetiu:
—Pois eu sinto-me outra. Ha mezes que me não
sinto tão bem!
Sorria com os seus dentes amarellados. O caldo
que Joanna deitava na malga branca, com um vapor
cheiroso, cheio de hortaliça, dava-lhe uma alegria
gulosa. Estendeu os pés, recostou-se, feliz, na
boa sensação da tarde quente e luminosa, entrando
largamente pelas duas janellas abertas.
O sol retirára-se da varanda, e sobre a pedra,
em vasos de barro, plantas pobres encolhiam a sua
folhagem chupada do calor: sobre uma táboa a um
canto, n'uma velha panella bojuda, verdejava um pé
de salsa muito tratado: o gato dormia sobre um esteirão:
esfregões seccavam n'uma corda: e para
além alargava-se o azul vivo como um metal candente,
as arvores dos quintaes tinham tons ardentes
do sol, os telhados pardos com as suas vegetações
esguias coziam no calor, e pedaços de paredes
caiadas despediam uma rebrilhação dura.
—Está de appetite, snr.
a Joanna, está de appetite!—dizia
Juliana, remexendo o caldo devagarinho,
com gula. A cozinheira de pé, com os braços
cruzados sobre o seu peito abundante, regosijava-se:
—O que se quer é que esteja a gosto.
—Está a preceito.
Sorriam, contentes da intimidade, das boas palavras.—E
a campainha da porta que já tinha tocado,
tornou a tilintar discretamente.
[107]
Juliana não se mexeu. Bafos de aragem quente
entravam: ouvia-se ferver a panella no fogão, e fóra
o martellar incessante da forja: ás vezes o arrulhar
triste de duas rôlas que viviam na varanda,
n'uma gaiola de vime, punha na tarde abrazada
uma sensação de suavidade.
A campainha retilintou, sacudida com impaciencia.
—Com a cabeça, burro!—disse Juliana.
Riram. Joanna fôra sentar-se á janella, n'uma cadeira
baixa; estendia os seus grossos pés, calçados
de chinellas de ourêlo; coçava-se devagarinho no
sovaco, toda repousada.
A campainha retiniu violentamente.
—Fóra, besta!—rosnou Juliana, muito tranquilla.
Mas a voz irritada de Luiza chamou de baixo:
—Juliana!
—Que nem uma pessoa póde tomar a sustancia
socegada! Raio de casa! Irra!
—Juliana!—gritou Luiza.
A cozinheira voltou-se, já assustada:
—A senhora zanga-se, snr.
a Juliana.
—Que a leve o diabo!
Limpou os beiços gordurosos ao avental, desceu
furiosa.
—Vossê não ouve, mulher? Estão a bater ha
uma hora!
Juliana arregalou os olhos espantada: Luiza tinha
vestido o roupão novo de
foulard côr de castanho,
com pintinhas amarellas!
[108]
—Temos novidade! Temol-a grossa!—pensou
Juliana pelo corredor.
A campainha repicava. E no patamar, vestido de
claro, com uma rosa ao peito, um embrulho debaixo
do braço, estava o
sujeito do negocio das minas!
—Aquelle sujeito de hontem!—veio dizer, toda
pasmada.
—Mande entrar...
—Viva!—pensou.
Galgou a escada da cozinha, disse logo da porta,
com a voz aguda de jubilo:
—Está cá o peralta de hontem! Está cá outra
vez! Traz um embrulho!—Que lhe parece, snr.
a
Joanna? Que lhe parece?
—Visitas...—disse a cozinheira.
Juliana teve um risinho secco. Sentou-se, acabou
o seu caldo, á pressa.
Joanna indifferente cantarolava pela cozinha; o
arrulhar das rôlas continuava langoroso e debil.
—Pois, senhores, isto vai rico!—disse Juliana.
Esteve um momento a limpar os dentes com a
lingua, o olhar fixo, reflectindo. Sacudiu o avental, e
desceu ao quarto de Luiza: o seu olhar esquadrinhador
avistou logo sobre o toucador as chaves esquecidas
da dispensa: podia subir, beber um trago de
bom vinho, engulir dous ladrilhos de marmelada...
Mas possuia-a uma curiosidade urgente, e, em bicos
de pés, foi agachar-se á porta que dava para a sala,
espreitou. O reposteiro estava corrido por dentro:
[109]
podia apenas sentir a voz grossa e jovial do sujeito.
Foi de volta, pelo corredor, á outra porta, ao pé da
escada; poz o olho á fechadura, collou o ouvido á
frincha. O reposteiro dentro estava tambem cerrado.
—Os diabos calafetaram-se!—pensou.
Pareceu-lhe que se arrastava uma cadeira, depois
que se fechava uma vidraça. Os olhos faiscavam-lhe.
Uma risada de Luiza sobresahiu, em seguida um silencio;
e as vozes recomeçaram n'um tom sereno e
continuo. De repente o sujeito ergueu a falla, e entre
as palavras que dizia, de pé de certo, passeando,
Juliana ouviu claramente:
Tu, foste tu!
—Oh que bebeda!
Um tlim-tlim timido da campainha, ao lado, assustou-a.
Foi abrir. Era Sebastião, muito vermelho do
sol, com as botas cheias de pó.
—Está?—perguntou, limpando a testa suada.
—Está com uma visita, snr. Sebastião!
E cerrando a porta sobre si, mais baixo:
—Um rapaz novo que já cá esteve hontem, um
janota! Quer que vá dizer?
—Não, não, obrigado, adeus.
Desceu discretamente. Juliana voltou logo a encostar-se
á porta, a orelha contra a madeira, as mãos
atraz das costas: mas a conversação, sem saliencia
de vozes, tinha um rumor tranquillo e indistincto.
Subiu á cozinha.
—Tratam-se por tu!—exclamou.—Tratam-se
por tu, snr.
a Joanna!
E muita excitada:
[110]
—Isto vai á vela! Caspitè! assim é que eu gosto
d'ellas!
O sujeito sahiu ás cinco horas. Juliana, apenas
sentiu abrir-se a porta, veio a correr; viu Luiza no
patamar, debruçada no corrimão, dizendo para baixo,
com muita intimidade:
—Bem, não falto. Adeus.
Ficou então tomada d'uma curiosidade que a alterava
como uma febre. Toda a tarde, na sala de
jantar, no quarto, esquadrinhou Luiza com olhares
de lado. Mas Luiza, com um roupão de linho mais
velho, parecia serena, muito indifferente.
—Que sonsa!
Aquella naturalidade despertava a sua bisbilhotice.
—Eu hei-de-t'apanhar, desavergonhada!—calculava.
Afigurou-se-lhe que Luiza tinha os olhos um pouco
pisados! Estudava-lhe as posições, os tons de voz.
Viu-a repetir o assado,—pensou logo:
—Abriu-lhe o appetite!
E quando Luiza ao fim do jantar se estendeu na
voltaire com um ar quebrado:
—Ficou derreada.
Luiza que nunca tomava café, quiz n'essa tarde
«meia chavena, mas forte, muito forte».
—Quer café!—veio ella dizer á cozinheira,
toda excitada.—Tudo á grande! E do forte. Quer
do forte! Ora o diabo!
Estava furiosa.
—Todas o mesmo! Uma récua de cabras!
[111]
Ao outro dia era domingo. Logo pela manhã cedo,
quando Juliana ia para a missa, Luiza chamou-a
da porta do quarto, deu-lhe uma carta para levar a
D. Felicidade. Ordinariamente mandava um recado;—e
a curiosidade de Juliana accendeu-se logo diante
d'aquelle sobrescripto fechado e lacrado com o sinete
de Luiza, um L gothico dentro d'uma corôa de
rosas.
—Tem resposta?
—Tem.
Quando voltou ás dez horas, com um bilhete de
D. Felicidade, Luiza quiz saber se havia muito calor,
se fazia poeira. Sobre a mesa estava um chapéo de
palha escuro, que ella estivera a enfeitar com duas
rosas de musgo.
Fazia um bocadinho de vento, mas p'ra a tarde
abrandava, de certo. E pensou logo:—Temos passeata,
vai ter com o gajo!
Mas durante todo o dia, Luiza em roupão não
sahiu do seu quarto ou da sala, ora estendida na
causeuse lendo aos bocados, ora batendo
distrahidamente
no piano pedaços de valsas. Jantou ás quatro
horas. A cozinheira sahiu, e Juliana pôz-se a passar
a sua tarde á janella da sala de jantar. Tinha o
vestido novo, as salas muito rijas de gomma, a cuia
dos dias santos—e pousava solemnemente os cotovêlos
n'um lenço, estendido sobre o peitoril da varanda.
[112]
Defronte os passaros chilreavam na figueira
brava. Dos dous lados do tabique que cercava o terreno
vago, agachavam-se os tectos escuros das duas
ruasitas parallelas: eram casas pobres onde viviam
mulheres, que pela tarde, em chambre ou de garibaldi,
os cabellos muito oleosos, faziam meia á janella,
fallando aos homens, cantarolando com um
tedio triste. Do outro lado do terreno, verduras de
quintaes, muros brancos davam áquelle sitio um ar
adormecido de villa pacata. Quasi ninguem passava.
Havia um silencio fatigado; e só ás vezes o som distante
d'um realejo, que tocava a
Norma ou a
Lucia,
punha uma melancolia na tarde.—E Juliana alli estava
immovel, até que os tons quentes da tarde empallideciam,
e os morcegos começavam a voar.
Pelas oito horas entrou no quarto de Luiza,—ficou
pasmada de a vêr vestida toda de preto, de
chapéo! Tinha accendido as serpentinas na parede,
os castiçaes no toucador; e sentada á beira da
causeuse
calçava as luvas devagar, com a face muito
séria, um pouco esbatida de pó d'arroz, o olhar
cheio de brilho.
—O vento abrandou?—disse.
—Está a noite muito bonita, minha senhora.
Um pouco antes das nove horas uma carruagem
parou á porta. Era D. Felicidade, muito encalmada.
Abafára todo o dia! E á noite nem uma aragem!
Até tinha mandado buscar uma carruagem descoberta,
que n'um coupé, credo, morria-se!
Juliana pelo quarto arrumava, dobrava, toda curiosa.
[113]
Onde iriam? onde iriam? D. Felicidade, amplamente
sentada, de chapéo, tagarellava: uma indigestão
que tivera na vespera com umas bajes; a
cozinheira que a tinha querido «comer» em quatro
vintens; uma visita que lhe fizera a condessa de
Arruella...
Emfim, Luiza, disse, baixando o seu véo branco:
—Vamos, filha. Faz-se tarde.
Juliana foi-lhes alumiar, furiosa. Olha que proposito,
irem duas mulheres sós por ahi fóra, n'uma tipoia!
E se uma criada então se demorava na rua mais
meia hora, credo, que alarido! Que duas bebedas!
Foi á cozinha desabafar com a Joanna. Mas a
rapariga estirada n'uma cadeira, dormitava.
Fôra com o seu Pedro ao Alto de S. João. E toda
a tarde tinham passeado no cemiterio, muito juntos,
admirando os jazigos, soletrando os epitaphios,
beijocando-se nos recantos que os chorões escureciam,
e regalando-se do ar dos cyprestes e das relvas
dos mortos. Voltaram por casa da Serena, entraram
a beberricar um quartilho no Espregueira... Tarde
cheia! e estava derreada da soalheira, do pó, da
admiração de tanto tumulo rico, do homem, e da
pinguita de vinho.
O que ia, era refastelar-se para a cama!
—Credo, snr.
a Joanna, vossemecê está-se a fazer
uma dorminhôca! Olha que mulher! Com pouco
arrêa! Cruzes!
Desceu ao quarto de Luiza, apagou as luzes,
abriu as janellas, arrastou a poltrona para a varanda,—e,
[114]
repimpada, os braços cruzados, pôz-se a passar
a noite.
O estanque ainda não se fechára, e a sua luzita
lugubre como a estanqueira, estendia-se tristemente
sobre a pedra miuda da rua; as janellas ao pé estavam
abertas; por algumas, mal alumiadas, viam-se
dentro serões melancolicos; n'outras, onde havia
vultos immoveis, luzia ás vezes a ponta d'um cigarro;
aqui, além tossia-se; e o moço do padeiro, no silencio
quente da noite, harpejava baixinho a guitarra.
Juliana pozera um vestido de chita claro; dous
sujeitos que estavam á porta do estanque riam, erguiam
de vez em quando os olhos para a janella,
para aquelle vulto branco de mulher: Juliana, então,
gozou! Tomavam-na de certo pela senhora, pela do
Engenheiro; faziam-lhe «olho», diziam brejeirices...
Um tinha calça branca e chapéo alto, eram janotas...
E com os pés muito estendidos, os braços
cruzados, a cabeça de lado, saboreava, longamente,
aquella consideração.
Passos fortes que subiam a rua, pararam á porta;
a campainha retiniu de leve.
—Quem é?—perguntou muito impaciente.
—Está?—disse a voz grossa de Sebastião.
—Sahiu com a D. Felicidade, foram de carruagem.
—Ah!—fez elle.
E acrescentou:
—Muito bonita noite!
[115]
—D'appetite, snr. Sebastião! d'appetite!—exclamou
alto.
E quando o viu descer a rua, gritou, affectadamente:
—Recados a Joanna! Não se esqueça!—mostrando-se
intima, madama, com olho terno para os
homens.
Áquella hora D. Felicidade e Luiza chegavam ao
Passeio.
Era beneficio; já de fóra se sentia o
brouhaha
lento e monotono, e via-se uma nevoa alta de poeira,
amarellada e luminosa.
Entraram. Logo ao pé do tanque encontraram
Bazilio. Fez-se muito surprehendido, exclamou:
—Que feliz acaso!
Luiza corou, apresentou-o a D. Felicidade.
A excellente senhora teve muitos sorrisos. Lembrava-se
d'elle, mas se não lhe dissessem talvez o
não conhecesse! Estava muito mudado!
—Os trabalhos, minha senhora...—disse Bazilio
curvando-se.
E acrescentou rindo, batendo com a bengala na
pedra do tanque:
—E a velhice! Sobretudo a velhice!
Na agua escura e suja as luzes do gaz torciam-se
até uma grande profundidade. As folhagens em
redor estavam immoveis, no ar parado, com tons
[116]
d'um verde livido e artificial. Entre os dous longos
renques parallelos d'arvores mesquinhas, entremeadas
de candieiros de gaz, apertava-se, n'um empoeiramento
de macadam, uma multidão compacta e escura;
e através do rumor grosso, as saliencias metallicas
da musica faziam passar no ar pesado, compassos
vivos de valsa.
Tinham ficado parados, conversando.
Que calor, hein? Mas a noite estava linda! Nem
uma aragem! que enchente!
E olhavam a gente que entrava: moços muito
frisados, com calças côr de flôr d'alecrim, fumando ceremoniosamente
os charutos do dia santo; um aspirante
com a cinta espartilhada e o peito enchumaçado;
duas meninas de cabello riçado, de movimentos gingados
que lhe desenhavam os ossos das omoplatas
sob a fazenda do vestido atabalhoado; um ecclesiastico
côr de cidra, o ar molle, o cigarro na bocca, e
lunetas defumadas; uma hespanhola com dous metros
de saia branca muita rija, fazendo ruge-ruge
na poeira; o triste Xavier, poeta; um fidalgo de jaquetão
e bengalão, de chapéo na nuca, o olho avinhado;
e Bazilio ria muito de dous pequenos que o pai conduzia
com um ar hilare e compenetrado—vestidos
d'azul claro, a cinta ligada n'uma facha escarlate,
barretinas de lanceiro, botas á hungara, cretinos e
somnambulos.
Um sujeito alto então passou rente d'elles, e voltando-se,
revirou para Luiza dous grandes olhos langorosos
e prateados: tinha uma pera longa e aguçada;
[117]
trazia o collete decotado mostrando um bello
peitilho, e fumava por urna boquilha enorme que representava
um zuavo.
Luiza quiz-se sentar.
Um garoto de blusa, sujo como um esfregão, correu
a arranjar cadeiras; e acommodaram-se ao pé
d'uma familia acabrunhada e taciturna.
—Que fizeste tu hoje, Bazilio?—perguntou
Luiza.
Tinha ido aos touros.
—E que tal? Gostaste?
—Uma semsaboria. Se não fosse pelo trambolhão
do Peixinho tinha-se morrido de pasmaceira. Gado
fraco, cavalleiros infelizes, nenhuma sorte! Touros
em Hespanha! Isso sim!
D. Felicidade protestou. Que horror! Tinha-os visto
em Badajoz, quando estivera de visita em Elvas á
tia Francisca de Noronha, e ia desmaiando. O sangue,
as tripas dos cavallos... Pouh! É muito cruel!
Bazilio disse, com um sorriso:
—Que faria se visse os combates de gallos, minha
senhora!
D. Felicidade tinha ouvido contar,—mas achava
todos esses divertimentos barbaros, contra a religião.
E recordando um gozo que lhe punha um riso
na face gorda:
—P'ra mim não ha nada como uma boa noite
de theatro! Nada!
—Mas aqui representam tão mal!—replicou
[118]
Bazilio com uma voz desolada.—Tão mal, minha rica
senhora!
D. Felicidade não respondeu; meio erguida na
cadeira, o olhar avivado d'um brilho humido, saudava
desesperadamente com a mão:
—Não me viu—disse desconsolada.
—Era o conselheiro?—perguntou Luiza.
—Não. Era a condessa d'Alviella. Não me viu!
Vai muito á Encarnação, sou muito d'ella. É um anjo!
Não me viu. Ia com o sogro.
Bazilio não tirava os olhos de Luiza. Sob o véo
branco, á luz falsa do gaz, no ar ennevoado da poeira,
o seu rosto tinha uma fórma alva e suave, onde
os olhos que a noite escurecia punham uma expressão
apaixonada; os cabellinhos louros, frisados, tornando
a testa mais pequena, davam-lhe uma graça
ameninada e amorosa; e as luvas
gris-perle faziam
destacar sobre o vestido negro o desenho elegante
das mãos, que ella pousára no regaço, sustentando
o leque, com uma fofa renda branca em torno dos
seus pulsos finos.
—E tu, que fizeste hoje?—perguntou-lhe Bazilio.
Tinha-se aborrecido muito. Estivera todo o santo
dia a lêr.
Tambem elle passára a manhã deitado no sophá
a lêr a
Mulher de fogo de Belot. Tinha lido, ella?
—Não, que é?
—É um romance, uma novidade.
E acrescentou sorrindo:
[119]
—Talvez um pouco picante; não t'o aconselho!
D. Felicidade andava a lêr o
Rocambole. Tanto
lh'o tinham apregoado! Mas era uma tal trapalhada!
Embrulhava-se, esquecia-se... E ia deixar, porque
tinha percebido que a leitura lhe augmentava a indigestão.
—Soffre?—perguntou Bazilio, com um interesse
bem educado.
D. Felicidade contou logo a sua dyspepsia. Bazilio
aconselhou-lhe o uso do gelo.—De resto felicitava-a,
porque as doenças d'estomago, ultimamente,
tinham muito
chic. Interessou-se pela d'ella, pediu
pormenores.
D. Felicidade prodigalisou-os; e, fallando, via-se-lhe
crescer no olhar, na voz a sua sympathia por
Bazilio. Havia de usar o gelo!
—Com o vinho, já se sabe?
—Com o vinho, minha senhora!
—E olha que talvez!—exclamou D. Felicidade,
batendo com o leque no braço de Luiza, já esperançada.
Luiza sorriu, ia responder—mas viu o sujeito
pallido da pera longa que fitava n'ella os seus olhos
langorosos, com obstinação. Voltou o rosto importunada.
O sujeito afastou-se, retorcendo a ponta da
pera.
Luiza sentia-se molle; o movimento rumoroso e
monotono, a noite calida, a accumulação da gente,
a sensação de verdura em redor davam ao seu corpo
de mulher caseira um torpor agradavel, um bem
[120]
estar d'inercia, envolviam-na n'uma doçura emolliente
de banho morno. Olhava com um vago sorriso, o
olhar frouxo; quasi tinha preguiça de mexer as mãos,
d'abrir o leque.
Bazilio notou o seu silencio.—Tinha somno?
D. Felicidade sorriu com finura.
—Ora, vê-se sem o seu maridinho! Desde que
o não tem está esta mona que se vê.
Luiza respondeu, olhando Bazilio instinctivamente:
—Que tolice! Até estes dias tenho andado bem
alegre!
Mas D. Felicidade insistia:
—Ora, bem sabemos, bem sabemos. Esse coraçãosinho
está no Alemtejo!
Luiza disse, com impaciencia:
—Não has-de querer que me ponha aos pulos e
ás gargalhadas no Passeio.
—Está bem, não te enfureças!—exclamou D.
Felicidade. E para Bazilio:—Que geniosinho, hein!
Bazilio pôz-se a rir.
—A prima Luiza antigamente era uma vibora.
Agora não sei...
D. Felicidade acudiu:
—É uma pomba, coitada, é uma pomba! Não,
lá isso, é uma pomba.
E envolvia-a n'um olhar maternal.
Mas a familia taciturna ergueu-se, sem ruido,—e
as meninas adiante, os paes atraz, afastaram-se lugubremente,
succumbidos.
Bazilio immediatamente apossou-se da cadeira ao
[121]
pé de Luiza,—e vendo D. Felicidade a olhar distrahida:
—Estive para te ir vêr de manhã—disse baixinho
a Luiza.
Ella ergueu a voz, muito naturalmente, com indifferença:
—E porque não foste? Tinhamos feito musica.
Fizeste mal. Devias ter ido...
D. Felicidade quiz então saber as horas. Começava
a enfastiar-se. Tinha esperado encontrar o conselheiro:
por elle, para lhe parecer bem, fizera
o sacrificio de se apertar; Accacio não vinha, os
gazes começavam a affrontal-a; e o despeito d'aquella
ausencia augmentava-lhe a tortura da digestão. Na
sua cadeira, com o corpo molle, ia seguindo a multidão
que girava incessantemente, n'uma nevoa empoeirada.
Mas a musica, no coreto, bateu de repente, alto,
a grande ruido de cobres, os primeiros compassos
impulsivos da marcha do
Fausto. Aquillo reanimou-a.
Era um
pot-pourri da opera,—e não havia musica de
que gostasse mais. Estaria para a abertura de S. Carlos,
o snr. Bazilio?
Bazilio disse, com uma intenção, voltando-se para
Luiza:
—Não sei, minha senhora, depende...
Luiza olhava, calada. A multidão crescera. Nas
ruas lateraes mais espaçosas, frescas, passeavam
apenas, sob a penumbra das arvores, os acanhados,
as pessoas de luto, os que tinham o fato coçado.
[122]
Toda a burguezia domingueira viera amontoar-se na
rua do meio, no corredor formado pela filas cerradas
das cadeiras do asylo: e alli se movia entalada,
com a lentidão espessa d'uma massa mal derretida,
arrastando os pés, raspando o macadam,
n'um amarfanhamento plebeu, a garganta secca, os
braços molles, a palavra rara. Iam, vinham, incessantemente,
para cima e para baixo, com um bamboleamento
relaxado e um rumor grosso, sem alegria
e sem bonhomia, no arrebanhamento passivo que
agrada ás raças mandrionas: no meio da abundancia
das luzes e das festividades da musica, um tedio
morno circulava, penetrava como uma nevoa: a
poeirada fina envolvia as figuras, dava-lhes um tom
neutro; e nos rostos que passavam sob os candieiros,
nas zonas mais directas de luz, viam-se desconsolações
de fadiga e aborrecimentos de dia santo.
Defronte as casas da rua Occidental tinham na
sua fachada o reflexo claro das luzes do Passeio; algumas
janellas estavam abertas; as cortinas de fazenda
escura destacavam sobre a claridade interior
dos candieiros. Luiza sentia como uma saudade de
outras noites de verão, de serões recolhidos. Onde?
Não se lembrava. O movimento então retrahia-a; e
encontrava em face, fitando-a n'uma attitude lugubre,
o sujeito da pera longa. Debaixo do véo sentia a
poeira arder-lhe nos olhos: em redor d'ella gente
bocejava.
D. Felicidade propoz uma volta. Levantaram-se,
foram rompendo devagar; as filas das cadeiras apertavam-se
[123]
compactamente, e uma infinidade de faces
a que a luz do gaz dava o mesmo tom amarellado olhavam
de um modo fixo e cançado, n'um abatimento
de pasmaceira. Aquelle aspecto irritou Bazilio, e como
era difficil andar lembrou—«que se fossem d'aquella
semsaboria».
Sahiram. Em quanto elle ia comprar os bilhetes,
D. Felicidade, deixando-se quasi cahir n'um banco
sob a folhagem d'um chorão, exclamou afflicta:
—Ai filha! Estou que arrebento!
Passava a mão no estomago, tinha a face envelhecida.
—E o conselheiro, que me dizes? Olha que já é
pouca sorte! Hoje que eu vim ao Passeio...
Suspirou, abanando-se. E com o seu sorriso bondoso:
—É muito sympathico, teu primo! E que maneiras!
Um verdadeiro fidalgo. Que elles conhecem-se,
filha!
Declarou-se muito fatigada, apenas sahiram o portão.
Era melhor tomarem um trem.
Bazilio achava preferivel subirem a pé até ao
largo do Loreto. A noite estava tão agradavel! E o
andar fazia bem á snr.
a D. Felicidade!
Depois diante do Martinho, fallou em irem tomar
neve; mas D. Felicidade receava a frialdade, Luiza
tinha vergonha. Pelas portas do café abertas, viam-se
sobre as mesas jornaes enxovalhados; e algum raro
individuo, de calça branca, tomava placidamente
o seu sorvete de morango.
[124]
No Rocio, sob as arvores, passeava-se: pelos bancos,
gente immovel parecia dormitar; aqui e além
pontas de cigarro reluziam; sujeitos passavam, com
o chapéo na mão, abanando-se, o collete desabotoado;
a cada canto se apregoava agua fresca «do Arsenal»;
em torno do largo, carruagens descobertas
rodavam vagarosamente. O céo abafava,—e na
noite escura, a columna da estatua de D. Pedro tinha
o tom baço e pallido de uma vela de estearina
colossal e apagada.
Bazilio, ao pé de Luiza, ia calado. Que horror de
cidade!—pensava—Que tristeza! E lembrava-lhe
Paris, de verão: subia, á noite, no seu phaeton, os
Campos Elyseos devagar: centenares de victorias descem,
sobem rapidamente, com um trote discreto e
alegre; e as lanternas fazem em toda a avenida um
movimento jovial de pontos de luz; vultos brancos
e mimosos de mulheres reclinam-se nas almofadas,
balançadas nas molas macias; o ar em redor tem
uma doçura avelludada, e os castanheiros espalham
um aroma subtil. Dos dous lados, d'entre os arvoredos,
saltam as claridades violentas dos cafés cantantes,
cheios do
brouhaha das multidões alegres, dos
brios impulsivos das orchestras; os restaurantes
flammejam;
ha uma intensidade de vida amorosa e feliz;
e, para além, sahe das janellas dos palacetes, através
dos
stores de sêda, a luz sobria e velada das
existencias ricas. Ah! se lá estivesse!—Mas ao passar
junto dos candieiros olhava de lado para Luiza:
o seu perfil fino sob o véo branco tinha uma grande
[125]
doçura; o vestido prendia bem a curva do seu peito;
e havia no seu andar uma lassidão que lhe quebrava
a linha da cinta de um modo languido e promettedor.
Veio-lhe uma certa idéa, começou a dizer: Que
pena que não houvesse em toda a Lisboa um restaurante,
onde se podesse ir tomar uma aza de perdiz
e beber uma garrafa de
champagne frappée!
Luiza não respondeu. Devia ser delicioso—pensava.—Mas
D. Felicidade exclamou:
—Perdiz, a esta hora!
—Perdiz ou outra qualquer cousa.
—Fosse o que fosse, era para estourar! Credo!
Subiam pela rua Nova do Carmo. Os candieiros
davam uma luz mortiça: as altas casas dos dous lados,
apagadas, entalavam, carregavam a sombra; e
a patrulha muito armada, descia passo a passo, sem
ruido, sinistra e subtil.
Ao Chiado um garoto de barrete azul perseguiu-os
com cautelas de loteria; a sua voz aguda e
chorosa promettia a fortuna, muitos contos de reis.
D. Felicidade ainda parou, com uma tentação... Mas
uma troça de rapazes bebedos que descia de chapéo
na nuca, fallando alto, aos tropeções, assustou muito
as duas senhoras. Luiza encolheu-se logo contra
Bazilio, D. Felicidade enfiada agarrou-lhe anciosamente
o braço, quiz-se metter n'uma carruagem; e até
ao Loreto foi explicando o seu medo aos borrachos,
com a voz atarantada, contando casos, facadas, sem
largar o braço de Bazilio. Da fileira de tipoias, ao
[126]
lado das grades da praça de Camões, um cocheiro lançou
logo a sua caleche descoberta, de pé na almofada,
apanhando confusamente as rédeas, com grandes
chicotadas na parelha, muito excitado, gritando:
—Prompto, meu amo, prompto!
Demoraram-se um momento ainda conversando.
Um homem então passou, rondou,—e Luiza desesperada
reconheceu os olhos acarneirados do sujeito
da pera.
Entraram para a caleche. Luiza ainda se voltou
para vêr Bazilio immovel no largo, com o seu chapéo
na mão: depois accommodou-se, pôz os pésinhos
no outro assento e balançada pelo trote largo viu
passar, calada, as casas apagadas da rua de S. Roque,
as arvores de S. Pedro de Alcantara, as fachadas
estreitas do Moinho de Vento, os jardins adormecidos
da Patriarchal. A noite estava immovel, de um
calor molle: e desejava, sem saber porque, rolar assim
sempre, infinitamente, entre ruas, entre grades
cheias de folhagem de quintas nobres, sem destino,
sem cuidados, para alguma cousa de feliz que não
distinguia bem! Um grupo defronte da Escóla ia tocando
o
Fado do Vimioso; aquelles sons entraram-lhe
na alma como um vento dôce, que fazia agitar
brandamente muitas sensibilidades passadas: suspirou
baixo.
—Um suspirosinho que vai para o Alemtejo—disse
D. Felicidade, tocando-lhe o braço.
Luiza sentiu todo o sangue abrazar-lhe o rosto.
Davam onze horas quando entrou em casa.
[127]
Juliana veio alumiar.—O chá estava prompto,
quando a senhora quizesse...
Luiza subiu d'ahi a pouco com um largo roupão
branco, muito fatigada, estendeu-se na
voltaire;
sentia
vir-lhe uma somnolencia, a cabeça pendia-lhe,
cerrava as palpebras... E Juliana tardava tanto com
o chá! Chamou-a. Onde estava? credo!
Tinha descido, pé ante pé, ao quarto de Luiza.
E ahi tomando o vestido, as saias engommadas que
ella despira e atirára para cima da
causeuse,
desdobrou-as,
revirou-as, examinou-as, e com uma certa
idéa, cheirou-as! Havia o vago aroma de um corpo
lavado e quente, com uma pontinha de suor e de
agua de colonia. Quando a sentiu chamar, impacientar-se
em cima, subiu, correndo.—Fôra abaixo dar
uma arrumadella. Era o chá? Estava prompto...
E entrando com as torradas:
—Veio ahi o snr. Sebastião, haviam de ser nove
horas...
—Que lhe disse?
—Que a senhora tinha sahido com a snr.
a D. Felicidade.
Como não sabia, não disse para onde.
E acrescentou:
—Esteve a conversar commigo, o snr. Sebastião...
Esteve a conversar mais de meia hora!...
Luiza recebeu, na manhã seguinte, da parte de
Sebastião, um ramo de rosas, magenta-escuro, magnificas.
[128]
Cultivava-as elle na quinta de Almada, e
chamavam-se rosas
D. Sebastião. Mandou-as pôr nos
vasos da sala, e como o dia estava encoberto, de um
calor baixo e suffocante:
—Olhe—disse a Juliana—abra as janellas.
—Bem—pensou Juliana—temos cá o melro.
O
melro veio com effeito ás tres horas. Luiza estava
na sala, ao piano.
—Está alli o sujeito do costume—foi dizer Juliana.
Luiza voltou-se corada, escandalisada da expressão:
—Ah! meu primo Bazilio? Mande entrar.
E chamando-a:
—Ouça, se vier o snr. Sebastião, ou alguem, que
entre.
Era o primo! O
sujeito, as suas visitas perderam
de repente para ella todo o interesse picante. A sua
malicia cheia, enfunada até ahi, cahiu, engelhou-se
como uma vela a que falta o vento. Ora, adeus!
Era o primo!
Subiu á cozinha, devagar,—lograda.
—Temos grande novidade, snr.
a Joanna! O tal
peralta é primo. Diz que é o primo Bazilio.
E com um risinho:
—É o Bazilio! Ora o Bazilio! Sahe-nos primo á
ultima hora! O diabo tem graça!
—Então que havia de o homem ser senão parente?—observou
Joanna.
Juliana não respondeu. Quiz saber se estava o
[129]
ferro prompto, que tinha uma carga de roupa para
passar! E sentou-se á janella, esperando. O céo baixo
e pardo pesava, carregado de electricidade; ás
vezes uma aragem subita e fina punha nas folhagens
dos quintaes um arripio tremulo.
—É o primo!—reflectia ella.—E só vem então
quando o marido se vai. Boa! E fica-se toda no
ar quando elle sahe, e é roupa branca e mais roupa
branca, e roupão novo, e tipoia para o passeio, e
suspiros e olheiras! Boa bebeda! Tudo fica na familia!
Os olhos luziam-lhe. Já se não sentia tão lograda.
Havia alli muito «para vêr e para escutar». E o
ferro, estava prompto?
Mas a campainha, em baixo, tocou.
—Boa! isto agora é um fadario! Estamos na casa
do despacho!
Desceu; e exclamou logo, vendo Julião com um
livro debaixo do braço:
—Faz favor d'entrar, snr. Julião! A senhora está
com o primo, mas diz que mandasse entrar!
Abriu a porta da sala bruscamente, de surpreza.
—Está aqui o snr. Julião—disse com satisfação.
Luiza apresentou os dous homens.
Bazilio ergueu-se do sophá languidamente, e,
n'um relance, percorreu Julião desde a cabelleira
desleixada até ás botas mal engraxadas, com um
olhar quasi horrorisado.
[130]
—Que pulha!—pensou.
Luiza, muito fina, percebeu, e córou, envergonhada
de Julião.
Aquelle homem de collarinho enxovalhado e com
um velho casaco de pano preto mal feito—que idéa
daria a Bazilio das relações, dos amigos da casa!
Sentia já o seu
chic diminuido. E instinctivamente,
a
sua physionomia tornou-se muito reservada,—como
se semelhante visita a surprehendesse! semelhante
toilette a indignasse!
Julião percebeu o constrangimento d'ella, disse,
já embaraçado, ageitando a luneta:
—Passei por aqui por acaso, entrei a saber se
ha algumas noticias de Jorge...
—Obrigada. Sim, tem escripto. Está bem...
Bazilio, recostado no sophá, como um parente intimo,
examinava a sua meia de sêda bordada de estrellinhas
escarlates, e cofiava indolentemente o bigode,
arrebitando um pouco o dedo minimo,—onde
brilhavam, em dous grossos anneis d'ouro, uma saphira
e um rubi.
A affectação da attitude, o reluzir das joias irritaram
Julião.
Quiz mostrar tambem a sua intimidade, os seus
direitos, disse:
—Eu não tenho vindo fazer-lhe um bocado de
companhia, porque tenho estado muito occupado...
Luiza acudiu para desauthorisar logo aquella familiaridade:
—Eu tambem não me tenho achado bem. Não
[131]
tenho recebido ninguem,—a não ser meu primo,
naturalmente!
Julião sentiu-se renegado! E todo vermelho, de
surpreza, d'indignação, ficou a balançar a perna, calado,
com o livro sobre o joelho; como a calça era
curta, via-se o elastico esfiado das botas velhas.
Houve um silencio difficil.
—Bonitas rosas!—disse emfim Bazilio, preguiçosamente.
—Muito bonitas!—respondeu Luiza.
Estava agora compadecida de Julião, procurava
uma palavra; disse-lhe emfim muito precipitadamente:
—E que calor! É de morrer! Tem havido muitas
doenças?
—Colerinas—respondeu Julião.—Por causa das
frutas. Doenças de ventre.
Luiza baixou os olhos. Bazilio então começou a
fallar da viscondessinha d'Azeias: tinha-a achado
acabada; e que era feito da irmã, da grande?
Aquella conversação sobre fidalgas que elle não
conhecia isolava mais Julião: sentia o suor humedecer-lhe
o pescoço; procurava um dito, uma ironia,
uma agudeza; e machinalmente abria e fechava o seu
grosso livro de capa amarella.
—É algum romance?—perguntou-lhe Luiza.
—Não. É o tratado do dr. Lee sobre doenças
d'utero.
Luiza fez-se escarlate: Julião tambem, furioso da
palavra que lhe escapára. E Bazilio, depois de sorrir,
[132]
perguntou por uma certa D. Raphaela Grijó, que costumava
ir á rua da Magdalena, que usava luneta, e
tinha um cunhado gago...
—Morreu-lhe o marido. Casou com o cunhado.
—Com o gago?
—Sim. Tem um filhito d'elle, gago tambem.
—Que conversação, em familia! E a D. Eugenia,
a de Braga?
Julião, exasperado, ergueu-se; e com uma voz
de garganta secca:
—Estou com pressa, não me posso demorar.
Quando escrever a Jorge, os meus recados, hein?
Abaixou bruscamente a cabeça a Bazilio. Mas não
achava o chapéo, tinha rolado para debaixo d'uma
cadeira. Embrulhou-se no reposteiro, topou violentamente
contra a porta fechada, e sahiu emfim desesperado,
desejando vingar-se, odiando Luiza, Jorge, o
luxo, a vida,—transbordando agora d'ironias, de ditos,
de réplicas. Devia-os ter achatado, o asno e a
tola... E não lhe acudira nada!
Mas apenas elle tinha fechado a cancella, Bazilio
pôz-se de pé, e cruzando os braços:
—Quem é este pulha?
Luiza córou muito, balbuciou:
—É um rapaz medico...
—É uma creatura impossivel, é uma especie
d'estudante!
—Coitado, não tem muitos meios...
Mas não era necessario ter meios para escovar
o casaco e limpar a caspa! Não devia receber semelhante
[133]
homem! Envergonha uma casa. Se seu
marido gostava d'elle, que o recebesse no escriptorio!...
Passeava pela sala, excitado, com as mãos nos
bolsos, fazendo tilintar o dinheiro e as chaves.
—São frescos os amigos da casa!...—continuou.—Que
diabo! tu não foste educada assim. Nunca
tiveste gente d'este genero na rua da Magdalena.
Não tivera: e pareceu-lhe que as ligações do casamento
lhe tinham trazido um pouco o plebeismo
das convivencias. Mas um respeito pelas opiniões,
pelas sympathias de Jorge fez-lhe dizer:
—Diz que tem muito talento...
—Era melhor que tivesse botas.
Luiza, por cobardia, concordou.
—Tambem o acho exquisito!—disse.
—Horrivel, minha filha!
Aquella palavra fez-lhe bater o coração. Era assim
que elle lhe chamava, outr'ora! Houve um momento
de silencio:—e a campainha da porta retiniu
fortemente.
Luiza ficou assustada. Jesus! Se fosse Sebastião!
Bazilio achal-o-hia ainda mais reles! Mas Juliana veio
dizer:
—O snr. conselheiro. Mando entrar?
—De certo—exclamou.
E a alta figura d'Accacio adiantou-se, com as bandas
do casaco d'alpaca deitadas para traz, a calça
branca muito engommada cahindo sobre sapatos de
entrada abaixo, de laço.
[134]
Apenas Luiza lhe apresentou o primo Bazilio, disse
logo, respeitoso:
—Já sabia que v. exc.
a tinha chegado, vi-o nas
interessantes noticias do nosso
high-life. E do
nosso
Jorge?
Jorge estava em Beja... Diz que se aborrece
muito...
Bazilio, mais amavel, deixou cahir:
—Eu realmente não tenho a menor idéa do que
se possa fazer em Beja. Deve ser horroroso!
O conselheiro, passando sobre o bigode a sua
mão branca onde destacava o annel d'armas, observou:
—É todavia a capital do districto!
Mas se já em Lisboa se não podia fazer nada, e
era a capital do reino!—E Bazilio puxava, todo recostado,
o punho da camisa.—Morria-se positivamente
de pasmaceira!
Luiza, muito contente da affabilidade de Bazilio,
pôz-se a rir:
—Não digas isso diante do conselheiro. É um
grande admirador de Lisboa.
Accacio curvou-se:
—Nasci em Lisboa, e aprecio Lisboa, minha rica
senhora.
E com muita bonhomia:
—Conheço porém que não é para comparar aos
Parizes, ás Londres, ás Madrids...
—De certo—fez Luiza.
E o conselheiro continuou com pompa:
[135]
—Lisboa porém tem bellezas sem igual! A entrada,
ao que me dizem (eu nunca entrei a barra),
é um panorama grandioso, rival das Constantinoplas
e das Napoles. Digno da penna d'um Garrett ou d'um
Lamartine! Proprio para inspirar um grande engenho!...
Luiza, receando citações ou apreciações litterarias,
interrompeu-o, perguntou-lhe o que tinha feito?
Tinham estado domingo no Passeio, ella e D. Felicidade,
tinham esperado vêl-o, e nada!
Nunca ia ao Passeio, ao domingo—declarou.—Reconhecia
que era muito agradavel, mas a multidão
entontecia-o. Tinha notado,—e a sua voz tomou o
tom espaçado d'uma revelação,—tinha notado que
muita gente, n'um local, causa vertigens aos homens
d'estudo. De resto queixou-se da sua saude e do
peso dos seus trabalhos. Andava compilando um livro
e usando as aguas de Vichy.
—Pódes fumar—disse Luiza de repente, sorrindo,
a Bazilio.—Queres lume?
Ella mesmo lhe foi buscar um phosphoro, toda
ligeira, feliz. Tinha um vestido claro, um pouco transparente,
muito fresco. Os seus cabellos pareciam
mais louros, a sua pelle mais fina.
Bazilio soprou o fumo do charuto, e declarou muito
reclinado:
—O Passeio ao domingo é simplesmente idiota!...
O conselheiro reflectiu e respondeu:
—Não serei tão severo, snr. Brito!—Mas parecia-lhe
[136]
que com effeito antigamente era uma diversão
mais agradavel.—Em primeiro lugar—exclamou
com muita convicção, endireitando-se—nada, mas
nada, absolutamente nada póde substituir a charanga
da Armada!—Além d'isso havia a questão dos preços...
Ah! tinha estudado muito o assumpto! Os
preços diminutos favoreciam a agglomeração das classes
subalternas... Que longe do seu pensamento
lançar desdouro n'essa parte da população... As
suas idéas liberaes eram bem conhecidas.—Appéllo
para a snr.
a D. Luiza!—disse.—Mas emfim, sempre
era mais agradavel encontrar uma roda escolhida!
Em quanto a si nunca ia ao Passeio. Talvez
não acreditassem, mas nem mesmo quando havia
fogo de vistas! N'esses dias, sim, ia vêr por fóra das
grades. Não por economia! De certo não. Não era
rico, mas podia fazer face a essa contribuição diminuta.
Mas é que receava os accidentes! É que os receava
muito! Contou a historia d'um sujeito, cujo
nome lhe escapava, a quem uma cana de foguete furára
o craneo.—E além d'isso nada mais facil que
cahir uma fagulha accesa na cara, n'um paletot
novo...—É conveniente ter prudencia—resumiu,
compenetrado, limpando os beiços com o lenço de
sêda da India muito enrolado.
Fallaram então da estação: muita gente fôra para
Cintra: de resto, Lisboa no verão era tão seccante!...
E o conselheiro declarou que Lisboa só era imponente,
verdadeiramente imponente, quando estavam abertas
as camaras e S. Carlos!
[137]
—Que estavas tu a tocar quando eu entrei?—perguntou
Bazilio.
O conselheiro acudiu logo:
—Se estavam fazendo musica, por quem são...
Sou um velho assignante de S. Carlos, ha dezoito
annos...
Bazilio interrompeu-o:
—Toca?
—Toquei. Não o occulto. Em rapaz fui dado á
flauta.
E acrescentou, com um gesto benevolo:
—Rapaziadas!... Alguma novidade, o que estava
tocando, D. Luiza?
—Não! Uma musica muito conhecida, já antiga:
a
Filha do Pescador, de Meyerbeer! Tenho a letra
traduzida.
Tinha cerrado as vidraças, sentára-se ao piano.
—O Sebastião é que toca isto bem, não é verdade,
conselheiro?
—O nosso Sebastião—disse o conselheiro com
authoridade—é um rival dos Thalbergs e dos Litz.
Conhece o nosso Sebastião?—perguntou a Bazilio.
—Não, não conheço.
—Uma perola!
Bazilio tinha-se aproximado do piano devagar,
frisando o bigode.
—Tu ainda cantas?—perguntou-lhe Luiza, sorrindo.
—Quando estou só.
Mas o conselheiro pediu-lhe logo um «trecho».
[138]
Bazilio ria. Tinha medo d'escandalisar um velho assignante
de S. Carlos...
O conselheiro animou-o; disse mesmo paternalmente:
—Coragem, snr. Brito, coragem!
Luiza então preludiou.
E Bazilio soltou logo a voz, cheia, bem timbrada,
de barytono; as suas notas altas faziam a sala sonora.
O conselheiro, direito na poltrona, escutava
concentrado; a sua testa, franzida n'um vinco, parecia
curvar-se sob uma responsabilidade de juiz; e as
lunetas defumadas destacavam, com reflexos escuros,
n'aquella physionomia de calvo, que o calor tornava
mais pallida.
Bazilio dizia com uma melancolia grave a primeira
phrase, tão larga, da canção:
Igual ao mar sombrio
Meu coração profundo...
Um poeta, com uma dedicação obscura, traduzira
a letra no
Almanach das Senhoras. Luiza pela sua
propria mão a tinha copiado nas entrelinhas da musica.
E Bazilio debruçado sobre o papel sempre torcendo
as pontas do bigode:
Tem tempestades, coleras,
Mas perolas no fundo!
Os olhos largos de Luiza affirmavam-se para a musica—ou
[139]
a espaços, com um movimento rapido, erguiam-se
para Bazilio. Quando, na nota final, prolongada
como a reclamação d'um amor supplicante,
Bazilio soltou a voz d'um modo appellativo:
Vem! vem
Pousar, ó dôce amada,
Teu peito contra o meu...
os seus olhos fixaram-se n'ella com uma significação
de tanto desejo, que o peito de Luiza arfou, os seus
dedos embrulharam-se no teclado.
O conselheiro bateu as palmas.
—Uma voz admiravel!—exclamava—Uma voz
admiravel!
Bazilio dizia-se envergonhado.
—Não, senhor, não, senhor!—protestou Accacio,
levantando-se.—Um excellente orgão! Direi, o
melhor orgão da nossa sociedade!
Bazilio riu. Uma vez que tinha successo, então ia
dizer-lhes uma modinha brazileira da Bahia. Sentou-se
ao piano, e depois de ter preludiado uma melodia
muito balançada, d'um embalado tropical, cantou:
Sou negrinha, mas meu peito
Sente mais que um peito branco.
E interrompendo-se:
—Isto fazia furor nas reuniões da Bahia quando
eu parti.
[140]
Era a historia d'uma «negrinha» nascida na roça,
e que contava, com lyrismos d'almanach, a sua paixão
por um feitor branco.
Bazilio parodiava o tom sentimental d'alguma menina
bahiana; e a sua voz tinha uma preciosidade comica,
quando dizia o
ritornello choroso:
E a negra p'ra os mares
Seus olhos alonga;
No alto coqueiro
Cantava a araponga.
O conselheiro achou «delicioso»; e, de pé na sala,
lamentou a proposito da cantiga a condição dos
escravos. Que lhe affirmavam amigos do Brazil que
os negros eram muito bem tratados. Mas emfim a civilisação
era a civilisação! E a escravatura era um
estigma! Tinha todavia muita confiança no imperador...
—Monarcha de rara illustração...—acrescentou
respeitosamente.
Foi buscar o seu chapéo, e collando-lhe as abas
ao peito, curvando-se, jurou que—havia muito tempo
não tinha passado uma manhã tão completa. De
resto para elle nada havia como a boa conversação
e a boa musica...
—Onde está v. exc.
a alojado, snr. Brito?
Pelo amor de Deus! Que não se incommodasse!
Estava no Hotel Central.
Não havia considerações que o impedissem de
cumprir o seu dever—declarou.—Cumpril-o-hia!
[141]
Elle era uma pessoa inutil, a snr.
a D. Luiza bem o
sabia.—Mas se necessitar alguma cousa, uma informação,
uma apresentação nas regiões officiaes, licença
para visitar algum estabelecimento publico,
creia que me tem ás suas ordens!
E conservando na sua mão a mão de Bazilio:
—Rua do Ferregial de Cima numero tres, terceiro.
O modesto tugurio d'um ermita.
Tornou a curvar-se diante de Luiza:
—E quando escrever ao nosso viajante, que faço
sinceros votos pela prosperidade dos seus emprehendimentos.
Por quem é! Criado de v. exc.
a!
E direito, grave, sahiu.
—Este ao menos é limpo—resmungou Bazilio,
com o charuto ao canto da bocca.
Sentára-se outra vez ao piano, corria os dedos
pelo teclado. Luiza aproximou-se:
—Canta alguma cousa, Bazilio!
Bazilio pôz-se então a olhar muito para ella.
Luiza córou, sorriu; através da fazenda clara e
transparente do vestido, entrevia-se a brancura macia
e lactea do collo e dos braços; e nos seus olhos, na
côr quente do rosto havia uma animação e como
uma vitalidade amorosa.
Bazilio disse-lhe, baixo:
—Estás hoje nos teus dias felizes, Luiza.
O olhar d'elle, tão avido, perturbava-a; insistiu:
—Canta alguma cousa.
O seu seio arfava.
—Canta tu—murmurou Bazilio.
[142]
E devagarinho, tomou-lhe a mão. As duas palmas
um pouco humidas, um pouco tremulas, uniram-se.
A campainha, fóra, tocou. Luiza desprendeu a mão
bruscamente.
—É alguem—disse agitada.
Vozes baixas fallavam á cancella.
Bazilio teve um movimento d'hombros contrariado,
foi buscar o chapéo.
—Vaes-te?—exclamou ella toda desconsolada.
—Pudera! Não posso estar só comtigo um momento!
A cancella fechou-se com ruido.
—Não é ninguem, foi-se—disse Luiza.
Estavam de pé, no meio da sala.
—Não te vás! Bazilio!
Os seus olhos profundos tinham uma supplicação
dôce. Bazilio pousou o chapéo sobre o piano; mordia
o bigode um pouco nervoso.
—E para que queres tu estar só commigo?—disse
ella.—Que tem que venha gente?—E arrependeu-se
logo d'aquellas palavras.
Mas Bazilio, com um movimento brusco, passou-lhe
o braço sobre os hombros, prendeu-lhe a cabeça, e
beijou-a na testa, nos olhos, nos cabellos, vorazmente.
Ella soltou-se a tremer, escarlate.
—Perdôa-me—exclamou elle logo, com um impeto
apaixonado.—Perdôa-me. Foi sem pensar. Mas
é porque te adoro, Luiza!
Tomou-lhe as mãos com dominio, quasi com direito.
[143]
—Não. Has-de ouvir. Desde o primeiro dia que
te tornei a vêr estou doudo por ti, como d'antes, a
mesma cousa. Nunca deixei de me morrer por ti.
Mas não tinha fortuna, tu bem o sabes, e queria-te
vêr rica, feliz. Não te podia levar para o Brazil. Era
matar-te, meu amor! Tu imaginas lá o que aquillo
é! Foi por isso que te escrevi aquella carta, mas o
que eu soffri, as lagrimas que chorei!
Luiza escutava-o immovel, a cabeça baixa, o olhar
esquecido; aquella voz quente e forte, de que recebia
o bafo amoroso, dominava-a, vencia-a; as mãos
de Bazilio penetravam com o seu calor febril a substancia
das suas; e, tomada d'uma lassidão, sentia-se
como adormecer.
—Falla, responde!—disse elle anciosamente,
sacudindo-lhe as mãos, procurando o seu olhar avidamente.
—Que queres que te diga?—murmurou ella.
A sua voz tinha um tom abstracto, mal acordado.
E desprendendo-se devagar, voltando o rosto:
—Fallemos n'outras cousas!
Elle balbuciava com os braços estendidos:
—Luiza! Luiza!
—Não, Bazilio, não!
E na sua voz havia o arrastado d'uma lamentação,
com a molleza d'uma caricia.
Elle então não hesitou, prendeu-a nos braços.
Luiza ficou inerte, os beiços brancos, os olhos
cerrados—e Bazilio, pousando-lhe a mão sobre a
[144]
testa, inclinou-lhe a cabeça para traz, beijou-lhe as
palpebras devagar, a face, os labios depois muito
profundamente; os beiços d'ella entreabriram-se, os
seus joelhos dobraram-se.
Mas de repente todo o seu corpo se endireitou,
com um pudor indignado, afastou o rosto, exclamou
afflicta:
—Deixa-me, deixa-me!
Viera-lhe uma força nervosa; desprendeu-se, empurrou-o;
e passando as mãos abertas pela testa, pelos
cabellos:
—Oh meu Deus! É horrivel!—murmurou.—Deixa-me!
É horrivel!
Elle adiantava-se com os dentes cerrados; mas
Luiza recuava, dizia:
—Vai-te. Que queres tu? Vai-te! Que fazes tu
aqui? Deixa-me!
Elle então tranquillisou-a com a voz subitamente
serena e humilde. Não percebia. Porque se zangava?
Que tinha um beijo? Elle não pedia mais. Que tinha
ella imaginado, então? Adorava-a, de certo, mas puramente.
—Juro-t'o!—disse com força, batendo no peito.
Fel-a sentar no sophá, sentou-se ao pé d'ella.
Fallou-lhe muito sensatamente:—Via as circumstancias,
e resignar-se-hia. Seria como uma amizade d'irmãos,
nada mais.
Ella escutava-o, esquecida.
De certo, dizia elle, aquella paixão era uma tortura
immensa. Mas era forte, dominar-se-hia. Só queria
[145]
vir vêl-a, fallar-lhe. Seria um sentimento ideal.—E
os seus olhos devoravam-na.
Voltou-lhe a mão, curvou-se, pôz-lhe um beijo
cheio na palma. Ella estremeceu, ergueu-se logo:
—Não! Vai-te!
—Bem, adeus.
Levantou-se com um movimento resignado e infeliz.
E limpando devagar a sêda do chapéo:
—Bem, adeus—repetiu melancolicamente.
—Adeus.
Bazilio disse então com muita ternura:
—Estás zangada?
—Não!
—Escuta—murmurou, adiantando-se.
Luiza bateu com o pé.
—Oh que homem! Deixa-me! Ámanhã. Adeus.
Vai-te! Ámanhã!
—Ámanhã!—disse elle, baixinho.
E sahiu rapidamente.
Luiza entrou no quarto toda nervosa. E ao passar
diante do espelho ficou surprehendida: nunca se vira
tão linda! Deu alguns passos calada.
Juliana arrumava roupa branca n'um gavetão do
guarda-vestidos.
—Quem tocou ha bocado?—perguntou Luiza.
—Foi o snr. Sebastião. Não quiz entrar; disse
que voltava.
[146]
Tinha dito, com effeito, «que voltava». Mas começava
quasi a envergonhar-se de vir assim todos
os dias, e encontral-a sempre «com uma visita»!
Logo no primeiro dia ficára muito surprehendido
quando Juliana lhe disse: «Está com um sujeito! Um
rapaz novo que já cá esteve hontem!» Quem seria?
Conhecia todos os amigos da casa... Seria algum
empregado da secretaria ou algum proprietario de
minas, o filho do Alonso, talvez, um negocio de Jorge
de certo...
Depois no domingo, á noite, trazia-lhe a partitura
de
Romeu e Julieta, de Gounod, que ella desejava
tanto
ouvir, e quando Juliana lhe disse da varanda «que
tinha sahido com D. Felicidade de carruagem», ficou
muito embaraçado com o grosso volume debaixo do
braço, coçando devagar a barba. Onde teriam ido?
Lembrou-se do enthusiasmo de D. Felicidade pelo
theatro de D. Maria. Mas irem sós, n'aquelle calor de
julho, ao theatro! Emfim, era possivel. Foi a D. Maria.
O theatro, quasi vazio, estava lugubre; aqui e
além, n'algum camarote, uma familia feia perfilava-se,
com cabellos negrissimos carregados de postiços,
gozando soturnamente a sua noite de domingo: na
platéa, á larga nas bancadas vazias, pessoas avelhadas
e inexpressivas escutavam com um ar encalmado
e farto, limpando a espaços, com lenços de sêda,
o suor dos pescoços; na geral, gente de trabalho arregalava
[147]
olhos negros em faces trigueiras e oleosas;
a luz tinha um tom dormente; bocejava-se. E no
palco, que representava uma sala de baile amarella,
um velhote condecorado fallava a uma magrita de
cabellos riçados, sem cessar, com o tom diluido de
uma agua gordurosa e morna que escorre.
Sebastião sahiu. Onde estariam? Soube-o na manhã
seguinte.—Descia o Moinho de Vento, e um visinho,
o Netto, que subia curvado sob o seu guarda-sol,
com o cigarro ao canto do bigode grisalho, deteve-o
bruscamente, para lhe dizer:
—Ó amigo Sebastião, ouça cá. Vi hontem á noite
no Passeio a D. Luiza com um rapaz que eu conheço.
Mas d'onde conheço eu aquella cara? Quem
diabo é?
Sebastião encolheu os hombros.
—Um rapaz alto, bonito, com um ar estrangeirado.
Eu conheço-o. N'outro dia vi-o entrar para lá.
Vossê não sabe?
Não sabia.
—Eu conheço aquella cara. Tenho estado a vêr
se me recordo...—Passava a mão pela testa.—Eu
conheço aquella cara! Elle é de Lisboa. De Lisboa é
elle!
E depois d'um silencio, fazendo girar o guarda-sol:
—E que ha de novo, Sebastião?
Tambem não sabia.
—Nem eu!
E bocejando muito:
[148]
—Isto está uma pasmaceira, homem!
N'essa tarde, ás quatro horas, Sebastião voltou a
casa de Luiza. Estava com «o sujeito!» Ficou então
preoccupado. De certo era algum negocio de Jorge;
porque não comprehendia que ella fallasse, sentisse,
vivesse, que não fosse no interesse da casa e para
maior felicidade de Jorge. Mas devia ser grave então—para
reclamar visitas, encontros, tantas relações.
Tinham pois interesses importantes que elle
não conhecia! E aquillo parecia-lhe uma ingratidão,
e como uma diminuição d'amizade.
A tia Joanna tinha-o achado «macambusio».
Foi ao outro dia que soube que o sujeito era o
primo Bazilio, o Bazilio de Brito. O seu vago desgosto
dissipou-se, mas um receio mais definido veio inquietal-o.
Sebastião não conhecia Bazilio pessoalmente, mas
sabia a chronica da sua mocidade. Não havia n'ella
certamente, nem escandalo excepcional, nem romance
pungente. Bazilio tinha sido apenas um
pandigo
e, como tal, passára methodicamente por todos os
episodios classicos da estroinice lisboeta:—partidas
de monte até de madrugada com ricaços do Alemtejo;
uma tipoia despedaçada n'um sabbado de touros;
ceias repetidas com alguma velha Lola e uma
antiga salada de lagosta; algumas
pégas applaudidas
em Salvaterra ou na Alhandra; noitadas de bacalhau
e Collares nas tabernas fadistas; muita guitarra;
sôcos bem jogados á face attonita d'um policia;
e uma profusão de gemas d'ovos nas glorias
[149]
do entrudo. As unicas mulheres mesmo que appareciam
na sua historia, além das Lolas e das Carmens
usuaes, eram a Pistelli, uma dançarina allemã cujas
pernas tinham uma musculatura d'athleta, e a condessinha
d'Alvim, uma douda, grande cavalleira, que
se separára de seu marido depois de o ter chicotado,
e que se vestia d'homem para bater ella mesmo
em trem de praça do Rocio ao Dá-fundo. Mas isto
bastava para que Sebastião o achasse um
debochado,
um
perdido; ouvira que elle tinha ido para o Brazil
para fugir aos credores; que enriquecera por acaso,
n'uma especulação, no Paraguay; que mesmo na Bahia,
com a corda na garganta, nunca fôra um trabalhador;
e suppunha que a posse da fortuna para
elle, seria apenas um desenvolvimento dos vicios. E
este homem agora vinha vêr a Luizinha todos os
dias, estava horas e horas, seguia-a ao Passeio...
Para que?... Era claro, para a desinquietar!
Ia justamente descendo a rua, dobrado sob a pesada
desconsolação d'estas idéas, quando uma voz
encatarrhoada disse com respeito:
—Ó snr. Sebastião!
Era o Paula dos moveis.
—Viva, snr. João.
O Paula atirou para as pedras da rua um jacto escuro
de saliva, e com as mãos cruzadas debaixo das
abas do comprido casaco de cotim, o tom grave:
—Ó snr. Sebastião, ha doença cá por casa do
snr. Engenheiro?
Sebastião todo surprehendido:
[150]
—Não. Porque?
O Paula fez roncar a garganta, cuspilhou:
—É que tenho visto entrar para cá todos os dias
um sujeito. Imaginei que fosse o medico.
E puxando o escarro:
—D'esses novos da homœopathia!
Sebastião tinha córado.
—Nada—disse.—É o primo de D. Luiza.
—Ah!—fez o Paula.—Pois pensei... Queira
desculpar, snr. Sebastião.
E curvou-se, respeitosamente.
—Já temos fallatorio!—foi pensando Sebastião.
E entrou em casa, descontente.
Morava ao fundo da rua, n'um predio seu, de
construcção antiga, com quintal.
Sebastião era só. Tinha uma fortuna pequena em
inscripções, terras de lavoura para o lado do Seixal,
e a quinta em Almada,—o Rozegal. As duas criadas
eram muito antigas na casa. A Vicencia, a cozinheira,
era uma preta de S. Thomé já do tempo da
mamã. A tia Joanna, a governanta, servia-o havia trinta
e cinco annos; chamava ainda a Sebastião o «menino»;
tinha já as tontices d'uma criança, e recebia sempre
os respeitos d'uma avó. Era do Porto, do
Poârto,
como ella dizia, porque nunca perdera o seu accento
minhôto. Os amigos de Sebastião chamavam-lhe
uma velha de comedia. Era baixinha e gorda, com
um sorriso muito bondoso; tinha os cabellos alvos
como uma estriga, atados no alto n'um rolinho com
um antigo pente de tartaruga; trazia sempre um
[151]
vasto lenço branco muito aceado, traçado sobre o
peito. E todo o dia passarinhava pela casa, com o
seu passinho arrastado, fazendo tilintar os mólhos de
chaves, resmungando proverbios, tomando rapé de
uma caixa redonda, em cuja tampa se lascava o
desenho abonecado da ponte pensil do Porto.
Em toda a casa havia um tom caturra e dôce:
na sala de visitas, quasi sempre fechada, o vasto
canapé, as poltronas tinham o ar empertigado do
tempo do snr. D. José I, e os estofos de damasco
vermelho desbotado lembravam a pompa d'uma côrte
decrepita; das paredes da casa de jantar pendiam
as primeiras gravuras das batalhas de Napoleão, onde
se vê invariavelmente, n'uma eminencia, o cavallo
branco, para o qual galopa desenfreadamente
do primeiro plano um hussard, brandido um sabre.
Sebastião dormia os seus somnos de sete horas, sem
sonhos, n'uma velha barra de pau preto torneado; e
n'uma saleta escura, sobre uma commoda de fecharias
de metal amarello, conservava-se, havia annos,
o padroeiro da casa, S. Sebastião—que se torcia,
cravado de settas, nas cordas que o atavam ao tronco,
á luz d'uma lampada muito cuidada pela tia Joanna,
sob os ruidos subtis dos ratos pelo forro.
A casa condizia com o dono. Sebastião tinha um
genio antiquado. Era solitario e acanhado. Já no latim
lhe chamavam o
pelludo; punham-lhe rabos,
roubavam-lhe
impudentemente as merendas. Sebastião,
que tinha a força d'um gymnasta, offerecia a resignação
d'um martyr.
[152]
Foi sempre reprovado nos primeiros exames do
lyceu. Era intelligente, mas uma pergunta, o reluzir
dos oculos d'um professor, a grande lousa negra
immobilisavam-o; ficava muito embezerrado, a face
inchada e rubra, a coçar os joelhos, o olhar vazio.
Sua mãi, que era da aldêa e que fôra padeira,
muito vaidosa agora das suas inscripções, da sua
quinta, da sua mobilia de damasco, sempre vestida
de sêda, carregada d'anneis, costumava dizer:
—Ora! tem que comer e beber! Estar a affligir
a criança com estudos! Deixa lá, deixa lá!
A inclinação de Sebastião era pela musica. Sua
mãi, por conselhos da mãi de Jorge, sua visinha e
sua intima, tomou-lhe um mestre de piano; logo
desde as primeiras lições, a que ella assistia com
enfeites de velludo vermelho e cheia de joias, o velho
professor Achilles Bentes, d'oculos redondos e
cara de coruja, exclamou excitado com a sua voz
nasal:
—Minha rica senhora! o seu menino é um genio!
É um genio! Ha-de ser um Rossini! É puxar
por elle! É puxar por elle!
Mas era justamente o que ella não queria, era
puxar por elle, coitadinho! Por isso não foi um
Rossini. E todavia o velho Bentes continuava a dizer,
por habito:
—Ha-de ser um Rossini! Ha-de ser um Rossini!
Sómente em lugar de o gritar, brandindo papeis
de musica, murmurava-o, com bocejos enormes de
leão enfastiado.
[153]
Já então os dous rapazes visinhos, Jorge e Sebastião,
eram intimos. Jorge mais vivo, mais inventivo,
dominava-o. No quintal, a brincar, Sebastião
era sempre o
cavallo nas imitações da diligencia, o
vencido nas guerras. Era Sebastião que carregava os
pesos, que offerecia o dorso para Jorge trepar; nas
merendas comia todo o pão, deixava a Jorge toda a
fruta. Cresceram. E aquella amizade sempre igual,
sem amúos, tornou-se na vida d'ambos um interesse
essencial e permanente.
Quando a mãi de Jorge morreu, pensaram mesmo
em viver juntos; habitariam a casa de Sebastião,
mais larga e que tinha quintal; Jorge queria comprar
um cavallo; mas conheceu Luiza no Passeio, e
d'ahi a dous mezes passava quasi todo o seu dia na
rua da Magdalena.
Todo aquelle plano jovial da
Sociedade Sebastião
e Jorge—chamavam-lhe assim, rindo—desabou,
como um castello de cartas. Sebastião teve um grande
pezar.
E era elle, depois, que fornecia os ramos de rosas
que Jorge levava a Luiza, sem espinhos, com
cuidados devotos embrulhados n'um papel de sêda.
Era elle que tratava dos arranjos do «ninho», ia
apressar os estofadores, discutir preços de roupas,
vigiar o trabalho dos homens que pregavam os tapetes,
conferenciar com a inculcadeira, cuidar dos papeis
do casamento!
E á noite, fatigado como um procurador zeloso,
tinha ainda de escutar com um sorriso as expansões
[154]
felizes de Jorge, que passeava pelo quarto até ás
duas horas da noite em mangas de camisa, namorado,
loquaz, brandindo o cachimbo!
Depois do casamento Sebastião sentiu-se muito
só. Foi a Portel visitar um tio, um velho exquisito,
com um olhar de doudo, que passava a existencia
combinando enxertos no pomar, e lendo, relendo o
Eurico. Quando voltou, passado um mez, Jorge
disse-lhe
radioso:
—E sabes, hein? Isto agora é que é a tua casa!
Aqui é que tu vives!
Mas nunca obteve de Sebastião que fosse a sua
casa com uma inteira intimidade. Sebastião batia á
porta, timidamente. Corava diante de Luiza; o antigo
pelludo de latim reapparecia. Jorge luctára para
que elle cruzasse sem ceremonia as pernas, fumasse
cachimbo diante d'ella, não lhe dissesse a todo o
momento:—V. exc.
a, v. exc.
a—meio erguido na
cadeira.
Nunca vinha jantar senão arrastado. Quando Jorge
não estava, as suas visitas eram curtas, cheias
de silencio. Julgava-se gebo, tinha medo de massar!
N'essa tarde, quando elle foi para a sala de jantar,
a tia Joanna veio-lhe perguntar pela Luizinha.
Adorava-a, achava-a um
anjinho, uma
açucena.
—Como está ella? viu-a?
Sebastião corou, não quiz dizer, como na vespera,
«que estava gente, que não tinha entrado»; e
abaixando-se, pondo-se a brincar com as orelhas do
Trajano, o seu velho perdigueiro:
[155]
—Está boa, tia Joanna, está boa. Então
como
ha-de d'estar? Está optima!
Áquella hora Luiza recebia uma carta de Jorge.
Era de Portel, com muitas queixas sobre o calor,
sobre as más estalagens, historias sobre o extraordinario
parente de Sebastião,—saudades e mil beijos...
Não a esperava, e aquella folha de papel cheia
d'uma letra miudinha, que lhe fazia reapparecer vivamente
Jorge, a sua figura, o seu olhar, a sua ternura,
deu-lhe uma sensação quasi dolorosa. Toda a
vergonha dos seus desfallecimentos cobardes, sob os
beijos de Bazilio, veio abrazar-lhe as faces. Que horror
deixar-se abraçar, apertar! No sophá o que elle
lhe dissera, com que olhos a devorára!... Recordava
tudo,—a sua attitude, o calor das suas mãos, a
tremura da sua voz... E machinalmente, pouco e
pouco, ia-se esquecendo n'aquellas recordações, abandonando-se-lhe,
até ficar perdida na deliciosa lassidão
que ellas lhe davam, com o olhar languido, os
braços frouxos. Mas a idéa de Jorge vinha então outra
vez fustigal-a como uma chicotada. Erguia-se
bruscamente, passeava pelo quarto toda nervosa,
com uma vaga vontade de chorar...
—Ah! não! é horroroso, é horroroso!—dizia
só, fallando alto.—É necessario acabar!
Resolveu não receber Bazilio, escrever-lhe, pedir-lhe
[156]
que não voltasse, que partisse! Meditava
mesmo as palavras; seria sêcca e fria, não diria
meu
querido primo, mas simplesmente
primo
Bazilio.
E que faria elle, quando recebesse a carta? Choraria,
coitado!
Imaginava-o só, no seu quarto d'hotel, infeliz e
pallido; e d'aqui, pelos declives da sensibilidade,
passava á recordação da sua pessoa, da sua voz
convincente, das turbações do seu olhar dominante,
e a memoria demorava-se n'aquellas lembranças com
uma sensação de felicidade, como a mão se esquece
acariciando a plumagem dôce d'um passaro raro.
Sacudia a cabeça com impaciencia, como se aquellas
imaginações fossem os ferrões d'insectos importunos:
esforçava-se por pensar só em Jorge; mas as idéas
más voltavam, mordiam-na: e achava-se desgraçada,
sem saber o que queria, com vontades confusas de
estar com Jorge, de consultar Leopoldina, de fugir
para longe, ao acaso. Jesus, que infeliz que era!—E
do fundo da sua natureza de preguiçosa vinha-lhe
uma indefinida indignação contra Jorge, contra Bazilio,
contra os sentimentos, contra os deveres, contra
tudo o que a fazia agitar-se e soffrer. Que a não
seccassem, Santo Deus!
Depois de jantar, á janella da sala, ficou a relêr
a carta de Jorge. Pôz-se a recordar de proposito tudo
o que a encantava n'elle, do seu corpo e das suas
qualidades. E juntava ao acaso argumentos, uns de
honra, outros de sentimento, para o amar, para o
respeitar. Tudo era por elle estar fóra, na provincia!
[157]
Se elle alli estivesse ao pé d'ella! Mas tão longe, e
demorar-se tanto! E ao mesmo tempo, contra sua
vontade, a certeza d'aquella ausencia dava-lhe uma
sensação de liberdade; a idéa de se poder mover á
vontade nos desejos, nas curiosidades, enchia-lhe o
peito d'um contentamente largo, como uma lufada
de independencia.
Mas emfim, vamos, de que lhe servia estar livre,
só?—E de repente tudo o que poderia fazer,
sentir, possuir, lhe apparecia n'uma perspectiva longa
que fulgurava: aquillo era como uma porta, subitamente
aberta e fechada, que deixa entrever, n'um
relance, alguma cousa de indefinido, de maravilhoso,
que palpita e faisca.—Oh! estava douda, de certo!
Escureceu. Foi para a sala, abriu a janella; a
noite estava quente e espessa, com um ar d'electricidade
e de trovoada. Respirava mal, olhava para o
céo, desejando alguma cousa fortemente, sem saber
o quê.
O moço do padeiro em baixo, como sempre, tocava
o fado; aquelles sons banaes entravam-lhe agora
na alma, com a brandura d'um bafo quente e a melancolia
de um gemido.
Encostou a cabeça á mão com uma lassidão. Mil
pensamentosinhos corriam-lhe no cerebro como os
pontos de luz que correm n'um papel que se queimou;
lembrava-lhe sua mãi, o chapéo novo que lhe
mandára madame François, o tempo que faria em
Cintra, a doçura das noites quentes sob a escuridão
das ramagens...
[158]
Fechou a janella, espreguiçou-se; e sentada na
causeuse, no seu quarto, ficou alli, n'uma
immobilidade,
pensando em Jorge, em lhe escrever, em lhe
pedir que viesse. Mas bem depressa aquelle scismar
começou a quebrar-se a cada momento como uma
tela que se esgaça em rasgões largos, e por traz
apparecia logo com uma intensidade luminosa e forte
a idéa do primo Bazilio.
As viagens, os mares atravessados tinham-no tornado
mais trigueiro; a melancolia da separação dera-lhe
cabellos brancos. Tinha soffrido por ella!—dissera.—E
no fim onde estava o mal? Elle jurára-lhe
que aquelle amor era casto, passando-se todo na
alma. Tinha vindo de Paris, o pobre rapaz, assim
lh'o jurára, para a vêr, uma semana, quinze dias. E
havia de dizer-lhe:—Não voltes, vai-te?
—Quando a senhora quizer o chá...—disse
da porta do quarto Juliana.
Luiza deu um suspiro alto como acordando. Não;
que trouxesse a lamparina, mais tarde.
Eram dez horas. Juliana foi tomar o seu chá, á
cozinha. O lume ia-se apagando, o candieiro de petroleo
estendia nos cobres dos tachos reflexos avermelhados.
—Hoje houve cousa, snr.
a Joanna—disse Juliana
sentando-se.—Está toda no ar! E é cada suspiro!
Alli houve-a e grossa.
Joanna, do outro lado, com os cotovêlos na
mesa e a face sobre os punhos, pestanejava de
somno.
[159]
—A snr.
a Juliana, tambem, deita tudo para o
mal—disse.
—É que era necessario ser tola, snr.
a Joanna!
Calou-se, cheirou o assucar; era um dos seus
despeitos; gostava d'elle bem refinado—e aquelle
assucar mascavado e grosso, que punha no chá um
gosto de formigas, exasperava-a.
—Este é peor que o do mez passado! Para uma
pobre de Christo tudo é bom!—rosnou muito amargamente.
E depois d'uma pausa repetiu:
—É que era necessario ser tola, snr.
a Joanna!
A cozinheira disse preguiçosamente:
—Cada um sabe de si...
—E Deus de todos—suspirou Juliana.
E ficaram caladas.
Luiza tocou a campainha em baixo.
—Que teremos nós agora? Está com as cocegas!
Desceu. Voltou com o regador, muito enfastiada:
—Quer mais agua! Olha a mania, pôr-se agora
a chafurdar á meia noite! Sempre a gente as vê...
Foi encher o regador, e em quanto a agua da
torneira cantava no fundo de lata:
—E diz que lhe faça ámanhã ao almoço um bocado
de presunto frito, do salgado. Quer picantes!
E com muito escarneo:
—Sempre a gente vê cousas! Quer picantes!
Á meia noite a casa estava adormecida e apagada.
Fóra, o céo ennegrecera mais; relampejou, e um
trovão secco estalou, rolou.
[160]
Luiza abriu os olhos estremunhada; começára a
cahir uma chuva grossa e sonora; a trovoada arrastava-se,
ao longe. Esteve um momento escutando as
goteiras que cantavam sobre o lagedo; a alcova abafava,
descobriu-se; o somno tinha fugido, e de costas,
o olhar fixo na vaga claridade que vinha de fóra
da lamparina, seguia o tic-tac do relogio. Espreguiçou-se,
e uma certa idéa, uma certa visão foi-se
formando no seu cerebro, completando-se, tão nitida,
quasi tão visivel, que se revirou na cama devagar,
estirou os braços, lançou-os em roda do travesseiro,
adiantando os beiços seccos—para beijar uns cabellos
negros onde reluziam fios brancos.
Sebastião tinha dormido mal. Acordou ás seis horas
e desceu ao quintal em chinellas. Uma porta envidraçada
da sala de jantar abria para um terraçosinho,
largo apenas para tres cadeiras de ferro pintado
e alguns vasos de cravos; d'alli, quatro degraus
de pedra desciam para o quintal; era uma horta
ajardinada, muito cheia, com canteirinhos de flôres,
saladas muito regadas, pés de roseiras junto dos muros,
um poço e um tanque debaixo d'uma parreirita,
e arvores; terminava por outro terraço assombreado
d'uma tilia, com um parapeito para uma rua baixa
e solitaria; defronte corria um muro de quintal
muito caiado. Era um sitio recolhido, d'uma paz
[161]
aldeã. Muitas vezes Sebastião, de madrugada, ia para
alli fumar o seu cigarro.
Era uma manhã deliciosa. Havia um ar transparente
e fino; o céo arredondava-se a uma grande altura
com o azulado de certas porcelanas velhas e,
aqui e além, uma nuvemzinha algodoada, mollemente
enrolada, côr de leite; a folhagem tinha um verde
lavado, a agua do tanque uma crystallinidade fria;
passaros chilreavam de leve, com vôos rapidos.
Sebastião estava debruçado para a rua, quando a
ponteira d'uma bengala, passos vagarosos cortaram
o silencio fresco. Era um visinho de Jorge, o Cunha
Rosado, o doente d'intestinos; arrastava-se, curvado,
abafado n'um cachenez e n'um paletot côr de pinhão,
com a barba grisalha desmazelada, a crescer.
—Já a pé, visinho!—disse Sebastião.
O outro parou, ergueu a cabeça lentamente.
—Oh Sebastião!—disse com uma voz plangente—Ando
a passear os meus leites, homem!
—A pé?
—Ao principio ia na burrita até fóra de portas,
mas diz que me fazia bem o passeiosito a
pé...
Encolheu os hombros com um gesto triste de duvida,
de desconsolação.
—E como vai isso?—perguntou Sebastião, muito
debruçado para a rua, com affecto.
O Cunha teve um sorriso desolado nos seus beiços brancos:
—A desfazer-se!
[162]
Sebastião tossiu, embaraçado, sem achar uma
consolação.
Mas o doente, com as duas mãos apoiadas á bengala,
uma subita radiação d'interesse no olhar amortecido:
—Ó Sebastião, um rapaz alto, que eu tenho visto
todos estes dias entrar para casa do Jorge, é o Bazilio
de Brito, pois não é? O primo da mulher? o filho
do João de Brito?
—É, sim, porque?
O Cunha fez:
Ah! ah! com uma grande satisfação.
—Bem dizia eu!—exclamou.—Bem dizia eu!
E aquella teimosa que não! que não!...
E então explicou com uma tagarellice subita, e
cansaços de voz:
—O meu quarto é para a rua, e todos os dias,
como eu estou quasi sempre pela janella para espairecer...
tenho visto aquelle rapaz, a modo estrangeirado,
entrar para lá... todos os dias! Este é o
Bazilio de Brito! disse eu. Mas minha mulher que
não! que não!... Que diabo, homem! Eu tinha quasi
a certeza... Não conheço eu outra cousa!...
Até elle esteve para casar com a D. Luiza. Oh! Eu
sei essa historia na ponta dos dedos... Morava ella
na rua da Magdalena!...
Sebastião disse vagamente:
—Pois é, é o Brito...
—Bem dizia eu!
Ficou um momento immovel, fitando o chão, e
refazendo uma voz dolente:
[163]
—Pois, vou-me arrastando até casa.
Suspirou. E arregalando os olhos:
—Quem me dera a sua saude, Sebastião!
E dizendo adeus, com um gesto da mão calçada
de luva de casimira escura, afastou-se, curvado, rente
do muro, conchegando com o braço ao ventre, o seu
largo paletot côr de pinhão.
Sebastião entrou preoccupado. Todo o mundo começava
a reparar, hein! Pudera! Um rapaz novo,
janota, vir todos os dias de trem, estar duas, tres
horas! Uma visinhança tão chegada, tão maligna!...
Ao começo da tarde sahiu. Teve vontade de procurar
Luiza; mas sem saber porque, sentia um grande
acanhamento; como que receava encontral-a differente
ou com outra expressão... E subia a rua devagar,
sob o seu guarda-sol, hesitando, quando um
coupé que descia a trote largo veio parar á porta de
Luiza.
Um sujeito saltou rapidamente, atirou o charuto,
entrou. Era alto, com um bigode levantado, trazia
uma flôr no peito; devia ser o primo Bazilio, pensou.
O cocheiro limpou o suor da testa, e, cruzando
as pernas, pôz-se a enrolar o cigarro.
Ao ruido do trem o Paula postou-se logo á porta,
de boné carregado, as mãos enterradas no bolso,
com olhares de revés: a carvoeira defronte, immunda,
disforme de obesidade e de prenhez, veio embasbacar
com um pasmo lôrpa na face oleosa; a
criada do doutor abriu precipitadamente a vidraça.
Então o Paula atravessou rapidamente a rua faiscante
[164]
de sol, entrou no estanque; d'ahi a um momento
appareceu á porta, com a estanqueira, de carão viuvo;
e cochichavam, cravavam olhares perfidos nas
varandas de Luiza, no coupé! O Paula, d'alli, arrastando
as chinellas de tapete, foi segredar com a carvoeira,
provocou-lhe uma risada que lhe sacudia a
massa do seio; e foi emfim estacar á sua porta entre
um retrato de D. João VI e duas velhas cadeiras de
couro, assobiando com jubilo. No silencio da rua ouvia-se
n'um piano, a compasso de estudo, a
Oração
d'uma virgem.
Sebastião ao passar olhou machinalmente para as
janellas de Luiza.
—Rico calor, snr. Sebastião!—observou o Paula
curvando-se—É um regalo estar á fresca!
Luiza e Bazilio estavam muito tranquillos, muito
felizes na sala, com as portadas meio cerradas, n'uma
penumbra dôce. Luiza tinha apparecido de roupão
branco, muito fresca, com um bom cheiro de
agua d'alfazema.
—Eu venho assim mesmo—disse ella.—Não
faço ceremonias.
Mas assim é que ella estava linda! Assim é que
a queria sempre!—exclamava Bazilio muito contente,
como se aquelle roupão de manhã fosse já
uma promessa da sua nudez.
[165]
Vinha muito tranquillo, affectava um tom de parente.
Não a inquietou com palavras vehementes,
nem com gestos desejosos: fallou-lhe do calor, d'uma
zarzuela que vira na vespera, de velhos amigos
que encontrára, e disse-lhe apenas que tinha sonhado
com ella.
O que? Que estavam longe, n'uma terra distante,
que devia ser a Italia, tantas as estatuas que havia
nas praças, tantas as fontes sonoras que cantavam
nas bacias de marmore; era n'um jardim antigo,
sobre um terraço classico; flôres raras transbordavam
de vasos florentinos; pousando sobre as balaustradas
esculpidas, pavões abriam as caudas; e
ella arrastava devagar sobre as lages quadradas a
cauda longa do seu vestido de velludo azul. De resto,
dizia, era um terraço como o de S. Donato, a
villa do principe Demidoff,—porque lembrava sempre
as suas intimidades illustres, e não se descuidava
de fazer reluzir a gloria das suas viagens.
E ella, tinha sonhado?
Luiza córou.—Não, tinha tido muito medo da
trovoada. Tinha ouvido a trovoada, elle?
—Estava a cear no Gremio, quando trovejou.
—Costumas cear?
Elle teve um sorriso infeliz.—Cear! se se
podia chamar cear ir ao Gremio rilhar um bife corneo
e tragar um Collares peçonhento!
E fitando-a:
—Por tua causa, ingrata!
Por sua causa?
[166]
—Por quem, então? Porque vim eu a Lisboa?
Porque deixei Paris?
—Por causa dos teus negocios...
Elle encarou-a severamente:
—Obrigado—disse, curvando-se até ao chão.
E a grandes passadas pela sala soprava violentamente
o fumo do seu charuto.
Veio sentar-se bruscamente ao pé d'ella.—Não,
realmente era injusta. Se estava em Lisboa, era por
ella. Só por ella!
Fez uma voz meiga, perguntou-lhe se lhe tinha
realmente um bocadinho d'amor muito pequenino,
assim...—Mostrava o comprimento da unha.
Riram.
—Assim, talvez.
E o peito de Luiza arfava.
Elle então examinou-lhe as unhas; admirou-lh'as
e aconselhou-lhe o verniz que usam as
cocottes, que
lhes dá um lustre polido; ia-se apossando da sua
mão, pôz-lhe um beijo na ponta dos dedos; chupou
o dedo minimo, jurou que era muito dôce; arranjou-lhe
com um contacto muito timido uns fios de cabello
que se tinham soltado,—e, disse, tinha um pedido
a fazer-lhe!
Olhava-a com uma supplicação.
—Que é?
—É que venhas commigo ao campo. Deve estar
lindo no campo!
Ella não respondeu; dava pancadinhas leves nas
pregas molles do roupão.
[167]
—É muito simples—acrescentou elle.—Tu
vaes-me encontrar a qualquer parte, longe d'aqui,
está claro. Eu estou á espera de ti com uma carruagem,
tu saltas para dentro e
fouette,
cocher!
Luiza hesitava.
—Não digas que não.
—Mas onde?
—Onde tu quizeres. A Paço d'Arcos, a Loires,
a Queluz. Dize que sim.
A sua voz era muito urgente, quasi ajoelhára.
—Que tem? É um passeio d'amigos, d'irmãos.
—Não! isso não!
Bazilio zangou-se, chamou-lhe
beata. Quiz sahir.
Ella veio tirar-lhe o chapéo da mão, muito meiga,
quasi vencida.
—Talvez, veremos—dizia.
—Dize que sim!—insistia.—Sê boa rapariga!
—Pois sim, ámanhã veremos, ámanhã fallaremos.
Mas no dia seguinte, muito habilmente, Bazilio
não fallou no passeio, nem no campo. Não fallou
tambem do seu amor, nem dos seus desejos. Parecia
muito alegre, muito superficial; tinha-lhe trazido o
romance de Belot,
A mulher de fogo. E sentando-se
ao piano, disse-lhe canções de
café concerto, muito
picantes; imitava a rouquidão acre e canalha das cantoras;
fel-a rir.
Depois fallou muito de Paris, contou-lhe a moderna
chronica amorosa, anecdotas, paixões
chics.
Tudo se passava com duquezas, princezas, d'um modo
dramatico e sensibilisador, ás vezes jovial, sempre
[168]
cheio de delicias. E, de todas as mulheres de
que fallava, dizia recostando-se: Era uma mulher distinctissima,
tinha naturalmente o seu amante...
O adulterio apparecia assim um dever aristocratico.
De resto a virtude parecia ser, pelo que elle
contava, o defeito d'um espirito pequeno, ou a occupação
reles d'um temperamento burguez...
E quando sahiu, disse, como recordando-se:
—Sabes que estou com minhas idéas de partir?...
Ella perguntou, um pouco descorada:
—Porque?
Bazilio disse, muito indifferente:
—Que diabo faço eu aqui?...
Esteve um momento a fitar o tapete, deu um suspiro,
e como dominando-se:
—Adeus, meu amor...
E sahiu.
Quando n'essa tarde Luiza entrou na sala de jantar,
levava os olhos vermelhos.
Foi ella no dia seguinte que fallou do campo.
Queixou-se do contínuo calor, da
sécca de Lisboa.
Como devia estar lindo em Cintra!
—És tu que não queres—acudiu elle. —Podiamos
fazer um passeio adoravel.
Mas tinha medo, podiam vêr...
—O quê! N'um coupé fechado? Com os
stores
descidos?
Mas então era peor que estar n'uma sala, era abafar
n'uma bocêta!
[169]
Mas não! Iam a uma quinta. Podiam ir ás
Alegrias,
á quinta d'um amigo d'elle que estava em
Londres. Só viviam lá os caseiros, era ao pé dos Olivaes,
era lindo! Bellas ruas de loureiros, sombras
adoraveis. Podiam levar gelo, champagne...
—Vem!—disse bruscamente, tomando-lhe as
mãos.
Ella córou.—Talvez. No domingo veria.
Bazilio conservava-lhe as mãos presas. Os seus
olhos encontraram-se, humedeceram-se. Ella sentiu-se
muito perturbada; desprendeu as mãos; foi abrir as
vidraças ambas, dar á sala uma claridade larga como
uma publicidade; sentou-se n'uma cadeira ao pé do
piano, receando a penumbra, o sophá, todas as cumplicidades;
e pediu-lhe que cantasse alguma cousa,
porque já temia as palavras, tanto como os silencios!
Bazilio cantou a
Medjé, a melodia de Gounod, tão
sensual e perturbadora. Aquellas notas quentes passavam-lhe
na alma como bafos d'uma noite electrica.
E quando Bazilio sahiu, ficou sentada, quebrada,
como depois d'um excesso.
Sebastião tinha estado nos ultimos tres dias em
Almada, na quinta do Rozegal, onde trazia obras.
Voltára na segunda-feira cedo, e, pelas dez horas,
sentado no poial da janella de jantar que abria para
[170]
o terraçosinho, esperava o seu almoço, brincando
com o
Rolim—o seu gato, amigo e confidente da
illustre Vicencia, nedio como um prelado, ingrato
como um tyranno.
A manhã começava a aquecer; o quintal estava
já cheio de sol; na agua do tanque, sob a parreira,
claridades espelhadas e tremulas faiscavam. Nas duas
gaiolas os canarios cantavam estridentemente.
A tia Joanna, que andava a arranjar a mesa do
almoço muito calada, poz-se então a dizer com a sua
vozinha arrastada e minhôta:
—Ora esteve ahi hontem a Gertrudes, a do doutor,
com uns palratorios, com umas tontices!...
—A respeito de quê, tia Joanna?—perguntou
Sebastião.
—A respeito d'um rapaz, que diz que vai agora
todos os dias a casa da Luizinha.
Sebastião ergueu-se logo:
—Que disse ella, tia Joanna?
A velha assentava a toalha devagar com a sua
mão gorducha espalmada:
—Esteve ahi a palrar. Quem seria, quem não
seria? Diz que é um perfeito rapaz. Vem todos os
dias. Vem de trem, vai de trem... No sabbado que
estivera até quasi á noitinha. E cantou-se na sala,
diz que uma voz que nem no theatro...
Sebastião interrompeu-a, impaciente:
—É o primo, tia Joanna. Então quem havia de
ser? É o primo que chegou do Brazil.
A tia Joanna teve um bom sorriso.
[171]
—Eu logo vi que era cousa de parente. Pois diz
que é um perfeito rapaz! E todo janota!
E sahindo para a cozinha, devagar:
—Eu logo vi que era parente, logo disse!...
Sebastião almoçou inquieto. Positivamente a visinhança
já se punha a mexericar, a commentar! Estava-se
a armar um escandalo!—E, assustado, decidiu-se
logo a ir consultar Julião.
Descia a rua de S. Roque para casa d'elle, quando
o viu, que subia devagar pela sombra, com um rolo
de papel debaixo do braço, uma calça branca enxovalhada,
o ar suado.
—Ia a tua casa, homem!—disse Sebastião logo.
Julião estranhou a excitação desusada da sua voz.
Havia alguma novidade? Que era?
—Uma do diabo!—exclamou, baixo, Sebastião.
Estavam parados ao pé da confeitaria. Na vidraça,
por traz d'elles, emprateleirava-se uma exposição
de garrafas de malvasia com os seus letreiros
muito coloridos, transparencias avermelhadas de gelatinas,
amarellidões enjoativas de dôces d'ovos, e
quéques d'um castanho escuro tendo espetados cravos
tristes de papel branco ou côr de rosa. Velhas
natas lividas amollentavam-se no ôco dos folhados;
ladrilhos grossos de marmelada esbeiçavam-se ao calor;
as empadinhas de marisco agglomeravam as suas
crôstas resequidas. E no centro, muito proeminente
n'uma travessa, enroscava-se uma lampreia d'ovos
medonha e bojuda, com o ventre d'um amarello ascoroso,
o dorso malhado d'arabescos d'assucar, a
[172]
bocca escancarada: na sua cabeça grossa esbogalhavam-se
dous horriveis olhos de chocolate; os seus
dentes d'amendoa ferravam-se n'uma tangerina de
chila; e em torno do monstro espapado moscas esvoaçavam.
—Vamos alli para o café—disse Julião.—Aqui
na rua arde-se!
—Tenho estado apoquentado—ia dizendo Sebastião.—Muito
apoquentado! Quero fallar-te.
No café o papel azul ferrete e as meias portas fechadas
abatiam a aspera intensidade da luz, davam
uma frescura calada.
Foram-se sentar ao fundo. Do outro lado da rua
as fachadas muito caiadas brilhavam com uma radiação
faiscante. Por traz do balcão, onde reluziam garrafas
de crystal, um criado de jaquetão, estremunhado
e esguedelhado, cabeceava de somno. Um passaro
chilreava dentro; sentia-se o bater espaçado das bolas
do bilhar através d'uma porta de baeta verde;
ás vezes o pregão de um cangalheiro na rua sobresahia,
e—todos estes sons, por momentos, se perdiam
no ruido forte do descer d'um trem travado.
Defronte d'elles um sujeito de ar debochado lia
um jornal; as suas melenas grisalhas collavam-se a
um craneo amarellado; o bigode tinha tons queimados
do cigarro; e das noitadas ficára-lhe uma vermelhidão
inflammada nas palpebras. De vez em quando
erguia preguiçosamente a cabeça, atirava para o chão
areado um jacto escuro de saliva, dava uma sacudidella
triste ao jornal e tornava a fital-o com um olhar
[173]
infeliz. Quando os dous entraram e pediram carapinhadas,
abaixou-lhes gravemente a cabeça.
—Mas o que é então?—perguntou logo Julião.
Sebastião chegou-se mais para elle:
—É por causa lá da nossa gente. Por causa do
primo—disse baixo.
E acrescentou:
—Tu vistel-o, hein?
A lembrança repentina da sua humilhação na sala
de Luiza trouxe um rubor ás faces de Julião. Mas
muito orgulhoso, disse seccamente:
—Vi.
—E então?
—Pareceu-me um asno!—exclamou, não se
contendo.
—E um extravagante—disse com terror Sebastião—Não
te pareceu, hein?
—Pareceu-me um asno—repetiu.—Umas maneiras,
uma affectação, um alambicado, a olhar muito
para as meias, umas meias ridiculas de mulher...
E com um certo sorriso azedado:
—Eu mostrei-lhe francamente as minhas botas.
Estas—disse, apontando para os botins mal engraxados—tenho
muita honra n'ellas, são de quem
trabalha...
Porque publicamente costumava gloriar-se d'uma
pobreza, que intimamente não cessava de o humilhar.
E remexendo devagar a sua carapinhada:
[174]
—Uma besta!—resumiu.
—Tu sabes que elle foi namoro da Luiza?—disse
Sebastião, baixo, como assustado da gravidade
da confidencia.
E respondendo logo ao olhar surprehendido de
Julião:
—Sim. Ninguem o sabe. Nem Jorge. Eu soube-o
ha pouco, ha mezes. Foi. Estiveram para casar. Depois
o pai falliu, elle foi para o Brazil, e de lá escreveu
a romper o casamento.
Julião sorriu, e encostando a cabeça á parede:
—Mas isso é o enredo da
Eugenia Grandet, Sebastião!
Estás-me a contar o romance de Balzac!
Isso é a
Eugenia Grandet!
Sebastião fitou-o espantado.
—Ora! não se póde fallar serio comtigo. Dou-te
a minha palavra d'honra—acrescentou vivamente.
—Vá, Sebastião, vá, dize.
Houve um silencio. O sujeito calvo, agora, contemplava
o estuque do tecto sujo do fumo dos cigarros
e do pousar das moscas; e, com a mão sapuda,
de tom pegajoso, cofiava amorosamente as rêpas. No
bilhar vozes altercavam.
Sebastião então, como tomado d'uma resolução,
disse bruscamente:
—E agora vai lá todos os dias, não sahe de lá!
Julião afastou-se na banqueta e encarou-o:
—Tu queres-me dar a entender alguma cousa,
Sebastião?
E com uma vivacidade quasi jovial:
[175]
—O primo atira-se?
Aquella palavra escandalisou Sebastião.
—Ó Julião!—E severamente:—Com essas cousas
não se brinca!
Julião encolheu os hombros.
—Mas está claro que se atira!—exclamou.—És
de bom tempo ainda! Está claro que sim! Namorou-a
solteira, agora quel-a casada!
—Falla baixo—acudiu Sebastião.
Mas o criado dormitava, e o sujeito calvo tinha
recahido na sua leitura funebre.
Julião baixou a voz:
—Mas é sempre assim, Sebastião. O primo Bazilio
tem razão; quer o prazer sem a responsabilidade!
E quasi ao ouvido d'elle:
—É de graça, amigo Sebastião! É de graça! Tu
não imaginas que influencia isto tem no sentimento!
Riu-se. Estava radioso; as palavras, as pilherias
vinham-lhe com abundancia:
—Ha um marido que a veste, que a calça, que
a alimenta, que a engomma, que a vela se está
doente, que a atura se ella está nervosa, que tem
todos os encargos, todos os tedios, todos os filhos,
todos, todos os que vierem, sabes a lei... Por consequencia
o primo não tem mais que chegar, bater
ao ferrolho, encontra-a aceada, fresca, appetitosa á
custa do marido, e...
Teve um risinho, recostou-se com uma grande
satisfação, enrolando deliciosamente o cigarro, regosijando-se
no escandalo.
[176]
—É optimo!—acrescentou.—Todos os primos
raciocinam assim. Bazilio é primo, logo... Sabes o
syllogismo, Sebastião! Sabes o syllogismo, menino!—gritou,
dando-lhe uma palmada na perna.
—É o diabo—murmurou Sebastião cabisbaixo.
Mas revoltando-se contra a suspeita que o ia dominando:
—Mas tu suppões que uma rapariga de bem...
—Eu não supponho nada!—acudiu Julião.
—Falla baixo, homem!
—Eu não supponho nada—repetiu Julião baixinho.—Eu
affirmo o que elle faz. Agora ella...
E acrescentou com seccura:
—Como é uma rapariga honesta...
—Se é!—exclamou Sebastião, batendo uma
punhada na pedra da mesa.
—Prompto!—cantou arrastadamente o moço.
O velho calvo ergueu-se logo; mas vendo que o
criado se recolhia ao balcão bocejando, e que os
dous continuavam a remexer a sua carapinhada, encostou
os cotovêlos á mesa, salivou para longe, e
puxando o jornal deixou-lhe cahir em cima um olhar
desolado.
Sebastião disse, então, com tristeza:
—A questão não é por ella. A questão é pela
visinhança.
Ficaram um momento calados. A altercação de
vozes no bilhar crescia.
—Mas—disse Julião, como sahindo d'uma reflexão—a
visinhança? Como a visinhança?
[177]
—Sim, homem! Vêem entrar para lá o rapaz.
Vem de tipoia, faz um escandalo na rua. Já se falla.
Já vieram com mexericos á tia Joanna. Ha dias encontrei
o Netto que reparou. O Cunha tambem. O
homem dos trastes, em baixo, não se faz nada que
elle não dê fé: são umas linguas de tremer. Ha dias
ia eu a passar quando o primo se apeou da carruagem
para entrar, e foram logo conciliabulos na rua,
olhadellas para a janella, o diabo! Vai lá todos os
dias. Sabem que o Jorge está no Alemtejo... Está
duas e tres horas. É muito serio, é muito serio!
—Mas ella então é tola!
—Não vê o mal...
Julião encolheu os hombros, duvidando.
Mas a porta de baeta do bilhar abriu-se; um homem
herculeo, de bigode negro, muito escarlate, sahiu
bruscamente, e parando, segurando a porta aberta,
gritou para dentro:
—E fique sabendo que havia d'encontrar homem!
Uma voz grossa, do bilhar, respondeu-lhe uma
obscenidade.
O sujeito herculeo atirou a porta, furioso; atravessou
o café resfolegando, apopletico; um rapaz
chupado, de jaquetão de inverno e calça branca, seguia-o,
com um ar gingado.
—O que eu devia fazer—exclamava o agigantado,
brandindo o punho—era quebrar a cara áquelle
pulha!
O rapaz chupado, dizia, com doçura e servilismo,
bamboleando-se:
[178]
—Questões não servem para nada, sô Corrêa!
—É que sou muito prudente—berrou o herculeo.—É
que me lembro que tenho mulher e filhos! Senão
bebia-lhe o sangue!
E sahindo, a sua voz roncante perdeu-se no rumor
da rua.
O criado muito pallido, tremia dentro do balcão;
e o sujeito calvo, que erguera a cabeça, teve um
sorriso de tedio, e retomou tristemente o jornal.
Sebastião, então, disse reflectindo:
—Não te parece que seria bom avisal-a?
Julião encolheu os hombros, soltou uma baforada
de fumo.
—Dize alguma cousa!—implorou Sebastião—Tu
não ias fallar-lhe, hein?
—Eu?—exclamou Julião com um aspecto que
repellia a idéa.—Eu! Estás doudo!
—Mas que te parece, emfim?
E a voz de Sebastião tinha quasi uma afflicção.
Julião hesitou:
—Vai, se queres. Dize-lhe que se tem reparado...
Emfim, eu não sei, meu amigo!
E pôz-se a chupar o seu cigarro.
Aquelle mutismo affectou Sebastião. Disse com
desconsolação:
—Homem, vim-te pedir um conselho...
—Mas que diabo queres tu?—E a voz de Julião
irritava-se.—A culpa é d'ella. É d'ella!—insistiu,
vendo o olhar de Sebastião.—É uma mulher de vinte
e cinco annos, casada ha quatro, deve saber que
[179]
se não recebe todos os dias um peralvilho, n'uma
rua pequena, com a visinhança a postos! Se o faz,
é porque lhe agrada.
—Ó Julião!—disse muito severamente Sebastião.
E dominando-se, com a voz commovida:
—Não tens razão, não tens razão!
Calou-se muito magoado.
Julião levantou-se.
—Amigo Sebastião, eu digo o que penso, tu fazes
o que entendes.
Chamou o criado.
—Deixa—disse Sebastião precipitadamente, pagando.
Iam sahir. Mas então o sujeito calvo, atirando o
jornal, arremessou-se para a porta, abriu-a, curvou-se,
e estendeu a Sebastião um papel enxovalhado.
Sebastião, surprehendido, leu alto, machinalmente:
«O abaixo assignado, antigo empregado da nação,
reduzido á miseria...»
—Fui intimo amigo do nobre duque de Saldanha!—gemeu
chorosamente, com uma rouquidão,
o sujeito calvo.
Sebastião córou, comprimentou, metteu-lhe na
mão duas placas de cinco tostões, discretamente.
O sujeito dobrou profundamente o espinhaço, e
declamou com uma voz cava:
—Mil agradecimentos a v. exc.
a, snr. conde!
V
A manhã estava abrazadora. Um pouco depois do
meio dia, Joanna, estirada n'uma velha cadeira de
vime da ilha da Madeira que havia na cozinha, dormitava
a sésta. Como madrugava muito, áquella hora
da calma vinha-lhe sempre uma quebreira.
As janellas estavam cerradas ao sol faiscante; as
panellas no lume faziam um
ron-ron dormente; e toda
a casa, muito silenciosa, parecia amodorroada no
amollecimento do calor torrido, quando Juliana entrou
como uma rajada, atirou para o chão, furiosa,
uma braçada de roupa suja, e gritou:
—Raios me partam se não ha um escandalo
n'esta casa que vai tudo raso!
Joanna deu um salto estremunhada.
—Quem quer as cousas em ordem olha por ellas!—berrava
[182]
a outra com os olhos injectados.—Não
é estar todo o dia na sala a palrar com as visitas!
A cozinheira foi fechar a porta precipitadamente,
já assustada.
—Que foi, snr.
a Juliana, que foi?
—Está com a mosca! Tem o sangue a ferver!
Sangrias! sangrias! Tem peguilhado por tudo! Não
estou para a aturar, não estou!
E batia o pé com phrenesi.
—Mas que foi? que foi?
—Diz que os collarinhos tinham pouca gomma,
pôz-se a despropositar! Estou farta de a aturar! Estou
farta! Estou até aqui!—bradava, puxando a
pelle engelhada da garganta.—Pois que me não faça
sahir de mim! Que me vou, e pespego-lhe na cara
por quê! Desde que aqui temos homem e pouca
vergonha, boas noites!... Quem quizer que se metta
em alhadas...
—Ó snr.
a Juliana, pelo amor de Deus! Jesus!—E
a Joanna apertava a cabeça nas mãos.—Ai, se
a senhora ouve!
—Que ouça, digo-lh'o na cara! Estou farta! estou
farta!
Mas, de repente, fez-se branca como a cal, cahiu
sobre a cadeira de vime com as duas mãos contra
o coração, os olhos em alvo.
—Snr.
a Juliana!—gritou Joanna—Snr.
a Juliana!
Falle!
Borrifou-a d'agua; sacudia-a, anciosamente.
[183]
—Nossa Senhora nos valha! Nossa Senhora nos
valha! Está melhor? Falle!
Juliana deu um suspiro longo, d'allivio, cerrou
as palpebras. E arquejava devagarinho, muito prostrada.
—Como se sente? Quer um caldinho? É fraqueza,
ha-de ser fraqueza...
—Foi a pontada—murmurou Juliana.
Ai! aquelles phrenesis matavam-na!—dizia a
cozinheira, remexendo-lhe o caldo, muito pallida
tambem.—A gente tinha d'aturar os amos! Que tomasse
a sustancia, que socegasse!...
N'aquelle momento Luiza abriu a porta. Vinha
em collete e saia branca.
Que barulho era aquelle?
—A snr.
a Juliana que lhe tinha dado uma cousa,
quasi desmaiára...
—Foi a pontada—balbuciou Juliana.
E erguendo-se, com um esforço:
—Se a senhora não precisa nada, vou ao medico...
—Vá, vá!—disse Luiza logo. E desceu.
Juliana pôz-se a tomar o seu caldo com um vagar
moribundo. Joanna consolava-a baixo:—Tambem,
a snr.
a Juliana arrenegava-se por qualquer cousa.
E quando a gente tem pouca saude não ha nada
peor que emphrenesiar-se...
—É que não imagina!—e abafava a voz arregalando
os olhos—Tem estado de não se poder aturar!
Está-se a vestir que nem para uma partida!
[184]
Amarfanhou uns poucos de collares, atirou-os para o
chão, que eu engommava que era uma porcaria, que
não servia para nada... Ai! Estou farta!—repetia—Estou
farta!
—É ter paciencia! Todos tem a sua cruz!
Juliana teve um sorriso livido, ergueu-se com um
grande
ai!, escabichou os dentes, apanhou a roupa
suja, e subiu ao sotão.
D'ahi a pouco, de luvas pretas, muito amarella,
sahiu.
Ao dobrar a esquina da rua, defronte do estanque,
parou indecisa. Até ao medico era um estirão!...
E estava, que lhe tremiam as pernas!... Mas tambem,
largar tres tostões para trem!...
—Pst, pst!—fez do lado uma voz dôce.
Era a estanqueira, com o seu longo vestido de
luto tingido, o seu sorriso desconsolado.
Que era feito da snr.
a Juliana? a dar o seu passeio,
hein?
Gabou-lhe a sombrinha preta de cabo d'osso.—De
muito gosto—disse.—E como ia de saude?
Mal. Dera-lhe a pontada. Ia ao medico...
Mas a estanqueira não tinha fé nos medicos. Era
dinheiro deitado á rua... Citou a doença do seu homem,
os gastos, um
rôr de moedas. E para que?
para o vêr penar e morrer como se nada fosse! Era
um dinheiro que sempre chorava!
E suspirou. Emfim, fosse feita a vontade de Deus!
E lá por casa do snr. Engenheiro?
—Tudo sem novidade.
[185]
—Ó snr.
a Juliana, quem é aquelle rapaz que vai
agora por lá todos os dias?
Juliana respondeu logo:
—É o primo da senhora.
—Dão-se muito!...
—Parece.
Tossiu, e com um comprimentosinho:
—Pois, muito boas tardes, snr.
a Helena.
E foi resmungando:
—Ora, fica-te a chuchar no dedo, lêsma!
Juliana detestava a visinhança; sabia que a escarneciam,
que a imitavam, que lhe chamavam a
tripa velha!...—Pois tambem d'ella não haviam
de saber nada! Podiam rebentar de curiosidade! Vinham
de carrinho! Boa! Tudo o que visse ou que
lhe cheirasse havia de ficar guardadinho, lá dentro.—Para
uma occasião!—pensava com rancor, sacudindo
os quadris.
A estanqueira ficou á porta, despeitada. E o Paula
dos moveis, que as vira conversar, veio logo, deslisando
subtilmente nas suas chinellas de tapete:
—Então a
tripa velha escorregou-se?
—Ai! não se lhe tira nada!
O Paula enterrou as mãos nos bolsos, com tedio:
—Aquillo, a do Engenheiro besunta-lhe as
mãos... É ella quem leva a cartinha, quem abre a
portita de noite...
—Tanto não direi! Credo!
O Paula fitou-a com superioridade:
—A snr.
a Helena está ahi ao seu balcão... Mas
[186]
eu é que as conheço, as mulheres da alta sociedade!
Conheço-as nas pontas dos dedos. É uma cambada!
Citou logo nomes, alguns illustres; tinham amantes
innumeraveis: até trintanarios! Algumas fumavam,
outras
entortavam-se. E peor! E peor!
—E passeiam por ahi, muito repimpadas de carrinho,
á barba da gente de bem!
—Falta de religião!—suspirou a estanqueira.
O Paula encolheu os hombros:
—A religião é que é, snr.
a Helena! C'os padres
é que é!
E agitando furioso o punho fechado:
—C'os padres é uma
choldra viva!
—Credo, snr. Paula, que até lhe fica mal!...
E o carão amarellado da estanqueira tinha uma
severidade de devota offendida.
—Ora, historias, snr.
a Helena!—exclamou o homem
com desprezo.
E bruscamente:
—Porque é que acabaram os conventos? Diga-me!
Porque era um desaforo lá dentro!
—Oh snr. Paula! oh snr. Paula!—balbuciava a
Helena, recuando, encolhendo-se.
Mas o Paula atirava-lhe as impiedades como punhaladas.
—Um desaforo! De noite as freiras vinham por
um subterraneo ter c'os frades. E era vinhaça e mais
vinhaça. E batiam o fandango em camisa! Anda isso
por ahi em todos os livros.
[187]
E erguendo-se nas chinellas:
—E os jesuitas, se vamos a isso! Sim! diga!
Mas recuou, e levando a mão á pala do boné:
—Um criado da senhora—disse com respeito.
Era Luiza que passava, vestida de preto, o véo
descido. Ficaram calados, a olhal-a.
—Que ella é muito bonita!—murmurou a estanqueira,
com admiração.
O Paula franziu a testa.
—Não é mau bocado...—disse. E acrescentou,
com desdem:—P'ra quem gosta d'aquillo!...
Houve um silencio. E o Paula rosnou:
—Não são as saias que me levam o tempo, nem
d'isto!...
E bateu no bolso do collete, fazendo tilintar dinheiro.
Tossiu, pigarreou, e ainda aspero:
—Venha de lá um pataco de Xabregas.
Foi para a porta do estanco enrolar o cigarro,
assobiar; mas os seus olhos arregalaram-se indignados;
n'uma das janellas de cima na casa do Engenheiro,
tinha avistado, por entre as vidraças abertas,
a figura enfesada do Pedro, o carpinteiro.
Voltou-se para a estanqueira, e cruzando dramaticamente
os braços:
—E agora que a patrôa vai á vida, lá está o rapazola
a entender-se com a criada!
Soltou uma larga baforada de fumo, e com uma
voz soturna:
—Aquella casa vai-se tornando um prostibulo!
[188]
—Um quê, snr. Paula?
—Um prostibulo, snr.
a Helena! É como se dissesse
um alcouce!
E, com passos escandalisados, o patriota afastou-se.
Luiza ia emfim ao campo com Bazilio. Consentira
na vespera, declarando logo «que era só um passeio
de meia hora, de carruagem, sem se apearem».
Bazilio ainda insistiu, fallando em «sombras d'alamedas,
uma merendinha, relvas...» Mas ella recusou,
muito teimosa, rindo, dizendo:—Nada de relvas!...
E tinham combinado encontrar-se na praça da
Alegria. Chegou tarde, já depois das duas e meia,
com o guarda-solinho muito carregado sobre o rosto,
toda assustada.
Bazilio esperava, fumando, n'um coupé, á esquina,
debaixo d'uma arvore. Abriu rapidamente a portinhola,
e Luiza entrou fechando atrapalhadamente a
sombrinha; o vestido prendeu-se ao estribo, esgaçou-se
no rufo de sêda; e achou-se ao lado d'elle, muito
nervosa, offegante, com o rosto abrazado, murmurando:
—Que tolice, que tolice esta!
Mal podia fallar. O coupé partiu logo a trote. O
cocheiro era o Pintéos, um batedor.
[189]
—Tão cançada, coitadinha!—disse-lhe Bazilio
muito meigo.
Levantou-lhe o véo; estava suada; os seus largos
olhos brilhavam da excitação, da pressa, do medo...
—Que calor, Bazilio!
Quiz descer um dos vidros do coupé.
Não, isso não! Podiam vêl-os! Quando passassem
as portas...
—Para onde vamos nós?
E espreitava, levantando o
store.
—Vamos para o lado do Lumiar, é o melhor sitio.
Não queres?
Encolheu os hombros. Que lhe importava? Ia socegando:
tinha tirado o véo e as luvas: sorria, abanando-se
com o lenço, d'onde sahia um aroma fresco.
Bazilio prendeu-lhe o pulso, pôz-lhe muitos beijos
longos, delicados, na pelle fina, azulada de veiasinhas.
—Tu prometteste ter juizo!—fez ella com um
sorriso calido, olhando-o de lado.
Ora! mas um beijo, no braço! Que mal havia?
Tambem era necessario não ser beata!
E olhava-a avidamente.
Os velhos
stores do coupé corridos eram de sêda
vermelha, e a luz que os atravessava envolvia-a
n'um tom igual, côr de rosa e quente. Os seus beiços
tinham um escarlate molhado, a lisura sã d'uma
petala de rosa; e ao canto do olho um ponto de luz
movia-se n'um fluido dôce.
[190]
Não se conteve, passou-lhe os dedos um pouco
tremulos nas fontes, nos cabellos, com uma caricia
fugitiva e assustada; e com a voz humilde:
—Nem um beijo na face, um só?
—Um só?...—fez ella.
Pousou-lh'o delicadamente ao pé da orelha. Mas
aquelle contacto exasperou-lhe o desejo brutalmente;
teve um som de voz soluçado; agarrou-a com sofreguidão,
e atirava-lhe beijos tontos pelo pescoço, pela
face, pelo chapéo...
—Não! não!—balbuciava ella, resistindo.—Quero
descer! Dize que pare!
Batia nos vidros; esforçava-se por correr um,
desesperada, magoando os dedos na dura corrêa
suja.
Bazilio pôz-se a supplicar, que lhe perdoasse!
Que doudice, zangar-se por um beijo! Se ella estava
tão linda!... Fazia-o doudo. Mas jurava ir quieto,
muito quieto...
A carruagem, ao
pé das portas, rolava sacudida
na calçada miuda; nas terras, aos lados, as oliveiras
de um verde empoeirado estavam immoveis na luz
branca; e sobre a herva crestada o sol batia duramente
n'uma fulguração continua.
Bazilio tinha descido um dos vidros; o
store corrido
palpitava brandamente; pôz-se então a fallar-lhe
ternamente de si, do seu amor, dos seus planos. Estava
resolvido a vir estabelecer-se em Lisboa—dizia.—Não
tencionava casar-se; amava-a e não comprehendia
nada melhor do que viver ao pé d'ella,
[191]
sempre. Dizia-se desilludido, enfastiado. Que mais
lhe podia offerecer a vida? Tinha tido as sensações
dos amores ephemeros, as aventuras das longas viagens.
Ajuntára alguma cousa de seu,—e sentia-se
velho.
Repetia, fitando-a, tomando-lhe as mãos:
—Não é verdade que estou velho?
—Não muito—e os seus olhos humedeciam-se.
Ah! estava! estava! O que lhe appetecia agora
era viver para ella, vir descançar nas doçuras da
sua intimidade. Ella era a sua unica familia.—Fazia-se
muito
parente.—A familia no fim de tudo é o
que ha de melhor ainda. Não te incommoda que eu
fume?
E acrescentou, raspando o phosphoro:
—O que ha de bom na vida é uma affeição profunda
como a nossa. Não é verdade? Contento-me
com pouco, de resto. Vêr-te todos os dias, conversar
muito, saber que me estimas...—Por dentro do
campo, ó Pintéos!—gritou com força pela portinhola.
O coupé entrou a passo no Campo Grande. Bazilio
ergueu os
stores; um ar mais vivo penetrou. O
sol cahia sobre o arvoredo, traspassando-o d'uma luz
faiscante, formando no chão poeirento e branco sombras
quentes de ramagens. Tudo tinha em redor um
aspecto resequido e exhausto. Na terra gretada, a
herva curta, crestada, fazia tons cinzentos. Na estrada,
ao lado, arrastava-se uma poeira amarellada. Saloios
passavam, amodorroados sobre o albardão, bamboleando
as pernas, abrigados sob os vastos guarda-soes
[192]
escarlates; e a luz que vinha de um céo azul
ferrete, acabrunhador, fazia reluzir com uma radiação
crua as paredes muito caiadas, as aguas d'algum balde
esquecido ás portas, todas as brancuras de pedras.
E Bazilio continuava:
—Vendo tudo o que tenho lá fóra, alugo aqui
uma casinha em Lisboa, em Buenos-Ayres, talvez...
Não te agrada? Dize...
Ella calava-se; aquellas palavras, as promessas,
a que a voz d'elle metallica e velada dava um vigor
mais amoroso, iam-na perturbando como a inebriação
d'um licôr forte. O seu seio arfava.
Bazilio baixou a voz, disse:
—Quando estou ao pé de ti sinto-me tão feliz,
parece-me tudo tão bom!...
—Se isso fosse verdade!—suspirou ella, encostando-se
para o fundo do coupé.
Bazilio prendeu-lhe logo a cintura; jurou-lhe que
sim! Ia pôr a sua fortuna em inscripções. Começou
a dar-lhe provas: já fallára a um procurador; citou-lhe
o nome, um sêcco, de nariz agudo...
E apertando-a contra si, os olhos muito vorazes:
—E se fosse verdade, dize, que fazias?
—Nem eu sei—murmurou ella.
Iam entrando no Lumiar, e por prudencia desceram
os
stores. Ella afastou um, e, espreitando, via
fóra passar rapidamente, ao lado do trem, arvores
empoeiradas; um muro de quinta d'uma côr de rosa
sujo; fachadas de casas mesquinhas; um omnibus
desatrellado; mulheres sentadas ao portal, á sombra,
[193]
catando os filhos; e um sujeito vestido de
branco, de chapéo de palha, que estacou, arregalou
os olhos para as cortinas fechadas do coupé. E
ia desejando habitar alli n'uma quinta, longe da estrada;
teria uma casinha fresca com trepadeiras
em roda das janellas, parreiras sobre pilares de pedra,
pés de roseiras, ruasinhas amaveis sob arvores
entrelaçadas, um tanque debaixo d'uma tilia, onde
de manhã as criadas ensaboariam, bateriam a roupa,
palrando. E ao escurecer, ella e elle, um pouco
quebrados das felicidades da sésta, iriam pelos campos,
ouvindo calados, sob o céo que se estrella, o
coaxar triste das rãs.
Cerrou os olhos. O movimento muito lançado do
coupé, o calor, a presença d'elle, o contacto da sua
mão, do seu joelho, amolleciam-na. Sentia um desejo
a alargar-se dentro do peito.
—Em que vaes tu a pensar?—perguntou-lhe
elle baixo, muito terno.
Luiza fez-se vermelha. Não respondeu. Tinha medo
de fallar, de lhe dizer...
Bazilio tomou-lhe a mão devagarinbo, com respeito,
com cuidado, como uma cousa preciosa e santa;
e beijou-lh'a de leve, com a servilidade d'um negro
e a unção d'um devoto. Aquella caricia tão humilde,
tão tocante, quebrou-a; os seus nervos distenderam-se;
deixou-se cahir para o canto do coupé,
rompeu a chorar...
Que era? Que tinha? Prendera-a nos braços, beijava-a,
dizia-lhe palavras loucas.
[194]
—Queres que fujamos?
As suas lagrimasinhas redondas e luminosas, rolando
devagarinho sobre aquella face mimosa,
enterneciam-no,
e davam aos seus desejos uma vibração
quasi dolorosa.
—Foge commigo, vem, levo-te! Vamos para o
fim do mundo!
Ella soluçou, murmurou muito doridamente:
—Não digas tolices.
Elle calou-se; pôz a mão sobre os olhos com uma
attitude melancolica, pensando:—Estou a dizer tolices,
não ha que vêr!
Luiza limpava as lagrimas, assoando-se devagarinho.
—É nervoso—disse.—É nervoso. Voltamos,
sim? Não me sinto bem. Dize que volte.
Bazilio mandou «bater» para Lisboa.
Ella queixava-se de um ameaço d'enxaqueca. Elle
tinha-lhe tomado a mão, repetia-lhe as mesmas
ternuras: chamava-lhe «sua pomba», «seu ideal».
E pensava baixo:—Estás cahida!
Pararam na praça da Alegria. Luiza espreitou,
saltou depressa, dizendo:
—Ámanhã, não faltes, hein?
Abriu o guarda-solinho, carregou-o sobre o rosto,
subiu rapidamente para a Patriarchal.
Bazilio então desceu os vidros, e respirou com
satisfação. Accendeu outro charuto, estendeu as pernas,
gritou:
—Ao Gremio, ó Pintéos!
[195]
Na sala de leitura, o seu amigo o visconde Reynaldo,
que havia annos vivia em Londres, e muito
em Paris tambem, lia o
Times languidamente,
enterrado
n'uma poltrona. Tinham vindo ambos de Paris,
com promessa de voltarem juntos por Madrid.
Mas o calor desolava Reynaldo; achava a temperatura
de Lisboa
reles; trazia lunetas defumadas; e
andava saturado de perfumes, por causa «do cheiro
ignobil de Portugal». Apenas viu Bazilio deixou
escorregar o
Times no tapete, e com os braços
molles,
a voz desfallecida:
—E então essa questão da prima, vai ou não
vai? Isto está horrivel, menino! Eu morro! Preciso
o Norte! Preciso a Escocia! Vamos embora! Acaba
com essa prima. Viola-a. Se ella te resiste, mata-a!
Bazilio, que se estendera n'uma poltrona, disse,
estirando muito os braços:
—Oh! Está cahidinha!
—Pois avia-te, menino, avia-te!
Apanhou moribundamente o
Times, bocejou, pediu
soda—soda ingleza!
«Não havia», veio dizer o criado. Reynaldo fitou
Bazilio com espanto, com terror, e murmurou
soturnamente:
—Que abjecção de paiz!
Quando Luiza entrou, Juliana, ainda vestida, disse-lhe
logo á porta:
[196]
—O snr. Sebastião está na sala. Tem estado um
rôr de tempo á espera... Já cá estava quando eu
cheguei.
Tinha vindo com effeito havia meia hora. Quando
a Joanna lhe veio abrir, muito encarnada, com o ar
estremunhado, e resmungou «que a senhora estava
para fóra», Sebastião ia logo descer, com o allivio
delicioso d'uma difficuldade adiada. Mas reagiu, retesou
a vontade, entrou, pôz-se a esperar... Na vespera
tinha decidido fallar-lhe, avisal-a que aquellas
visitas do primo, tão repetidas, com espalhafato,
n'uma rua maligna, podiam compromettel-a... Era
o diabo, dizer-lh'o!... Mas era um dever! Por ella,
pelo marido, pelo respeito da casa! Era forçoso acautelal-a!...
E não se sentia acanhado. Perante as reclamações
do dever, vinham-lhe as energias da decisão.
O coração batia-lhe um pouco, sim, e estava
pallido... Mas, que diabo, havia de lh'o dizer!...
E passeando pela sala com as mãos nos bolsos,
ia arranjando as suas phrases, procurando-as muito
delicadas, bem amigas...
Mas a campainha retiniu, um
frou-frou de vestido
roçou o corredor,—e a sua coragem engelhou-se
como um balão furado. Foi-se logo sentar ao piano,
pôz-se a bater vivamente no teclado. Quando Luiza
entrou, sem chapéo, descalçando as luvas, ergueu-se,
disse embaraçado:
—Tenho estado aqui a trautear um bocado...
Estava á espera... Então d'onde vem?
Ella sentou-se, cançada. Vinha da modista—disse.
[197]
Fazia um calor! Porque não tinha entrado as outras
vezes? Não estava com visitas de ceremonia!
Era familia, era seu primo que viera de fóra.
—Está bom, seu primo?
—Bom. Tem estado aqui, bastante. Aborrece-se
muito em Lisboa, coitado! Ora, quem vive lá fóra!
Sebastião repetiu, esfregando devagar os joelhos:
—Está claro, quem vive lá fóra!
—E Jorge, tem-lhe escripto?—perguntou Luiza.
—Recebi carta hontem.
Tambem ella. Fallaram de Jorge, dos tedios da
jornada, do que contava do phantastico parente de
Sebastião, da demora provavel...
—Faz-nos uma falta, aquelle maroto!—disse
Sebastião.
Luiza tossiu. Estava um pouco pallida, agora.
Passava ás vezes a mão pela testa, cerrando os
olhos.
Sebastião de repente, teve uma decisão:
—Pois eu vinha, minha rica amiga...—começou.
Mas viu-a ao canto do sophá, com a cabeça baixa,
a mão sobre os olhos.
—Que tem? Está incommodada?
—É a enxaqueca que me veio de repente. Já
tinha tido ameaços na rua. E com uma força!
Sebastião tomou logo o chapéo:
—E eu a massal-a! É necessario alguma cousa?
Quer que vá chamar o medico?
[198]
—Não! Vou-me deitar um momento, passa logo.
Que não apanhasse ar, ao menos, recommendava
elle. Talvez sinapismos ou rodellas de limão nas
fontes... E em todo o caso, se não estivesse melhor
que o mandasse chamar...
—Isto passa! E appareça, Sebastião! Não se esconda...
Sebastião desceu, respirou largamente; e pensava:—Eu
não me atrevo, santo Deus!... Mas á
porta, ao levantar os olhos, viu no fundo escuro da
loja de carvão o vulto enorme da carvoeira, de
chambre branco, estendendo o olhar, cocando; por
cima, tres das Azevedos, entre as velhas cortinas de
cassa, juntavam as suas cabecinhas riçadas n'algum
conciliabulo maligno: por traz dos vidros a criada
do doutor costurava, com olhares de lado, a cada
momento, que lambiam a rua; e ao lado, na loja
de moveis, sentiam-se as expectorações do patriota.
—Não passa um gato que esta gente não dê fé!—pensou
Sebastião.—E que linguas! Que linguas!
Devo fazel-o, ainda que estoure! Se ella ámanhã está
melhor, digo-lhe tudo!
Estava com effeito já boa, ás nove horas, no dia
seguinte, quando Juliana a foi acordar, com «uma
cartinha da snr.
a D. Leopoldina».
A criada de Leopoldina, a Justina, uma magrita
muito trigueira, de buço e olho vesgo, esperava na
[199]
sala de jantar. Era amiga de Juliana, beijocavam-se
muito, diziam-se sempre finezas. E depois de ter
guardado a resposta de Luiza n'um cabazinho que
trazia no braço, traçou o chale, e muito risonha:
—Então que ha por cá de novo, snr.
a Juliana?
—Tudo velho, snr.
a Justina.
E mais baixo:
—O primo da senhora, agora; vem todos os
dias. Perfeito rapaz!
Tossiram ambas, baixinho, com malicia.
—E por lá, snr.
a Justina, quem vai por lá?
Justina fez um aceno de desprezo.
—Um rapazola, um estudante. Fraca cousa!...
—Sempre pinga!—disse Juliana com um risinho.
A outra exclamou:
—Olha quem! o pelintra! Nem cheta!
E erguendo o olhar com saudade:
—Ai, como o Gama não ha! Quando era do
tempo do Gama, isso sim! Nunca ia que me não
désse os seus dez tostões, ás vezes meia libra. Ai,
devo dizel-o, foi elle que me ajudou para o meu
vestido de sêda! Este agora!... é um fedelho. Eu
nem sei como a senhora supporta aquillo! E amarellado,
enfesado! Aquillo póde prestar para nada!
Juliana disse então:
—Pois olhe, snr.
a Justina, eu agora é que começo
a considerar: é onde se está bem, é em casas
em que ha pôdres! Encontrei hontem a Agostinha, a
que está em casa do commendador, ao Rato... Pois
[200]
senhor, não se imagina. É tudo o que se póde! Tudo!
Annel, vestido de sêda, sombrinha, chapéo! E
de roupa branca diz que é um enxoval. E tudo o
Couceiro, o que está com a ama. E pelas festas sua
moeda. Diz que é um homem rasgado. Ella tambem,
verdade seja, tem um trabalhão: fal-o entrar pelo
jardim, e para o fazer sahir tem d'esperar...
—Ah, lá não!—acudiu a Justina.—Lá é pela
escada.
Riram baixinho, saboreando o escandalo.
—Genios...—disse Juliana.
—Ai, lá isso, o nosso tem estomago—affirmou
Justina.—Encontra-os na escada, e tanto se lhe
dá!...
E muito affectuosamente, arranjando o chale:
—E adeusinho, que se faz tarde, snr.
a Juliana.
Ella vem hoje cá jantar, a senhora. Estive toda a
manhã a engommar uma saia; desde as sete!
—Tambem eu por cá—disse Juliana.—Ellas é
o que tem; quando ha amante sempre ha mais que
engommar.
—Deitam mais roupa branca, deitam—observou
a Justina.
—As que deitam!—exclamou Juliana, com desprezo.
Mas Luiza tocou a campainha dentro.
—Adeus, snr.
a Juliana—disse logo a outra,
ageitando o chapéo.
—Adeus, snr.
a Justina.
Foi acompanhal-a ao patamar. Beijocaram-se. Juliana
[201]
voltou muito apressada ao quarto de Luiza; estava
já a pé, vestindo-se, muito alegre, cantarolando.
O bilhete de Leopoldina dizia na sua letra torta:
«Meu marido vai hoje para o campo. Eu vou-te
pedir de jantar, mas não posso ir antes das seis.
Convem-te?»
Ficou muito contente. Havia semanas que a não
via... O que iam rir, palrar! E Bazilio devia vir ás
duas. Era um dia divertido, bem preenchido...
Foi logo á cozinha dar as suas ordens para o jantar.
Quando descia, o criadito de Sebastião tocava a
campainha, com um ramo de rosas, «a saber se a
senhora estava melhor».
—Que sim, que sim!—gritou logo Luiza.—E
para o tranquillisar, para que elle não viesse:—Que
estava boa, que até talvez sahisse...
As rosas, sim, é que vinham a proposito. Foi
ella mesma pôl-as nos vasos, cantarolando sempre, o
olhar vivo, satisfeita de si, da sua vida que se tornava
interessante, cheia de incidentes...
E ás duas horas, vestida, veio para a sala, pôz-se
ao piano a estudar a
Medjé de Gounod, que Bazilio
trouxera, e que a encantava agora muito, com
os seus accentos suspirados e calidos.
Ás duas e meia, porém, começou a estar impaciente;
os dedos embrulhavam-se-lhe no teclado.—Já
devia ter vindo, Bazilio!—pensava.
Foi abrir as janellas, debruçar-se para a rua;
[202]
mas a criada do doutor, que costurava por dentro
dos vidros, ergueu logo olhos tão sofregos que Luiza
fechou rapidamente as vidraças. Veio recomeçar
a melodia, já nervosa.
Uma carruagem rolou. Ergueu-se agitada, batia-lhe
o coração. A carruagem passou...
Tres horas já! O calor parecia-lhe maior, insupportavel;
sentia-se afogueada, foi cobrir-se de pó
d'arroz. Se Bazilio estivesse doente! E n'um quarto
d'hotel! Só, com criados desleixados! Mas não, ter-lhe-hia
escripto n'esse caso!... Não viera, não se importára!
Que grosseiro, que egoista!
Era bem tola em se affligir. Melhor! Mas, abafava-se,
positivamente! Foi buscar um leque, e as suas
mãos enraivecidas sacudiram n'um phrenesi a gaveta,
que não se abriu logo, um pouca perra. Pois bem,
não o tornaria a receber! E acabava tudo!
E o seu grande amor, de repente, como um fumo
que uma rajada dissipa, desappareceu! Sentiu
um allivio, um grande desejo de tranquillidade. Era
absurdo, realmente, com um marido como Jorge,
pensar n'outro homem, um leviano, um estroina!...
Deram quatro horas. Veio-lhe uma desesperação,
correu ao escriptorio de Jorge, agarrou uma folha de
papel, escreveu á pressa:
«Querido Bazilio.
«Porque não vens? Estás doente? Se soubesses
os tormentos por que me fazes passar...»
[203]
A campainha retiniu. Era elle! Amarrotou o bilhete,
metteu-o no bolso do vestido, ficou esperando,
palpitante. Passos d'homem pisaram o tapete da
sala. Entrou, com o olhar faiscante... Era Sebastião.
Sebastião, um pouco pallido, que lhe apertou
muito as mãos. Estava melhor? Tinha dormido bem?
Sim, obrigada, estava melhor. Sentára-se no sophá,
muito vermelha. Mal sabia que dizer.
Repetiu com um sorriso vago:—Estou muito melhor!—E
pensava:—Não me deixa agora a casa,
este massador!
—Então, não sahiu?—perguntou Sebastião,
sentado na poltrona, com o chapéo desabado nas mãos.
Não, estava um pouco fatigada ainda.
Sebastião passou devagar a mão pelos cabellos,
e com uma voz que o embaraço engrossava:
—Tambem agora tem sempre companhia pela
manhã...
—Sim, meu primo Bazilio tem apparecido. Ha
tanto tempo que nos não viamos! Fomos creados de
pequenos, quasi... Tenho-o visto quasi todos os dias.
Sebastião fez logo rolar um pouco a poltrona, e
curvando-se, baixando a voz:
—Eu mesmo tinha vindo para lhe fallar a esse
respeito...
Luiza abriu um olhar surprehendido.
—A respeito de quê?
—É que se repara... A visinhança é a peor cousa
que ha, minha rica amiga. Repara em tudo. Já se
tem fallado. A criada do lente, o Paula. Até já vieram
[204]
á tia Joanna. E como o Jorge não está... O Netto
tambem reparou. Como não sabem o parentesco...
E como vem todos os dias...
Luiza ergueu-se bruscamente, com o rosto alterado:
—Então eu não posso receber os meus parentes
sem ser insultada?—exclamou.
Sebastião levantou-se tambem. Aquella colera
subita n'ella, uma pessoa tão dôce, atarantou-o como
um trovão que estala n'um céo claro de verão.
Pôz-se a dizer, quasi anciosamente:
—Oh minha rica senhora! mas repare, eu não
digo... É por causa da visinhança!...
—Mas que póde dizer a visinhança?
A sua voz tinha uma vibração aguda. E batendo
com as mãos, apertando-as, exaltada:
—Isto é curioso! Tenho um parente unico, com
quem fui creada, que não vejo ha uns poucos d'annos,
vem-me fazer tres ou quatro visitas, está um
momento, e já querem deitar maldade!
Fallava convencida, esquecendo as palavras de
Bazilio, os beijos, o
coupé...
Sebastião, acabrunhado, enrolava o chapéo nas
mãos tremulas. E com uma voz abafada:
—Eu tinha-me parecido prudente avisar; o Julião
tambem...
—O Julião!—exclamou ella.—Mas que tem o
Julião com isso? Com que direito se mettem no que
se passa em minha casa? O Julião!
A intervenção, as decisões de Julião pareciam-lhe
[205]
um acrescimo d'affronta. Cahiu n'uma cadeira,
com as mãos contra o peito, os olhos no tecto.
—Oh! Se o Jorge aqui estivesse! Oh! se elle
aqui estivesse, Santo Deus!
Sebastião balbuciou aniquilado:
—Era para seu bem...
—Mas que mal me póde succeder?
E erguendo-se, indo d'um movel a outro, n'uma
excitação:
—É o meu unico parente. Fomos creados ambos,
brincavamos juntos. Em casa da mamã, na rua da
Magdalena, estava lá sempre. Ia lá jantar todos os
dias. É como se fossemos irmãos. Em pequena trazia-me
ao collo...
E amontoava detalhes d'aquella fraternidade, exagerando
uns, inventando outros ao acaso, na improvisação
da colera.
—Vem aqui—acrescentava—está um bocado,
fazemos musica, elle toca admiravelmente, fuma um
charuto, vai-se...
Instinctivamente justificava-se.
Sebastião estava sem idéa, sem resolução. Parecia-lhe
aquella uma outra Luiza, differente, que o
assustava; e quasi curvava os hombros sob a estridencia
da sua voz, que nunca conhecera tão forte,
vibrando n'uma loquacidade trapalhona.
Erguendo-se emfim, disse com uma dignidade
melancolica:
—Eu entendi que era o meu dever, minha senhora.
[206]
Fez-se um silencio grave. Aquelle tom sobrio,
quasi severo, obrigou-a a córar um pouco dos seus
espalhafatos: baixou os olhos: disse embaraçada:
—Perdôe, Sebastião! Mas realmente!... Não,
acredite, juro-lhe, estou-lhe muito obrigada em me
avisar. Fez muito bem, Sebastião!
Elle exclamou logo, vivamente:
—Para evitar qualquer calumnia d'essas linguas
damnadas! Pois não é verdade?
Justificou então a sua intervenção, com muita
amizade: ás vezes por uma palavra, arma-se uma
intriga, e quando uma pessoa está prevenida...
—De certo, Sebastião!—repetiu ella.—Fez
perfeitamente bem em me avisar. De certo!...
Tinha-se sentado; o olhar reluzia-lhe febrilmente;
e a cada momento limpava com o lenço os cantos
seccos da bocca.
—Mas que hei-de eu fazer, Sebastião! Diga!
Elle commovia-se agora de a vêr assim ceder,
aconselhar-se; quasi lamentava vir, com a gravidade
das suas advertencias, perturbar a alegria das suas
intimidades. Disse:
—Está claro que deve vêr seu primo, recebel-o...
Mas emfim, sempre é bom uma certa reserva,
com esta visinhança! Eu se fosse a si contava-lhe...
explicava-lhe...
—Mas, por fim, que diz essa gente, Sebastião?
—Repararam. Quem seria? quem não seria? Que
vinha, que estava, o diabo!
Luiza ergueu-se impetuosamente:
[207]
—Eu bem tenho dito a Jorge! Tantas vezes
lh'o tenho dito! Isto é uma rua impossivel! Não se
mexe um dedo que não espreitem, que não cochichem!
—Não teem que fazer...
Houve um silencio. Luiza passeava pela sala, com
a cabeça baixa, a testa franzida; e parando, olhando
quasi anciosamente para Sebastião:
—O Jorge se soubesse é que tinha um desgosto!
Santo Deus!
—Escusa de saber!—exclamou logo Sebastião.—Isto
fica entre nós!
—Para o não affligir, não é verdade?—acudiu
ella.
—Está claro! Isto fica entre nós.
E Sebastião estendendo-lhe a mão, quasi humildemente:
—Então não está zangada commigo, hein?
—Eu, Sebastião! Que tolice!
—Bem, bem. Acredite!—e espalmou a mão
sobre o peito—eu entendi que era o meu dever.
Porque emfim, a minha rica amiga não sabia nada...
—Estava bem longe!...
—De certo. Bem, adeus. Não a quero massar
mais.—E com uma voz profunda, commovida:—Cá
estou ás ordens, hein!
—Adeus, Sebastião... Mas que gente! Por vêr
entrar o pobre rapaz tres ou quatro vezes!...
—Uma canalha, uma canalha!—disse Sebastião,
arregalando os olhos.
[208]
E sahiu.
Apenas elle fechou a porta:
—Que desafôro!—exclamou Luiza—Isto só a
mim!
Porque a intervenção de Sebastião, no fundo, irritava-a
mais que os mexericos da visinhança! A
sua vida, as suas visitas, o interior da sua casa era
discutido, resolvido por Sebastião, por Julião, por
tutti quanti! Aos vinte e cinco annos tinha
mentores!
Não estava má! E porque, Santo Deus? Porque
seu primo, o seu unico parente, vinha vel-a!...
Mas então, de repente, emmudecia interiormente.
Lembravam-lhe os olhares de Bazilio, as suas palavras
exaltadas, aquelles beijos, o passeio ao Lumiar.
A sua alma corava baixo, mas o seu despeito seguia
declamando alto:—de certo, havia um sentimento,
mas era honesto, ideal, todo platonico!... Nunca seria
outra cousa! Podia ter lá dentro, no fundo, uma
fraqueza... Mas seria sempre uma mulher de bem,
fiel, só d'um!...
E esta certeza irritava-a então contra os «palratorios»
da rua! Que de resto era lá possivel, que
só por verem entrar Bazilio, quatro ou cinco vezes,
ás duas horas da tarde, começassem logo a murmurar,
a cortar na pelle?... Sebastião era um caturra,
com terrores d'ermitão! E que idéa, ir consultar Julião!
Julião! Era elle, de certo, que o instigára a vir
prégar, assustal-a, humilhal-a!... Porque? Azedume,
inveja! Porque Bazilio tinha belleza,
toilette,
maneiras,
dinheiro!... Se tinha!
[209]
As qualidades de Bazilio appareciam-lhe então
magnificas e abundantes como os attributos d'um
deus. E estava apaixonado por ella! E queria vir
viver junto d'ella! O amor d'aquelle homem, que tinha
esgotado tantas sensações, abandonado de certo
tantas mulheres, parecia-lhe como a affirmação gloriosa
da sua belleza e da irresistibilidade da sua seducção.
A alegria que lhe dava aquelle culto trazia-lhe
o receio de o perder. Não o queria vêr diminuido;
queria-o sempre presente, crescendo, balouçando
sem cessar, diante d'ella, o murmurio languido das
ternuras humildes! Podia lá separar-se de Bazilio!
Mas se a visinhança, as relações começavam a commentar,
a cochichar... Jorge podia saber!... Áquella
supposição o coração arrefecia-lhe...—Sebastião
tinha razão, no fundo, era evidente!
N'uma rua pequena, com doze casas, vir todos
os dias, aquelle lindo rapaz, tão elegante, agora que
seu marido não estava... Era terrivel!—Que havia
de fazer, Santo Deus!...
A campainha retiniu com força;
Leopoldina entrou.
Vinha furiosa com o cocheiro: que imaginasse
ella, hein! Tinha parado ao Correio, e o homem queria
duas corridas. Uma canalha assim!...
—E que calor, ouf!—Atirou a sombrinha, as
luvas; agitou as mãos no ar para descer o sangue,
dar-lhes pallidez; e diante do toucador, compondo ligeiramente
os frisados do cabello, com uma côr na
[210]
pelle, muito espartilhada, admiravel no seu corpete
couraçado:
—Que tens tu, filha? Estás toda no ar!
Nada. Tinha-se zangado com as criadas...
—Ai! estão insupportaveis!—Contou as exigencias
da Justina, os seus desmazelos.—E muito
agradecida ainda que ella se me não vá! Quando a
gente depende d'ellas!...—E pondo pó d'arroz no
rosto, com uma voz lenta:—Lá o meu senhor foi
para o Campo Grande. Eu estive para ir jantar fóra
com...—Suspendeu-se, sorriu, e voltada para Luiza,
mais baixo, com um tom alegre, muito sincero:—Mas
olha, a fallar a verdade, nem sabia onde,
nem tinha dinheiro... Que elle coitado com a sua
mezada mal lhe chega. Disse commigo: nada, vou vêr
a Luiza. Tambem os homens sempre, sempre, seccam!...—Que
tens tu para jantar? Não fizeste ceremonia, hein?
E com uma idéa subita:
—Tens tu bacalhau?
Devia haver, talvez. Que extravagancia! Porque?
—Ai!—exclamou—Manda-me assar um bocadinho
de bacalhau! Meu marido detesta o bacalhau!
aquelle animal! Eu é a minha paixão. Com azeite e
alho!—Mas calou-se, contrariada.—Diabo!
—O que?
—É que hoje não posso comer alho...
E entrou para a sala a rir. Foi tirar uma rosa do
ramo de Sebastião, pôl-a n'uma casa do corpete. Desejava
ter uma sala assim,—pensava, olhando em
[211]
redor. Queria-a de reps azul, com dous grandes espelhos,
um lustre de gaz, e o seu retrato a oleo de
corpo inteiro, decotada, ao pé d'um rico vaso de flôres...
Sentou-se ao piano, bateu rijamente o teclado,
tocou motivos do
Barba Azul.
E vendo Luiza entrar:
—Mandaste arranjar o bacalhau?
—Mandei.
—Assado?
—Sim.
—Gracias!—E atirou, com a sua voz mordente,
a sua canção querida da
Gran-Duqueza:
Ouvi dizer que meu avô de vinho,
Era um tal amador...
Mas Luiza achava aquella musica «espalhafatona»;
queria alguma cousa triste, dôce... O fado!
que tocasse o fado!...
Leopoldina exclamou logo:
—Ai, o fado novo! Tu não ouviste? É lindo! Os
versos são divinos!
Preludiou, cantando com um balouçar languido
da cabeça, o olhar erguido e turvo:
O rapaz que eu hontem vi
Era moreno e bem feito...
—Tu não sabes isto, Luiza? Oh filha! É o ultimo!
É de chorar!
[212]
Recomeçou, com o tom muito quebrado. Era a
historia rimada d'um amor infeliz. Fallava-se nas
«raivas do ciume, nas rochas de Cascaes, nas noites
de luar, nos suspiros da saudade», todo o palavriado
morbido do sentimentalismo lisboeta. Leopoldina
dava tons dolentes á voz, revirava um olhar expirante;
uma quadra sobre tudo enternecia-a; repetiu-a
com paixão:
Vejo-o nas nuvens do céo,
Nas ondas do mar sem fim,
E por mais longe que esteja
Sinto-o sempre ao pé de mim.
—Lindo!—suspirava Luiza.
E Leopoldina terminava com
ais! em que a sua
voz se arrastava n'uma extensão desafinada.
Luiza, de pé junto do piano, sentia o cheiro do
feno que ella usava; o fado, os versos
entristeciam-na
um pouco; e com o olhar saudoso seguia sobre o
teclado os dedos ageis e magros de Leopoldina, onde
reluziam as pedras dos anneis que lhe tinha dado o
Gama.
Mas Juliana entrou, vestida de passeio, com a
sua cuia nova. Estava o jantar na mesa!
Leopoldina declarou que vinha a cahir de fome!
E a sala de jantar com as vidraças abertas, as verduras
dos terrenos vagos defronte, um azul d'horisonte
onde se algodoavam nuvemzinhas muito brancas—alegrou-a:
a sala de jantar d'ella tirava-lhe até o
[213]
appetite, era uma tristeza, deitava para o saguão!
Pôz-se a depenicar bagos d'uvas, a trincar bocadinhos
de conserva—e reparando no retrato do
pai de Jorge, desdobrando o guardanapo:
—Havia de ser divertido teu sogro! Tem cara
de pandigo!...
E ha que tempos que não jantavam juntas! Desde
quando?
—Desde o meu primeiro anno de casada—lembrou
Luiza.
Leopoldina fez-se um pouco vermelha. Viam-se
muito n'esse tempo; Jorge deixava-as ir ás lojas ambas,
aos confeiteiros, á Graça... A lembrança d'aquella
camaradagem levou-a ás recordações mais distantes
do collegio. Tinha visto, havia dias, a Rita Pessoa,
com o sobrinho.—Lembras-te d'elle?
—O
Espinafre?
Espinafre ou não era no collegio o homem, o
ideal, o heroe; todas lhe escreviam bilhetes, desenhavam-lhe
corações d'onde sahia uma fogueira,
mettiam-lhe no boné muito sebento ramos de flôres
de papel... E quando a Michaela foi apanhada, no
cacifro dos bahús, a devoral-o de beijos!...
Luiza disse:
—Que horror!
—Não que a Michaela era douda!
Coitada! Tinha casado com um alferes, um homem
que a espancava. Estava cheia de filhos...
—Isto é um valle de lagrimas!—resumiu Leopoldina,
recostando-se.
[214]
Estava loquaz. Servia-se muito, com gula; depois
picava um bocadinho na ponta do garfo, provava,
deixava, punha-se a comer côdeas de pão que
barrava de manteiga. E deleitava-se nas recordações
do collegio! Que bom tempo!
—Lembraste quando estivemos de mal?
Luiza não se lembrava...
—Por tu teres dado um beijo na Thereza, que
era o meu
sentimento—disse Leopoldina.
Pozeram-se a fallar dos
sentimentos. Leopoldina
tivera quatro; a mais bonita era a Joanninha, a Freitas.
Que olhos! E que bem feita! Tinha-lhe feito a
côrte um mez!...
—Tolices!—disse Luiza córando um pouco.
—Tolices! Porque?
Ai! era sempre com saudade que fallava dos
sentimentos.
Tinham sido as primeiras sensações, as
mais intensas. Que agonia de ciumes! Que delirio de
reconciliações! E os beijos furtados! E os olhares!
E os bilhetinhos, e todas as palpitações do coração,
as primeiras da vida!
—Nunca—exclamou—nunca, depois de mulher,
senti por um homem o que senti pela Joanninha!...
Pois pódes crêr...
Um olhar de Luiza deteve-a.—A Juliana!...
Diabo! tinha-se esquecido! Constrangia-as muito, com
o seu sorrisinho torcido, a figura de peito chato, o tic-tac
metallico dos tacões.
—E que foi feito da Joanninha?—perguntou
Luiza.
[215]
Morrêra tisica—e a voz de Leopoldina fez-se
saudosa. Uma doença bem triste, não era? Mas não
lhe tinha medo, ella! Batia no seio, bem formado:
—Isto é rijo, isto é são!
Juliana sahiu, e Luiza observou logo:
—Vê no que fallas, filha! Tem cuidado!
Leopoldina curvou-se:
—Ah! a respeitabilidade da casa! Tens razão!—murmurou.
E como Juliana entrava com o bacalhau assado,
fez-lhe uma ovação!
—Bravo! Está soberbo!
Tocou-lhe com a ponta do dedo, gulosa; vinha
louro, um pouco tostado, abrindo em lascas.
—Tu verás—dizia ella.—Não te tentas? Fazes
mal!
Teve então um movimento decidido de bravura,
disse:
—Traga-me um alho, snr.
a Juliana! Traga-me
um bom alho!
E apenas ella sahiu:
—Eu vou ter logo com o Fernando, mas não me
importa!...—Ah! Obrigada, snr.
a Juliana! Não ha
nada como o alho!...
Esborrachou-o em roda do prato, regou as
lascas
do bacalhau d'um fio molle d'azeite, com
gravidade.—Divino!—exclamou.—Tornou
a encher o copo,
achava aquillo «uma pandiga».
—Mas que tens tu?
Luiza com effeito parecia preoccupada. Tinha suspirado
[216]
baixo. Duas vezes, endireitando-se na cadeira,
dissera a Juliana, inquieta:
—Parece que tocaram a campainha, vá vêr.
Não era ninguem.
—Quem havia de ser? Não esperas teu marido,
de certo.
—Ah! não!
E então Leopoldina, com os olhos no prato, partindo
devagar, muito attenta, lascasinhas de bacalhau:
—E teu primo veio vêr-te?
Luiza fez-se vermelha.
—Sim, tem vindo. Tem vindo varias vezes.
—Ah!
E depois d'um silencio:
—Ainda está bonito?
—Não está feio...
—Ah!
Luiza apressou-se a perguntar se tinha encommendado
o vestido de xadrezinho? Não. E começaram
a fallar de
toilettes, fazendas, lojas, e preços...
Depois, de conhecidas, d'outras senhoras, de boatos—perdendo-se
n'uma conversa de mulheres sós,
miudinha e divagada, semelhante ao ramalhar de
folhagens.
Viera o assado. Leopoldina já ia tendo uma côr
quente nas faces. Pediu a Juliana que lhe fosse buscar
o leque;—e recostada, abanando-se, declarou
que se sentia como um principe! E ia beberricando
golinhos de vinho. Que boa idéa, jantarem juntas!...
[217]
Apenas Juliana dispôz os pratos de fruta, Luiza
disse-lhe logo: «que chamaria para o café, que podia
ir». Foi ella mesmo fechar a porta da sala, correr
o reposteiro de cretone:
—Estamos á vontade, agora! Faço-me velha só
d'olhar para esta creatura! Estou morta pela vêr pelas
costas.
—Mas porque a não pões na rua?
Era Jorge que não queria, senão...
Leopoldina protestou. Boa! os maridos não deviam
ter vontade!... Era o que faltava!...
—E o teu, então?—disse Luiza, rindo.
—Obrigada!—exclamou Leopoldina.—Um homem
que faz quarto á parte!
De resto detestava os homens que se occupam
de criadas, de roes, d'azeites e vinagres...
—Que lá o meu cavalheiro até pesa a carne!—Sorriu,
com odio.—Tambem é o que vale, senão!...
Eu só d'ir á cozinha me dão enjôos...
Quiz deitar vinho, mas a garrafa estava vazia.
Luiza acudiu:
—Queres tu champagne?—Tinha-o muito bom,
que o mandava a Jorge um hespanhol, um proprietario
de minas.
Foi ella mesmo buscar a garrafa, desembrulhou-a
do seu papel azul;—e com risinhos, sustos, fizeram
estalar a rolha. A espuma encantou-as: olhavam os
copos, caladas, com um bem-estar feliz. Leopoldina
gabou-se de saber abrir muito bem o champagne;
fallava vagamente de cêas passadas...
[218]
—Em terça-feira gorda, ha dous annos!...
E toda recostada na cadeira, com um sorriso calido,
as azas do nariz dilatadas, a pupilla humida,
olhava com sensualidade os globulosinhos vivos que
subiam, sem cessar, no copo esguio.
—Se fosse rica, bebia sempre champagne—disse.
Luiza não: ambicionava um coupé; e queria viajar,
ir a Paris, a Sevilha, a Roma... Mas os desejos
de Leopoldina eram mais vastos: invejava uma larga
vida, com carruagens, camarotes d'assignatura,
uma casa em Cintra, cêas, bailes,
toilettes, jogo...
Porque gostava do
monte—dizia—fazia-lhe bater
o coração. E estava convencida que havia de adorar
a roleta.
—Ah!—exclamou—Os homens são bem mais
felizes que nós! Eu nasci para homem! O que eu
faria!
Levantou-se, foi-se deixar cahir muito languidamente
na
voltaire, ao pé da janella. A tarde descia
serenamente; por traz das casas, para lá dos terrenos
vagos, nuvens arredondavam-se, amarelladas,
orladas de côres sanguineas ou de tons alaranjados.
E voltando-lhe a mesma idéa d'acção, d'independencia:
—Um homem póde fazer tudo! Nada lhe fica
mal! Póde viajar, correr aventuras... Sabes tu, fumava
agora um cigarrito...
O peor é que Juliana podia sentir o cheiro. E parecia
tão mal!...
[219]
—É um convento, isto!—murmurou Leopoldina.—Não
tens má prisão, minha filha!
Luiza não respondeu; tinha encostado a cabeça á
mão: e com o olhar vago, como continuando alguma
idéa:
—São tolices, no fim, andar, viajar! A unica
cousa n'este mundo é a gente estar na sua casa,
com o seu homem, um filho ou dous...
Leopoldina deu um salto na
voltaire. Filhos! Credo,
que nem fallasse em semelhante cousa! Todos
os dias dava graças a Deus em os não ter!
—Que horror!—exclamou com convicção.—O
incommodo todo o tempo que se está!... as despezas!
os trabalhos, as doenças! Deus me livre! É uma
prisão! E depois quando crescem, dão fé de tudo,
palram, vão dizer... Uma mulher com filhos está
inutil para tudo, está atada de pés e mãos! Não ha
prazer na vida. É estar alli a atural-os... Credo!
Eu? Que Deus não me castigue, mas se tivesse essa
desgraça parece-me que ia ter com a velha da travessa
da Palha!
—Que velha?—perguntou Luiza.
Leopoldina explicou. Luiza achava uma «infamia».
A outra encolheu os hombros, acrescentou:
—E depois, minha rica, é que uma mulher estraga-se:
não ha belleza de corpo que resista. Perde-se
o melhor. Quando se é como a tua amiga, a
D. Felicidade, emfim!... Mas quando se é direitinha
e arranjadinha!... Nada, minha rica! Embaraços não
faltam!
[220]
Por baixo, na rua, o realejo do bairro, no seu
giro da tarde, veio tocar o final da
Traviata; ia
escurecendo;
já as verduras dos quintaes tinham uma
igual côr parda; e as casas para além esbatiam-se na
sombra.
A
Traviata lembrou a Luiza a
Dama das
Camelias:
fallaram do romance: recordaram episodios...
—Que paixão que eu tive por Armando em rapariga!—disse
Leopoldina.
—E eu foi por d'Artagnan—exclamou ingenuamente
Luiza.
Riram muito.
—Começamos cedo—observou Leopoldina.—Dá-me
uma gotinha mais.
Bebeu, pousou o calix—e encolhendo os hombros:
—Oh! Começamos cedo? Começam todas! Aos
treze annos já a gente vai na sua quarta paixão. Todas
são mulheres, todas sentem o mesmo!—E batendo
o compasso com o pé, cantou, no tom do fado:
O amor é uma doença
Que costuma andar no ar;
Só d'ir á janella, ás vezes
S'apanha a febre d'amar!
Estou hoje com uma telha!—E espreguiçando-se
muito languidamente:—No fim de contas é o
que ha de melhor n'este mundo: o resto é uma
[221]
semsaboria! Não é verdade? Dize, tu! Não é verdade?
Luiza murmurou:
—Se é!—E acrescentou logo:—Creio eu!
Leopoldina ergueu-se, e escarnecendo-a:
—Crê ella! Pobre innocentinha! Vejam o anjinho!
Foi-se encostar á janella; ficou a olhar pelos vidros
o descer do crepusculo; de repente pôz-se a dizer
devagar:
—Realmente vale bem a pena estar uma pobre
de Christo a privar-se, a passar uma vida de coruja,
a mortificar-se, para vir um dia uma febre, um ar,
uma soalheira, e boas noites, vai-se para o Alto de
S. João! Tó rola!
A sala agora estava um pouco escura.
—Pois não te parece?—perguntou ella.
Aquella conversa embaraçava Luiza: sentia-se córar;
mas o crepusculo, as palavras de Leopoldina davam-lhe
como o enfraquecimento d'uma tentação.
Declarou todavia
immoral semelhante idéa.
—Immoral, porque?
Luiza fallou vagamente nos
deveres, na
religião.
Mas os
deveres irritavam Leopoldina. Se havia uma
cousa que a fizesse sahir de si—dizia—era ouvir
fallar em deveres!...
—Deveres? Para com quem? Para um maroto
como meu marido?
Calou-se, e passeando pela sala excitada:
—E em quanto a religião, historias! A mim me
[222]
dizia o padre Estevão, o de luneta, que tem os dentes
bonitos, que me dava todas as absolvições, se eu
fosse com elle a Carriche!
—Ah, os padres...—murmurou Luiza.
—Os padres quê? São a religião! Nunca vi outra.
Deus, esse, minha rica, está longe, não se occupa
do que fazem as mulheres.
Luiza achava horrivel «aquelle modo de pensar».
A felicidade, a verdadeira, segundo ella, era
ser honesta...
—E a bisca em familia!—resmungou Leopoldina,
com odio.
Luiza disse, animada:
—Pois olha que com as tuas paixões, umas atraz
das outras...
Leopoldina estacou:
—O que?
—Não te podem fazer feliz!
—Está claro que não!—exclamou a outra.—Mas...—procurou
a palavra; não a quiz empregar
de certo; disse apenas com um tom secco:—Divertem-me!
Calaram-se. Luiza pediu o café.
Juliana entrou com a bandeja, trouxe luz; d'ahi
a pouco foram para a sala.
—Sabes quem me fallou hontem de ti?—disse
Leopoldina, indo estender-se no divan.
—Quem?
—O Castro.
—Que Castro?
[223]
—O d'oculos, o banqueiro.
—Ah!
—Muito apaixonado por ti sempre.
Luiza riu.
—Doudo, palavra!—affirmou Leopoldina.
A sala estava ás escuras, com as janellas abertas;
a rua esbatia-se n'um crepusculo pardo: um ar
languido e dôce amaciava a noite.
Leopoldina esteve um momento calada; mas o
champagne, a meia obscuridade deram-lhe bem depressa
a necessidade de cochichar confidenciasinhas.
Estirou-se mais no divan, n'uma attitude toda abandonada;
pôz-se a fallar «d'elle». Era ainda o Fernando,
o poeta. Adorava-o.
—Se tu soubesses!—murmurava com um ar de
extase.—É um amor de rapaz!
A sua voz velada tinha inflexões d'uma ternura
calida. Luiza sentia-lhe o halito e o calor do corpo,
quasi deitada tambem, enervada; a sua respiração
alta tinha por vezes um tom suspirado: e a certos
detalhes mais picantes de Leopoldina soltava um risinho
quente e curto, como de cocegas... Mas passos
fortes de botas de taxas subiram a rua, e no candieiro
defronte o gaz saltou com um jacto vivo. Uma
branda claridade pallida penetrou na sala.
Leopoldina ergueu-se logo.—Tinha d'ir já, já,
ao accender do gaz. Estava á espera, o pobre rapaz!
Entrou no quarto, mesmo ás escuras, a pôr o chapéo,
buscar a sombrinha.—Tinha-lhe promettido, coitado,
não podia faltar. Mas realmente embirrava d'ir
[224]
só. Era tão longe! Se a Juliana podesse vir acompanhal-a...
—Vai, sim, filha!—disse Luiza.
Ergueu-se preguiçosamente com um grande
ai!
foi abrir a porta, e deu de cara com Juliana, na sombra
do corredor.
—Credo, mulher, que susto!
—Vinha saber se queriam luz...
—Não. Vá pôr um chale para acompanhar a
snr.
a D. Leopoldina! Depressa!
Juliana foi correndo.
—E quando appareces tu, Leopoldina?—perguntou
Luiza.
Logo que podesse. Para a semana estava com
idéas d'ir ao Porto vêr a tia Figueiredo, passar quinze
dias na Foz...
A porta abriu-se.
—Quando a senhora quizer...—disse Juliana.
Fizeram grandes
adeuses, beijaram-se muito. Luiza
disse rindo ao ouvido de Leopoldina:—Sê feliz!
Ficou só. Fechou as janellas, accendeu as velas,
começou a passear pela sala, esfregando devagar as
mãos. E, sem querer, não podia desprender a idéa
de Leopoldina que ia vêr o seu amante! O seu
amante!...
Seguia-a mentalmente:—caminhava depressa de
certo fallando com Juliana; chegava; subia a escada,
nervosa; atirava com a porta—e que delicioso,
que avido, que profundo o primeiro beijo! Suspirou.
[225]
Tambem ella amava—e
um mais bello, mais fascinante.
Porque não tinha vindo?
Sentou-se ao piano preguiçosamente; pôz-se a
cantar baixo, triste, o fado de Leopoldina:
E por mais longe que esteja
Vejo-o sempre ao pé de mim!...
Mas um sentimento de solidão, d'abandono, veio
impaciental-a. Que sécca, estar alli tão sósinha!
Aquella noite calida, bella e dôce, attrahia-a, chamava-a
para fóra, para passeios sentimentaes, ou
para contemplações do céo, n'um banco de jardim,
com as mãos entrelaçadas. Que vida estupida, a
d'ella! Oh! aquelle Jorge! Que idéa ir para o Alemtejo!
As conversas de Leopoldina e a lembrança das
suas felicidades voltavam-lhe a cada momento; uma
pontinha de champagne agitava-se-lhe no sangue. O
relogio do quarto começou lentamente a dar nove
horas—e de repente a campainha retiniu.
Teve um sobresalto: não podia ser ainda Juliana!
Poz-se a escutar, assustada. Vozes fallavam á
cancella.
—Minha senhora—veio dizer Joanna baixo—é
o primo da senhora que diz que se vem despedir...
Abafou um grito, balbuciou:
—Que entre!
Os seus olhos dilatados cravavam-se febrilmente
[226]
na porta. O reposteiro franziu-se, Bazilio entrou, pallido,
com um sorriso fixo.
—Tu partes!—exclamou ella surdamente, precipitando-se
para elle.
—Não!—E prendeu-a nos braços.—Não! Imaginei
que me não recebias a esta hora, e tomei este
pretexto.
Apertou-a contra si, beijou-a; ella deixava, toda
abandonada; os seus labios prendiam-se aos d'elle.
Bazilio deitou um olhar rapido, em redor, pela sala,
e foi-a levando abraçada, murmurando: Meu amor!
minha filha! Mesmo tropeçou na pelle de tigre, estendida
ao pé do divan.
—Adoro-te!
—Que susto que tive!—suspirou Luiza.
—Tiveste?
Ella não respondeu; ia perdendo a percepção nitida
das cousas; sentia-se como adormecer; balbuciou:
Jesus! não! não! Os seus olhos cerraram-se.
Quando a campainha retiniu fortemente ás dez
horas, Luiza, havia momentos, sentára-se á beira do
divan. Mal teve força de dizer a Bazilio:
—Ha-de ser a Juliana, tinha ido fóra...
Bazilio cofiou o bigode, deu duas voltas na sala,
foi accender um charuto. Para quebrar o silencio sentou-se
ao piano, tocou alguns compassos ao acaso, e,
[227]
erguendo um pouco a voz, começou a cantarolar a
aria do 3.º acto do
Fausto:
Al pallido chiarore
Del astri d'oro...
Luiza, através das ultimas vibrações dos seus nervos,
ia entrando na realidade; os seus joelhos tremiam.
E então, ouvindo aquella melodia, uma recordação
foi-se formando no seu espirito, ainda estremunhado:—era
uma noite, havia annos, em S. Carlos,
n'um camarote com Jorge; uma luz electrica
dava ao jardim, no palco, um tom livido de luar legendario;
e n'uma altitude extatica e suspirante o
tenor invocava as estrellas; Jorge tinha-se voltado,
dissera-lhe: Que lindo! E o seu olhar devorava-a.
Era no segundo mez do seu casamento. Ella estava
com um vestido azul-escuro. E á volta, na carruagem,
Jorge, passando-lhe a mão pela cinta, repetia:
Al pallido chiarore
Del astri d'oro...
E apertava-a contra si...
Ficára immovel á beira do divan, quasi a escorregar,
os braços frouxos, o olhar fixo, a face envelhecida,
o cabello desmanchado. Bazilio então veio
sentar-se devagarinho junto d'ella.—Em que estava
a pensar?
—Nada.
Elle passou-lhe o braço pela cinta, começou a dizer
[228]
que havia de procurar uma casinha para se verem
melhor, estarem mais á vontade; não era mesmo
prudente alli em casa d'ella...
E fallando, voltava a cada momento o rosto, soprava
para o lado o fumo do charuto.
—Não te parece que vir eu aqui, todos os dias,
póde ser reparado?
Luiza ergueu-se bruscamente, lembrára-lhe Sebastião!...
E com uma voz um pouco desvairada:
—Já é tão tarde!—disse.
—Tens razão.
Foi buscar o chapéo em bicos de pés, veio beijal-a
muito, sahiu.
—Luiza sentiu-o accender um phosphoro, fechar
devagarinho a cancella.
Estava só; pôz-se a olhar em roda, como idiota.
O silencio da sala parecia-lhe enorme. As velas tinham
uma chamma avermelhada. Piscava os olhos,
tinha a bocca sêcca. Uma das almofadas do divan
estava cahida, apanhou-a.
E com um ar somnambulo entrou no quarto. Juliana
veio trazer o rol. E já vinha com a lamparina,
estava a arranjal-a...
Tinha tirado a cuia; subiu á cozinha quasi a correr.
A Joanna, que estivera dormitando, espreguiçava-se
com bocejos enormes.
Juliana pôz-se a arranjar a torcida da lamparina;
os dedos tremiam-lhe; tinha no olhar um brilho agudo;
e depois de tossir, devagarinho, com um sorriso
para Joanna:
[229]
—E então a que horas veio o primo da senhora?
—Veio logo que vossemecê sahiu, estavam a
dar as nove.
—Ah!
Desceu com a lamparina; e sentindo Luiza na
alcova despir-se:
—A senhora não quer chá?—perguntou, com
muito interesse.
—Não.
Foi á sala, fechou o piano. Havia um forte cheiro
de charuto. Pôz-se a olhar em redor, devagar,
andando com um passo subtil... De repente agachou-se,
anciosamente: ao pé do divan uma cousa reluzia.
Era uma travessa de Luiza, de tartaruga, com o aro
dourado. Tornou a entrar no quarto em pontas de
pés, pousou-a no toucador, entre os rôlos de cabello.
—Quem anda ahi?—perguntou da alcova a voz
somnolenta de Luiza.
—Sou eu, minha senhora, sou eu, estive a fechar
a sala. Muito boas noites, minha senhora!
Áquella hora Bazilio entrava no Gremio. Procurou
pelas salas. Estavam quasi desertas. Dous sujeitos,
com os rostos entre os punhos, curvados em attitudes
lugubres, ruminavam os jornaes: aqui, além,
junto a mesinhas redondas, pessoas de calça branca
[230]
mastigavam torradas com uma satisfação placida; as
janellas estavam fechadas, a noite quente, e o calor
molle do gaz abafava. Ia descer quando de uma saleta
de jogo, de repente, sahiu o ruido irritado de
uma altercação; trocavam-se injurias, gritava-se:—Mente!
O asno é vossê!
Bazilio estacou, escutando. Mas, subitamente, fez-se
um grande silencio; uma das vozes disse com
brandura:
—Paus!
A outra respondeu com benevolencia:
—É o que devia ter feito ha pouco.
E immediatamente a questão rebentou de novo,
estridente. Praguejavam, diziam obscenidades.
Bazilio foi ao bilhar. O visconde Reynaldo, de pé,
apoiado ao taco, seguia com uma immobilidade grave
o jogo do seu parceiro; mas apenas viu Bazilio,
veio para elle rapidamente, e muito interessado:
—Então?
—Agora mesmo—disse Bazilio mordendo o charuto.
—Emfim, hein?—exclamou Reynaldo, arregalando
os olhos, com uma grande alegria.
—Emfim!
—Ainda bem, menino! Ainda bem!
Batia-lhe no hombro, commovido.
Mas chamaram-no para jogar; e todo estirado sobre
o bilhar, com uma perna no ar, para dar com
mais segurança o
effeito, dizia com a voz
constrangida
pela attitude:
[231]
—Estimo, estimo, porque essa cousa começava
a arrastar...
Tac! Falhou a carambola.
—Não dou meia!—murmurou com rancor.
E chegando-se a Bazilio, a dar giz no taco:
—Ouve cá...
Fallou-lhe ao ouvido.
—Como um anjo, menino!—suspirou Bazilio.
VI
Foi Juliana que na manhã seguinte veio acordar
Luiza, dizendo á porta da alcova com a voz abafada,
em confidencia:
—Minha senhora! Minha senhora! É um criado
com esta carta, diz que vem do hótel.
Foi abrir uma das janellas, em bicos de pés; e
voltando á alcova com uma cautela mysteriosa:
—E está á espera da resposta, está á porta.
Luiza, estremunhada, abriu o largo enveloppe
azul com um monogramma—dous BB, um purpura,
outro ouro, sob uma corôa de conde.
—Bem, não tem resposta.
Não tem resposta—foi dizer Juliana ao criado,
que esperava encostado ao corrimão, fumando
um grande charuto, e cofiando as suiças pretas.
[234]
—Não tem resposta? Bem, muito bom dia.—Levou
o dedo seccamente á aba do «côco», e desceu,
gingando.
Perfeito homem! foi pensando Juliana, pela escada
da cozinha.
—Quem bateu, snr.
a Juliana?—perguntou-lhe
logo a cozinheira.
Juliana resmungou:
—Ninguem, um recado da modista.
Desde pela manhã a Joanna achava-lhe o «ar
exquisito». Sentira-a desde as sete horas varrer, espanejar,
sacudir, lavar as vidraças da sala de jantar,
arrumar as louças no aparador. E com uma azafama!
Ouvira-a cantar a
Carta adorada, ao mesmo
tempo que os canarios, nas varandas abertas, chilreavam
estridentemente ao sol. Quando veio tomar o
seu café á cozinha não palestrou como de costume;
parecia preoccupada e ausente.
Joanna até lhe perguntou:
—Sente-se peor, snr.
a Juliana?
—Eu? Graças a Deus, nunca me senti tão bem.
—Como a vejo tão calada...
—A malucar cá por dentro... A gente nem sempre
está para grulhar.
Apesar de serem nove horas não quizera acordar
a senhora. Deixal-a descançar, coitada—disse.
Foi em pontas de pés encher devagarinho a bacia
grande do banho, no quarto; para não fazer ruido,
sacudiu no corredor as saias, o vestido da vespera:
e os seus olhos brilharam avidamente quando
[235]
sentiu na algibeirinha um papel amarrotado! Era o
bilhete que Luiza escrevera a Bazilio: «Porque não
vens?... Se soubesses o que me fazes soffrer!...»
Teve-o um momento na mão, mordendo o beiço, o
olhar fixo n'um calculo agudo; por fim tornou a
mettel-o na algibeira de Luiza, dobrou o vestido, foi
estendel-o com muito cuidado na
causeuse.
Enfim, mais tarde, sentindo o
cuco dar horas,
decidiu-se a ir dizer a Luiza, com uma voz meiga:
—São dez e meia, minha senhora!
Luiza, na cama, tinha lido, relido o bilhete de Bazilio:
«Não pudera—escrevia ele—estar mais
tempo sem lhe dizer que a adorava. Mal dormira! Erguera-se
de manhã muito cêdo para lhe jurar que estava
louco, e que punha a sua vida aos pés d'ella.»
Compozera aquella prosa na vespera, no Gremio, ás
tres horas, depois de alguns
robbers
d'
whist, um bife,
dous copos de cerveja e uma leitura preguiçosa
da
Illustração. E terminava, exclamando:—«Que
outros desejem a fortuna, a gloria, as honras, eu
desejo-te a ti! Só a ti, minha pomba, porque tu és o
unico laço que me prende á vida, e se ámanhã perdesse
o teu amor, juro-te que punha um termo, com
uma boa bala, a esta existencia inutil!»—Pedira
mais cerveja, e levára a carta para a fechar em casa,
n'um enveloppe com o seu monogramma, «porque
sempre fazia mais effeito».
E Luiza tinha suspirado, tinha beijado o papel
devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam
aquellas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se
[236]
ao calor amoroso que sahia d'ellas, como um corpo
resequido que se estira n'um banho tepido: sentia
um acrescimo de estima par si mesma, e parecia-lhe
que entrava emfim n'uma existencia superiormente
interessante, onde cada hora tinha o seu encanto
differente, cada passo conduzia a um extase,
e a alma se cobria d'um luxo radioso de sensações!
Ergueu-se d'um salto, passou rapidamente um
roupão, veio levantar os transparentes da janella...
Que linda manhã! Era um d'aquelles dias do fim
d'agosto em que o estio faz uma pausa; ha prematuramente,
no calor e na luz, uma certa tranquillidade
outonal; o sol cahe largo, resplandecente, mas
pousa de leve; o ar não tem o embaciado canicular,
e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada;
respira-se mais livremente; e já se não vê na gente
que passa o abatimento molle da calma enfraquecedora.
Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha
dormido a noite d'um somno são, continuo, e todas
as agitações, as impaciencias dos dias passados pareciam
ter-se dissipado n'aquelle repouso. Foi-se vêr
ao espelho; achou a pelle mais clara, mais fresca, e
um enternecimento humido no olhar;—seria verdade
então o que dizia Leopoldina, que «não havia
como uma maldadesinha para fazer a gente bonita?»
Tinha um amante, ella!
E immovel no meio do quarto, os braços cruzados,
o olhar fixo, repetia: Tenho um amante! Recordava
a sala na vespera, a chamma aguçada das velas,
e certos silencios extraordinarios em que lhe parecia
[237]
que a vida parára, em quanto os olhos do retrato
da mãi de Jorge, negros na face amarella, lhe estendiam
da parede o seu olhar fixo de pintura. Mas
Juliana entrou com um taboleiro de roupa passada.
Eram horas de se vestir...
Que requintes teve n'essa manhã! Perfumou a
agua com um cheiro de
Lubin, escolheu a camisinha
que tinha melhores rendas. E suspirava por ser rica!
Queria as bretanhas e as hollandas mais caras, as
mobilias mais apparatosas, grossas joias inglezas,
um coupé forrado de setim... Porque nos temperamentos
sensiveis as alegrias do coração tendem a
completar-se com as sensualidades do luxo: o primeiro
erro que se installa n'uma alma até ahi defendida,
facilita logo aos outros entradas tortuosas;—assim,
um ladrão que se introduz n'uma casa vai
abrindo subtilmente as portas á sua quadrilha esfomeada.
Subiu para o almoço, muito fresca, com o cabello
em duas tranças, um roupão branco. Juliana precipitou-se
logo a fechar as janellas, «porque apesar
de não estar calor, as portadas cerradas sempre davam
mais frescura!» E, vendo que lhe esquecera o
lenço, correu a buscar-lhe um, que perfumou com
agua de colonia. Servia-a com ternura. Viu-a comer
muitos figos:
—Não lhe vão fazer mal, minha senhora!—exclamou
quasi lacrimosamente.
Andava em redor d'ella com um sorriso servil,
sem ruido: ou defronte da mesa, com os braços cruzados,
[238]
parecia admiral-a com orgulho, como um sêr
precioso e querido, todo seu, a
sua ama! O seu
olhar esbugalhado apossava-se d'ella.
E dizia consigo:
—Grande cabra! Grande bebeda!
Luiza, depois de almoço, veio para o quarto estender-se
na
causeuse, com o seu
Diario de
Noticias.
Mas não podia lêr. As recordações da vespera redemoinhavam-lhe
n'alma a cada momento, como as folhas
que um vento d'outono levanta a espaços d'um
chão tranquillo: certas palavras d'elle, certos impetos,
toda a sua maneira d'amar... E ficava immovel,
o olhar afogado n'um fluido, sentindo aquellas reminiscencias
vibrarem-lhe muito tempo, dôcemente,
nos nervos da memoria. Todavia a lembrança de
Jorge não a deixava; tivera-a sempre no espirito,
desde a vespera; não a assustava, nem a torturava;
estava alli, immovel mas presente, sem lhe fazer
medo, nem lhe trazer remorso; era como se elle
tivesse morrido, ou estivesse tão longe que não
podesse voltar, ou a tivesse abandonado! Ela mesmo
se espantava de se sentir tão tranquilla. E todavia
impacientava-a ter constantemente aquella idéa
no espirito, impassivel, com uma obstinação espectral;
punha-se instinctivamente a accumular as justificações:
Não fôra culpa sua. Não abrira os braços
a Bazilio voluntariamente!... Tinha sido uma
fatalidade:
fôra o calor da hora, o crepusculo, uma pontinha
de vinho talvez... Estava douda, de certo. E
repetia comsigo as attenuações tradicionaes: não era
[239]
a primeira que enganára seu marido; e muitas era
apenas por vicio, ella fôra por paixão... Quantas
mulheres viviam n'um amor illegitimo e eram illustres,
admiradas! Rainhas mesmo tinham amantes. E
elle amava-a tanto!... Seria tão fiel, tão discreto! As
suas palavras eram tão captivantes, os seus beijos
tão estonteadores!... E emfim que lhe havia de
fazer agora?
Já agora!...
E resolveu ir responder-lhe. Foi ao escriptorio.
Logo ao entrar o seu olhar deu com a photographia
de Jorge—a cabeça de tamanho natural,—no seu
caixilho envernizado de preto. Uma commoção comprimiu-lhe
o coração; ficou como
tolhida—como
uma pessoa encalmada de ter corrido, que entra na
frieza d'um subterraneo; e examinava o seu cabello
frisado, a barba negra, a gravata de pontas, as duas
espadas encruzadas que reluziam por cima. Se elle
soubesse matava-a!... Fez-se muito pallida. Olhava
vagamente em redor o casaco de velludo de trabalho
dependurado n'um prego, a manta em que elle
embrulhava os pés dobrada a um lado, as grandes
folhas de papel de desenho na outra mesa ao fundo,
e o pótesinho do tabaco, e a caixa das pistolas!...
Matava-a de certo!
Aquelle quarto estava tão penetrado da personalidade
de Jorge, que lhe parecia que elle ia voltar,
entrar d'ahi a bocado... Se elle viesse de repente!...
Havia tres dias que não recebia carta—e quando
ella estivesse alli a escrever ao seu amante, n'um
momento o
outro podia apparecer e apanhal-a!...
[240]
Mas eram tolices, pensou. O vapor do Barreiro só
chegava ás cinco horas; e depois elle dizia na ultima
carta que ainda se demorava um mez, talvez
mais...
Sentou-se, escolheu uma folha de papel, começou
a escrever, na sua letra um pouco gorda:
«Meu adorado Bazilio .
Mas um terror importuno tolhia-a; sentia como
um
palpite de que elle vinha, ia entrar... Era
melhor
não se pôr a escrever, talvez!... Ergueu-se,
foi á sala devagar, sentou-se no divan; e, como se
o contacto d'aquelle largo sophá e o ardor das recordações
que elle lhe trazia da vespera lhe tivesse
dado a coragem das acções amorosas e culpadas, voltou
muito decidida ao escriptorio, escreveu rapidamente:
«Não imaginas com que alegria recebi esta manhã
a tua carta...»
A penna velha escrevia mal; molhou-a mais, e
ao sacudil-a, como lhe tremia um pouco a mão, um
borrão negro cahiu no papel. Ficou toda contrariada,
pareceu-lhe aquillo um
mau agouro. Hesitou um
momento,—e
coçando a cabeça, com os cotovêlos sobre
a mesa, sentia Juliana varrer fóra o patamar,
cantarolando a
Carta adorada. Emfim, impaciente,
rasgou a folha muitas vezes em pedacinhos miudos—e
[241]
atirou-os para um caixão de pau envernizado
com duas argolas de metal, que estava ao canto junto
á mesa, onde Jorge deitava os rascunhos velhos
e os papeis inuteis: chamavam-lhe o
sarcophago;
Juliana, de certo, descuidára-se de o esvaziar no lixo,
porque transbordava de papelada.
Escolheu outra folha, recomeçou:
«Meu adorado Bazilio .
«Não imaginas como fiquei quando recebi a tua
carta, esta manhã, ao acordar. Cobri-a de beijos...»
Mas o reposteiro franziu-se n'uma prega molle,
a voz de Juliana disse discretamente:
—Está alli a costureira, minha senhora.
Luiza, sobresaltada, tinha tapado a folha de papel
com a mão.
—Que espere.
E continuou:
«...Que tristeza que fosse a carta e que não fosses
tu que alli estivesses! Estou pasmada de mim
mesma, como em tão pouco tempo te apossaste do
meu coração, mas a verdade é que nunca deixei de
te amar. Não me julgues por isto leviana, nem penses
mal de mim, porque eu desejo a tua estima, mas
é que nunca deixei de te amar e ao tornar a vêr-te,
depois d'aquella estupida viagem para tão longe, não
fui superior ao sentimento que me impellia para ti,
[242]
meu adorado Bazilio. Era mais forte que eu, meu Bazilio.
Hontem, quando aquella maldita criada me veio
dizer que tu te vinhas despedir, Bazilio, fiquei como
morta; mas quando vi que não, nem eu sei, adorei-te!
E se tu me tivesses pedido a vida dava-t'a, porque
te amo, que eu mesma, me estranho... Mas para
que foi aquella mentira, e para que vieste tu? Mau!
tinha vontade de te dizer adeus para sempre, mas
não posso, meu adorado Bazilio! É superior a mim.
Sempre te amei, e agora que sou tua, que te pertenço
corpo e alma, parece-me que te amo mais, se
é possivel...»
—Onde está ella? Onde está ella?—disse uma
voz na sala.
Luiza ergueu-se, com um salto, livida. Era Jorge!
Amarrotou convulsivamente a carta, quiz escondel-a
no bolso,—o roupão não tinha bolso! E desvairada,
sem reflexão, arremessou-a para o
sarcophago.
Ficou de pé, esperando, as duas mãos apoiadas
á mesa, a vida suspensa.
O reposteiro ergueu-se,—e reconheceu logo o
chapéo de velludo azul de D. Felicidade.
—Aqui mettida, sua brejeira! Que estavas tu
aqui a fazer? Que tens tu, filha, estás como a cal...
Luiza deixou-se cahir no
fauteuil, branca e fria,
disse com um sorriso cançado:
—Estava a escrever, deu-me uma tontura...
—Ai! Tonturas, eu!—acudiu logo D. Felicidade—É
uma desgraça, a cada momento a agarrar-me
[243]
aos moveis, até tenho medo d'andar só. Falta de
purgas!
—Vamos para o quarto!—disse logo Luiza.—Estamos
melhor no quarto.
Ao erguer-se, as pernas tremiam-lhe.
Atravessaram a sala: Juliana começava a arrumar.
Luiza, ao passar, viu na pedra da
console, debaixo
do
espelho oval, uma pouca de cinza: era da vespera,
do charuto d'
elle! Sacudiu-a—e ao erguer os olhos,
ficou pasmada de se vêr tão pallida.
A costureira vestida de preto, com um chapéo
de fitas rôxas, esperava sentada á beira da
causeuse,
com um olhar infeliz e o seu embrulho nos joelhos;
vinha provar o corpete d'um vestido composto; assentou,
pregou, alinhavou, fallando baixo, com uma
humildade triste e uma tossinha sêcca ; e apenas ella
sahiu, de leve, com o seu andar de sombra, o chale
tinto muito cingido ás omoplatas magras,—D.
Felicidade começou logo a fallar d'
elle, do
Conselheiro.
Tinha-o encontrado no Moinho de Vento. Pois,
senhores, nem lhe viera fallar! Fizera-lhe uma cortezia
muito sêcca, por demais, e tic-tic por alli fóra,
que se diria que ia fugido! Que te parece? Ai! aquellas
indifferenças matavam-na. E não as comprehendia,
não, realmente não as comprehendia...
—Porque emfim—exclamava—eu bem me conheço,
não sou nenhuma criança, mas tambem não
sou nenhum caco! Pois não é verdade?
—Certamente—disse Luiza distrahida. Lembrava-lhe
a carta.
[244]
—Olha que aqui onde me vês com os meus quarenta,
decotada, ainda valho! O que são hombros e
collo é do melhor!
Luiza ia erguer-se. Mas D. Felicidade repetiu:
—Do melhor! Tomaram-no muitas novas!
—Creio bem—concordou Luiza, sorrindo vagamente.
—E elle tambem não é nenhum rapazinho novo...
—Não...
—Mas muito bem conservado!—E os olhos luziam-lhe—Para
fazer ainda uma mulher muito feliz!
—Muito...
—Um homem d'appetecer!—suspirou D. Felicidade.
E Luiza, então:
—Tu esperas um instantinho! Vou lá dentro e
volto já.
—Vai, filha, vai.
Luiza correu ao escriptorio, direita ao
sarcophago.
Estava vazio! E a carta d'ella, Santo Deus!
Chamou logo Juliana, aterrada.
—Vossê despejou o caixão dos papeis?
—Despejei, sim, minha senhora—respondeu
muito tranquillamente.
E com interesse:
—Porquê, perdeu-se algum papel?
Luiza fazia-se pallida.
—Foi um papel que eu atirei para o caixão. Onde
o despejou vossê?
[245]
—No barril do lixo, como é costume, minha senhora;
imaginei que nada servia...
—Ah! deixe vêr!
Subiu rapidamente á cozinha.
Juliana, atraz, ia dizendo:
—Ora esta! Pois ainda não ha cinco minutos! O
caixão estava mais cheio... Andei a dar uma arrumadella
no escriptorio... Valha-me Deus, se a senhora
tem dito...
Mas o barril do lixo estava vazio. Joanna tinha-o
ido despejar abaixo n'aquelle instantinho; e vendo
a inquietação de Luiza:
—Porquê, perdeu-se alguma cousa?
—Um papel—disse Luiza, que olhava em redor,
pelo chão, muito branca.
—Elle iam uns poucos de papeis, minha senhora—disse
a rapariga—eu deitei tudo ao despejo.
—Podia ter ficado algum cahido por fóra, snr.
a
Joanna—lembrou timidamente Juliana.
—Vá vêr, vá vêr, Joanna—acudiu Luiza com
uma esperança.
Juliana parecia afflicta:
—Jesus, Senhor! Eu podia lá adivinhar! Mas
para que não disse a senhora...?
—Bem, bem, a culpa não é sua, mulher...
—Credo, que até se me está a embrulhar o estomago...
E é cousa de importancia, minha senhora?
—Não, é uma conta...
—Valha-me Deus!...
Joanna voltou, sacudindo um papel enxovalhado.
[246]
Luiza agarrou-o, leu:—«... o diametro do primeiro
poço de exploração...»
—Não, não é isto!—exclamou toda contrariada.
—Então foi p'ra baixo p'ra o cano, minha senhora,
não está mais nada.
—Viu bem?
—Esquadrinhei tudo...
E Juliana continuava, desolada:
—Antes queria perder dez tostões! Uma assim!
Eu, minha senhora, podia lá adivinhar...
—Bem, bem!—murmurou Luiza descendo.
Mas estava assustada, sentia mesmo uma suspeita
indefinida... Lembrou-lhe o bilhete que escrevera
na vespera a Bazilio, e que mettera, todo amarrotado,
no bolso do vestido... Entrou no quarto, agitada.
D. Felicidade tirára o chapéo, acommodára-se na
causeuse.
—Tu desculpas, hein?—fez Luiza.
—Anda, filha, anda! Que é?
—Perdi uma conta—respondeu.
Foi ao guarda-vestidos, achou logo o bilhete na
algibeira... Aquillo serenou-a. A carta tinha ido para
o lixo de certo. Mas que imprudencia!
—Bem, acabou-se!—disse, sentando-se resignada.
E D. Felicidade immediatamente, baixando a voz
muito confidencialmente:
—Ora eu vinha-te fallar n'uma cousa. Mas vê
lá! Olha que é segredo.
[247]
Luiza ficou logo sobresaltada.
—Tu sabes—continuou D. Felicidade, devagar,
com pausas—que a minha criada, a Josepha, está
para casar com o gallego... O homem é de ao pé de
Tuy, e diz que na terra d'elle ha uma mulher que
tem uma virtude para fazer casamentos que é uma
cousa milagrosa... Diz que é o mais que ha... Em
deitando a sorte a um homem,—o homem entra-lhe
uma tal paixão que se arranja logo o casamento, e
é a maior felicidade.
Luiza tranquillisada, sorriu.
—Escuta—acudiu D. Felicidade—não te ponhas
já com as tuas cousas...
No seu tom grave havia um respeito supersticioso.
—Diz que tem feito milagres. Homens que tinham
desamparado raparigas, outros que não faziam
caso d'ellas, maridos que tinham amigas, emfim toda
a sorte de ingratidão... Em a mulher deitando o
encanto, os homens começam a esmorecer, a arrepender-se,
a apaixonar-se, e estão pelo beiço... A
rapariga contou-me isto. Eu lembrei-me logo...
—De deitar uma sorte ao Conselheiro!—exclamou
Luiza.
—Que te parece?
Luiza deu uma risada sonora. Mas D. Felicidade
quasi se escandalisou. Contou outros casos: um fidalgo
que deshonrára uma lavadeira; um homem
que abandonou a mulher e os filhos, fugira com uma
bebeda... Em todos a
sorte
operára d'um modo fulminante
[248]
produzindo um amor subito e fogoso pela
pessoa desprezada. Appareciam logo rendidos, se estavam
perto; se estavam longe, voltavam, avidos, a
pé, a cavallo, na mala-posta, apressando-se, ardendo...
E entregavam-se, mansos e humildes como escravos
acorrentados...
—Mas o gallego—continuava ella muito excitada—diz
que para ir á terra, fallar á mulher, levar
o retrato do Conselheiro, é necessario o retrato
d'elle, o meu, é necessario o meu, ir fallar, voltar—quer
sete moedas!...
—Oh D. Felicidade!—fez Luiza reprehensivamente.
—Não me digas, não venhas com as tuas! Olha
que eu sei de casos...
E erguendo-se:
—Mas são sete moedas! Sete moedas!—exclamou,
arregalando os olhos.
Juliana appareceu á porta, e muito baixinho, com
um sorriso:
—A senhora faz favor?
Chamou-a para o corredor, em segredo:
—Esta carta. Que vem do hótel.
Luiza fez-se escarlate.
—Credo, mulher! não é necessario fazer mysterios!
Mas não entrou no quarto, abriu-a logo no corredor;
era a lapis, escripta á pressa:
«Meu amor—dizia Bazilio—por um feliz acaso
[249]
descobri o que precisavamos, um ninho discreto para
nos vêrmos...» E indicava a rua, o numero, os
signaes, o caminho mais perto. «... Quando vens,
meu amor? Vem ámanhã. Baptisei a casa com o nome
de
Paraiso: para mim, minha adorada, é com
effeito o paraiso. Eu espero-te lá desde o meio dia:
logo que te aviste, desço.»
Aquella precipitação amorosa em arranjar o
ninho—provando
uma paixão impaciente, toda occupada
d'ella—produziu-lhe uma dilatação dôce do
orgulho; ao mesmo tempo que aquelle
Paraiso secreto,
como n'um romance, lhe dava a esperança de
felicidades excepcionaes; e todas as suas inquietações,
os sustos da carta perdida se dissiparam de repente
sob uma sensação calida, como flocos de nevoa
sob o sol que se levanta.
Voltou ao quarto, com o olhar risonho.
—Que te parece, hein?—perguntou logo D. Felicidade,
a quem a sua idéa occupava tyrannicamente.
—O que?
—Achas que mande o homem a Tuy?
Luiza encolheu os hombros; veio-lhe um tedio
de taes enredos de bruxaria, misturados a amores caturras.
Na vaidade da sua intriga romantica achava
repugnante aquelle sentimentalismo senil.
—Tolices!—disse com muito desdem.
—Oh filha! não me digas, não me digas!—acudiu
desolada D. Felicidade.
[250]
—Bem, então manda, manda!—fez Luiza, já
impaciente.
—Mas são sete moedas!—exclamou D. Felicidade,
quasi chorosa.
Luiza poz-se a rir.
—Por um marido? Acho barato...
—E se a sorte falha?
—Então é caro!
D. Felicidade deu um grande
ai! Estava muito
infeliz, n'aquella hesitação entre os impulsos da concupiscencia
e as prudencias da economia. Luiza teve
pena d'ella, e, tirando um vestido do guarda-roupa:
—Deixa lá, filha! Não hão-de ser necessarias
bruxarias!...
D. Felicidade ergueu os olhos ao céo.
—Vaes sahir?—perguntou melancolicamente.
—Não.
D. Felicidade propoz-lhe então que viesse com
ella á Encarnação. Visitavam a Silveira, coitada, que
tinha um furunculo! E viam a armação da igreja
para a festa, estreava-se o frontal novo, um primor!
—E estou tambem com vontade de ir rezar uma
estaçãosinha, para alliviar cá por dentro—ajuntou,
suspirando.
Luiza aceitou. Appetecia-lhe ir vêr altares alumiados,
ouvir o ciciar de rezas no côro, como se os
requintes devotos dissessem bem com as suas disposições
sentimentaes. Começou a vestir-se depressa.
[251]
—Como tu estás gorda, filha!—exclamou D.
Felicidade admirada, vendo-lhe os hombros, o collo.
Luiza diante do espelho olhava-se, sorria com o
seu sorriso quente, contente das suas linhas, acariciando
devagarinho, voluptuosamente, a pelle branca
e fina.
—Redondinha—disse, namorando-se.
—Redondinha? Vaes-te a fazer uma bola!
E acrescentou, tristemente:
—Tambem com a tua vida, um marido como o
teu, regaladinha, sem filhos, sem cuidados...
—Vamos lá, minha rica—disse Luiza—que as
tristezas não te tem feito emmagrecer...
—Pois sim, pois sim! Mas...—e parecia desolada,
como curvada sob as suas proprias ruinas—cá
por dentro é uma desgraça, estomago, figado...
—Se a mulher de Tuy faz o milagre, põe tudo
isso como novo!
D. Felicidade sorriu, com uma duvida desconsolada.
—Sabes que tenho um chapéo lindo?—exclamou
de repente Luiza—Não viste? Lindo!
Foi logo buscal-o ao guarda-vestidos. Era de palha
fina, guarnecido de myosotis.
—Que te parece?
—É um primor!
Luiza mirava-o dando pancadinhas com as pontas
dos dedos nas florzinhas azues.
—Dá frescura—fez D. Felicidade.
—Não é verdade?
[252]
Pôl-o com muito cuidado, toda séria. Ficava-lhe
bem! Bazilio se a visse havia de gostar, pensou. Era
bem possivel que o encontrassem...
Veio-lhe, sem motivo, uma felicidade exuberante:
achava tão delicioso viver, sahir, ir á Encarnação,
pensar no seu amante!... E toda no ar, procurava
pelo quarto as chavinhas do toucador.
Onde tinha deixado as chaves? Na sala de jantar,
talvez! Ia vêr! Sahiu correndo, tontinha, cantarolando:
Amici, la notte è bella...
La ra la la...
Quasi topou com Juliana, que varria o corredor.
—Não deixe de engommar a saia bordada para
ámanhã, Juliana!
—Sim, minha senhora. Está em gomma!
E seguindo-a com um olhar feroz:
—Canta, piorrinha, canta, cabrasinha, canta, bebedasinha!...
E ella mesma, tomada subitamente d'um jubilo
agudo, atirou vassouradas rapidas, soltando na sua
voz rachada:
Além d'ámanhã termina a campanha,
P-o-o-or aqui se
diz...
Se tal fôr verdade, se não fôr patranha...
E com um espremido emphatico:
Se-e-rei bem feliz!
[253]
Ao outro dia, pelas duas horas da tarde, Sebastião
e Julião passeavam em S. Pedro de Alcantara.
Sebastião estivera contando a sua «scena» com
Luiza, e como desde então a sua estima por ella
crescera. Ao principio escabreára-se, sim...
—Mas teve razão! Assim de surpreza, ouvir uma
d'aquellas! E eu levei a cousa mal, fui muito á bruta...
Depois, coitadinha, concordára logo, mostrára-se
muito desgostosa, toda zelosa do seu pudor, pedira-lhe
conselhos... Até tinha as lagrimas nos olhos.
—Eu disse-lhe logo que o melhor era fallar ao
primo, dizer o que se passava... Que te parece?
—Sim—disse vagamente Julião.
Tinha-o escutado distrahido, chupando a ponta do
cigarro. O seu rosto terreo cavava-se, com uma côr
mais biliosa.
—Então achas que fiz bem, hein?
E depois d'uma pausa:
—Que ella é uma senhora de bem ás direitas!
Ás direitas, Julião!
Continuaram calados. O dia estava encoberto e
abafado, com um ar de trovoada: grossas nuvens pesadas
e pardas iam-se accumulando, ennegrecendo
para o lado da Graça por traz das collinas: um vento
rasteiro passava por vezes, pondo um arripio nas
folhas das arvores.
[254]
—De maneira que agora estou descançado—resumiu
Sebastião.—Não te parece?
Julião encolheu os hombros com um sorriso triste:
—Quem me dera os teus cuidados, homem!—disse.
E fallou então com amargura nas suas preoccupações.—Havia
uma semana que se abrira concurso
para uma cadeira de substituto na Escóla, e preparava-se
para elle. Era a sua taboa de salvação, dizia:
se apanhasse a cadeira, ganhava logo nome, a
clientella podia vir, e a fortuna... E, que diabo, sempre
era estar de dentro!... Mas a certeza da sua superioridade
não o tranquillisava—porque emfim em
Portugal, não é verdade? n'estas questões a sciencia,
o estudo, o talento são uma historia, o principal
são os padrinhos! Elle não os tinha—e o seu concorrente,
um semsaborão, era sobrinho d'um director
geral, tinha parentes na camara, era um colosso!
Por isso elle trabalhava a valer, mas parecia-lhe indispensavel
metter tambem as suas cunhas! Mas
quem?
—Tu não conheces ninguem, Sebastião?...
Sebastião lembrava-se d'um primo seu, deputado
pelo Alemtejo, um gordo, da maioria, um pouco fanhoso.
Se Julião queria, fallava-lhe... Mas sempre
ouvira dizer que a Escóla não era gente de empenhos
e de intriga... De resto tinham o conselheiro
Accacio...
—Uma besta!—fez Julião—Um parlapatão!
Quem faz lá caso d'aquillo? O teu primo, hein! O
[255]
teu primo parece-me bom! É necessario alguem que
falle, que trabalhe...—Porque acreditava muito nas
influencias dos empenhos, no dominio dos «personagens»,
nas docilidades da fortuna quando dirigida
pelas habilidades da intriga. E com um orgulho raiado
d'ameaça:—Que eu hei-de-lhes mostrar o que é
saber as cousas, Sebastião!
Ia explicar-lhe o assumpto da these, mas Sebastião
interrompeu-o:
—Ella ahi vem.
—Quem?
—A Luiza.
Passava com effeito, por fóra do Passeio, toda
vestida de preto, só.—Respondeu á cortezia dos
dous homens com um sorriso,
adeusinhos da mão,
um pouco corada.
E Sebastião immovel, seguindo-a devotamente
com os olhos:
—Se aquillo não respira mesmo honestidade!
Vai ás lojas... Santa rapariga!
Ia encontrar Bazilio no
Paraiso pela primeira vez.
E estava muito nervosa: não pudera dominar, desde
pela manhã, um medo indefinido que lhe fizera pôr
um véo muito espêsso, e bater o coração ao encontrar
Sebastião. Mas ao mesmo tempo uma curiosidade
intensa, multipla, impellia-a, com um estremecimentosinho
de prazer.—Ia, emfim, ter ella propria
[256]
aquella aventura que lêra tantas vezes nos romances
amorosos! Era uma fórma nova do amor que ia experimentar,
sensações excepcionaes! Havia tudo—a
casinha mysteriosa, o segredo illegitimo, todas as palpitações
do perigo! Porque o apparato impressionava-a
mais que o sentimento; e a
casa em si interessava-a,
attrahia-a mais que Bazilio! Como seria?
Era para os lados d'Arroios, adiante do largo de
Santa Barbara: lembrava-se vagamente que havia alli
uma correnteza de casas velhas... Desejaria antes
que fosse no campo, n'uma quinta, com arvoredos
murmurosos e relvas fôfas; passeariam então, com
as mãos enlaçadas, n'um silencio poetico; e depois
o som d'agua que cahe nas bacias de pedra daria um
rhythmo languido aos somnos amorosos... Mas era
n'um terceiro andar,—quem sabe como seria dentro?
Lembrava-lhe um romance de Paulo Féval em
que o heroe, poeta e duque, fórra de setins e tapeçarias
o interior d'uma choça; encontra alli a sua
amante; os que passam, vendo aquelle casebre arruinado,
dão um pensamento compassivo á miseria que
de certo o habita—em quanto dentro, muito secretamente,
as flôres se esfolham nos vasos de Sèvres
e os pés nús pisam Gobelins veneraveis! Conhecia o
gosto de Bazilio,—e o
Paraiso de certo era como
no romance de Paulo Féval.
Mas no largo de Camões reparou que o sujeito de
pera comprida, o do Passeio, a vinha seguindo, com
uma obstinação de gallo; tomou logo um coupé. E ao
descer o Chiado, sentia uma sensação deliciosa em
[257]
ser assim levada rapidamente para o seu amante, e
mesmo olhava com certo desdem os que passavam,
no movimento da vida trivial—em quanto ella ia
para uma hora tão romanesca da vida amorosa! Todavia
á maneira que se aproximava vinha-lhe uma
timidez, uma contracção d'acanhamento, como um
plebeu que tem de subir, entre alarbadeiros solemnes,
a escadaria d'um palacio. Imaginava Bazilio esperando-a
estendido n'um divan de sêda: e quasi
receava que a sua simplicidade burgueza, pouco experiente,
não achasse palavras bastante finas ou caricias
bastante exaltadas. Elle devia ter conhecido
mulheres tão bellas, tão ricas, tão educadas no amor!
Desejava chegar n'um coupé seu, com rendas de
centos de mil reis, e ditos tão espirituosos como um
livro...
A carruagem parou ao pé d'uma casa amarellada,
com uma portinha pequena. Logo á entrada um
cheiro molle e salobre enojou-a. A escada, de degraus
gastos, subia ingrememente, apertada entre paredes
onde a cal cahia, e a humidade fizera nodoas. No patamar
da sobre-loja, uma janella com um gradeadosinho
d'arame, parda do pó accumulado, coberta
de teias d'aranha, coava a luz suja do saguão. E por
traz d'uma portinha, ao lado, sentia-se o ranger d'um
berço, o chorar doloroso d'uma criança.
Mas Bazilio desceu logo, com o charuto na bocca,
dizendo baixo:
—Tão tarde! sóbe! Pensei que não vinhas. O
que foi?
[258]
A escada era tão esguia, que não podiam subir
juntos. E Bazilio, caminhando adiante, d'esguelha:
—Estou aqui desde a uma hora, filha! imaginei
que te tinhas esquecido da rua...
Empurrou uma cancella, fêl-a entrar n'um quarto
pequeno, forrado de papel ás listras azues e brancas.
Luiza viu logo, ao fundo, uma cama de ferro
com uma colcha amarellada, feita de remendos juntos
de chitas differentes: e os lençoes grossos, d'um
branco encardido e mal lavado, estavam impudicamente
entreabertos...
Fez-se escarlate, sentou-se, calada, embaraçada.
E os seus olhos, muito abertos, iam-se fixando—nos
riscos ignobeis da cabeça dos phosphoros, ao pé da
cama; na esteira esfiada, comida, com uma nodoa
de tinta entornada; nas bambinellas da janella, d'uma
fazenda vermelha, onde se viam passagens; n'uma
lithographia, onde uma figura, coberta d'uma tunica
azul fluctuante, espalhava flôres voando... Sobre tudo
uma larga photographia, por cima do velho canapé
de palhinha, fascinava-a: era um individuo atarracado,
d'aspecto hilare e alvar, com a barba em
collar, o feitio d'um piloto ao domingo: sentado, de
calças brancas, com as pernas muito afastadas, pousava
uma das mãos sobre um joelho, e a outra muito
estendida assentava sobre uma columna truncada:
e por baixo do caixilho, como sobre a pedra d'um
tumulo, pendia d'um prego de cabeça amarella, uma
corôa de perpetuas!
—Foi o que se pôde arranjar—disse-lhe Bazilio.—E
[259]
foi um acaso: é muito retirado, é muito discreto...
Não é muito luxuoso...
—Não—fez ella, baixo.—Levantou-se, foi á
janella, ergueu uma ponta da cortininha de cassa fixada
á vidraça: defronte eram casas pobres: um sapateiro
grisalho, batia a sola a uma porta; á entrada
d'uma lojita balouçava-se um ramo de carqueja
ao pé d'um maço de cigarros pendente d'um barbante;
e, a uma janella, uma rapariga esguedelhada
embalava tristemente no collo uma criança doente
que tinha crostas grossas de chagas na sua cabecinha
côr de melão.
Luiza mordia os beiços, sentia-se entristecer. Então
nós de dedos bateram discretamente á porta.
Ella assustou-se, desceu rapidamente o véo. Bazilio
foi abrir. Uma voz adocicada, cheia de
ss
mellifluos,
ciciou baixo. Luiza ouviu vagamente: Socegadinhos,
suas chavesinhas...
—Bem, bem!—disse Bazilio apressado, batendo
com a porta.
—Quem é?
—É a patrôa.
O céo pozera-se a ennegrecer; já a espaços grossas
gôtas de chuva se esmagavam nas pedras da rua;
e um tom crepuscular fazia o quarto mais melancolico.
—Como descobriste tu isto?—perguntou Luiza,
triste.
—Inculcaram-m'o.
Outra gente, então, tinha vindo alli, «amado»
[260]
alli? pensou ella. E a cama pareceu-lhe repugnante.
—Tira o chapéo—disse Bazilio, quasi impaciente—estás-me
a fazer afflicção com esse chapéo
na cabeça.
Ella soltou devagar o elastico que o prendia, foi
pôl-o no canapé de palhinha, desconsoladamente.
Bazilio tomou-lhe as mãos, e attrahindo-a, sentando-se
na cama:
—Estás tão linda!—Beijou-lhe o pescoço, encostou
a cabeça ao peito d'ella. E com a vista muito
quebrada:
—O que eu sonhei comtigo esta noite!
Mas, de repente, uma forte pancada de chuva
fustigou os vidros. E immediatamente bateram á porta,
com pressa.
—Que é?—bradou Bazilio furioso.
A voz cheia de
ss explicou que esquecera um
cobertor na varanda que estava a seccar. Se se encharcasse,
que perdição!...
—Eu lhe pagarei o cobertor, deixe-me!—berrou
Bazilio.
—Dá-lhe o cobertor...
—Que a leve o diabo!
E Luiza, sentindo um arripio de frio nos seus
hombros nús, abandonava-se com uma vaga resignação,
entre os joelhos de Bazilio—vendo constantemente
voltada para si a face alvar do piloto.
Assim um
yacht que apparelhou nobremente para
uma viagem romanesca vai encalhar, ao partir, nos
lodaçaes do rio baixo; e o mestre aventureiro que
[261]
sonhava com os incensos e os almiscares das florestas
aromaticas, immovel sobre o seu tombadilho, tapa
o nariz aos cheiros dos esgotos.
Apenas Luiza começou a sahir todos os dias, Juliana
pensou logo: Bem, vai ter com o
gajo!
E a sua attitude tornou-se ainda mais servil. Era
com um sorriso de baixeza que corria a abrir a porta,
alvoroçada, quando Luiza voltava ás cinco horas. E
que zelo! Que exactidões! Um botão que faltasse,
uma fita que se extraviava, e eram «mil perdões,
minha senhora», «desculpe por esta vez», muitas
lamentações humildes. Interessava-se com devoção
pela saude d'ella, pela sua roupa, pelo que tinha
para jantar...
Todavia, desde as idas ao
Paraiso, o seu trabalho
augmentára: todos os dias agora tinha d'engommar;
muitas vezes era preciso ensaboar á noite collares,
rendinhas, punhos, n'uma bacia de latão, até
ás onze horas. Ás seis da manhã, mais cedo, já estava
com o «ferro ás voltas». E não se queixava,
até dizia a Joanna:
—Ai! é um regalo vêr assim uma senhora aceada!...
Que as ha! credo! Não, não é por dizer,
mas até me dá gosto. Depois, graças a Deus, agora
tenho saude, o trabalho não me assusta!
Não tornára a resmungar da «patrôa». Affirmava
mesmo á Joanna repetidamente:
[262]
—A senhora! ai, é uma santa! Muito boa d'aturar...
Não a ha melhor!
O seu rosto perdera alguma cousa do tom bilioso,
da contracção amarga. Ás vezes, ao jantar ou á
noite, costurando calada ao pé de Joanna, á luz do
petroleo, vinham-lhe sorrisos subitos, o olhar clareava-se-lhe
n'uma dilatação jovial.
—A snr.
a Juliana tem o ar de quem está a pensar
em cousas boas...
—A malucar cá por dentro, snr.
a Joanna!—respondia
com satisfação.
Parecia perder a inveja; ouviu mesmo fallar com
tranquillidade do vestido de sêda que estreou n'um
dia de festa, em setembro, a Gertrudes do doutor.
Disse apenas:
—Tambem um dia hei-de estrear vestidos, e
dos bons! Dos da modista!
Já outras vezes revelára por palavras vagas a idéa
d'uma abundancia proxima. Joanna até lhe dissera:
—A snr.
a Juliana espera alguma herança?
—Talvez!—respondeu seccamente.
E cada dia detestava mais Luiza. Quando pela
manhã a via arrebicar-se, perfumar-se com agua de
colonia, mirar-se ao toucador cantarolando, sahia do
quarto porque lhe vinham venetas d'odio, tinha medo
d'estourar! Odiava-a pelas
toilettes, pelo ar
alegre,
pela roupa branca, pelo
homem que ia vêr, por
todos os seus regalos de senhora. «A cabra!» Quando
ella sahia ia espreitar, vêl-a subir a rua, e fechando
a vidraça com um risinho rancoroso:
[263]
—Diverte-te, piorrinha, diverte-te, que o meu
dia ha-de chegar! Oh se ha-de!
Luiza com effeito divertia-se. Sahia todos os dias
ás duas horas. Na rua já se dizia que «a do Engenheiro
tinha agora o seu S. Miguel».
Apenas ella dobrava a esquina o
conciliabulo
juntava-se logo a cochichar. Tinham a certeza que se
ia encontrar com o «peralta». Onde seria?—era a
grande curiosidade da carvoeira.
—No hótel—murmurava o Paula.—Que nos
hóteis é escandalo bravio. Ou talvez—acrescentava
com tedio—n'alguma d'essas possilgas da baixa!
A estanqueira lamentava-a: uma senhora que era
tão apropositada!
—Vacca solta lambe-se toda, snr.
a Helena!—rosnava
o Paula.—São todas o mesmo!
—Menos isso!—protestava a estanqueira—Que
eu sempre fui uma mulher honesta!
E ella?—reclamava a carvoeira—ninguem tinha
que lhe dizer!
—Fallo da alta sociedade, das fidalgas, das que
arrastam sêdas! É uma cambada. Eu é que o sei!—E
acrescentava gravemente:—No povo ha mais
moralidade. O povo é outra raça!—E com as mãos
enterradas nos bolsos, as pernas muito abertas, ficava
absorto, com a cabeça baixa, o olhar cravado no
chão.—Se é!—murmurava—Se é!—Como se
estivesse positivamente achando as pedrinhas da calçada
menos numerosas que as virtudes do povo!
[264]
Sebastião, que tinha estado na quinta d'Almada
quasi duas semanas, ficou aterrado quando, ao voltar,
a Joanna lhe deu as grandes «novidades»: que
a Luizinha agora sahia todos os dias ás duas horas,
que o primo não voltára; a Gertrudes é que lh'o
dissera; não se fallava na rua n'outra cousa...
—Então a pobre senhora nem sequer póde ir ás
lojas, aos seus arranjos!—exclamou Sebastião.—A
Gertrudes é uma desavergonhada, e nem sei como
a tia Joanna consente que ella ponha aqui os
pés. Vir com esses mexericos!...
—Cruzes! Olha o destempero!—replicou muito
escandalisada a tia Joanna.—Oh menino, realmente...
A pobre mulher disse o que ouviu na rua!
Que ella até a defende, até ella é que a defende!
Até se esteve a queixar que se falla! que se falla!
Boa!—E a tia Joanna sahiu, resmungando:—Olha
o destempero, credo!
Sebastião chamou-a, aplacou-a:
—Mas quem falla, tia Joanna?
—Quem?—E muito emphaticamente:—Toda
a rua! Toda a rua! Toda a rua!
Sebastião ficou aniquilado. Toda a rua! Pudera!
Se ella agora se punha a sahir todos os dias, uma
senhora, que quando estava Jorge não sahia do buraco!
A visinhança que murmurára das visitas do
outro, naturalmente começava a commentar as sahidas
[265]
d'ella! Estava-se a desacreditar! E elle não podia
fazer nada! Ir advertil-a? Ter outra «scena»?
Não podia.
Procurou-a. Não lhe queria de certo tocar em
nada, ia só vêl-a. Não estava. Voltou d'ahi a dous
dias. Juliana veio-lhe dizer á cancella, com o seu
sorriso amarellado: «Foi-se agora mesmo, ha um
instantinho. Ainda a apanha á Patriarchal». Emfim,
um dia encontrou-a ao principio da rua de S. Roque.
Luiza pareceu muito contente em o vêr:—Porque
se tinha demorado tanto em Almada? Que deserção!
Trazia carpinteiros, era necessario vigiar as obras.
E ella?
—Bem. Um bocado aborrecida. O Jorge diz que
ainda se demora. Tenho estado muito só. Nem Julião,
nem Conselheiro, ninguem. A D. Felicidade é
que tem apparecido ás vezes de fugida. Está agora
sempre mettida na Encarnação... Isto gente devota!—E
riu.
Então aonde ia?
A umas comprasitas, á modista depois...—E
appareça agora, Sebastião, hein?
—Hei-d'apparecer.
—Á noite. Estou tão só! Tenho tocado muito, é
o que me vale é o piano!
N'essa mesma tarde Sebastião recebeu uma carta
de Jorge. «Tens visto a Luiza? Estive quasi com cuidado,
porque estive mais de cinco dias sem carta
d'ella. De resto está preguiçosa como uma freira;
quando escreve são quatro linhas porque está o correio
[266]
a partir. Vai dizer ao correio que espere, que
diabo! Queixa-se de se aborrecer, de estar só, que
todos a abandonaram, que tem vivido como n'um
deserto. Vê se lhe vaes fazer companhia, coitada,
etc.»
No dia seguinte ao anoitecer foi a casa d'ella.
Appareceu-lhe muito vermelha, com os olhos estremunhados,
de roupão branco. Tinha chegado muito
cançada de fóra, tinha-lhe dado o somno depois de
jantar, adormecera sobre a
causeuse... Que havia de
novo? E bocejava.
Fallaram das obras d'Almada, do Conselheiro, de
Julião; e ficaram calados. Havia um constrangimento.
Luiza então accendeu as velas no piano, mostrou-lhe
a nova musica que estudava, a
Medjé de
Gounod; mas havia uma passagem em que se embrulhava
sempre; pediu a Sebastião que a tocasse,
e junto do piano, batendo o compasso com o pé,
acompanhava baixo a melodia, a que a execução de
Sebastião dava um encanto penetrante. Quiz tentar
depois, mas enganou-se, zangou-se, atirou a musica
para o lado, veio sentar-se no sophá, dizendo:
—Quasi nunca tóco! Estão-se-me a enferrujar os
dedos!...
Sebastião não se atrevia a perguntar pelo primo
Bazilio. Luiza não lhe pronunciou sequer o nome. E
Sebastião, vendo n'aquella reserva uma diminuição
de confiança ou um resto persistente de despeito,
disse que tinha d'ir á Associação Geral d'Agricultura,
e sahiu muito desconsolado.
[267]
Cada dia que se seguiu trouxe-lhe a sua inquietação
differente. Ás vezes era a tia Joanna que lhe
dizia á tarde: «A
Luizinha lá sahiu hoje outra
vez!
Por este calor, até póde apanhar alguma! Credo!»
Outras era o conciliabulo dos visinhos, que avistava
de longe, e que de certo «estavam a cortar na pelle
da pobre senhora»!
Parecia-lhe tudo aquillo exactamente a
aria da
Calumnia no
Barbeiro de Sevilha: a
calumnia ao
principio leve como o fremito das azas d'um passaro,
subindo n'um crescendo aterrador até estalar como
um trovão!
Dava agora voltas para não passar na rua, diante
do Paula e da estanqueira: tinha vergonha d'elles!
Encontrára o Teixeira Azevedo, que lhe perguntára:
—Então o Jorge quando vem? Que diabo! o rapaz
fica por lá!
E aquella observação trivial aterrou-o.
Emfim, um dia, mais apoquentado, foi procurar
Julião. Encontrou-o no seu quarto andar, em mangas
de camisa e em chinellas, enxovalhado e esguedelhado,
rodeado de papelada, com uma chocolateirinha
de café ao pé, trabalhando. O soalho negro estava
cheio de pontas de cigarro; ao canto estava
embrulhada roupa suja; sobre a cama desfeita havia
livros abertos;—e um cheiro relentado sahia do desmazêlo
das cousas. A janella de peitoril dava para o
saguão, d'onde vinha o cantar estridente d'uma criada,
e o ruido areado do esfregar de tachos.
Julião, apenas elle entrou, ergueu-se, espreguiçou-se,
[268]
enrolou um cigarro, e declarou que estava a
trabalhar desde as sete!... Hein? Era bonito! Para
que soubesse o snr. Sebastião!
—De resto chegaste a proposito. Estava para
mandar a tua casa... Devia receber ahi um dinheiro
e não veio. Dá cá uma libra.
E immediatamente começou a fallar da these. A
cousa sahia!
Leu-lhe paragraphos do prologo com uma deleitação
paternal, e, muito satisfeito, na abundancia de
confiança que dá a excitação do trabalho, com grandes
passadas pelo quarto:
—Hei-de-lhes mostrar que ainda ha portuguezes
em Portugal, Sebastião! Hei-de-os deixar de bocca
aberta! Tu verás!
Sentou-se, pôz-se a numerar as folhas escriptas,
assobiando. Sebastião, então, com timidez, quasi vexado
de perturbar com as suas preoccupações domesticas
aquelles interesses scientificos, disse baixo:
—Pois eu vim-te fallar por causa lá da nossa
gente...
Mas a porta abriu-se com força, e um rapaz de
barba desleixada, e olhar um pouco doudo, entrou;
era um estudante da Escóla, amigo de Julião; e quasi
immediatamente os dous recomeçaram uma discussão
que tinham travado de manhã, e que fôra interrompida
ás onze horas, quando o rapaz d'olhar doudo
descêra a almoçar á Aurea.
—Não, menino!—exclamava o estudante exaltado.—Estou
na minha! A medicina é uma meia
[269]
sciencia, a physiologia é outra meia sciencia! São
sciencias conjecturaes, porque nos escapa a base, conhecer
o principio da vida!
E cruzando os braços diante de Sebastião, bradou-lhe:
—Que sabemos nós do principio da vida?
Sebastião, humilhado, baixou os olhos.
Mas Julião indignava-se:
—Estás desmoralisado pela doutrina vitalista,
miseravel! Trovejou contra o Vitalismo, que declarou
«contrario ao espirito scientifico». Uma theoria que
pretende que as leis que governam os corpos brutos
não são as mesmas que governam os corpos vivos—é
uma heresia grotesca!—exclamava.—E
Bichat que a proclama é uma besta!
O estudante, fóra de si, bradou—que chamar a
Bichat uma besta era simplesmente d'um alarve.
Mas Julião desprezou a injuria, e continuou, exaltado
nas suas idéas:
—Que nos importa a nós o principio da vida?
Importa-me tanto como a primeira camisa que vesti!
O principio da vida é como outro qualquer principio:
um segredo! Havemos d'ignoral-o eternamente! Não
podemos saber nenhum principio. A vida, a morte,
as origens, os fins, mysterios! São causas primarias
com que não temos nada a fazer, nada! Podemos
batalhar seculos, que não avançamos uma pollegada.
O physiologista, o chimico, não tem nada com os
principios das cousas; o que lhes importa são os
phenomenos! Ora os phenomenos e as suas causas
[270]
immediatas, meu caro amigo, podem ser determinadas
com tanto rigor nos corpos brutos, como nos
corpos vivos—n'uma pedra, como n'um desembargador!
E a physiologia e a medicina são sciencias
tão exactas como a chimica! Isto já vem de Descartes!
Travaram então um berreiro sobre Descartes. E
immediatamente, sem que Sebastião attonito tivesse
descoberto a transição, encarniçaram-se sobre a idéa
de Deus.
O estudante parecia necessitar Deus para explicar
o universo. Mas Julião atacava Deus com cólera:
chamava-lhe «uma hypothese safada», «uma velha
caturrice do partido miguelista»! E começaram a
assaltar-se sobre a questão social, como dous gallos
inimigos.
O estudante, com os olhos esgazeados, sustentava,
dando punhadas sobre a mesa, o principio da authoridade!
Julião berrava pela «anarchia individual»!
E depois de citarem com furia Proudhon, Bastiat,
Jouffroy romperam em personalidades. Julião, que
dominava pela estridencia da voz, censurou violentamente
ao estudante—as suas inscripções a seis por
cento, o ridiculo de ser filho d'um corretor de fundos,
e o bife de proprietario que vinha de comer na
Aurea!
Olharam-se, então, com rancor.
Mas d'ahi a momentos o estudante deixou cahir
com desdem algumas palavras sobre Claude Bernard,
e a questão recomeçou, furiosa.
[271]
Sebastião tomou o chapéo.
—Adeus—disse baixo.
—Adeus, Sebastião, adeus—disse promptamente
Julião.
Acompanhou-o ao patamar.
—E quando quizeres que eu falle a meu primo...—murmurou
Sebastião.
—Pois sim, veremos, eu pensarei—disse Julião
com indifferença, como se o orgulho do trabalho lhe
tivesse dissipado o terror da injustiça.
Sebastião foi descendo as escadas, pensando: Não
se lhe póde fallar em nada, agora!
De repente veio-lhe uma idéa: se fosse ter com
D. Felicidade, abrir-se com ella! D. Felicidade era
espalhafatona, um pouco tonta, mas era uma mulher
d'idade, intima de Luiza; tinha mais authoridade, mais
habilidade mesmo...
Decidiu-se logo, tomou um trem, foi á rua de S.
Bento.
A criada de D. Felicidade appareceu-lhe, desolada,
e lacrimosa:
—Pois não sabe?
—Não.
—Ai! até admira!
—Mas o que?
—A senhora! Uma desgraça assim! Torceu um
pé na Encarnação, deu uma quéda. Tem estado muito
mal, muito mal.
—Aqui?
—Na Encarnação. Nem pôde sahir. Está com a
[272]
snr.
a D. Anna Silveira. Uma desgraça assim! E está
n'um phrenesi!
—Mas quando foi?
—Antes d'hontem á noite.
Sebastião saltou para o trem, mandou «bater»
para casa de Luiza.
A D. Felicidade, doente, na Encarnação! Mas então
Luiza podia bem sahir todos os dias! Ia vêl-a,
fazer-lhe companhia, tratar d'ella!...
A visinhança não tinha que rosnar! Ia vêr a pobre
doente!...
Eram duas horas quando a parelha estacou á porta
de Luiza. Encontrou-a, que descia a escada, vestida
de preto, de luva
gris perle, com um véo negro.
—Ah! suba, Sebastião, suba! Quer subir?
Parára, nos degraus, com uma côrzinha no rosto,
um pouco embaraçada.
—Não, obrigado. Vinha dizer-lhe... Não sabe?
A D. Felicidade...
—O quê?
—Torceu um pé. Está mal.
—Que me diz?
Sebastião deu os pormenores.
—Vou já lá.
—Deve ir. Eu não posso ir, não entram homens.
Coitada! Diz que está mal.—Acompanhou-a até á
esquina da rua, offereceu-lhe mesmo a tipoia:—E
muitos recados, que tenho pena de a não vêr!...
Pobre senhora! E diz que está n'um phrenesi!
Viu-a afastar-se para a Patriarchal, e, admirando
[273]
a graça da sua figura, esfregava as mãos satisfeito.
Estavam justificadas, santificadas mesmo aquellas
passeatas todos os dias! Ia ser a enfermeira da pobre
D. Felicidade! Era necessario que todos soubessem,
o Paula, a estanqueira, a Gertrudes, as Azevedos,
todos, de modo que quando a vissem de manhã,
subir a rua, dissessem:—Lá vai fazer companhia
á doente! Santa senhora!
O Paula estava á porta da loja—e Sebastião com
uma idéa subita, entrou. Estava-se estimando de se
sentir tão fecundo em expedientes, tão habil!
Deitou um pouco o chapéo para a nuca, e mostrando
com o guarda-sol o painel que representava
D. João VI:
—Quanto quer vossemecê por isto, ó snr. Paula?
O Paula ficou surprehendido:
—O snr. Sebastião está a brincar?
Sebastião exclamou:
—A brincar?—Fallava muito sério! queria uns
quadros para a sala d'entrada, em Almada: mas velhos,
sem caixilho, para dizerem bem sobre um papel
escuro.—Como isto! Estou a brincar! Ora essa,
homem!
—Desculpe, snr. Sebastião... Pois n'esse caso
ha por ahi alguns paineis a calhar.
—Este D. João VI agrada-me. Quanto custa isto?
O Paula disse, sem hesitar:
—Sete mil e duzentos. Mas é obra de mestre.
Era uma téla desbotada de tom defumado, onde
[274]
uns restos de face avermelhada, com uma cabelleira
em cachos, sobresahiam vagamente sobre um fundo
sombrio. Um vermelhão baço indicava o velludo de
uma casaca de côrte: a pança saliente e ostentosa
enchia um collete esverdeado. E a parte mais conservada
da téla era, ao lado sobre um coxim, a corôa
real—que o artista trabalhára com uma minuciosidade
enthusiasta, ou por preoccupação d'idiota,
ou por adulação de cortezão.
Sebastião achava caro; mas o Paula mostrou-lhe
o preço escripto por traz, n'uma tirinha de papel;
espanejou a téla com amor; indicou as bellezas, fallou
na sua honestidade; deprimiu outros vendedores
de moveis, «que tinham a consciencia nas palmilhas»;
jurou que o retrato pertencera ao paço de
Queluz, e ia atacar as questões publicas—quando
Sebastião disse resumindo:
—Bem, pois mande-m'o logo, fico com elle. E
mande a conta.
—Leva uma rica obra!
Sebastião agora olhava em redor. Queria fallar
do «pé torcido de D. Felicidade», e procurava uma
transição. Examinou umas jarras da India, um tremó;
e avistando uma poltrona de doente:
—Aquillo é que era bom para a D. Felicidade!—exclamou
logo—aquella cadeira! Boa cadeira!
O Paula arregalou os olhos.
—Para a D. Felicidade Noronha—repetiu Sebastião.—Para
estar deitada... Pois não sabia, homem?
Partiu um pé, tem estado muito mal.
[275]
—A D. Felicidade, a amiga
de cá?—e indicou
com o pollegar a casa do Engenheiro.
—Sim, homem! Quebrou um pé na Encarnação.
Até lá ficou. A D. Luiza vai para lá fazer-lhe companhia
todos os dias. Agora ia ella para lá...
—Ah!—fez o Paula lentamente. E depois de
uma pausa:—Mas eu ainda a vi entrar
para cá ha-de
haver oito dias.
—Foi antes d'hontem.—Tossiu e acrescentou,
voltando o rosto, olhando muito umas gravuras:—De
resto a D. Luiza já ia todos os dias á Encarnação,
mas era para vêr a Silveira, a D. Anna Silveira, que
esteve mal. Coitada, ha tres semanas que tem passado
uma vida d'enfermeira. Não sahe da Encarnação!
E agora é a D. Felicidade. Não é má massada!
—Pois não sabia, não sabia—murmurava o
Paula, com as mãos enterradas nos bolsos.
—Mande-me o D. João VI, hein?
—Ás ordens, snr. Sebastião.
Sebastião foi para casa. Subiu á sala; e atirando
o chapéo para o sophá: Bem, pensou, agora
ao menos estão salvas as apparencias!—Passeou
algum tempo com a cabeça baixa; sentia-se triste;
porque o ter conseguido, por um acaso, justificar
aquelles passeios para com a visinhança, fazia-lhe
parecer mais cruel a idéa de que os não podia justificar
para comsigo. Os commentarios dos visinhos
iam findar por algum tempo, mas
os seus?... Queria
achal-os falsos, pueris, injustos: e, contra sua
vontade, o seu bom senso e a sua rectidão estavam
[276]
sempre a revolvel-os baixo. Emfim, tinha feito o que
devia! E com um gesto triste, fallando só, no silencio
da sala:
—O resto é com a sua consciencia!
N'essa tarde, na rua, sabia-se já que a D. Felicidade
de Noronha torcera um pé na Encarnação,
(outros diziam quebrára uma perna), e que a D.
Luiza não lhe sahia da cabeceira... O Paula declarára
com authoridade:
—É de boa rapariga, é de muito boa rapariga!
A Gertrudes do doutor foi logo, á noitinha, perguntar
á tia Joanna, «se era verdade da perna quebrada».
A tia Joanna corrigiu: era o pé, torcera o
pé! E a Gertrudes veio dizer ao doutor, ao chá, que
a D. Felicidade déra uma queda que ficára em pedaços.—Foi
na Encarnação, acrescentou. Diz que anda
tudo lá n'uma roda viva. A Luizinha até lá tem
dormido...
—Pieguices de beatas!—rosnou com tedio o
doutor.
Mas na rua todos a elogiavam. Mesmo, d'ahi a
dias, o Teixeira Azevedo (que apenas comprimentava
Luiza), tendo-a encontrado na rua de S. Roque, parou,
e com uma cortezia profunda:
—Desculpe vossencia. Como vai a sua doente?
—Melhor, agradecida.
—Pois, minha senhora, tem sido de muita caridade,
ir todos os dias por este calor á Encarnação...
Luiza corou.
—Coitada! Não lhe falta companhia, mas...
[277]
—É de muita caridade, minha senhora—exclamou
com emphase—Tenho-o dito por toda a parte.
É de muita caridade. Um criado de vossencia!
E afastou-se commovido.
Luiza fôra logo, com effeito, vêr D. Felicidade.
Tinha uma luxação simples; e deitada nos quartos
da Silveira, com o pé em compressas d'arnica, cheia
de terror de «perder a perna», passava o dia rodeada
d'amigas, chorando-se, saboreando os mexericos
do Recolhimento, e debicando petiscos.
Apenas alguem entrava para a vêr, redobrava
d'exclamações e de queixas; vinha logo a historia
miuda, incidentada, prolixa da «desgraça»: ia a
descer, a pôr o pé no degrau; escorregára; sentiu
que ia a cahir; ainda se sustentou, e pôde dizer:
Ai Nossa Senhora da Saude! Ao principio a dôr não
foi grande; mas podia ter morrido; tinha sido um
milagre!
Todas as senhoras concordavam «que era realmente
um milagre». Olhavam-na compungidas, e iam
ao côro alternadamente prostrar-se, e pedir aos santos
especiaes o allivio da Noronha!
A primeira visita de Luiza foi para D. Felicidade
uma consolação, «deu-lhe melhoras»; porque se ralava
de estar alli de cama, sem saber noticias d'
elle,
sem poder fallar d'
elle!
E nos dias seguintes, apenas ficava só no quarto
[278]
com Luiza, chamava-a logo para a cabeceira, e n'um
murmurio mysterioso: Tinha-o visto? Sabia d'
elle?
—A sua afflicção era que o Conselheiro não soubesse
que ella estava doente, e não lhe podesse dar aquelles
pensamentos compassivos—a que o seu pé tinha
direito, e que seriam um conforto para o seu
coração! Mas Luiza não
o vira—e D. Felicidade,
remexendo
a chásada, exhalava suspiros agudos.
Ás duas horas Luiza sahia da Encarnação—e ia
tomar um trem ao Rocio: para não parar á porta do
Paraiso com espalhafato de tipoia, apeava-se ao
largo
de Santa Barbara; e fazendo-se pequenina, cosida
com a sombra das casas, apressava-se com os olhos
baixos, e um vago sorriso de prazer.
Bazilio esperava-a deitado na cama, em mangas
de camisa: para não se enfastiar, só, tinha trazido
para o
Paraiso uma garrafa de cognac, assucar,
limões—e
com a porta entreaberta fumava, fazendo
grogs frios. O tempo arrastava-se, via a todo o
momento
as horas, e sem querer ia escutando, notando
todos os ruidos intimos da familia da proprietaria
que vivia nos quartos interiores: a rabuje d'uma
criança, uma voz acatarrhoada que ralhava, e de repente
uma cadellinha que começava a ladrar furiosa.
Bazilio achava aquillo burguez e reles, impacientava-se.
Mas um
frou-frou de vestido roçava a escada—e
os tedios d'elle, bem como os receios d'ella,
dissipavam-se logo no calor dos primeiros beijos.
Luiza vinha sempre com pressa; queria estar em
casa ás cinco horas, «e era um estirão depois!» Entrava
[279]
um pouco suada, e Bazilio gostava da transpiraçãosinha
tepida que havia nos seus hombros nús.
—E teu marido?—perguntava elle.—Quando
vem?
—Não falla em nada.—Ou então:—Não recebi
carta, não sei nada.
Parecia ser aquella a preoccupação de Bazilio, na
alegria egoista da posse recente. Tinha então caricias
muito extaticas; ajoelhava-se aos pés d'ella; fazia
voz de criança:
—Lili não ama Bibi...
Ella ria, meio despida, com um riso cantado e
libertino.
—Lili adora Bibi!... É douda por Bibi!
E queria saber se pensava n'ella, o que tinha
feito na vespera. Fôra ao Gremio, jogára uns
robbers,
viera para casa cedo, sonhára com ella...
—Vivo para ti, meu amor, acredita!
E deixava-lhe cahir a cabeça no regaço, como
sob uma felicidade excessiva.
Outras vezes, mais serio, dava-lhe certos conselhos
de gôsto, de
toilette: pedira-lhe que não trouxesse
postiços no cabello, que não usasse botinhas
de elastico.
Luiza admirava muito a sua experiencia do luxo;
obedecia-lhe, amoldava-se ás suas idéas:—até affectar,
sem o sentir, um desdem pela gente virtuosa,
para imitar as suas opiniões libertinas.
E lentamente, vendo aquella docilidade, Bazilio
não se dava ao incommodo de se constranger; usava
[280]
d'ella,
como se a pagasse! Acontecera uma manhã
escrever-lhe duas palavras a lapis que «não podia
ir ao
Paraiso», sem outras explicações! Uma
occasião mesmo não foi, sem a avisar—e Luiza
achou a porta fechada. Bateu timidamente, olhou pela
fechadura, esperou palpitante—e voltou muito
desconsolada, quebrada do calor, com a poeirada nos
olhos, e vontade de chorar.
Não aceitava o menor incommodo, nem para
lhe causar um contentamento. Luiza tinha-lhe pedido
que fosse de vez em quando aos domingos a sua
casa, passar a noite: viria Sebastião, o Conselheiro,
D. Felicidade quando estivesse melhor: era uma alegria
para ella, e depois dava ás suas relações um
ar mais parente, mais legitimo.
Mas Bazilio pulou:
—O quê! ir cabecear de somno com quatro caturras...
Ah! não!...
—Mas conversa-se, faz-se musica...
—
Merci! Conheço-a, a musica das
soirées de
Lisboa! A valsa do
Beijo e o
Trovador. Safa!
Depois duas ou tres vezes fallára de Jorge com
desdem. Aquillo offendera-a.
Ultimamente mesmo, quando ella entrava no
Paraiso,
já não tinha a delicadeza amorosa de se levantar
alvoroçado: sentava-se apenas na cama, e tirando
preguiçosamente o charuto da bocca:
—Ora viva a minha flôr!—dizia.
E um ar de superioridade quando lhe fallava!
Um modo de encolher os hombros, de exclamar:—Tu
[281]
não percebes nada d'isso! Chegava a ter palavras
cruas, gestos brutaes. E Luiza começou a desconfiar
que Bazilio não a estimava,—apenas a desejava!
Ao principio chorou. Resolveu explicar-se com
elle, romper se fosse necessario. Mas adiou, não se
atrevia: a figura de Bazilio, a sua voz, o seu olhar
dominavam-na; e accendendo-lhe a paixão tiravam-lhe
a coragem de a perturbar com queixas. Porque
estava convencida então que o adorava: o que lhe
dava tanta exaltação no
desejo, se não era a
grandeza
do
sentimento?... Gozava tanto, é porque o
amava muito!... E a sua honestidade natural, os
seus pudores refugiavam-se n'este raciocinio subtil.
Elle tinha ás vezes uma seccura aspera de maneiras,
era verdade; certos tons de indifferença, era
certo... Mas n'outros momentos, quantas denguices,
que tremuras na voz, que phrenesi nas caricias!...
Amava-a tambem, não havia duvida. Aquella certeza
era a sua justificação. E como era o Amor que os
produzia, não se envergonhava dos alvoroços voluptuosos
com que ia todas as manhãs ao
Paraiso!
Duas ou tres vezes, ao voltar, tinha encontrado
Juliana que subia tambem apressada o Moinho de
Vento.
—D'onde vinha vossê?—perguntára-lhe em
casa.
—Do medico, minha senhora, fui ao medico.
Queixava-se de pontadas, palpitações, faltas d'ar.
—Flatos! flatos!
[282]
Com effeito, Juliana agora fazia todos os arranjos
pela manhã; depois apenas Luiza, pela uma hora,
dobrava a esquina, ia-se vestir, e muito espartilhada
no seu vestido de merino, de chapéo e sombrinha,
vinha dizer a Joanna:
—Até logo, vou ao medico.
—Até logo, snr.
a Juliana—dizia a cozinheira
radiante.
E ia logo fazer signal ao carpinteiro.
Juliana descia por S. Pedro de Alcantara, e tomando
para o largo do Carmo ia á ruasita, defronte
do quartel. Alli morava n'um terceiro andar a sua intima
amiga, a tia Victoria.
Era uma velha que fôra inculcadeira. Ainda tinha
mesmo na cancella, n'uma placa de metal, com letras
negras: «
Victoria Soares, inculcadeira.»
Mas nos ultimos annos a sua industria tornou-se mais
complicada, muito tortuosa.
Exercia-a n'uma saleta esteirada, com mosquiteiros
de papel pendentes do tecto encardido, alumiada
por duas tristes janellas de peito. Um vasto sophá
occupava quasi a parede do fundo: fôra de certo de
reps verde, mas o estofo coçado, comido, remendado,
tinha agora, sob largas nodoas, uma vaga côr parda;
as molas partidas, rangiam com estalidos melancolicos;
a um dos cantos, n'uma cova que o uso cavára,
dormia todo o dia um gato; e um dos lados da madeira
[283]
queimada revelava que fôra salvo d'um incendio.
Sobre o sophá pendia a lithographia do senhor
D. Pedro IV. Entre as duas janellas havia uma
commoda
alta; e em cima, entre um Santo Antonio e
um cofre feito de buzios, um macaquinho empalhado,
com olhos de vidro, equilibrava-se sobre um galho
d'arvore. Ao entrar via-se logo, junto da janella
fronteira á porta, a uma mesa coberta de oleado, um
dorso magro e curvado, e um barretinho de sêda
com uma borla arrebitada. Era o snr. Gouvêa, o escripturario!
O ar abafado tinha um cheiro complexo, indefinido—em
que se sentia a cavalhariça, a graxa e o
refogado. Havia sempre gente: grossas matronas de
capote e lenço, face gordalhufa e buço; cocheiros com
o cabello acamado, muito lustroso de oleo, e blusa
de riscadinho: pesados gallegos côr de greda, de passadas
retumbantes e fórmas lôrpas: criadinhas de
dentro, amarelladas, de olheiras, sombrinha de cabo
d'osso, e as luvas de pellica com passagens nas pontas
dos dedos.
Defronte da sala abria-se um quarto que deitava
para o saguão,—por cuja portinha verde se viam ás
vezes desapparecer dorsos respeitaveis de proprietarios,
ou caudas espalhafatosas de vestidos suspeitos.
Em certas occasiões, aos sabbados, juntavam-se
cinco, seis pessoas: velhas fallavam baixo, com gestos
mysteriosos: uma altercação mal abafada roncava
no patamar: rapariguitas de repente desatavam
[284]
a chorar; e, impassivel, o snr. Gouvêa escrevinhava
os seus registos, arremessando para o lado jactos melancolicos
de saliva.
A tia Victoria, no entanto, com a sua touca de
renda negra, um vestido rôxo,—ia, vinha, cochichava,
gesticulava, fazia tilintar dinheiro, tirando a
cada momento da algibeira rebuçados de avenca para
o catarrho.
A tia Victoria era uma grande utilidade, tornára-se
um centro! A criadagem reles, mesmo a criadagem
fina, tinha alli para tudo o seu
despacho.
Emprestava
dinheiro aos desempregados; guardava as
economias dos poupados; fazia escrever pelo snr.
Gouvêa as correspondencias amorosas ou domesticas
dos que não tinham ido á escóla; vendia vestidos
em segunda mão; alugava casacas; aconselhava collocações,
recebia confidencias, dirigia intrigas, entendia
de partos. Nenhum criado era inculcado por ella;
mas, arranjados ou despedidos, nunca deixavam de
subir, descer as escadas da tia Victoria. Tinha além
d'isso muitas relações, infinitas condescendencias:
celibatarios maduros iam entender-se com ella, para
o confortosinho d'uma sopeira gordita e nova: era
ella quem inculcava as serventes ás mulheres policiadas;
sabia de certos agiotas discretos. E dizia-se:
a tia Victoria tem mais manhas que cabellos!
Mas, ultimamente, apesar dos seus «afazeres»,
apenas Juliana entrava—levava-a para o quarto
nas trazeiras, fechava a porta, e «havia para meia
hora»!
[285]
E Juliana sahia sempre vermelha, os olhos accesos,
feliz! Voltava depressa para casa; e mal entrava:
—A senhora ainda não voltou, snr.
a Joanna?
—Ainda não.
—Está na Encarnação. Coitada! não tem má
cruz, ir aturar a velha! E depois naturalmente vai
dar o seu passeio! Faz ella muito bem! Espairecer!
Joanna era de certo espessa e obtusa; além d'isso
a paixão animal pelo rapazola emparvecia-a. Todavia,
percebera que a snr.
a Juliana andava «muito
derretida pela senhora»: disse-lh'o mesmo um dia:
—Vossemecê agora, snr.
a Juliana, parece mais
na bola da senhora!
—Na bola?
—Sim, quero dizer, mais aquella, mais...
—Mais apegada á senhora?
—Mais apegada.
—Sempre o estive. Mas então! ás vezes a gente
tem os seus repentes... Que olhe, snr.
a Joanna, não
se acha melhor que aqui. Senhora de muito bom genio,
nada de exquisitices, nenhumas prisões... Ai, é
dar louvores ao céo de estarmos n'este descanço.
—E é!
A casa com effeito tinha um aspecto jovial de felicidade
tranquilla: Luiza sahia todos os dias e achava
tudo bom; nunca se impacientava; a sua antipathia
por Juliana parecia dissipada, considerava-a uma
pobre de Christo! Juliana tomava os seus caldinhos,
dava os seus passeios, ruminava. Joanna, muito livre,
[286]
muito só em casa, regalava-se com o carpinteiro.
Não vinham visitas. D. Felicidade, na Encarnação,
inundava-se d'arnica. Sebastião fôra para Almada
vigiar as obras. O Conselheiro partira para Cintra,
«dar umas ferias ao espirito, tinha elle dito a
Luiza, e deliciar-se nas maravilhas d'aquelle Eden».
O snr. Julião, «o doutor», como dizia a Joanna, trabalhava
a sua these. As horas eram muito regulares,
havia sempre um silencio pacato. Juliana, um dia, na
cozinha, impressionada por aquelle recolhimento satisfeito
de toda a casa, exclamou para Joanna:
—Não se póde estar melhor! A barca vai n'um
mar de rosas!
E acrescentou, com uma risadinha:
—E eu ao leme!
VII
Por esse tempo, uma manhã que Luiza ia para
o
Paraiso, viu de repente sahir d'um portal, um
pouco adiante do largo de Santa Barbara, a figura
azafamada d'Ernestinho.
—Por aqui, prima Luiza!—exclamou elle logo
muito surprehendido.—Por estes bairros! Que faz
por aqui? Grande milagre!
Vinha vermelho, trazia as bandas do casaco d'alpaca
todas deitadas para traz, e agitava com excitação
um rolo grosso de papeis.
Luiza ficou um pouco embaraçada; disse que viera
fazer uma visita a uma amiga.—Oh! elle não
conhecia, tinha chegado do Porto...
—Ah, bem! bem! E que é feito, como tem passado?
Quando vem o Jorge?—Desculpou-se logo
de a não ter ido vêr; mas é que não tinha uma migalha
[288]
livre! De manhã a alfandega, á noite os ensaios...
—Então sempre vai?—perguntou Luiza.
—Vai.
E enthusiasmado:
—E como vai! Um primor! Mas que trabalhão,
que trabalhão!—Agora vinha elle de casa do actor
Pinto, que fazia o papel de amante, de conde de
Monte Redondo; tinha-o ouvido dizer as palavras finaes
do terceiro acto:
Maldição, a sorte funesta esmaga-me!
Pois bem, arcarei braço a braço com a
sorte. Á lucta! Era uma maravilha! Vinha tambem
de lhe dar parte que alterára o monologo do segundo
acto. O empresario achava-o longo...
—Então continúa a implicar, o empresario?
Ernestinho fez uma visagem d'hesitação.
—Implica um bocado...—E com um rosto radioso:—Mas
está delirante! Estão todos delirantes!
Hontem me dizia elle: «Lesminha»... É o nome
que me dão por pandiga. Tem graça, não é verdade?
Dizia-me elle: «Lesminha, na primeira representação
cahe ahi Lisboa em peso! Vossê enterra-os
a todos!» É bom homem! E agora vou-me a casa do
Bastos, o folhetinista da
Verdade. Não conhece?
Luiza não se lembrava bem.
—O Bastos, o da
Verdade!—insistia elle.
E vendo que Luiza parecia alheia ao nome, ao
individuo:
—Ora não conhece outra cousa!—Ia descrever-lhe
as feições, citar-lhes as obras...
[289]
Mas Luiza, impaciente, para findar:
—Ah! sim, lembro-me agora. Perfeitamente...
Bem sei!
—Pois é verdade, vou a casa d'elle.—Tomou
um tom compenetrado:—Somos muito amigos, é
muito bom rapaz, e tem um pequerrucho lindo!...—E
apertando-lhe muito a mão:—Adeusinho, prima
Luiza, que não posso perder um momento. Quer
que a vá acompanhar?
—Não, é aqui perto.
—Adeus, recados ao Jorge!
Ia a afastar-se, atarefado, mas voltando-se rapidamente,
correu atraz d'ella.
—Ah! esquecia-me dizer-lhe, sabe que lhe perdoei?
Luiza abriu muito os olhos.
—Á condessa, á heroina!—exclamou Ernestinho.
—Ah!
—Sim, o marido perdôa-lhe, obtem uma embaixada,
e vão viver no estrangeiro. É mais natural...
—De certo!—disse vagamente Luiza.
—E a peça acaba, dizendo o amante, o conde
de Monte Redondo:
E eu irei para a solidão morrer
d'esta paixão funesta! É de muito effeito!—Esteve
um momento a olhal-a, e bruscamente:—Adeus,
prima Luiza, recadinhos ao Jorge!
E abalou.
Luiza entrou no
Paraiso muito contrariada. Contou
[290]
o encontro a Bazilio. Ernestinho era tão tolo!
Podia mais tarde fallar n'aquillo, citar a hora, perguntarem-lhe
quem era a amiga do Porto...
E tirando o véo, o chapéo:
—Não, realmente é imprudente vir assim tantas
vezes. Era melhor não vir tanto. Póde-se saber...
Bazilio encolheu os hombros, contrariado:
—Se queres não venhas.
Luiza olhou-o um momento, e curvando-se profundamente:
—Obrigada!
Ia a pôr o chapéo, mas elle veio prender-lhe as
mãos, abraçou-a, murmurando:
—Pois tu fallas em não vir! E eu, então? Eu
que estou em Lisboa por tua causa...
—Não, realmente dizes ás vezes cousas... tens
certos modos...
Bazilio abafou-lhe as palavras com beijos.
—Ta, ta, ta! Nada de questões! Perdôa. Estás
tão linda...
Luiza, ao voltar para casa, veio a reflectir n'aquella
«scena». Não—pensava—já não era a primeira
vez que elle mostrava um desprendimento
muito secco por ella, pela sua reputação, pela sua
saude! Queria-a alli todos os dias, egoistamente.
Que as más linguas fallassem, que as soalheiras a
matassem, que lhe importava? E para que?... Porque
emfim, saltava aos olhos, elle amava-a menos...
As suas palavras, os seus beijos arrefeciam cada
dia, mais e mais!... Já não tinha aquelles arrebatamentos
[291]
do desejo em que a envolvia toda n'uma caricia
palpitante, nem aquella abundancia de sensação
que o fazia cahir de joelhos com as mãos tremulas
como as d'um velho!... Já se não arremessava
para ella, mal ella apparecia á porta, como sobre
uma presa estremecida!... Já não havia aquellas
conversas pueris, cheias de risos, divagadas e tontas,
em que se abandonavam, se esqueciam, depois da
hora ardente e physica, quando ella ficava n'uma lassitude
dôce, com o sangue fresco, a cabeça deitada
sobre os braços nús!—Agora! trocado o ultimo beijo,
accendia o charuto, como n'um restaurante ao
fim do jantar! E ia logo a um espelho pequeno que
havia sobre o lavatorio dar uma penteadella no cabello
com um pentesinho d'algibeira! (O que ella odiava
o pentesinho!) Ás vezes até olhava o relogio!...
E em quanto ella se arranjava não vinha, como nos
primeiros tempos, ajudal-a, pôr-lhe o collarinho, picar-se
nos seus alfinetes, rir em volta d'ella, despedir-se
com beijos apressados da nudez dos seus hombros
antes que o vestido se apertasse. Ia rufar nos
vidros,—ou sentado, com um ar macambuzio, bamboleava
a perna!
E depois positivamente não a respeitava, não a
considerava... Tratava-a por cima do hombro, como
uma burguezinha, pouco educada e estreita, que
apenas conhece o seu bairro. E um modo de passear,
fumando, com a cabeça alta, fallando no «espirito
de madame de tal», nas
toilettes da «condessa
de tal»! Como se ella fosse estupida, e os seus vestidos
[292]
fossem trapos! Ah, era seccante! E parecia,
Deus me perdôe, parecia que lhe fazia uma honra,
uma grande honra em a possuir... Immediatamente
lembrava-lhe Jorge, Jorge que a amava com tanto
respeito! Jorge, para quem ella era de certo a mais
linda, a mais elegante, a mais intelligente, a mais
captivante!... E já pensava um pouco que sacrificára
a sua tranquillidade tão feliz a um amor bem
incerto!
Emfim, um dia que o viu mais distrahido, mais
frio, explicou-se abertamente com elle. Direita, sentada
no canapé de palhinha, fallou com bom senso,
devagar, com um ar digno e preparado: «Que percebia
bem que elle se aborrecia, que o seu grande
amor tinha passado, que era por tanto humilhante
para ella verem-se n'essas condições, e que julgava
mais digno acabarem...»
Bazilio olhava-a, surprehendido da sua solemnidade;
sentia um estudo, uma affectação n'aquellas
phrases; disse muito tranquillamente, sorrindo:
—Trazias isso decorado!
Luiza ergueu-se bruscamente, encarou-o, teve um
movimento desdenhoso dos labios.
—Tu estás douda, Luiza?
—Estou farta! Faço todos os sacrificios por ti,
venho aqui todos os dias, comprometto-me, e para
que? Para te vêr muito indifferente, muito seccado...
—Mas, meu amor...
Ella teve um sorriso d'escarneo.
[293]
—
Meu amor! Oh! são ridiculos esses fingimentos!
Bazilio impacientou-se.
—Já isso cá me faltava, essa scena!—exclamou
impetuosamente. E cruzando os braços diante d'ella:—Mas
que queres tu? Queres que te ame como
no theatro, em S. Carlos? Todas sois assim!
Quando um pobre diabo ama naturalmente, como todo
o mundo, com o seu coração, mas não tem gestos
de tenor, aqui d'el-rei que é frio, que se aborrece,
é ingrato... Mas que queres tu? Queres que me atire
de joelhos, que declame, que revire os olhos,
que faça juras, outras tolices?...
—São tolices que tu fazias...
—Ao principio!—respondeu elle brutalmente.—Já
nos conhecemos muito para isso, minha
rica.
E havia apenas cinco semanas!
—Adeus!—disse Luiza.
—Bem. Vaes zangada?
Ella respondeu, com os olhos baixos, calçando
nervosamente as luvas:
—Não.
Bazilio pôz-se diante da porta, e estendendo os
braços:
—Mas sê razoavel, minha querida. Uma ligação
como a nossa não é o duetto do
Fausto. Eu amo-te;
tu, creio, gostas de mim; fazemos os sacrificios
necessarios, encontramo-nos, somos felizes... Que
diabo queres tu mais? Porque te queixas?
[294]
Ella respondeu com um sorriso ironico e triste:
—Não me queixo. Tens razão.
—Mas não vás zangada, então.
—Não...
—Palavrinha?
—Sim...
Bazilio tomou-lhe as mãos.
—Dê então um beijinho em Bibi...
Luiza beijou-o de leve na face.
—Na boquinha, na boquinha!—E ameaçando-a
com o dedo, fitando-a muito:—Ah geniosinho! Tens
bem o sangue do snr. Antonio de Brito, nosso extremoso
tio, que arrepellava as criadas pelos cabellos!—E
sacudindo-lhe o queixo:—E vens ámanhã?
Luiza hesitou um momento:
—Venho.
Entrou em casa exasperada, humilhada. Eram
seis horas. Juliana veio logo dizer-lhe, muito quisilada:
que a Joanna tinha sahido ás quatro horas,
não tinha voltado, o jantar estava por acabar...
—Onde foi?
Juliana encolheu os hombros com um sorrisinho.
Luiza percebeu. Tinha ido a algum amante, a algum
amor... Teve um gesto de piedade desdenhosa.
—Ha-de lucrar muito com isso. Boa tôla!—disse.
Juliana olhou-a espantada.
—Está bebeda!—pensou.
—Bem, que se lhe ha-de fazer?—exclamou
Luiza.—Esperarei...
[295]
E passeando pelo quarto, excitada, revolvendo o
seu despeito:
—Que egoista, que grosseiro, que infame! E é
por um homem assim que uma mulher se perde! É
estupido!
Como elle supplicava, se fazia pequenino, humilde
ao principio! O que são os amores dos homens!
Como teem a fadiga facil!
E immediatamente lhe veio a idéa de Jorge!
Esse
não! Vivia com ella havia tres annos—e o seu
amor era sempre o mesmo, vivo, meigo, dedicado.
Mas o
outro! Que indigno!
Já a conhecia
muito! Ah!
estava bem certa agora, nunca a amára, elle! Quizera-a
por vaidade, por capricho, por distracção, para
ter uma mulher em Lisboa! É o que era! Mas
amor? Qual!
E ella mesmo, por fim? Amava-o, ella? Concentrou-se,
interrogou-se... Imaginou casos, circumstancias:
se elle a quizesse levar para longe, para
França, iria? Não! Se por um acaso, por uma desgraça
enviuvasse, antevia alguma felicidade casando
com elle? Não!
Mas então!... E como uma pessoa que destapa
um frasco muito guardado, e se admira vendo o perfume
evaporado, ficou toda pasmada de encontrar o
seu coração vazio. O que a levára então para elle?...
Nem ella sabia; não ter nada que fazer, a
curiosidade romanesca e morbida de ter um amante,
mil vaidadesinhas inflammadas, um certo desejo physico...
E sentira-a por ventura, essa felicidade, que
[296]
dão os amores illegitimos, de que tanto se falla nos
romances e nas operas, que faz esquecer tudo na vida,
affrontar a morte, quasi fazel-a amar? Nunca!
Todo o prazer que sentira ao principio, que lhe parecera
ser o amor—vinha da novidade, do saborzinho
delicioso de comer a maçã prohibida, das condições
do mysterio do
Paraiso, d'outras circumstancias
talvez, que nem queria confessar a si mesma,
que a faziam corar por dentro!
Mas que sentia d'extraordinario
agora? Bom Deus,
começava a estar menos commovida ao pé do seu
amante, do que ao pé de seu marido! Um beijo de
Jorge perturbava-a mais, e viviam juntos havia tres
annos! Nunca se seccára ao pé de Jorge, nunca! E
seccava-se positivamente ao pé de Bazilio! Bazilio,
no fim, o que se tornára para ella? era como um
marido pouco amado, que ia amar fóra de casa! Mas
então, valia a pena?...
Onde estava o defeito? No amor mesmo talvez!
Porque emfim, ella e Bazilio estavam nas condições
melhores para obterem uma felicidade excepcional:
eram novos, cercava-os o mysterio, excitava-os a
difficuldade... Porque era então que quasi bocejavam?
É que o amor é essencialmente perecivel, e
na hora em que nasce começa a morrer. Só os começos
são bons. Ha então um delirio, um enthusiasmo, um
bocadinho do céo. Mas depois!... Seria pois necessario
estar sempre a
começar, para poder sempre
sentir?... Era o que fazia Leopoldina. E apparecia-lhe
então nitidamente a explicação d'aquella existencia
[297]
de Leopoldina, inconstante, tomando um amante,
conservando-o uma semana, abandonando-o como
um limão espremido, e renovando assim constantemente
a flôr da sensação!—E, pela logica tortuosa
dos amores illegitimos, o seu primeiro amante fazia-a
vagamente pensar no segundo!
Logo no dia seguinte pôz-se a dizer comsigo que
era bem longe o
Paraiso! Que massada, por aquelle
calor, vestir-se, sahir! Mandou saber de D. Felicidade
por Juliana, e ficou em casa, de roupão branco,
preguiçosa, saboreando a sua preguiça.
N'essa tarde recebeu uma carta de Jorge: «que
ainda se demorava, mas que a sua viuvez começava
a pezar-lhe. Quando se veria emfim na sua casinha,
na sua alcovinha?...»
Ficou muito commovida. Um sentimento de vergonha,
de remorso, uma compaixão terna por Jorge,
tão bom, coitado! um indefinido desejo de o vêr e de
o beijar, a recordação de felicidades passadas perturbaram-na
até ás profundidades do seu sêr. Foi logo
responder-lhe, jurando-lhe «que tambem já estava
farta de estar só, que viesse, que era estupida
semelhante separação...» E era sincera n'aquelle
momento.
Tinha fechado o enveloppe, quando Juliana lhe
veio trazer «uma carta do hotel». Bazilio mostrava-se
desesperado: «...Como não vieste, vejo que estás
zangada; mas é de certo o teu orgulho, não o
teu amor que te domina: não imaginas o que senti
quando vi que não vinhas hoje. Esperei até ás cinco
[298]
horas; que supplicio! Fui talvez secco, mas tu tambem
estavas implicativa. Devemos perdoar-nos ambos,
ajoelharmos um diante do outro, e esquecer todo
o despeito no mesmo amor... Vem ámanhã. Adoro-te
tanto! Que outra prova queres, que esta que
te dou d'abandonar os meus interesses, as minhas
relações, os meus gostos, e enterrar-me aqui em
Lisboa, etc.»
Ficou muito nervosa, sem saber o que havia de
fazer, o que havia de querer. Aquillo era verdade.
Porque estava elle em Lisboa? Por ella. Mas se reconhecia
agora,—que o não amava, ou tão pouco!
E depois era vil trahir assim Jorge, tão bom, tão
amoroso, vivendo todo para ella. Mas se Bazilio realmente
estivesse tão apaixonado!... As suas idéas
redemoinhavam, como folhas d'outono, violentadas
por ventos contradictorios. Desejava estar tranquilla,
«que a não perseguissem». Para que voltára aquelle
homem? Jesus! que havia de fazer? Tinha os seus
pensamentos, os seus sentimentos n'uma dolorosa
trapalhada.
E na manhã seguinte estava na mesma hesitação.
Iria, não iria? O calor fóra, a poeirada da rua faziam-lhe
appetecer mais a casa! Mas que desapontamento,
o do pobre rapaz tambem! Atirou ao ar uma
moeda de cinco tostões. Era cunho, devia ir. Vestiu-se,
sem vontade, seccada,—tendo todavia um certo
desejo dos refinamentos de prazer que dão as expansões
da reconciliação...
Mas que surpreza! esperava encontral-o humilde
[299]
e de joelhos, achou-o com a testa franzida e muito
aspero.
—Luiza, parece incrivel, porque não vieste hontem?
Na vespera, Bazilio, quando viu que ella faltava,
teve um grande despeito e um medo maior; a sua
concupiscencia receou perder aquelle lindo corpo de
rapariga, e o seu orgulho escandalisou-se de vêr libertar-se
aquella escravasinha docil. Resolveu portanto,
a todo o custo, «chamal-a ao rego». Escreveu-lhe;
e mostrando-se submisso para a attrahir, decidiu
ser severo para a castigar.—E acrescentou:
—É uma criancice ridicula. Porque não vieste?
Aquelle modo enraiveceu-a:
—Porque não quiz.
Mas emendou logo:
—Não pude.
—Ah! é essa a maneira por que respondes á
minha carta, Luiza?
—E tu, é esse o modo com que me recebes?
Olharam-se um momento, detestando-se.
—Bem, queres uma questão? És como as outras.
—Que outras?
E toda escandalisada:
—Ah! é de mais! Adeus!
Ia sahir.
—Vaes-te, Luiza?
—Vou. É melhor acabarmos por uma vez...
Elle segurou o fecho da porta rapidamente.
[300]
—Fallas serio, Luiza?
—De certo. Estou farta!
—Bem. Adeus.
Abriu a porta para a deixar passar, curvou-se
silenciosamente.
Ella deu um passo, e Bazilio com a voz um pouco
tremula:
—Então, é para sempre? Nunca mais?
Luiza parou, branca. Aquella triste palavra
nunca
mais deu-lhe uma saudade, uma commoção. Rompeu
a chorar.
As lagrimas tornavam-na sempre mais linda. Parecia
tão dolorida, tão fragil, tão desamparada!...
Bazilio cahiu-lhe aos pés: tinha tambem os olhos
humidos.
—Se tu me deixares, morro!
Os seus labios uniram-se n'um beijo profundo,
longo, penetrante. A excitação dos nervos deu-lhes
momentaneamente a sinceridade da paixão; e foi
uma manhã deliciosa.
Ella prendia-o nos braços nús, pallida como cêra,
balbuciava:
—Não me deixas nunca, não?
—Juro-t'o! Nunca, meu amor!
Mas fazia-se tarde, era necessario ir-se! E a mesma
idéa de certo acudiu-lhes—porque se olharam
avidamente, e Bazilio murmurou:
—Se podesses aqui passar a noite!
Ella disse aterrada, quasi supplicante:
—Oh! não me tentes, não me tentes...
[301]
Bazilio suspirou, disse:
—Não, é uma tolice. Vai.
Luiza começou a arranjar-se, á pressa. E de repente,
parando, com um sorriso:
—Sabes tu uma cousa?
—O que, meu amor?
—Estou a cahir com fome! Não almocei nada,
estou a cahir!
Elle ficou desolado:
—Coitadinha, minha pobre filha! Se eu soubesse...
—Que horas são, filho?
Bazilio viu o relogio, disse quasi envergonhado:
—Sete!
—Ai, Santo Deus!
Punha o chapéo, o véo, atrapalhadamente:
—Que tarde! Jesus! Que tarde!
—E ámanhã, quando?
—Á uma.
—Com certeza?
—Com certeza.
Ao outro dia foi muito pontual. Bazilio veio esperal-a
ao fundo da escada; e apenas entraram no
quarto, devorando-a de beijos:
—Que me fizeste tu? Desde hontem que estou
doudo!
Mas Luiza estava muito intrigada com um cesto
que via em cima da cama.
—Que é aquillo?
Elle sorriu, levou-a pela mão junto da barra de
[302]
ferro, e destampando o cesto, com uma cortezia
grave:
—Provisões, festins, bacchanaes! Não dirás depois
que tens fome!
Era um
lunch. Havia sandwichs, um
pâté de
foie
gras, fruta, uma garrafa de champagne, e, envolto
em flanella, gelo.
—É brilhante!—disse ella, com um sorriso
quente, rubra de prazer.
—Foi o que se pôde arranjar, minha querida
prima! Já vê que pensei em si!
Pôz o cesto no chão, e vindo para ella com os
braços abertos:
—E tu pensaste em mim, meu amor?
Os olhos d'ella responderam—e a pressão apaixonada
dos seus braços.
Ás tres horas lancharam. Foi delicioso; tinham
estendido um guardanapo sobre a cama; a louça tinha
a marca do Hotel Central; aquillo parecia a
Luiza muito estroina, adoravel—e ria de sensualidade,
fazendo tilintar os pedacinhos de gelo contra
o vidro do copo, cheio de
champagne. Sentia uma
felicidade exuberante que transbordava em gritinhos,
em beijos, em toda a sorte de gestos buliçosos. Comia
com gula; e eram adoraveis os seus braços nús
movendo-se por cima dos pratos.
Nunca achára Bazilio tão bonito; o quarto mesmo
parecia-lhe muito conchegado para aquellas intimidades
da paixão; quasi julgava possivel viver alli,
n'aquelle cacifro, annos, feliz com elle, n'um amor
[303]
permanente, e
lunchs ás tres horas... Tinham as
pieguices classicas: mettiam-se bocadinhos na bocca;
ella ria com os seus dentinhos brancos; bebiam pelo
mesmo copo, devoravam-se de beijos,—e elle
quiz-lhe ensinar então a verdadeira maneira de beber
champagne. Talvez ella não soubesse!
—Como é?—perguntou Luiza erguendo o copo.
—Não é com o copo! Horror! Ninguem que se
preza bebe
champagne por um copo. O copo é bom
para o Collares...
Tomou um gole de
champagne, e n'um beijo
passou-o para a bocca d'ella. Luiza riu muito, achou
«divino», quiz beber mais assim. Ia-se fazendo vermelha,
o olhar luzia-lhe.
Tinham tirado os pratos da cama; e sentada á
beira do leito, os seus pésinhos calçados n'uma meia
côr de rosa pendiam, agitavam-se, em quanto um
pouco dobrada sobre si, os cotovêlos sobre o regaço,
a cabecinha de lado, tinha em toda a sua pessoa
a graça languida d'uma pomba fatigada.
Bazilio achava-a irresistivel: quem diria que uma
burguezinha podia ter tanto
chic, tanta
queda? Ajoelhou-se,
tomou-lhe os pésinhos entre as mãos, beijou-lh'os;
depois, dizendo muito mal das ligas «tão
feias, com fechos de metal», beijou-lhe respeitosamente
os joelhos; e então fez-lhe baixinho um pedido.
Ella córou, sorriu, dizia: não! não!—E quando
sahiu do seu delirio tapou o rosto com as mãos,
toda escarlate, murmurou reprehensivamente:
—Oh Bazilio!
[304]
Elle torcia o bigode, muito satisfeito. Ensinára-lhe
uma sensação nova: tinha-a na mão!
Só ás seis horas se desprendeu dos seus braços.
Luiza fez-lhe jurar que havia de pensar n'ella toda
a noite:—não queria que elle sahisse; tinha ciumes
do Gremio, do ar, de tudo! E já no patamar
voltava, beijava-o, louca, repetia:
—E ámanhã mais cedo, sim? para estarmos todo
o dia.
—Não vaes vêr a D. Felicidade?
—Que me importa a D. Felicidade! Não me importa
ninguem! Quero-te a ti! só a ti!
—Ao meio dia?
—Ao meio dia!
Quanto lhe pezou á noite a solidão do seu quarto!
Tinha uma impaciencia que a impellia a prolongar
a excitação da tarde, agitar-se. Ainda quiz lêr,
mas bem depressa arremessou o livro: as duas velas
accesas sobre o toucador pareciam-lhe lugubres;
foi vêr a noite,—estava tepida e serena. Chamou
Juliana:
—Vá pôr um chale, vamos a casa da snr.
a D.
Leopoldina.
Quando chegaram foi a Justina que veio abrir,
depois d'uma grande demora, esguedelhada, em
chambre branco. Pareceu muito espantada:
—A senhora foi p'ra o Porto!
[305]
—P'ra o Porto!
Sim. Demorava-se quinze dias.
Luiza ficou muito desconsolada. Mas não queria
voltar, o seu quarto solitario aterrava-a.
—Vamos um bocado até alli abaixo, Juliana. A
noite está tão bonita!
—Rica, minha senhora!
Foram pela rua de S. Roque. E como guiados pelas
duas linhas de pontos de gaz, que desciam a
rua do Alecrim, o seu pensamento, o seu desejo foram
logo para o
Hotel Central.
Estaria em casa? Pensaria n'ella? Se podesse ir
surprehendel-o de repente, atirar-se-lhe aos braços,
vêr as suas malas... Aquella idéa fazia-a arfar. Entraram
na praça de Camões. Gente passeava devagar;
sob a sombra mais escura que faziam as arvores
cochichava-se pelos bancos; bebia-se agua fresca;
claridades cruas de vidraças, de portas de lojas destacavam
em redor no tom escuro da noite: e no rumor
lento das ruas em redor, sobresahiam as vozes
agudas dos vendedores de jornaes.
Então um sujeito com um chapéo de palha passou
tão rente d'ella, tão intencionalmente que Luiza teve
medo.—Era melhor voltarem—disse.
Mas ao meio da rua de S. Roque o chapéo de
palha reappareceu, roçou quasi o hombro de Luiza;
dous olhos repolhudos dardejaram sobre ella.
Luiza ia desesperada: o tic-tac das suas botinas
batia vivamente a lage do passeio; de repente, ao
pé de S. Pedro d'Alcantara, de sob o chapéo de palha
[306]
sahiu uma voz adocicada e brazileira, dizendo-lhe
junto ao pescoço:
—Aonde mora, ó menina?
Agarrou aterrada o braço de Juliana.
A voz repetiu:
—Não se agaste, menina, aonde mora?
—Seu malcriado!—rugiu Juliana.
O chapéo de palha immediatamente desappareceu
entre as arvores.
Chegaram a casa a arquejar. Luiza tinha vontade
de chorar; deixou-se cahir na
causeuse, esfalfada,
infeliz. Que imprudencia, pôr-se a passear pelas
ruas de noite, com uma criada! Estava douda, desconhecia-se.
Que dia aquelle! E recordava-o desde
pela manhã: o
lunch, o
champagne
bebido pelos beijos
de Bazilio, os seus delirios libertinos, que vergonha!
e ir a casa de Leopoldina, de noite, e ser tomada
na rua por uma mulher do Bairro Alto!... De
repente lembrou-lhe Jorge no Alemtejo trabalhando
por ella, pensando n'ella... Escondeu o rosto entre
as mãos, detestou-se, os seus olhos humedeceram-se.
Mas na manhã seguinte acordou muito alegre.
Sentia, sim, uma vaga vergonha de todas as suas
«tolices» da vespera, e como a sensação indefinida,
palpite ou presentimento, de que não devia ir ao
Paraiso.
O seu desejo, porém, que a impellia para lá
[307]
vivamente, forneceu-lhe logo razões: era desapontar
Bazilio, a não ir hoje não devia voltar, e então romper...
Além d'isso a manhã muito linda attrahia
para a rua: chovera de noite, o calor cedera; havia
nos tons da luz e do azul uma frescura lavada e
dôce.
E ás onze e meia descia o Moinho de Vento,
quando viu a figura digna do conselheiro Accacio que
subia da rua da Rosa, devagar, com o guarda-sol fechado,
a cabeça alta.
Apenas a avistou apressou-se, curvou-se profundamente:
—Que encontro verdadeiramente feliz!...
—Como está, Conselheiro? Ditosos olhos que o
vêem!
—E v. exc.
a, minha senhora? Vejo-a com excellente
aspecto!
Passou-lhe á esquerda com um movimento solemne,
pôz-se a caminhar ao lado d'ella.
—Permitte-me de certo que a acompanhe na sua
excursão?
—De certo, com o maior prazer. Mas que tem
feito? Tenho muito que lhe ralhar...
—Estive em Cintra, minha querida senhora.—E
parando:—Não sabia? O
Diario de Noticias
especificou-o!
—Mas depois de vir de Cintra?
Elle acudiu:
—Ah! tenho estado occupadissimo! Occupadissimo!
Inteiramente absorvido na compilação de certos
[308]
documentos que me eram indispensaveis para o
meu livro...—E depois d'uma pausa:—Cujo nome
não ignora, creio.
Luiza não se recordava inteiramente. O Conselheiro
então expôz o titulo, os fins, alguns nomes de
capitulos, a utilidade da obra: era a
Descripção pitoresca
das principaes cidades de portugal e
seus mais famosos estabelecimentos.
—É um guia, mas um guia scientifico. Illustrarei
com um exemplo: V. exc.
a quer ir a Bragança:
sem o meu livro é muito natural (direi, é certo) que
volta sem ter gozado das curiosidades locaes; com o
meu livro percorre os edificios mais notaveis, recolhe
um fundo muito solido d'instrucção, e tem ao
mesmo tempo o prazer.
Luiza mal o escutava, sorrindo vagamente sob o
seu véo branco.
—Está hoje muito agradavel!—disse ella.
—Agradabilissimo! Um dia creador!
—Que bom fresco aqui!
Tinham entrado em S. Pedro d'Alcantara; um ar
dôce circulava entre as arvores mais verdes; o chão
compacto, sem pó, tinha ainda uma ligeira humidade;
e, apesar do sol vivo, o céo azul parecia leve e
muito remoto.
O Conselheiro então fallou do estio; tinha sido
torrido! na sua sala de jantar tinha havido 48 graus
á sombra! 48 graus!—E com bonhomia, querendo
logo desculpar a sala d'aquella exageração canicular:—Mas
é que está exposta ao sul! façamos essa justiça!
[309]
Está muito exposta ao sul. Hoje porém está verdadeiramente
restaurador.
Convidou-a mesmo a dar uma volta em baixo no
jardim. Luiza hesitava. E o Conselheiro puxando o
relogio, fitando-o de longe, declarou logo que ainda
não era meio dia. Estava certo pelo Arsenal, era um
relogio inglez.—Muito preferiveis aos suissos!—acrescentou
com ar profundo.
Cobardemente, por inercia, enervada pela voz
pomposa do Conselheiro, Luiza foi descendo, contrariada,
as escadinhas para o jardim. De resto—pensava—tinha
tempo, tomaria um trem...
Foram encostar-se ás grades. Através dos varões
viam, descendo n'um declive, telhados escuros, intervallos
de pateos, cantos de muro com uma ou outra
magra verdura de quintal resequido; depois, no
fundo do valle, o Passeio estendia a sua massa de
folhagem prolongada e oblonga, onde a espaços branquejavam
pedaços da rua areada. Do lado de lá erguiam-se
logo as fachadas inexpressivas da rua Oriental,
recebendo uma luz forte que fazia faiscar as vidraças:
por traz iam-se elevando no mesmo plano
terrenos d'um verde crestado fechados por fortes muros
sombrios, a cantaria da Encarnação de um amarello
triste, outras construcções separadas, até ao
alto da Graça coberta d'edificios ecclesiasticos, com
renques de janellinhas conventuaes e torres d'igrejas,
muito brancas sobre o azul: e a Penha de
França, mais para além, punha em relevo o vivo do
muro caiado, d'onde sobresahia uma tira verde-negra
[310]
d'arvoredo. Á direita, sobre o monte pellado, o castello
assentava, atarracado, ignobilmente sujo: e a
linha muito quebrada de telhados, d'esquinas de casas
da Mouraria e d'Alfama descia com angulos bruscos
até ás duas pesadas torres da Sé, d'um aspecto
abbacial e secular. Depois viam um pedaço do rio,
batido da luz: duas velas brancas passavam devagar:
e na outra banda, á base de uma collina baixa
que o ar distante azulava, estendia-se a correnteza
de casarias d'uma povoaçãosinha d'um branco de cré
luzidio. Da cidade um rumor grosso e lento subia,
onde se misturavam o rolar dos trens, o pesado rodar
dos carros de bois, a vibração metallica das carretas
que levam ferraria, e algum grito agudo de pregão.
—Grande panorama!—disse o Conselheiro com
emphase.—E encetou logo o elogio da cidade. Era
uma das mais bellas da Europa, de certo, e como
entrada, só Constantinopla! Os estrangeiros invejavam-na
immenso. Fôra outr'ora um grande emporio,
e era uma pena que a canalisação fosse tão má, e a
edilidade tão negligente!
—Isto devia estar na mão dos inglezes, minha
rica senhora!—exclamou.
Mas arrependeu-se logo d'aquella phrase impatriotica.
Jurou que «era uma maneira de dizer».
Queria a independencia do seu paiz; morreria por
ella, se fosse necessario; nem inglezes nem castelhanos!...
Só nós, minha senhora!—E acrescentou
com uma voz respeitosa:—E Deus!
—Que bonito está o rio!—disse Luiza.
[311]
Accacio affirmou-se, e murmurou em tom cavo:
—O Tejo!
Quiz então dar uma volta pelo jardim. Sobre os
canteiros borboletas brancas, amarellas, esvoaçavam;
um gotejar d'agua fazia no tanque um rhythmosinho
de jardim burguez; um aroma de baunilha predominava;
sobre a cabeça dos bustos de marmore, que
se elevam d'entre os maciços e as moitas de dhalias,
passaros pousavam.
Luiza gostava d'aquelle jardimzinho, mas embirrava
com as grades tão altas...
—Por causa dos suicidios!—acudiu logo o Conselheiro.—E
todavia, segundo a sua opinião, os suicidios
em Lisboa diminuiam consideravelmente; attribuia
isso á maneira severa e muito louvavel como
a imprensa os condemnava...
—Porque em Portugal, creia isto, minha senhora,
a imprensa é uma força!
—Se fossemos andando...?—lembrou Luiza.
O Conselheiro curvou-se, mas vendo-a a ir colher
uma flôr, reteve-lhe vivamente o braço:
—Ah, minha rica senhora, por quem é! os regulamentos
são muito explicitos! Não os infrinjamos,
não os infrinjamos!—E acrescentou:—O exemplo
deve vir de cima.
Foram subindo, e Luiza pensava:—Vai para casa,
larga-me ao Loreto.
Na rua de S. Roque espreitou o relogio d'uma
confeitaria: era meia hora depois do meio dia! Já
Bazilio esperava!
[312]
Apressou o passo, ao Loreto parou. O Conselheiro
olhou-a, sorrindo, esperando.
—Ah! pensei que ia para casa, Conselheiro!
—Já agora quero acompanhal-a, se v. exc.
a m'o
permitte. De certo não sou indiscreto?
—Ora essa! De modo nenhum.
Uma carruagem da Companhia passava, seguida
d'um correio a trote.
O Conselheiro, com um movimento ancioso, tirou
profundamente o chapéo.
—É o presidente do conselho. Não viu? Fez-me
um signal de dentro.—Começou logo o seu elogio:
Era o nosso primeiro parlamentar; vastissimo talento,
uma linguagem muito castigada!—E ia de certo
fallar das cousas publicas, mas Luiza atravessou para
os Martyres, erguendo um pouco o vestido por
causa d'uns restos de lama. Parou á porta da igreja,
e sorrindo:
—Vou aqui fazer uma devoçãosinha. Não o quero
fazer esperar. Adeus, Conselheiro, appareça.—Fechou
a sombrinha, estendeu-lhe a mão.
—Ora essa, minha rica senhora! Esperarei, se
vir que não se demora muito. Esperarei, não tenho
pressa.—E com respeito:—Muito louvavel esse
zelo!
Luiza entrou na igreja desesperada. Ficou de pé
debaixo do côro, calculando:—Demoro-me aqui, elle
cança-se d'esperar e vai-se! Por cima reluziam vagamente
os pingentes de crystal dos lustres. Havia
uma luz velada, igual, um pouco fôsca. E as architecturas
[313]
caiadas, a madeira muito lavada do soalho,
as balaustradas lateraes de pedra davam uma tonalidade
clara e alvadia, onde destacavam os dourados
da capella, os frontaes rôxos dos pulpitos, ao fundo
dous reposteiros d'um rôxo mais escuro, e sob o docel
côr de violeta os ouros do Throno. Um silencio
fresco e alto repousava. Diante do Baptisterio um rapaz
de joelhos, com um balde de zinco ao pé, esfregava
o chão com uma rodilha, discretamente: dorsos
de beatas, encapotados ou cobertos de chales tingidos,
curvavam-se, aqui e além, diante d'um altar:
e um velho, de jaqueta de saragoça, prostrado no
meio da igreja, rosnava rezas n'uma molopéa lugubre;
via-se a sua cabeça calva, as tachas enormes
dos sapatos, e a cada momento, dobrando-se, batia
no peito com desespero.
Luiza subiu ao altar-mór. Bazilio impacientava-se,
de certo, pobre rapaz! Perguntou então, timidamente,
as horas a um sacristão que passava. O homem
ergueu a sua face côr de cidra para uma janela
na cupula, e olhando Luiza de lado:
—Vai indo p'ra as duas.
Para as duas! Era capaz de não esperar, Bazilio!
Veio-lhe um receio de perder a sua manhã amorosa,
um desejo aspero de se achar no
Paraiso nos
braços d'elle! E olhava vagamente os santos, as virgens
trespassadas d'espadas, os Christos chagados,—cheia
de impaciencias voluptuosas, revendo o
quarto, a caminha de ferro, o pequeno bigode de
Bazilio!... Mas demorou-se, queria «fatigar o Conselheiro,
[314]
deixal-o ir». Quando pensou que elle teria
partido, sahiu devagarinho.—Viu-o logo á porta, direito,
com as mãos atraz das costas, lendo a pauta
dos jurados.
Começou immediatamente a louvar a sua devoção.
Não entrára porque não quizera perturbar o seu
recolhimento. Mas approvava-a muito! A falta de religião
era a causa de toda a immoralidade que grassava...
—E além d'isso é de boa educação. V. exc.
a
ha-de reparar que toda a nobreza cumpre...
Calou-se; aprumava a estatura, todo satisfeito de
descer o Chiado com aquella linda senhora, tão olhada.
Mesmo, ao passar por um grupo, curvou-se para
ella mysteriosamente, disse-lhe ao ouvido, sorrindo:
—Está um dia apreciavel!
E offereceu-lhe bolos á porta do Baltreschi. Luiza
recusou.
—Sinto. Todavia acho muito sensata a regularidade
nas comidas.
A sua voz vinha agora a Luiza com a impertinencia
d'um zumbido; apesar de não fazer calor,
abafava, picava-lhe o sangue no corpo; tinha vontade
de deitar a correr, de repente; e todavia caminhava
devagar, infeliz, como somnambula, cheia da
necessidade de chorar.
Sem razão, ao acaso, entrou no Valente. Era hora
e meia! Depois d'hesitar pediu gravatas de
foulard
a um caixeiro louro e jovial.
—Brancas? de côr? de riscas? com pintinhas?
[315]
—Sim, verei, sortidas.
Não lhe agradavam. Desdobrava-as, sacudia-as,
punha-as de lado; e olhava em roda vagamente, pallida...
O caixeiro perguntou-lhe se estava incommodada:
offereceu-lhe agua, qualquer cousa...
Não era nada; o ar é que lhe fazia bem; voltaria.
Sahiu. O Conselheiro, muito solicito, promptificou-se
a acompanhal-a a uma boa pharmacia tomar
agua de flôr de laranja... Desciam então a rua Nova
do Carmo, e o Conselheiro ia affirmando que o
caixeiro fôra muito polido: não se admirava, porque
no commercio havia filhos de boas familias: citou
exemplos.
Mas vendo-a calada:
—Ainda soffre?
—Não, estou bem.
—Temos dado um delicioso passeio!
Foram ao comprido do Rocio, até ao fim. Voltaram,
atravessaram-no em diagonal. E pelo lado do
Arco do Bandeira, aproximaram-se para a rua do Ouro.
Luiza olhava em redor, afflicta, procurava uma
idéa, uma occasião, um acontecimento—e o Conselheiro,
grave a seu lado, dissertava. A vista do theatro
de D. Maria levára-o para as questões da arte
dramatica: tinha achado que a peça do Ernestinho
era talvez demasiado forte. De resto só gostava de
comedias. Não que se não enthusiasmasse com as
bellezas d'um
Frei Luiz de Sousa! mas a sua saude
não lhe permittia as agitações fortes. Assim por
exemplo...
[316]
Mas Luiza tivera uma idéa, e immediatamente:
—Ah! esquecia-me! Tenho d'ir ao Vitry. Vou fazer
chumbar um dente.
O Conselheiro, interrompido, fitou-a. E Luiza, estendendo-lhe
a mão, com a voz rapida:
—Adeus, appareça, hein?—E precipitou-se para
o portal do Vitry.
Subiu até ao primeiro andar, correndo, com os
vestidos apanhados: parou, arquejando: esperou:
desceu devagar, espreitou á porta... A figura do
Conselheiro afastava-se direita, digna, para os lados
das secretarias.
Chamou um trem.
—A quanto puder!—exclamou.
A carruagem entrou quasi a galope na ruasinha
do
Paraiso. Figuras pasmadas appareceram á janella.
Subiu, palpitante. A porta estava fechada—e logo
a cancella do lado abriu-se, e a voz dôce da patrôa
segredou:
—Já sahiu. Ha-de haver meia hora.
Desceu. Deu a sua morada ao cocheiro, e atirando-se
para o fundo do coupé, rompeu n'um chôro hysterico.
Correu os
stores para se esconder; arrancou o
véo, rasgou uma luva, sentindo em si violencias
inesperadas, Então veio-lhe um desejo phrenetico de
vêr Bazilio! Bateu nos vidros
desesperadamente,
gritou:
—Ao Hotel Central!
Porque estava n'um d'aquelles momentos em
que os temperamentos sensiveis teem impulsos indomaveis;
[317]
ha uma delicia colerica em espedaçar os
deveres e as conveniencias; e a alma procura sofregamente
o mal com estremecimentos de sensualidade!
A parelha estacou, resvalando á porta do hotel.
«O snr. Bazilio de Brito não estava, o snr. visconde
Reynaldo, sim».
—Bem, para casa, para onde eu disse!
O cocheiro bateu. E Luiza, sacudida por uma irritabilidade
febril, insultava o Conselheiro, o estafermo,
o imbecil! maldizia a vida que lh'os fizera conhecer,
a elle e a todos os amigos da casa! vinha-lhe
uma vontade acre de mandar o casamento ao diabo,
de fazer o que lhe viesse á cabeça!...
Á porta não tinha troco para o cocheiro. Espere!—disse,
subindo furiosa—Eu lhe mandarei pagar!
—Que bicha!—pensou o cocheiro.
Foi Joanna que veio abrir; e quasi recuou, vendo-a
tão vermelha, tão excitada.
Luiza foi direita ao quarto: o
cuco cantava tres
horas. Estava tudo desarrumado; vasos de plantas
no chão, o toucador coberto com um lençol velho,
roupa suja pelas cadeiras. E Juliana, com um lenço
amarrado na cabeça, varria tranquillamente, cantarolando.
—Então vossê ainda não arrumou o quarto!—gritou Luiza.
Juliana estremeceu áquella colera inesperada.
—Estava agora, minha senhora!
—Que estava agora vejo eu!—rompeu Luiza.
[318]
—São tres horas da tarde e ainda o quarto n'este
estado!
Tinha atirado o chapéo, a sombrinha.
—Como a senhora costuma vir sempre mais
tarde...—disse Juliana.
E seus beiços faziam-se brancos.
—Que lhe importa a que horas eu venho? Que
tem vossê com isso? A sua obrigação é arrumar logo
que eu me levante. E não querendo, rua, fazem-se-lhe
as contas!
Juliana fez-se escarlate e cravando em Luiza os
olhos injectados:
—Olhe, sabe que mais? não estou para a aturar!
E arremessou violentamente a vassoura.
—Sáia!—berrou Luiza—Sáia immediatamente!
Nem mais um momento em casa!
Juliana poz-se diante d'ella, e com palmadas convulsivas
no peito, a voz rouca:
—Hei-de sahir se eu quizer! Se eu quizer!
—Joanna!—bradou Luiza.
Queria chamar a cozinheira, um homem, um policia,
alguem! Mas Juliana descomposta, com o punho
no ar, toda a tremer:
—A senhora não me faça sahir de mim! A senhora
não me faça perder a cabeça!—E com a voz
estrangulada através dos dentes cerrados:—Olhe
que nem todos os papeis foram p'ra o lixo!
Luiza recuou, gritou:
—Que diz vossê?
—Que as cartas que a senhora escreve aos seus
[319]
amantes, tenho-as eu aqui!—E bateu na algibeira,
ferozmente.
Luiza fitou-a um momento com os olhos desvairados,
e cahiu no chão, junto á
causeuse, desmaiada.
VIII
A primeira impressão, mal acordada, de Luiza foi
que duas figuras, que não conhecia, estavam debruçadas
sobre ella. Uma, a mais forte, afastou-se; o
som frio d'um frasco de vidro, pousado sobre o marmore
do toucador, despertou-a. Sentiu então uma
voz dizer abafadamente:
—Está muito melhor. Mas deu-lhe de repente,
snr.
a Juliana?
—De repente.
—Eu vi-a entrar tão afogueada...
Passos subtis pisaram o tapete, a voz de Joanna
perguntou-lhe junto do rosto:
—Está melhor, minha senhora?
Abriu os olhos, a percepção nitida das cousas
foi-lhe voltando; estava estendida na
causeuse,
tinham-lhe
desapertado o vestido, e havia no quarto
[322]
um forte cheiro de vinagre. Ergueu-se sobre o cotovêlo,
devagar, com um olhar errante, vago:
—E a outra?...
—A snr.
a Juliana? Foi-se deitar. Tambem se não
achava bem. Foi de vêr a senhora, coitada... Está
melhorzinha?
Sentou-se. Sentia uma fadiga em todo o corpo;
tudo no quarto lhe parecia oscillar brandamente:
—Póde ir, Joanna, póde ir—disse.
—A senhora não precisa mais nada? Talvez um
caldinho lhe fizesse bem...
Luiza, só, pôz-se a olhar em roda, espantada.
Estava já tudo arrumado, as janellas cerradas. Uma
luva ficára cahida no chão: ergueu-se, ainda tropega,
foi apanhal-a, esteve a esticar-lhe os dedos machinalmente,
como somnambula, pôl-a na gaveta do
toucador. Alisou o cabello; achava-se mudada, com
outra expressão como se fosse
outra; e o silencio
do quarto impressionava-a, como extraordinario.
—Minha senhora—disse a voz timida de Joanna.
—Que é?
—É o cocheiro.
Luiza voltou-se, sem comprehender:
—Que cocheiro?
—Um cocheiro; diz que a senhora que não tinha
troco, que o mandou esperar...
—Ah!
E como a uma luz de gaz que salta subitamente
e alumia uma decoração, viu, n'um relance, toda
a «sua desgraça»!
[323]
Ficou tão tremula que mal podia abrir a gavetinha
da commoda:
—Tinha-me esquecido, tinha-me esquecido...—balbuciava.
Deu o dinheiro a Joanna; e vindo cahir sobre a
causeuse:
—Estou perdida!—murmurou, apertando as
mãos na cabeça.
Tudo descoberto! E representaram-se-lhe logo no
espirito, com a intensidade de desenhos negros sobre
um muro branco, o furor de Jorge, o espanto dos
seus amigos, a indignação d'uns, o escarneo dos outros;
e estas imagens cahindo com ruido na sua alma,
como combustiveis n'uma fogueira, ateavam-lhe
desesperadamente o terror.
Que lhe restava?—Fugir com Bazilio!
Aquella idéa, a primeira, a unica, apossou-se
d'ella impetuosamente, trespassou-a—como a agua
d'uma inundação que subitamente alaga um campo.
Elle tinha-lhe tantas vezes jurado que seriam tão
felizes em Paris, no seu
appartamento da rua Saint
Florentin! Pois bem, iria! Não levaria malas, poria
no seu pequeno sacco de marroquim alguma roupa
branca, as joias da mamã... E os criados? a casa?
Deixaria uma carta a Sebastião para que viesse, fechasse
tudo!... Levaria na viagem o vestido de riscadinho
azul—ou o preto! Mais nada. O resto compral-o-hia
longe, n'outras cidades...
—Se a senhora quer vir jantar...—disse Joanna
á porta do quarto.
[324]
Tinha posto um avental branco, e acrescentou:
—A snr.
a Juliana está deitada, diz que está com
a dôr, não póde servir á mesa.
—Já vou.
Tomou apenas uma colhér de sopa, bebeu um
grande gole d'agua; e erguendo-se:
—Que tem ella?
—Diz que é uma dôr muito forte no coração.
Se morresse! Estava salva, ella! Podia ficar, então!
E com uma esperança perversa:
—Vá vêr, Joanna, vá vêr como está!
Tinha ouvido de tantas pessoas que morrem de
uma dôr! Iria logo ao quarto d'ella rebuscar-lhe a
arca, apossar-se da carta! E não teria medo do silencio
da morte, nem da lividez do cadaver...
—Está mais descançada, minha senhora—veio
dizer a Joanna—diz que logo que se levanta. Então
a senhora não come mais nada? Credo!
—Não.
E entrou para o quarto, pensando:—de que
serve estar a imaginar cousas? Só me resta fugir.
Decidiu-se logo a escrever a Sebastião; mas não
pôde acertar com outras palavras além do começo,
no alto, n'uma letra muito trémula:
Meu amigo!
Para que havia de escrever? Quando ao outro dia
ella não voltasse, nem á tarde, nem á noite—as
criadas, a
outra, a infame! iriam logo a Sebastião.
Era o intimo da casa. Que espanto o d'elle! Imaginaria
algum accidente, correria á Encarnação, depois
á policia, esperaria n'uma angustia até de madrugada!
[325]
Todo o dia seguinte seriam outras esperanças de
a vêr chegar, decepções aterradas,—até que telegrapharia
a Jorge! E a essa hora de certo, ella, encolhida
no canto do wagon, rolaria, ao ruido offegante
da machina, para um destino novo!...
Mas porque se affligia, por fim? Quantas invejariam
a sua desgraça! O que havia de infeliz em
abandonar a sua vida estreita entre quatro paredes,
passada a examinar roes de cozinha e a fazer
crochet,
e partir com um homem novo e amado, ir para
Paris! para Paris! viver nas consolações do luxo, em
alcovas de sêda, com um camarote na Opera!... Era
bem tola em se affligir! Quasi fôra uma felicidade
aquelle «desastre»! Sem elle nunca teria tido a coragem
de se desembaraçar da sua vida burgueza;
mesmo quando um alto desejo a impellisse, haveria
sempre uma timidez maior para a reter!
E depois, fugindo, o seu amor tornava-se digno!
Seria só d'um homem; não teria de amar em casa e
amar fóra de casa!
Veio-lhe mesmo a idéa de ir ter immediatamente
com Bazilio, «acabar com aquillo por uma vez». Mas
era tarde para ir ao hotel; temia as ruas escuras, a
noite, e os bebedos...
Foi logo arranjar o sacco de marroquim. Metteu
lenços, alguma roupa branca, o estojo das unhas, o
rosario que lhe dera Bazilio, pós d'arroz, algumas
joias que tinham pertencido á mamã... Quiz levar as
cartas de Bazilio tambem... Tinha-as guardadas n'um
cofre de sandalo, no gavetão do guarda-vestidos. Espalhou-as
[326]
no regaço; abriu uma, d'onde cahiu uma
florzinha sêcca; outra que tinha, na dobra, a photographia
de Bazilio. De repente, pareceu-lhe que não
estavam completas! Tinha
sete:
cinco bilhetes curtos,
e
duas cartas—a primeira que elle lhe escrevêra,
tão terna! e a ultima no dia do arrufo! Contou-as...
Faltava, com effeito, a
primeira, e
dous bilhetes!
Tinha-lh'as roubado, tambem!... Ergueu-se
livida. Ah que infame! veio-lhe uma raiva de subir
ao sotão, luctar com ella, arrancar-lh'as, esganal-a!...
Que lhe importava, por fim!—E deixou-se cahir na
causeuse, aniquilada—Que ella tivesse uma, duas,
todas—era a mesma desgraça!
E muito excitada, foi preparar o vestido preto
que devia levar, o chapéo, um chale-manta...
O
cuco cantou dez horas. Entrou então na alcova;
pôz o castiçal sobre a mesinha, ficou a olhar o
largo leito com o seu cortinado de fustão branco.
Era a ultima vez que alli dormia! Fôra ella que bordára
aquella coberta de
crochet no primeiro anno de
casada: não havia uma malha que não correspondesse
a uma alegria. Jorge ás vezes vinha vêl-a trabalhar,
e, calado, considerava-a com um sorriso, ou
fallava-lhe baixo enrolando devagar nos dedos o fio
de algodão grosso! Alli dormira com elle tres annos:
o seu lugar era de lá, do lado da parede...
Fôra n'aquella cama que ella estivera doente, com a
pneumonia. Durante semanas elle não se deitára—a
velal-a, a conchegar-lhe a roupa, a dar-lhe os caldos,
os remedios, com toda a sorte de palavras dôces
[327]
que lhe faziam tão bem!... Fallava-lhe como a
criancinha pequena: dizia-lhe: «isso vai passar,
ámanhã estás boa, vamos passear». Mas o seu olhar
ancioso estava marejado de lagrimas! Ou então pedia-lhe:
«Melhora, sim? Faze-me a vontade, minha
querida, melhora!...» E ella queria tanto melhorar,
que sentia como uma ligeira onda de vida que voltava,
lhe refrescava o sangue!
Nos primeiros dias da convalescença era elle que
a vestia; ajoelhava-se para lhe calçar os sapatos,
embrulhava-a no roupão, vinha estendel-a na
causeuse,
sentava-se ao pé d'ella a lêr-lhe romances,
desenhar-lhe paizagens, recortar-lhe soldados de papel.
E dependia toda d'elle, não tinha mais ninguem
no mundo para a tratar, para soffrer, chorar por ella—senão
elle! Adormecia sempre com as mãos
nas suas, porque a doença deixára-lhe um vago medo
dos pesadêlos da febre; e o pobre Jorge, para a
não acordar, alli ficava com a mão presa, horas, sem
se mover. Deitava-se vestido n'um colxãosito ao pé
d'ella. Muitas vezes, acordando de noite, o tinha visto
a limpar as lagrimas; d'alegria, de certo, porque
ella então estava salva! o medico, o bom dr. Caminha,
tinha-o dito: «Está livre de perigo, agora é refazer
esse corpinho». E Jorge, o pobre Jorge, coitado,
sem dizer nada, tinha tomado as mãos do velho,—tinha-as
coberto de beijos!
E agora, quando elle soubesse, quando elle voltasse!
Quando ao entrar alli na alcova—visse os
dous travesseirinhos, ainda! Ella iria longe, com outro,
[328]
por caminhos estranhos, ouvindo outra lingua.
Que horror! E elle alli estaria, n'aquella casa só,
chorando, abraçado a Sebastião. Quantas memorias
d'ella para o torturar! Os seus vestidos, as suas chinellinhas,
os seus pentes, toda a casa! Que vida
triste, a d'elle! Dormiria alli
só! Já não teria
ninguem
para o acordar de manhã com um beijinho,
passar-lhe o braço pelo pescoço, dizer-lhe:
é tarde,
Jorge! Tudo acabára para ambos. Nunca mais!—Rompeu
a chorar, de bruços sobre a cama...
Mas a voz de Juliana fallou alto no corredor com
Joanna. Ergueu-se aterrada. Viria ter com ella, aquella
infame? Os passos achinellados afastaram-se devagar,
e Joanna entrou com o rol e com a lamparina.
—A snr.
a Juliana—disse—levantou-se um momento,
mas diz que ainda está mal, coitada. Foi-se
deitar. A senhora não precisa mais nada?
—Não—disse da alcova.
Despiu-se; e, prostrada, adormeceu profundamente.
Juliana em cima não dormia. A dôr passára-lhe—e
agitava-se sobre o enxergão, «com o diabo
da espertina»! como tantas outras noites, nas ultimas
semanas. Porque desde que apanhára a carta no
sarcophago
vivia n'uma febre; mas a alegria era tão
aguda, a
esperança tão larga
que a sustentavam, lhe
[329]
davam saude! Deus emfim tinha-se lembrado d'ella!
Desde que Bazilio começára a vir a casa, tivera logo
um palpite, uma cousa que lhe dizia que tinha chegado
emfim a sua vez! A primeira satisfação fôra
n'aquella noite em que achára, depois de Bazilio sahir
ás dez horas, a travéssinha de Luiza cahida ao
pé do sophá. Mas que explosão de felicidade, quando,
depois de tanta espionagem, de tanta canceira,
apanhou emfim a carta no
sarcophago! Correu ao
sotão, leu-a avidamente, e quando viu a importancia
da «cousa» arrasaram-se-lhe os olhos de lagrimas,
arremessou a sua alma perversa para as alturas, bradando
em si, n'um triumpho:
—Bemdito seja Deus! Bemdito seja Deus!
E que havia de fazer
áquillo?—foi então a sua
inquietação. Ora pensava em a vender a Luiza por
uma forte somma... mas onde tinha ella o dinheiro?
Não; o melhor era esperar a volta de Jorge, e com
ameaças de a publicar, extorquir-lhe
um rôr de
libras
por meio d'outra pessoa, já se vê, e ella á capa!
E em certos dias em que a figura, as
toilettes,
as passeatas de Luiza a irritavam mais, vinham-lhe
venetas de sahir p'ra a rua, chamar os visinhos, lêr
o papel, pôl-a mais rasa que a lama, vingar-se da
«cabra»!
Foi a tia Victoria que a calmou, e a dirigiu. Disse-lhe
logo «que para a armadilha ser completa era
necessario uma carta do janota». Começára então o
lento trabalho de lh'a apanhar! Fôra preciso muita
finura, muita chave experimentada, duas feitas por
[330]
moldes de cêra, paciencia de gato, habilidades de
ratoneiro! Mas pilhou-a, e que carta! Tinha-a lido
com a tia Victoria—que rira, rira!... Sobre tudo o
bilhete em que Bazilio lhe dizia: «Hoje não posso
ir, mas espero-te ámanhã ás duas; mando-te essa
rosinha, e peço-te que faças o que fizeste á outra,
trazel-a no seio, porque é tão bom quando vens assim,
sentir-te o peitinho perfumado!...» A tia Victoria,
suffocada, quil-a mostrar á sua velha amiga,
a Pêdra, a Pêdra gorda, que estava na saleta.
A Pêdra torceu-se! Os seus enormes seios, pendentes
como odres mal cheios, tinham sacudidellas
furiosas de hilaridade. E com as mãos nas ilhargas,
rubra, roncando, com o seu vozeirão de trombone:
—Essa é das boas, tia Victoria! Essa é de mestre.
Não, isso merece ir para os papeis! Ai os bebedos!
Raios do diabo!
A tia Victoria, então, disse muito seriamente a
Juliana:
—Bem; agora tens a faca e o queijo! Com isso
já pódes fallar d'alto. É esperar a occasião. Muito
bons modos, cara prazenteira, sorrisos a fartar para
ella não desconfiar, e o olho álerta. Tens o rato seguro,
deixa-o dar ao rabo!
E desde esse dia Juliana saboreava com delicias,
com gula, muito comsigo—aquelle gozo de a ter
«na mão», a Luizinha, a senhora, a patroa, a
piorrinha!
Via-a aperaltar-se, ir ao homem, cantarolar,
comer bem—e pensava com uma voluptuosidade
felina: Anda, folga, folga, que eu cá t'a tenho armada!
[331]
Aquillo dava-lhe um orgulho perverso. Sentia-se
vagamente
senhora da casa. Tinha alli fechada
na mão a felicidade, o bom nome, a honra, a paz
dos patrões! Que desforra!
E o futuro estava certo!
Aquillo era dinheiro, o
pão da velhice. Ah! tinha-lhe chegado o seu dia! Todos
os dias rezava uma
Salvè-rainha de graças a
Nossa Senhora, mãi dos homens!
Mas agora, depois d'aquella
scena com Luiza—não
podia ficar de braços cruzados, com as cartas na
algibeira. Devia sahir de casa, pôr-se em campo, fazer
alguma cousa. O que? A tia Victoria é que havia
de dizer...
Logo pela manhã ás sete horas, sem tomar o seu
café, sem fallar a Joanna, desceu devagar, sahiu.
A tia Victoria não estava em casa. Gente na saleta
esperava. O snr. Gouvêa, com a borla do barretinho
muito arrebitada, escrevinhava, dobrado, cuspilhando
o seu catarrho. Juliana deu os
bons dias em
redor, e sentou-se a um canto, direita, com a sua
sombrinha nos joelhos.
Conversava-se: e uma mulher de trinta annos,
picada das bexigas, que estava sentada no canapé,
depois de ter dado um sorriso a Juliana, continuou,
voltada para uma gordita com um chale de quadrados
vermelhos:
—Pois não imagina, snr.
a Anna, não faz idéa!
É uma desgraça! É todas as noites como um carro.
Ás vezes até acordo com o barulho que elle faz a fallar
só, a tropeçar na escada... Eu, do que tenho mais
[332]
medo, é que o demonio adormeça com a luz e haja
um fogo. Ah! é de todo!
—Quem?—perguntou um rapazola bonito, com
uma blusa de trintanario, que fallava de pé a um
criado alto, de suiças e gravata branca enxovalhada.
—O Cunha, o filho do meu patrão. É uma desgraça!
—Piteireiro, hein?—disse o rapazola, enrolando
o cigarro.
—Um horror! Eu pela manhã nem posso entrar
no quarto, que é um cheiro... A mãi, coitadinha,
chora, rala-se; o rapaz já esteve para ser posto fóra
do emprego. Ai! não estou nada contente, nada contente!
—Pois olhe que por lá tambem ha desgosto
grande—disse, baixando a voz, a do chale de quadrados.
Os dous homens aproximaram-se.
—O senhor—continuou ella com gestos aterrados—é
um desafôro com a cunhada!... A senhora
sabe, e aquillo são questões de dia e de noite! As
duas irmãs andam n'uma bulha pegada. O homem
toma as dôres da rapariga, a mulher põe-se aos gritos...
Ai! aquillo vem a acabar mal!
—E então se a gente tem lá o seu descuido—disse
o da gravata branca com indignação—é aqui
d'el-rei, e d'aqui e d'alli!
—Lá a sua gente é socegada, snr. João—observou
a picada das bexigas.
—É boa gente. As raparigas namoradeiras...
[333]
Proveito das criadas, apanham o seu vestidito, a
sua placa... Mas os velhotes é uma santa gente, a
verdade é a verdade! E come-se bem!
E voltando-se para o trintanario,
batendo-lhe no
hombro, com uma voz que o admirava e que o invejava:
—Mas isto sim! Isto é que é leval-a!
O rapazola sorriu com satisfação:
—Ora! são mais as vozes do que as nozes!
—Vá lá, mostra lá—disse o da gravata branca
tocando-lhe com o cotovêlo—mostra lá!
O rapaz fez-se rogado, e depois de gingar da
cintura, arregaçando a blusa, tirou do bolso do collete
de riscadinho um relogio d'ouro.
—Muito bonito! Rica prenda!—disseram as duas
mulheres.
—Suor do meu rosto—fez elle, acariciando o
queixo.
O da gravata branca indignou-se:
—Ora seu marôto!—E baixo para as raparigas:—Suor
do seu rosto, hein!—É o seraphim da patrôa,
uma senhora da alta que aquillo são tudo sêdas,
muitissimo boa mulher, um bocado entradota, mas
muitissimo boa mulher, recebe d'estas lembranças,
um relogio d'um par de moedas—e ainda falla!
O rapazola disse então, enterrando as mãos na
algibeira:
—E se quizer agora, ha-de largar a corrente!
—Ha-de-lhe custar muito!—exclamou o da gravata
branca.—Uma gente que tem ahi pela baixa
[334]
correntezas de casas! Metade da rua dos Retrozeiros
é d'ella!
—Mas muito agarrada!—disse o rapazola. E
bamboleando o corpo, com o cigarro ao canto da
bocca:—Estou com ella ha dous mezes, e ainda se
não desabotoou senão com o relogio e tres libras em
ouro!... Que eu, como quem diz, um dia passo-lhe
o pé!—E cofiando o cabello para a testa:—Não
faltam mulheres! e das que tem
Dom!
Mas a tia Victoria entrou, muito azafamada, com
o chale no braço; e vendo Juliana:
—Olá! por cá! Tive que dar umas voltas, estou
na rua desde as seis. Bons dias, snr.
a Theodosia;
bons dias, Anna. Viva, temos por cá o alfenim! Entra
cá p'ra dentro, Juliana! Eu já venho, meus pombinhos,
é um instante!
Levou-a para o outro quarto, para o lado do saguão:
—E então, que ha de novo?
Juliana pôz-se a contar longamente a
scena da
vespera, o desmaio...
—Pois minha rica—disse a tia Victoria—o que
está feito, está feito; não ha tempo a perder; é mãos
á obra! Tu vaes ao Brito, ao hótel, e
entendes-te com
elle.
Juliana recusou-se logo: não se atrevia, tinha
medo...
A tia Victoria reflectiu, coçando o ouvido; foi dentro,
cochichou com o tio Gouvêa, e voltando, fechando
a porta do quarto:
[335]
—Arranja-se quem vá. Tens tu as cartas?
Juliana tirou da algibeira uma velha carteirinha
de marroquim escarlate. Mas hesitou um momento,
olhou a tia Victoria com desconfiança.
—Tens medo de largar os papeis, creatura?—exclamou
offendida a velha.—Arranja-te tu, então
arranja-te tu...
Juliana deu-lh'as logo. Mas que as guardasse, que
tivesse cautela!...
—A pessoa—disse a tia Victoria—vai ámanhã
á noite fallar com o Brito, e pede-lhe um conto
de reis!
Juliana teve um deslumbramento. Um conto de
reis! A tia Victoria estava a brincar!
—Ora essa! Que pensas tu? Por uma carta,
que quasi não tinha mal nenhum, pagou uma pessoa
que bate ahi o Chiado de carruagem—ainda
hontem a vi com uma pequerrucha que tem—pagou
trezentos mil reis. E em bellas notas. Pagou-os o
janota, já se sabe, foi o janota que pagou. Se fosse
outro, não digo, mas o Brito! É rico, é um man-rôtas,
cahe logo...
Juliana, muito branca, agarrou-lhe o braço, tremula:
—Oh tia Victoria, dava-lhe um córte de sêda.
—Azul! até já te digo a côr!
—Mas o Brito é homem muito teso, tia Victoria,
se lhe tira as cartas, se lhe faz alguma!
A tia Victoria fitou-a, com desdem:
—Sahes-me uma simploria! Imaginas que eu
[336]
mando lá algum tolo? Nem as cartas vão, o que vai
é uma copia! Olha quem! O melro que lá ha-de ir!
E depois de reflectir um momento:
—Tu vai-te para casa...
—Não, lá isso não volto...
—Tambem tens razão. Até vêr em que param
as modas, vem cá dormir. Jantas cá hoje; tenho uma
rica pescada...
—Mas não haverá perigo, tia Victoria, se o Brito
vai á policia...
A tia Victoria encolheu os hombros, e impacientada:
—Olha, vai-te, que me estás a emphrenesiar! Policia!
Qual policia! Essas cousas levam-se lá á policia...
Deixa a cousa commigo! Adeus—e ás quatro
para jantar, hein!
Juliana sahiu como levada pelo ar! Um conto de
reis!
Era o conto de reis que voltava, o que já um
dia entrevira, que lhe fugira, que lhe vinha agora
cahir na mão, com um tlin-tlin de libras e um
frou-frou
de notas! E o cerebro enchia-se-lhe confusamente
de perspectivas differentes, todas maravilhosas:
um mostrador de capellista onda ella venderia!
um marido ao seu lado, ás horas da cêa! pares de
botinas das boas, das
chics. Onde poria o dinheiro?
No Banco? Não; no fundo da arca—para estar mais
seguro, mais á mão!
Para passar a sua manhã, comprou uma quarta de
rebuçados, e foi-se sentar no Passeio, com a sombrinha
aberta, deliciando-se, ruminando já a sua vida
[337]
rica, julgando-se já senhora; mesmo fez olho a um
proprietario pacifico e rubicundo—que se afastou
escandalisado!
Áquella hora Luiza acordava. E sentando-se bruscamente
na cama:—É hoje!—foi o seu primeiro
pensamento. Um susto, uma tristeza horrivel contrahiram-lhe
o coração. Começou depois a vestir-se,
muito nervosa com a idéa de vêr Juliana! Estava
mesmo imaginando fechar-se, não almoçar, sahir pé
ante pé ás onze horas, ir procurar Bazilio ao hotel,
quando a voz de Joanna disse á porta do quarto:
—A senhora faz favor?
Começou logo a contar, muito espantada, que a
snr.
a Juliana tinha sahido de manhã, ainda não voltára,
estava tudo por arrumar...
—Bem, arranje-me o almoço, eu já vou...—Que
allivio para ella!
Calculou logo que Juliana deixára a casa. Para
que? Para lhe armar alguma, de certo! O melhor
era sahir immediatamente... Podia esperar Bazilio no
Paraiso.
Foi á sala de jantar, bebeu um gole de chá,
de
pé, á pressa.
—A snr.
a Juliana ter-lhe-ha dado alguma cousa?—veio
dizer Joanna assombrada.
Luiza encolheu os hombros, respondeu vagamente:
—Depois se saberá...
Era hora e meia, foi pôr o chapéo. O coração
batia-lhe alto, e apesar do terror de vêr entrar Juliana,
[338]
não se decidia a sahir; sentou-se mesmo, com
o sacco de marroquim nos joelhos. Vamos! pensou
emfim.—Ergueu-se; mas parecia que alguma cousa
de subtil e de forte a prendia, a enleava... Entrou
na alcova devagar: o seu roupão estava cahido
aos pés da cama, as suas chinellinhas sobre o tapete
felpudo...—Que desgraça! disse alto. Veio ao toucador,
mexeu nos pentes, abriu as gavetas; de repente
entrou na sala, foi ao album, tirou a photographia
de Jorge, metteu-a toda tremula no sacco de
marroquim, olhou ainda em roda como desvairada,
sahiu, atirou com a porta, desceu a escada correndo.
Á Patriarchal passava um
coupé de praça. Tomou-o,
mandou-o ir ao
Hotel Central.
O snr. Brito sahira logo de manhã cedo, disse o
porteiro muito azafamado. De certo algum paquete
chegára, porque entravam bagagens, fortes malas
cobertas d'oleado, caixas de madeira debruadas de
ferro; passageiros com ar espantado da chegada, ainda
entontecidos do balouço do mar, fallavam, chamavam.
Aquelle movimento animou-a: veio-lhe um desejo
de viagens, do ruido nocturno das
gares á claridade
do gaz, da agitação alegre das partidas nas
manhãs frescas, sobre o tombadilho dos paquetes!
Deu ao cocheiro a adresse do
Paraiso. E á maneira
que o trem trotava parecia-lhe que toda a sua
vida passada, Juliana, a casa, se esbatiam, se dissipavam
n'um horisonte abandonado. Á porta d'um livreiro
julgou entrevêr Julião; debruçou-se pela portinhola,
precipitadamente; não o avistou, teve pena:
[339]
ia-se sem vêr um amigo da casa! Todos agora, Julião,
Ernestinho, o Conselheiro, D. Felicidade lhe pareciam
adoraveis, com qualidades nobres, que nunca
percebera, que repentinamente tomavam um grande
encanto. E o pobre Sebastião, tão bom! Nunca mais
lhe ouviria tocar a sua
Malaguenha!
Ao fim da rua do Ouro o
coupé parou n'um embaraço
de carroças, e Luiza viu no passeio ao lado
o Castro, o Castro dos oculos, o banqueiro, o que
Leopoldina lhe dizia que «tinha uma paixão por
ella»: um rapazito rôto offerecia-lhe cautelas; e o
Castro nedio, com os dous pollegares nas algibeiras
do collete branco, dizia graças ao rapaz, com um
desdem ricaço, dardejando olhadellas sobre Luiza,
através dos seus oculos d'ouro. Ella, pelo canto do
olho, observava-o: tinha uma paixão por ella, aquelle
homem, que horror! Achava-o medonho, com o seu
ventre pançudo, a perninha curta. A lembrança de
Bazilio atravessou-a, a sua linda figura!...—e bateu
nos vidros impaciente, com pressa de o vêr.
O trem partiu emfim. O Rocio reluzia ao sol; do
Americano, parado á esquina, gente descia apressada,
de calças brancas, vestidos leves, vinda de Belem,
de Pedrouços; pregões cantavam.—Todos alli
ficavam nas suas familias, nas suas felicidades, só
ella partia!
Na rua Occidental, viu vir a D. Camilla—uma
senhora casada com um velho, illustre pelos seus
amantes. Parecia gravida; e adiantava-se devagar,
com a face branca satisfeita, uma lassitude do corpo
[340]
arredondado, passeando um marmanjosinho de jaqueta
côr de pinhão, uma pequerrucha de sainhas tufadas,
e adiante uma ama, vestida de lavradeira,
empurrava um carrinho de mão onde um bébé se
babava. E a Camilla, feliz, vinha tranquillamente pela
rua expondo as suas fecundidades adulteras! Era
muito festejada, ninguem dizia mal d'ella; era rica,
dava
soirées...—O que é o mundo!—pensava
Luiza.
O trem parou á porta do
Paraiso, era meio dia.
A portinha em cima estava fechada: e a patrôa appareceu
logo, ciciando que «sentia muitissimo, mas
só o senhor é que tinha a chavesinha, se a senhora
quizesse descançar...» N'este momento outra carruagem
chegou, e Bazilio appareceu galgando os degraus.
—Até que emfim!—exclamou abrindo a porta.—Porque
não vieste hontem?...
—Ah! se tu soubesses...
E, agarrando-lhe os braços, cravando os olhos
n'elle:
—Bazilio, sabes, estou perdida!
—Que ha?
Luiza atirára o sacco de marroquim para o canapé,
e, d'um folego, contou-lhe a historia da carta
apanhada nos papeis, as d'elle roubadas, a
scena no
quarto...—O que me resta é fugir. Aqui estou. Leva-me.
Tu disseste que podias, tens-l'o dito muitas
vezes. Estou prompta. Trouxe aquelle sacco, com o
necessario, lenços, luvas... hein?
[341]
Bazilio com as mãos nos bolsos, fazendo tilintar
o dinheiro e as chaves, seguia attonito os seus gestos,
as suas palavras.
—Isso só a ti!—exclamou.—Que douda! Que
mulher!—E muito excitado:—Isso é lá questão de
fugir? Que estás tu a fallar em fugir? É uma questão
de dinheiro. O que ella quer é dinheiro. É vêr
quanto quer, e pagar-se-lhe!
—Não, não!—fez Luiza—Não posso ficar!—Tinha
uma afflicção na voz. A mulher venderia a
carta, mas conservava o segredo: a todo o tempo
podia fallar, Jorge saber: estava perdida, não tinha
coragem de voltar para casa!—Não sinto um momento
de descanço, em quanto estiver em Lisboa.
Partimos hoje, sim? Se não pódes, ámanhã. Eu vou
para algum hotel, aonde ninguem saiba, escondo-me
esta noite. Mas, ámanhã vamos. Se elle sabe, mata-me,
Bazilio! Sim, dize que sim!—Agarrára-se a
elle, procurava avidamente com os seus olhos o consentimento
dos d'elle.
Bazilio desprendeu-se brandamente:
—Estás douda, Luiza, tu não estás em ti! Póde
lá pensar-se em fugir! Era um escandalo atroz, eramos
apanhados de certo, com a policia, com os telegraphos!
É impossivel! Fugir é bom nos romances!
E depois, minha filha, não é um caso para isso! É
uma simples questão de dinheiro...
Luiza fazia-se branca, ouvindo-o.
—E além d'isso—continuou Bazilio, muito agitado,
pelo quarto—eu não estou preparado, nem
[342]
tu! Não se foge assim. Ficas desacreditada para toda
a vida, sem remedio, Luiza. Uma mulher que foge,
deixa de ser a snr.
a D. Fulana, é a Fulana, a que
fugiu, a desavergonhada, uma concubina! Eu tenho
de certo de ir ao Brazil, onde has-de tu ficar? Queres
ir tambem, um mez n'um beliche, arriscar-te á
febre amarella? E se teu marido nos persegue se
formos detidos na fronteira? Achas bonito voltar entre
dous policias, e ir passar um anno ao Limoeiro?
O teu caso é simplicissimo. Entendes-te com essa
creatura, dá-se-lhe um par de libras, que é o que
ella quer, e ficas em tua casa, socegada, respeitada
como d'antes—sómente mais acautelada! Aqui está!
Aquellas palavras cahiam sobre os planos de
Luiza, como machadadas que derrubam arvores. Ás
vezes a verdade que ellas continham atravessava-a
irresistivelmente, viva como um relampago, desagradavel
como um gume frio. Mas via n'aquella recusa
uma ingratidão, um abandono. Depois de se ter
installado, pela imaginação, n'uma segurança feliz,
longe, em Paris—parecia-lhe intoleravel ter de voltar
para casa, de cabeça baixa, soffrer Juliana, esperar
a morte; e os contentamentos que entrevira
n'aquelle outro destino, agora que lhe fugiam d'entre
as mãos, pareciam-lhe maravilhosos, quasi indispensaveis!
E depois de que servia resgatar a carta
a dinheiro? A creatura saberia o seu segredo! E a
vida seria amarga, tendo sempre em volta de si
aquelle perigo a rondar!
Ficára calada, como perdida n'uma reflexão vaga;
[343]
e de repente erguendo a cabeça, com um olhar brilhante:
—Então, dize!...
—Mas estou-te a dizer, filha...
—Não queres?
—Não!—exclamou Bazilio com força.—Se tu
estás douda, não estou eu!
—Oh! pobre de mim, pobre de mim!
Deixou-se cahir no sophá, tapou o rosto com as
mãos. Soluços baixos sacudiam-lhe o peito.
Bazilio sentou-se ao pé d'ella. Aquellas lagrimas
mortificavam-no, e impacientavam-no.
—Mas, santo nome de Deus, escuta-me!
Ella voltou para elle os olhos que reluziam sob o
pranto:
—Para que dizias então, tantas vezes, que seriamos
tão felizes, que se eu quizesse...
Bazilio ergueu-se bruscamente:
—Pois tu pensaste em fugir, em te metter commigo
n'um wagon, vir para Paris, viver commigo,
ser a minha amante?
—Sahi de casa p'ra sempre, ahi está o que eu
fiz!
—Mas vaes voltar p'ra casa!—exclamou elle,
quasi com colera.—Por que havias de tu fugir? por
amor? então deviamos ter partido ha um mez, não
ha razão agora para irmos. Para que, então?
Para evitar um escandalo? com um escandalo maior,
não é verdade? um escandalo irreparavel, medonho!
Estou-te a fallar como um amigo, Luiza!—Tomou-lhe
[344]
as mãos, com muita ternura:—Tu imaginas que
eu não seria feliz em ir viver comtigo para Paris?
Mas vejo os resultados, tenho outra experiencia. O
escandalo todo evita-se com umas poucas de libras.
Tu imaginas que a mulher vai-se pôr a fallar? O seu
interesse é safar-se, desapparecer; sabe perfeitamente
o que fez, que te roubou, que usou de chaves
falsas. A questão é pagar-lhe.
Ella disse, com uma voz lenta:
—E o dinheiro, onde o tenho eu?
—Está claro que o dinheiro tenho-o eu!—E
depois de uma pausa:—Não muito, estou mesmo um
pouco atrapalhado, mas emfim...—Hesitou, disse:—se
a creatura quizer duzentos mil reis, dão-se-lhe!
—E se não quizer?
—Que ha-de ella querer, então? Se roubou a
carta é para a vender! Não é para guardar um autographo
teu!
Vinham-lhe palavras duras, passeava pelo quarto
exasperado. Que pretensão querer vir com elle para
Paris, embaraçar-lhe para sempre a sua vida! E que
despeza tão tola, dar um 'rôr de libras a uma ladra!
Depois aquelle incidente, a carta de namoro roubada
nos papeis sujos, a criada, a chave falsa do gavetão
dos vestidos—parecia-lhe soberanamente burguez,
um pouco pulha. E parando, para acabar:
—Emfim oferece-lhe trezentos mil reis, se quizeres.
Mas pelo amor de Deus, não faças outra; não
estou para pagar as tuas distracções a trezentos mil
reis cada uma!
[345]
Luiza fez-se livida, como se elle lhe tivesse cuspido
no rosto.
—Se é uma questão de dinheiro, eu o pagarei,
Bazilio!
Não sabia como. Que lhe importava! Pediria, trabalharia,
empenharia... Não o aceitaria d'elle!
Bazilio encolheu os hombros:
—Estás-te a dar ares, onde o tens tu?
—Que te importa?—exclamou.
Bazilio coçou a cabeça, desesperado. E tomando-lhe
as mãos, com uma impaciencia reprimida:
—Estamos a dizer tolices, filha, estamos a irritar-nos...
Tu não tens dinheiro.
Ella interrompeu-o, agarrou-lhe violentamente o
braço:
—Pois sim, mas falla tu a essa mulher, falla-lhe
tu, arranja tudo. Eu não a quero tornar a vêr. Se a
vejo, morro, acredita. Falla-lhe tu!
Bazilio recuou vivamente, e batendo com o pé:
—Estás douda, mulher! Se eu lhe fallo, então
pede tudo, então pede-me a pelle! Isso é comtigo.
Eu dou-te o dinheiro, tu arranja-te!
—Nem isso me fazes?
Bazilio não se conteve:
—Não! c'os diabos, não!
—Adeus!
—Tu estás fóra de ti, Luiza!
—Não. A culpa é minha—dizia, descendo o véo
com as mãos tremulas—eu é que devo arranjar
tudo!
[346]
E abriu a porta. Bazilio correu a ella, prendeu-a
por um braço.
—Luiza, Luiza! o que queres tu fazer? não podemos
romper assim! Escuta...
—Fujamos então, salva-me de todo!—gritou
ella, abraçando-o anciosamente.
—Caramba! Se te estou a dizer que não é possivel!
Ella atirou com a porta, desceu as escadas correndo.
O coupé esperava-a.
—Para o Rocio—disse.
E deitando-se para o canto da carruagem, rompeu
a chorar convulsivamente.
Bazilio sahiu do
Paraiso muito agitado. As
pretensões
de Luiza, os seus terrores burgueses, a trivialidade
reles do caso, irritavam-no tanto, que tinha
quasi vontade de não voltar ao
Paraiso, calar-se,
e
deixar correr o marfim! Mas tinha pena d'ella,
coitada! E depois, sem a amar appetecia-a: era
tão bem feita, tão amorosa, as revelações do vicio
davam-lhe um delirio tão adoravel! Um conchegosinho
tão picante em quanto estivesse em Lisboa...
Maldita complicação! Ao entrar no hotel, disse ao
seu criado:
—Quando vier o snr. visconde Reynaldo, que vá
ao meu quarto.
Estava alojado no segundo andar, com janellas
[347]
para o rio. Bebeu um calix de cognac, e estirou-se
no sophá. Ao pé, na jardineira, tinha o seu
buvard
com um largo monogramma em prata sob a corôa
de conde, caixas de charutos, os seus livros—
Mademoiselle
Giraud ma femme,
La vierge de Mabille,
Ces Frippones! Memoires secrètes d'une femme de
chambre,
Le chien d'arrêt,
Manuel
du chasseur, numeros
do
Figaro, a photographia de Luiza, e a photographia
d'um cavallo.
E soprando o fumo do charuto, começou a considerar,
com horror, a «situação»! Não lhe faltava
mais nada senão partir para Paris, com aquelle
trambolhosinho! Trazer uma pessoa, havia sete annos,
a sua vida tão arranjadinha, e patatrás! embrulhar
tudo, porque á menina lhe apanharam a carta
de namoro e tem medo do esposo! Ora o descaro!
No fim, toda aquella aventura desde o começo fôra
um erro! Tinha sido uma idéa de burguez inflammado
ir desinquietar a prima da Patriarchal. Viera a
Lisboa para os seus negocios, era tratal-os, aturar o
calor e o
bœuf à la mode do Hotel Central, tomar
o
paquete, e mandar a patria ao inferno!... Mas não
idiota! Os seus negocios tinham-se concluido,—e
elle, burro, ficára alli a torrar em Lisboa, a gastar
uma fortuna em tipoias para o largo de Santa Barbara,
para quê? Para uma d'aquellas! Antes ter trazido
a Alphonsine!
Que, verdade, verdade, em quanto estivesse em
Lisboa o romance era agradavel, muito excitante;
porque era muito completo! Havia o adulteriosinho,
[348]
o incestosinho. Mas aquelle episodio agora estragava
tudo! Não, realmente, o mais razoavel era safar-se!
A sua fortuna tinha sido feita com negocio de
borracha, no alto Paraguay; a grandeza da especulação
trouxera a formação d'uma companhia, com
capitaes brazileiros; mas Bazilio e alguns engenheiros
francezes queriam resgatar as acções brazileiras,
«que eram um
empecilho», formar em Paris uma
outra companhia, e dar ao negocio um movimento
mais ousado. Bazilio partira para Lisboa entender-se
com alguns brazileiros, e comprára as acções habilmente.
A prolongação d'aquelle incidente amoroso
tornava-se uma perturbação na sua vida pratica...
E, agora que a aventura tomava um aspecto seccante,
convinha passar o pé!
A porta abriu-se e o visconde Reynaldo entrou—afogueado,
de lunetas azues, furioso.
Vinha de Bemfica! Morto, absolutamente morto
com aquelle calor, d'um paiz de negros. Tivera a estupida
idéa de ir visitar uma tia—que o fizera logo
membro d'uma associação para não sei que diabo de
que creche, e que lhe prégára moral! Tambem que
idéa de collegial—ir visitar a tia! Porque realmente,
se havia uma cousa que lhe causasse repugnancia,
eram as ternuras de familia!
—E tu, que queres tu? Eu vou-me metter n'um
banho até ao jantar!
—Sabes o que me succede?—disse Bazilio, erguendo-se.
—O quê?
[349]
—Imagina. O caso mais estupido.
—O marido apanhou-te?
—Não, a criada!
—
Shocking!—exclamou Reynaldo com nôjo.
Bazilio contou miudamente «o caso». E cruzando
os braços diante d'elle:
—E agora?
—Agora é safar-te!
E levantou-se.
—Onde vaes tu?
—Vou ao banho.
Que esperasse, que diabo, queria fallar com elle...
—Não posso!—exclamou Reynaldo com um
egoismo phrenetico.—Vem tu cá abaixo! Posso
perfeitamente conversar na agua!
Sahiu, berrando por William, o seu criado inglez.
Quando Bazilio desceu aos banhos, Reynaldo estirado
com voluptuosidade na tina, d'onde sahia um
forte cheiro d'agua de Lubin, exclamou, deleitando-se
no seu conforto:
—Então cartinha apanhada nos papeis sujos!
—Não, Reynaldo, mas francamente estou embaraçado;
que achas tu que eu faça?
—As malas, menino!
E sentado na tina, ensaboando devagar o seu
corpo magro:
—Ahi está o que é fazer amor ás primas da Patriarchal
Queimada!
[350]
—Oh!—fez Bazilio, impaciente.
—Oh quê?—E, coberto de flocos d'espuma,
com as mãos apoiadas ao rebordo de marmore da
tina:—Pois tu achas isso decente, uma mulher que
toma a cozinheira por confidente, que lhe está na
mão, que perde a carta nos papeis sujos, que chora,
que pede duzentos mil reis, que se quer safar—isso
é lá amante, isso é lá nada! Uma mulher que,
como tu mesmo disseste, usa meias de tear!
—Meu rico, é uma mulher deliciosa!
O outro encolheu os hombros, descrente.
Bazilio deu logo provas: descreveu bellezas do
corpo de Luiza; citou episodios lascivos.
O tecto e os tabiques envernizados de branco
reflectiam a luz, com tons macios de leite; a exhalação
da agua tepida augmentava o calor morno; e
um cheiro fresco de sabão e agua de Lubin adoçava
o ar.
—Bem! estás pelo beiço—resumiu Reynaldo
com tedio, estirando-se.
Bazilio teve um movimento d'hombros, que repellia
aquella supposição grotesca.
—Mas dize, então, queres ficar-lhe agarrado ás
saias ou queres desembaraçar-te d'ella? Mas a verdade,
venha a verdade!
—Eu—disse logo Bazilio, chegando-se á tina,
baixo—se me podesse desembaraçar decentemente...
—Oh desgraçado! tens uma occasião divina!
Ella sahiu como uma bicha, dizes tu. Bem; escreve-lhe
[351]
uma carta, «que vendo que ella deseja romper,
não a queres importunar, e partes». Os teus negocios
estão concluidos, não é verdade? Escusas de
negar, o Lapierre disse-me que sim. Bem, então sê
decente: manda fazer as malas, e livra-te da sarna!
E tomando a esponja, deixava cahir grandes golpes
d'agua pela cabeça, pelos hombros, soprando,
regalado na frescura aromatica.
—Mas tambem—disse Bazilio—deixal-a agora
n'aquella atrapalhação com a criada! No fim é minha
prima...
Reynaldo agitou os braços, com hilaridade.
—Esse espirito de familia é optimo! Vai lá, idiota,
dize-lhe que és obrigado a partir, os teus negocios,
etc., e mette-lhe umas poucas de notas na
mão.
—É brutal...
—É caro!
Bazilio disse então:
—Olha que tambem é uma dos diabos, a pobre
rapariga apanhada pela criada...
Reynaldo estirou-se mais, e disse com jubilo:
—Estão a estas horas a esgadanharem-se uma á
outra!
Recostou-se, n'uma beatitude: quiz saber as horas;
declarou que estava confortavel, que se sentia
feliz! Com tanto que o John se não tivesse esquecido
de
frapper o champagne!
Bazilio torcia o bigode, calado. Revia a sala de
Luiza de reps verde, a figura horrivel de Juliana com
[352]
a sua enorme cuia... Estariam com effeito a ralhar,
a descompôr-se? Que
pulhice que era tudo aquillo!
Positivamente devia partir.
—Mas que pretexto lhe hei-de eu dar para sahir
de Lisboa?
—Um telegramma! Não ha nada como um telegramma!
Telegrapha já ao teu homem em Paris, ao
Labachardie, ou Labachardette, ou o que é, que te
mande logo este despacho: «Parta, negocios maus,
etc.» É o melhor!
—Vou fazel-o—disse Bazilio erguendo-se, muito
decidido.
—E partimos ámanhã?—gritou Reynaldo.
—Ámanhã.
—Por Madrid?
—Por Madrid.
—
Salero!—Pôz-se de pé, na tina, enthusiasmado,
a escorrer, e com movimentos aduncos de
magricella saltou para fóra, embrulhou-se no roupão
turco. O seu criado William entrou logo, subtilmente,
ajoelhou-se, tomou-lhe um pé entre as mãos,
seccou-lh'o com precauções, pôz-se respeitosamente
a calçar-lhe a meia de sêda preta com ferradurinhas
bordadas.
Na manhã seguinte, um pouco antes do meio dia,
Joanna veio bater discretamente á porta do quarto
de Luiza, e com a voz baixa—desde o desmaio
[353]
fallava-lhe sempre baixo, como a uma convalescente:
—Está alli o primo da senhora.
Luiza ficou surprehendida. Estava ainda de
robe
de chambre, e tinha os olhos vermelhos de chorar;
pôz n'um instante um pouco de pó d'arroz, alisou
o cabello, entrou na sala.
Bazilio, vestido de claro, sentára-se melancolicamente
no môcho do piano. Trazia um ar grave, e,
sem transição, começou a dizer:—que apesar d'ella
se ter zangado na vespera, elle considerava ainda
tudo «como d'antes». Viera porque n'aquelle momento
não se podiam separar sem algumas explicações,
sobretudo sem resolver definitivamente o caso
da carta... E com um gesto triste, como contendo
lagrimas:
—Porque eu vejo-me forçado a sahir de Lisboa,
minha querida!
Luiza, sem olhar para elle, fez um sorriso mudo,
muito desdenhoso. Bazilio acrescentou logo:
—Por pouco tempo, naturalmente, tres semanas
ou um mez... Mas enfim tenho de partir... Se fossem
só os meus interesses!—Encolheu os hombros
com desdem.—Mas são interesses d'outros... E aqui
está o que eu recebi esta manhã.
Estendeu-lhe um telegramma. Ella conservou-o
um momento, sem o abrir; a sua mão fazia tremer
o papel.
—Lê, peço-te que leias!
—Para que?—fez ella.
[354]
Mas leu baixo: «Venha, graves complicações.
Presença absolutamente necessaria. Parta já.»
Dobrou o papel, entregou-lh'o.
—E partes, hein?
—É forçoso.
—Quando?
—Esta noite.
Luiza ergueu-se bruscamente, e estendendo-lhe
a mão:
—Bem, adeus.
Bazilio murmurou:
—És cruel, Luiza!... Não importa! Em todo o
caso ha um negocio que é necessario terminar. Fallaste
á mulher?
—Está tudo arranjado—respondeu ella, franzindo
a testa.
Bazilio tomou-lhe a mão, e quasi com solemnidade:
—Minha filha, eu sei que és muito orgulhosa,
mas peço-te que digas a verdade. Eu não te quero
deixar em difficuldades. Fallaste-lhe?
Ella retirou a mão, e com uma impaciencia crescente:
—Arranjou-se tudo, arranjou-se tudo!...
Bazilio parecia muito embaraçado, estava mesmo
um pouco pallido: emfim, tirando uma carteira da
algibeira, começou:
—Em todo o caso é possivel, é natural (nós não
sabemos com quem lidamos), é natural que haja outras
exigencias...—Abriu a carteira, tomou um sobrescripto
pequenino e cheio.
[355]
Luiza seguia, fazendo-se vermelha, os movimentos
de Bazilio.
—Por isso, para te poderes entender melhor
com ella, sempre me parece bom deixar-te algum dinheiro.
—Tu estás doudo?—exclamou ella.
—Mas...
—Tu queres-me dar dinheiro?—A sua voz tremia.
—Mas emfim...
—Adeus!—E ia sahir da sala, indignada.
—Luiza, pelo amor de Deus! Tu não me comprehendeste...
Ella parou, disse precipitadamente, como impaciente
por acabar:
—Comprehendi, Bazilio, obrigada. Mas não, não
é necessario. Estou nervosa, é o que é... Não prolonguemos
mais isto... Adeus...
—Mas sabes que volto, dentro de tres semanas...
—Bem, então nos veremos...
Elle attrahiu-a, deu-lhe um beijo na bocca, encontrou
os seus labios passivos e inertes.
Aquella frieza irritou-lhe a vaidade. Apertou-a
contra o peito; disse-lhe baixo, pondo muita paixão
na voz:
—Nem um beijo me queres dar?
Nos olhos de Luiza passou um ligeiro clarão; beijou-o
rapidamente, e recuando:
—Adeus.
[356]
Bazilio esteve um momento a olhal-a, teve como
um leve suspiro:
—Adeus!—E da porta, voltando-se, com melancolia:—Escreve-me
ao menos. Sabes a minha morada.
Rue Saint Florentin, 22.
Luiza chegou-se á janella. Viu-o accender o charuto
na rua, fallar ao cocheiro, saltar para o coupé,
fechar com força a portinhola, sem um olhar para as
janellas!
O trem rolou. Era o n.º 10... Nunca mais o veria!
Tinham palpitado no mesmo amor, tinham commettido
a mesma culpa.—Elle partia alegre, levando
as recordações romanescas da aventura: ella ficava,
nas amarguras permanentes do erro. E assim
era o mundo!
Veio-lhe um sentimento pungente de solidão e de
abandono. Estava só, e a vida apparecia-lhe como
uma vasta planicie desconhecida, coberta da densa
noite, erriçada de perigos!
Entrou no quarto devagar, foi-se deixar cahir no
sophá: viu ao pé o sacco de marroquim, que preparára
na vespera para fugir: abriu-o, pôz-se a tirar
lentamente os lenços, uma camisinha bordada,—encontrou
a photographia de Jorge! Ficou com ella na
mão, contemplando o seu olhar leal, o seu sorriso
bom.—Não, não estava no mundo só! Tinha-o a
elle! Amava-a aquelle, nunca a trahiria, nunca a
abandonaria!—E collando os beiços ao retrato, humedecendo-o
de beijos convulsivos, atirou-se de bruços,
lavada em lagrimas, dizendo:—Perdôa-me, Jorge,
[357]
meu Jorge, meu querido Jorge, Jorge da minha
alma!
Depois de jantar Joanna veio dizer-lhe timidamente:
—A senhora não lhe parece que seria bom ir
saber da snr.
a Juliana?
—Mas onde quer vossê ir saber?—perguntou
Luiza.
—Ella ás vezes vai a casa d'uma amiga, uma
inculcadeira, para os lados do Carmo. Talvez lhe tivesse
dado alguma, esteja mal. Mas tambem não
mandar recado desde hontem pela manhã... Cousa
assim! Eu podia ir saber...
—Pois bem, vá, vá.
Aquella desapparição brusca inquietava tambem
Luiza. Onde estava, que fazia? Parecia-lhe que alguma
cousa se tramava em segredo, longe d'ella, que
viria de repente estalar-lhe sobre a cabeça, terrivelmente...
Anoiteceu. Accendeu as velas. Tinha um certo
medo de estar assim só em casa: e, passeando pelo
quarto, pensava que áquella hora Bazilio em Santa
Apolonia comprava alegremente o seu bilhete, installava-se
no wagon, accendia o charuto, e d'ahi a pouco,
a machina arquejando leval-o-hia para sempre!
Porque não acreditava «na demora de tres semanas,
um mez»! Ia para sempre, safava-se! E apesar de o
[358]
detestar sentia que alguma cousa dentro em si se
partia com aquella separação, e sangrava dolorosamente!
Eram quasi nove horas quando a campainha retiniu
com pressa. Julgou que seria Joanna de volta,
foi abrir com um castiçal,—e recuou vendo Juliana,
amarella, muita alterada.
—A senhora faz favor de me dar uma palavra?
Entrou no quarto atraz de Luiza, e immediatamente
rompeu, gritando, furiosa:
—Então a senhora imagina que isto ha-de ficar
assim? A senhora imagina que por seu amante se
safar, isto ha-de ficar assim?
—Que é, mulher?—fez Luiza, petrificada.
—Se a senhora pensa, que por o seu amante se
safar, isto ha-de ficar em nada?—berrou.
—Oh mulher, pelo amor de Deus!...
A sua voz tinha tanta angustia que Juliana calou-se.
Mas depois de um momento, mais baixo:
—A senhora bem sabe que se eu guardei as cartas,
para alguma cousa era! Queria pedir ao primo da
senhora que me ajudasse! Estou cançada de trabalhar,
e quero o meu descanço. Não ia fazer escandalo, o que
desejava é que elle me ajudasse... Mandei ao hótel
esta tarde... O primo da senhora tinha desarvorado!
Tinha ido para o lado dos Olivaes, para o inferno! E
o criado ia á noite com as malas. Mas a senhora
pensa que me logram?—E retomada pela sua colera,
batendo com o punho furiosamente na mesa:—Raios
[359]
me partam, se não houver uma desgraça
n'esta casa, que ha-de ser fallada em Portugal!
—Quanto quer vossê pelas cartas, sua ladra?—disse
Luiza, erguendo-se direita, diante d'ella.
Juliana ficou um momento interdicta.
—A senhora ou me dá seiscentos mil reis, ou
eu não largo os papeis!—respondeu, empertigando-se.
—Seiscentos mil reis! Onde quer vossê que eu
vá buscar seiscentos mil reis?
—Ao inferno!—gritou Juliana.—Ou me dá
seiscentos mil reis, ou tão certo como eu estar aqui,
o seu marido ha-de lêr as cartas!
Luiza deixou-se cahir n'uma cadeira, aniquilada.
—Que fiz eu para isto, meu Deus, que fiz para
isto?
Juliana plantou-se-lhe diante, muito insolente.
—A senhora diz bem, sou uma ladra, é verdade,
apanhei a carta no cisco, tirei as outras do gavetão.
É verdade! E foi para isto, para m'as pagarem!—E
traçando, destraçando o chale, n'uma excitação
phrenetica:—Não que a minha vez havia de chegar!
Tenho soffrido muito, estou farta! Vá buscar o
dinheiro onde quizer. Nem cinco reis de menos!
Tenho passado annos e annos a ralar-me! P'ra ganhar
meia moeda por mez, estafo-me a trabalhar,
de madrugada até á noite, em quanto a senhora está
de panria! É que eu levanto-me ás seis horas da
manhã—e é logo engraxar, varrer, arrumar, labutar,
e a senhora está muito regalada em valle de
[360]
lençoes, sem cuidados, nem canceiras. Ha um mez
que me ergo com o dia, p'ra metter em gomma, passar,
engommar! A senhora suja, suja, quer ir vêr
quem lhe parece, apparecer-lhe com tafularias por baixo,
e cá está a negra, com a pontada no coração, a
matar-se, com o ferro na mão! E a senhora, são passeios,
tipoias, boas sêdas, tudo o que lhe appetece—e
a negra? A negra a esfalfar-se!
Luiza, quebrada, sem força de responder, encolhia-se
sob aquella colera como um passaro sob um
chuveiro. Juliana ia-se exaltando com a mesma violencia
da sua voz. E as lembranças das fadigas, das
humilhações, vinham atear-lhe a raiva, como achas
n'uma fogueira.
—Pois que lhe parece?—exclamava.—Não que
eu cômo os restos e a senhora os bons bocados! Depois
de trabalhar todo o dia, se quero uma gota de
vinho, quem m'o dá? Tenho de o comprar! A senhora
já foi ao meu quarto? É uma enxovia! A persevejada
é tanta que tenho de dormir quasi vestida!
E a senhora se sente uma mordedura, tem a negra
de desaparafusar a cama, e de a catar frincha por
frincha. Uma criada! A criada é o animal. Trabalha
se pódes, senão rua, para o hospital. Mas chegou-me
a minha vez—e dava palmadas no peito, fulgurante
de vingança.—Quem manda agora, sou eu!
Luiza soluçava baixo.
—A senhora chora! tambem eu tenho chorado
muita lagrima! Ai! eu não lhe quero mal, minha
senhora, certamente que não! Que se divirta, que
[361]
goze, que goze! O que eu quero é o meu dinheiro.
O que eu quero é o meu dinheiro aqui escarrado, ou
o papel ha-de ser fallado! Ainda este tecto me rache,
se eu não fôr mostrar a carta ao seu homem,
aos seus amigos, á visinhança toda, que ha-de andar
arrastada pelas ruas da amargura!
Calou-se, exhausta; e com a voz entrecortada de
cansaços:
—Mas dê-me a senhora o meu dinheiro, o meu
rico dinheiro, e aqui tem os papeis, e o que lá vai,
lá vai, e até lhe levo outras. Mas o meu dinheiro
p'ra aqui! E tambem lhe digo, que morta seja eu
n'este instante com um raio, se depois de eu receber
o meu dinheiro esta bocca se torna a abrir!—E
deu uma palmada na bocca.
Luiza erguera-se devagar, muito branca:
—Pois bem—disse, quasi n'um murmurio—eu
lhe arranjarei o dinheiro. Espere uns dias.
Fez-se um silencio—que depois do ruido parecia
muito profundo, e tudo no quarto como que se
tornára mais immovel. Apenas o relogio batia o seu
tic-tac, e duas velas sobre o toucador consumindo-se
davam uma luz avermelhada, e direita.
Juliana tomou a sombrinha, traçou o chale, e depois
de fitar Luiza um momento:
—Bem, minha senhora—disse, muito secca.
Voltou as costas, sahiu.
Luiza sentiu-a bater a cancella com força.
—Que expiação, Santo Deus!—exclamou, cahindo
n'uma cadeira, banhada de novo em lagrimas.
[362]
Eram quasi dez horas quando Joanna voltou.
—Não pude saber nada, minha senhora, na inculcadeira
ninguem sabe d'ella.
—Bem, traga a lamparina.
E Joanna ao despir-se no seu quarto, rosnava
comsigo:
—A mulher tem arranjo, está mettida por ahi
com algum sucio!
Que noite para Luiza! A cada momento acordava
n'um sobresalto, abria os olhos na penumbra do
quarto, e cahia-lhe logo na alma, como uma punhalada,
aquelle cuidado pungente: Que havia de fazer?
Como havia d'arranjar dinheiro? Seiscentos mil reis!
As suas joias valiam talvez duzentos mil reis. Mas
depois, que diria Jorge? Tinha as pratas... Mas era
o mesmo!
A noite estava quente, e na sua inquietação a
roupa escorregára, apenas lhe restava o lençol sobre
o corpo. Ás vezes a fadiga readormecia-a d'um somno
superficial, cortado de sonhos muitos vivos. Via
montões de libras reluzirem vagamente, maços de
notas agitarem-se brandamente no ar. Erguia-se, saltava
para as agarrar, mas as libras começavam a
rolar, a rolar como infinitas rodinhas sobre um chão
liso, e as notas desappareciam, voando muito leves
com um fremito de azas ironicas. Ou então era alguem
[363]
que entrava na sala, curvava-se respeitosamente,
e começava a tirar do chapéo, a deixar-lhe
cahir no regaço libras, moedas de cinco mil reis,
peças, muitas, muitas, profusamente: não conhecia
o homem: tinha um chinó vermelho e uma pera
impudente. Seria o diabo? Que lhe importava? Estava
rica, estava salva! Punha-se a chamar, a gritar por
Juliana, a correr atraz d'ella, por um corredor que
não findava, e que começava a estreitar-se, a estreitar-se,
até que era como uma fenda por onde ella se
arrastava de esguelha, respirando mal, e apertando
sempre contra si o montão de libras que lhe punha
frialdades de metal sobre a pelle núa do peito. Acordava
assustada: e o contraste da sua miseria real
com aquellas riquezas do sonho era como um acrescimo
de amargura. Quem lhe poderia valer?—Sebastião!
Sebastião era rico, era bom. Mas mandal-o
chamar, e dizer-lhe ella, ella Luiza, mulher de Jorge:—Empreste-me
seiscentos mil reis.—Para quê,
minha senhora? E podia lá responder: para resgatar
umas cartas que escrevi ao meu amante. Era lá possivel!
Não, estava perdida. Restava-lhe ir para um
convento.
A cada momento voltava o travesseirinho que
lhe escaldava o rosto: atirou a touca, os seus longos
cabellos soltaram-se, prendeu-os ao acaso com
um gancho; e de costas, com a cabeça sobre os braços
nús, pensava amargamente no romance de todo
aquelle verão,—a chegada de Bazilio, o passeio ao
Campo Grande, a primeira visita ao
Paraiso...
[364]
Onde iria elle, aquelle infame? Dormindo tranquillamente
nas almofadas do wagon!
E ella alli, na agonia!
Atirou o lençol, abafava. E descoberta, mal se
distinguindo da alvura da roupa, adormeceu quando
a madrugada rompia.
Acordou tarde, succumbida. Mas logo na sala de
jantar a belleza da manhã gloriosa reanimou-a. O sol
entrava abundante e radioso pela janella aberta; os
canarios faziam um concerto; da forja ao pé sahia
um martellar jovial; e o largo azul vigoroso levantava
as almas.—Aquella alegria das cousas deu-lhe
como uma coragem inesperada. Não se havia de
abandonar a uma desesperança inerte... Que diabo!
Devia luctar!
Vieram-lhe esperanças, então. Sebastião era bom,
Leopoldina tinha expedientes, havia outras possibilidades,
o acaso mesmo: e tudo isto podia, em definitiva,
formar seiscentos mil reis, salval-a! Juliana
desappareceria, Jorge voltaria!—E, alvoraçada, via
perspectivas de felicidades possiveis reluzirem, no
futuro, deliciosamente.
Ao meio dia veio o criadito de Sebastião: o senhor
tinha chegado d'Almada, desejava saber como
a senhora estava.
Correu ella mesma á porta; que pedia ao snr.
Sebastião, que viesse logo que podesse!
Acabou-se! Sentia-se resoluta, ia fallar a Sebastião...
No fim era o que lhe restava: contar ella tudo
a Sebastião, ou que a outra contasse tudo a seu
[365]
marido. Impossivel hesitar! E depois podia attenuar,
dizer que fôra só uma correspondencia platonica...
A partida de Bazilio, além d'isso, fazia d'aquelle erro
um facto passado, quasi antigo... E Sebastião era
tão amigo d'ella!
Veio, era uma hora. Luiza que estava no quarto
sentiu-o entrar, e só o som dos seus passos grossos
no tapete da sala deu-lhe uma timidez, quasi um
terror. Parecia-lhe agora muito difficil, terrivel de
dizer... Preparára phrases, explicações, uma historia
de galanteio, de cartas trocadas; e estava com a
mão no fecho da porta, a tremer. Tinha medo d'elle!
Ouvia-o passear pela sala; e receando que a impaciencia
lhe désse mau humor, entrou.
Afigurou-se-lhe mais alto, mais digno: nunca o seu
olhar lhe parecera tão recto, e a sua barba tão séria!
—Então que é? precisa alguma cousa?—perguntou-lhe
elle depois das primeiras palavras sobre
Almada, sobre o tempo.
Luiza teve uma cobardia indominavel, respondeu
logo:
—É por causa de Jorge!
—Aposto que não lhe tem escripto?
—Não.
—Esteve muito tempo sem me escrever tambem.—E
rindo:—Mas hoje recebi duas cartas por atacado.
Procurou-as entre outros papeis que tirou da algibeira.
Luiza fôra sentar-se no sophá; olhava-o com
o coração aos pulos, e as suas unhas impacientes raspavam
devagarinho o estôfo.
[366]
—É verdade—dizia Sebastião, revolvendo o maço
de papeis.—Recebi duas, falla em voltar, diz
que está muito seccado...—E estendendo uma carta
a Luiza:—Póde vêr.
Luiza desdobrára-a, e começava a lêr; mas Sebastião,
estendendo a mão precipitadamente:
—Perdão, não é essa!
—Não, deixe vêr...
—Não diz nada, são negocios...
—Não, quero vêr!
Sebastião, sentado á beira da cadeira, coçava a
barba, olhando-a, muito contrariado. E Luiza de repente,
franzindo a testa:
—O quê?—A leitura espalhava-lhe no rosto
uma surpreza irritada.—Realmente!...
—São tolices, são tolices!—murmurava Sebastião,
muito vermelho.
Luiza pôz-se então a lêr alto, devagar:
«Saberás, amigo Sebastião, que fiz aqui uma conquista.
Não é o que se póde chamar uma princeza,
porque é nem mais nem menos que a mulher do estanqueiro.
Parece estar abrazada no mais impuro fogo,
por este seu criado. Deus me perdôe, mas desconfio
até que me leva apenas um vintem pelos charutos
de pataco, fazendo assim ao esposo, o digno
Carlos, a dupla partida de lhe arruinar a felicidade e
a tenda!»—Que graça!—murmurou Luiza, furiosa.—«Receio
muito que se repita commigo o caso
biblico da mulher de Putiphar. Acredita que ha um
certo merito em lhe resistir, porque a mulher, estanqueira
[367]
como é, é lindissima. E tenho medo que succeda
algum fracasso á minha pobre virtude...»
Luiza interrompeu-se, e olhou Sebastião com um
olhar terrivel.
—São brincadeiras!—balbuciou elle.
Ella seguiu, lendo: «Olha se a Luiza soubesse
d'esta aventura! De resto, o meu successo não pára
aqui: a mulher do delegado faz-me um olho dos diabos!
É de Lisboa, d'uma gente Gamacho, que parece
que mora para Belem, conheces? e dá-se ares de
morrer de tedio, na tristeza provinciana da localidade.
Deu uma
soirée em minha honra, e em minha honra,
creio tambem, decotou-se. Muito bonito collo»—Luiza
fez-se escarlate—«e uma queda do diabo...»
—Está doudo!—exclamou ella.—«E aqui tens
o teu amigo feito um D. Juan do Alemtejo, e deixando
um rasto de chammas sentimentaes por essa provincia
fóra! O Pimentel recommenda-se...»
Luiza ainda leu baixo algumas linhas, e erguendo-se
bruscamente, dando a carta a Sebastião:
—Muito bem, diverte-se!—disse com uma voz
sibilante.
—São lá cousas que se tomem a serio! Não deve
tomar a serio...
—Eu!—exclamou ella.—Acho muito natural até!
Sentou-se, começou, com volubilidade, a fallar
d'outras cousas, de D. Felicidade, de Julião...
—Trabalha muito agora para o concurso—disse
Sebastião.—Quem não tenho visto é o Conselheiro.
—Mas, quem é essa gente Gamacho, de Belem?
[368]
Sebastião encolheu os hombros—e com um ar
quasi reprehensivo:
—Ora realmente tomou a serio...
Luiza interrompeu-o:
—Ah! sabe? Meu primo Bazilio partiu.
Sebastião teve um alvoroço d'alegria.
—Sim?
—Foi para Paris, não creio que volte.—E depois
d'uma pausa, parecendo ter esquecido Jorge, e
a carta:—Só em Paris está bem... Estava no ar p'ra
partir.—Acrescentou com pancadinhas leves nas pregas
do vestido:—Precisava casar, aquelle rapaz.
—P'ra assentar—disse Sebastião.
Mas Luiza não acreditava que um homem que
gostava tanto de viagens, de cavallos, d'aventuras,
podesse dar um bom marido.
Sebastião era d'opinião que ás vezes socegavam,
e eram homens de familia...
—Teem mais experiencia—disse.
—Mas um fundo leviano—observou ella.
E depois d'estas palavras vagas calaram-se com
embaraço.
—Eu a fallar a verdade—disse então Luiza—estimei
que meu primo partisse... Como tinha havido
essas tolices na visinhança... Ultimamente mesmo
quasi que o não vi. Esteve ahi hontem, veio despedir-se,
fiquei surprehendida...
Estava tornando impossivel a historia d'um galanteio
platonico, cartas trocadas—mas um sentimento
mais forte que ella impellia-a a attenuar, distanciar
[369]
as suas relações com Bazilio. Acrescentou
mesmo:
—Eu sou amiga d'elle, mas somos muito differentes...
Bazilio é egoista, pouco affeiçoado... De
resto a nossa intimidade nunca foi grande...
Calou-se bruscamente, sentiu que «se enterrava».
Sebastião lembráva-se ouvir-lhe dizer «que tinham
sido creados ambos de pequenos»; mas emfim
aquella maneira de fallar do primo, parecia-lhe
a prova maior de que «não houvera nada». Quasi
se queria mal pelas duvidas, que tivera, tão injustas!...
—E volta?—perguntou.
—Não me disse, mas não creio. Em se pilhando
em Paris!
E com a idéa da carta, de repente:
—Então o Sebastião é confidente de Jorge?
Elle riu:
—Oh minha senhora! pois acredita...
—E a mim quando me escreve, que se aborrece,
que está só, que não supporta o Alemtejo...—Mas
vendo Sebastião olhar o relogio:—O que, já? É
cedo.
Tinha d'estar na baixa antes das tres, disse elle.
Luiza quiz retel-o. Não sabia para quê—porque
a cada momento sentia a sua resolução diminuir, desapparecer
como a agua d'um rio que se absorve no
seu leito. Pôz-se a fallar-lhe das obras d'Almada.
Sebastião começára-as pensando que duzentos ou
trezentos mil reis fariam as restaurações necessarias:
[370]
mas depois umas cousas tinham trazido outras—e,
dizia, está-se-me tornando um sorvedouro!
Luiza riu, forçadamente.
—Ora, quando se é proprietario e rico!...
—Isso sim! Parece que não é nada: mas uma
pintura n'uma porta, uma janella nova, uma sala
forrada de papel, um soalho, e isto e aquillo, e lá se
vão oitocentos mil reis... Emfim!...
Levantou-se, e despedindo-se:
—Eu espero que aquelle vadio se não demore
muito...
—Se a estanqueira der licença...
Ficou a passear na sala, nervosa, com aquella
idéa. Deixar-se namorar pela estanqueira, e a mulher
do delegado, e as outras!... De certo, tinha confiança
n'elle, mas os homens!... De repente representou-se-lhe
a estanqueira prendendo-o nos braços detraz
do balcão, ou Jorge beijando, n'alguma entrevista,
de noite, o collo bonito da mulher do delegado!...
E tumultuosamente appareceram-lhe todas as
razões que provavam irrecusavelmente a traição de
Jorge: estava ha dous mezes fóra! sentia-se cançado
da sua viuvez! encontrava uma mulher bonita!
tomava aquillo como um prazer passageiro, sem importancia!...
Que infame! Resolveu escrever-lhe uma
carta digna e offendida, «que viesse immediatamente,
ou que partia ella!»—Entrou no quarto, muito
excitada. A photographia de Jorge, que ella tirára na
vespera do sacco de marroquim, ficára no toucador.
Pôz-se a olhal-a: não admirava que o namorassem,
[371]
era bonito, era amavel... Veio-lhe uma onda de ciume,
que lhe obscureceu o olhar: se elle a enganasse,
se tivesse a certeza da «mais pequena cousa»—separava-se,
recolhia-se a um convento, morria de certo,
matava-o!...
—Minha senhora—veio dizer Joanna—é um
gallego com esta carta. Está á espera da resposta.
Que espanto! Era de Juliana!
Escripta em papel pautado, n'uma letra medonha,
erriçada de erros d'orthographia, dizia:
«Minha senhora.
«Bem sei que fui imprudente, o que a senhora
deve attribuir tanto á minha desgraça como á falta
de saude, o que ás vezes faz que se tenham genios
repentinos. Mas se a senhora quer que eu volte e
faça o serviço como d'antes—ao qual creio que a
senhora não póde oppôr-se, terei muito gosto em ser
agradavel na certeza que nunca mais se fallará em
tal até que a senhora queira, e cumpra o que prometteu.
Prometto fazer o meu serviço, e desejo que
a senhora esteja por isto pois que é para bem de
todos. Pois que foi genio e naturalmente todos teem
os seus repentes, e com isto não canço mais e sou
«Serva muito obediente
«a criada
«Juliana Couceiro Tavira.»
[372]
Ficou com a carta na mão, sem resolução. A sua
primeira vontade foi dizer—não! Tornar a recebel-a,
vêl-a, com a sua face horrivel, a cuia enorme!
Saber que ella tinha no bolso a sua carta, a sua
deshonra, e chamal-a, pedir-lhe agua, a lamparina,
ser servida por ella! Não! Mas veio-lhe um terror;
se recusasse irritava a creatura, Deus sabe o que faria!
Estava nas mãos d'ella, devia passar por tudo.
Era o seu castigo... Hesitou ainda um momento:
—Que sim, que venha, é a resposta.
Juliana veio com effeito ás oito horas. Subiu pé
ante pé para o sotão, poz o fato de casa e as chinellas,
e desceu para o quarto dos engommados,
onde Joanna sentada n'um tapete costurava, á luz
do petroleo.
Joanna, muito curiosa, acabrunhou-a logo de perguntas:
Onde estivera? o que tinha acontecido? porque
não déra noticias?—Juliana contou que fôra a
uma visita a uma amiga, á calçada do Marquez
d'Abrantes, e que de repente lhe dera um flato, e a
dôr... Não quiz mandar dizer, porque imaginára que
poderia vir. Mas qual! estivera dia e meio de cama...
Quiz saber então o que tinha feito a senhora, se
sahira, quem estivera...
—A senhora tem andado a modo incommodada—disse
Joanna.
—É do tempo—observou Juliana.—Tinha trazido
[373]
a sua costura, e ambas caladas continuaram o
serão.
Ás dez horas Luiza ouviu bater devagarinho á
porta do quarto. Era
ella, de certo!
—Entre...
A voz de Juliana disse muito naturalmente:
—Está o chá na mesa.
Mas Luiza não se decidia a ir á sala, com medo,
horror de a vêr! Deu voltas no quarto, demorou-se;
foi emfim, toda tremula. Juliana vinha justamente
no corredor; encolheu-se contra a parede, com respeito,
disse:
—Quer que vá pôr a lamparina, minha senhora?
Luiza fez que
sim com a cabeça, sem a olhar.
Quando voltou ao quarto Juliana enchia o jarro;
e depois de ter aberto a cama, cerrado as portas,
quasi em pontas de pés:
—A senhora não precisa mais nada?—perguntou.
—Não.
—Muito boa noite, minha senhora.
E não houve outra palavra mais.
—Parece um sonho!—pensava Luiza, ao despir-se
melancolicamente.—Esta creatura, com as
minhas cartas, installada em minha casa para me
torturar, para me roubar!—Como se achava ella,
Luiza, n'aquella situação? Nem sabia. As cousas tinham
vindo tão bruscamente, com a precipitação furiosa
d'uma borrasca, que estala! Não tivera tempo
de raciocinar, de se defender: fôra embrulhada: e
[374]
alli estava, quasi sem «dar fé», na sua casa sob a
dominação da sua criada! Ah! se tivesse fallado a
Sebastião! Tinha agora o dinheiro, de certo, notas,
ouro... Com que phrenesi lh'o arremessaria, a expulsaria,
e a arca, e os trapos, e a cuia!...—Jurou
a si propria fallar a Sebastião, dizer tudo! Iria
mesmo a casa d'elle, para o impressionar mais!
D'ahi a pouco, quebrada da agitação do dia,
adormecera—e sonhava que um estranho passaro
negro lhe entrára no quarto, fazendo uma ventania,
com as suas azas pretas de morcego: era Juliana!
Corria aterrada ao escriptorio, gritando: Jorge! Mas
não via nem livros, nem estante, nem mesa:—havia
uma armação reles de loja de tabaco, e por
traz do balcão, Jorge acariciava sobre os joelhos uma
bella mulher de fórmas robustas, em camisa d'estopa,
que perguntava com uma voz desfallecida de voluptuosidade
e os olhos afogados em paixão:—Brejeiros
ou de Xabregas?—Fugia então de casa indignada,
e, através de successos confusos, via-se ao
lado de Bazilio, n'uma rua sem fim, onde os palacios
tinham fachadas de cathedraes, e as carruagens rolavam
ricamente com uma pompa de cortejo. Contava
soluçando a Bazilio a traição de Jorge. E Bazilio,
saltitando em volta d'ella com requebros de palhaço,
repenicava uma viola, e cantava:
Escrevi uma carta a Cupido
A mandar-lhe perguntar
Se um coração offendido
Tem obrigação de amar!
[375]
—Não tem!—gania a voz d'Ernestinho, brandindo
triumphante um rolo de papel.—E tudo se
obscurecia de repente nos largos vôos circulares que
fazia Juliana com as suas azas de morcego.
IX
Juliana voltára para casa de Luiza por conselhos
da tia Victoria.
—Olha, minha rica, tinha-lhe ella dito, não ha
que vêr, o passaro fugiu-nos! Suspira, bem pódes
suspirar que o dinheiro grosso foi-se! Quem podia lá
adivinhar que o homem desarvorava! Não, lá isso
pódes tirar d'ahi o sentido! Que d'ella escusas d'esperar
nem cheta...
—Tambem me regalo de mandar as cartas ao
marido, tia Victoria!
A velha encolheu os hombros:
—Não lucras nada com isso. Ou que elles se
desquitem, ou que elle lhe parta os ossos, ou que
a mande para um convento—tu não ganhas nada.
E se se acommodarem, mais ficas a chuchar no dedo,
porque nem tens a consolação de fazeres a sizania.
[378]
E isto é se as cousas correrem pelo melhor,
porque pódes muito bem ficar mas é em lençoes de
vinagre com alguma carga de pau que elles te mandem
dar.—E vendo um gesto espantado de Juliana:—Já
não era o primeiro caso, minha rica, já não
era o primeiro. Olha que em Lisboa, passa-se muita
cousa, e nem tudo vem nos jornaes!
Positivamente o que ella tinha a fazer era voltar
para a casa. Porque emfim o que restava de tudo
aquillo? O medo de D. Luiza: esse é que lá estava
sempre a dar-lhe por dentro a colica: d'esse é
que era necessario tirar partido...
—Tu voltas para lá—dizia—á espera que ella
cumpra o que prometteu. Se te dá o dinheiro,
bem... Senão tem-l'a em todo o caso na mão, estás
de dentro da praça, sabes o que se passa, pódes-lhe
apanhar muita cousa...
Mas Juliana hesitava.—Era difficil viverem debaixo
das mesmas telhas sem haver uma questão
por dá cá aquella palha.
—Não te diz uma palavra, tu verás...
—Mas tenho medo...
—De que?—exclamava a tia Victoria. Ella não
era mulher para a envenenar, não é verdade? Então?
Quem a nada se arriscava nada ganhava.—Isto é
se queres—acrescentou—senão trata de te arranjar
n'outra parte, e deita as cartas para o fundo da
arca. Que diabo! Tu vaes vêr, se não te convém, safas-te...
Juliana decidiu ir, «a vêr».
[379]
E reconheceu logo, que «aquella finoria da tia
Victoria tinha carradas de razão».
Luiza, com effeito, parecia resignada. Sebastião
tinha ido para Almada, outra vez. Mas como estava
decidida, apenas elle voltasse, a ir a casa d'elle uma
manhã, atirar-se-lhe ao pés, contar-lhe
tudo,
tudo,
supportava Juliana, reflectindo:—É apenas por dias!—Por
isso não lhe disse uma palavra. Para que? O
que tinha a fazer era pagar-lhe e pôl-a fóra, não
é verdade? Em quanto o não podesse fazer, era aguentar
e calar. Até que Sebastião voltasse...
No entretanto evitava vêl-a. Nunca a chamava.
Não sahia da alcova de manhã, sem a ter sentido
fóra no quarto encher o banho, sacudir os vestidos.
Ia para a sala de jantar com um livro, e nos intervallos
não levantava os olhos das paginas. E durante
todo o dia conservava-se no quarto com a porta
fechada, lendo, costurando, pensando em Jorge—ás
vezes tambem em Bazilio com odio, desejando a
volta de Sebastião, e preparando a sua historia.
Juliana, uma manhã, encontrou Luiza no corredor
trazendo para o quarto o regador cheio d'agua.
—Oh minha senhora! porque não chamou?—exclamou,
quasi escandalisada.
—Não tem duvida—disse Luiza.
Mas Juliana seguiu-a ao quarto, e cerrando a
porta:
—Oh minha senhora!—disse muito offendida—isto
assim não póde continuar. A senhora parece que
tem medo de me vêr, credo! Eu voltei para fazer o
[380]
meu serviço como d'antes... Verdade, verdade, naturalmente,
sempre espero que a senhora faça o que
prometteu... E lá largar as cartas não largo, sem
ter seguro o pão da velhice. Mas o que se passou
foi um repente de genio, e já pedi perdão á senhora.
Quero fazer o meu serviço... Agora se a senhora
não quer, então saio, e—acrescentou com uma
voz secca—talvez seja peor para todos!...
Luiza, muito perturbada, balbuciou:
—Mas...
—Não, minha senhora—cortou Juliana severamente—aqui
a criada sou eu.
E sahiu, empertigada.
Tanta audacia aterrou Luiza. Aquella ladra era
capaz de tudo!
Então, para a não irritar começou, d'ahi por
diante, a chamal-a, a dizer:—Traga isto, traga
aquillo,—sem a olhar.
Mas Juliana fazia-se tão serviçal, era tão calada,
que Luiza pouco a pouco, dia a dia, com o seu caracter
mobil, inconsistente, cheio
de deixar-se ir,
principiou a perder o sentimento pungente d'aquella
difficuldade. E no fim de tres semanas «as cousas
tinham entrado nos seus eixos»—dizia Juliana.
Luiza já gritava por ella do quarto, já a mandava
a recados fóra: Juliana chegava a ter ás vezes
migalhas de conversação:—Está um calor de morrer...
A lavadeira tarda...—Um dia arriscou esta
phrase mais intima:—Encontrei a criada da snr.
a
D. Leopoldina.
[381]
Luiza perguntou:
—Ainda está para o Porto?
—Ainda se demora um mez, minha senhora...
De resto havia na casa um aspecto muito tranquillo,
e Luiza, depois de tantas agitações, abandonava-se
com gozo á satisfação d'aquelle descanço. Ia
ás vezes vêr D. Felicidade á Encarnação, que já se
levantava. E esperava sempre Sebastião, mas sem impaciencia,
quasi contente por vêr adiado o momento
terrivel de lhe dizer: escrevi a um homem, Sebastião!
Assim iam passando os dias; estava-se no fim de
setembro.
Uma tarde Luiza ficára mais tempo á janella da
sala de jantar; deixára cahir o livro no regaço, e
olhava, sorrindo, um bando de pombas que d'algum
quintal visinho viera pousar sobre o tabique do terreno
vago. Pensava vagamente em Bazilio, no
Paraiso...
Sentiu passos, era Juliana.
—Que é?
A mulher cerrára a porta, e vindo junto d'ella,
baixo:
—Então a senhora ainda não decidiu nada?
Luiza sentiu como uma pancada no estomago.
—Ainda não pude arranjar nada...
Juliana esteve um momento a olhar para o chão:
—Bem—murmurou, por fim.
E Luiza ouviu-a, no corredor, dizer alto:
—Isto quando o senhor voltar é que são os
ajustes de contas!
[382]
Quando Jorge voltasse! Immediatamente no seu
espirito, que se tinha pouco a pouco serenado, todos
os sustos, as angustias estremeceram de novo áquella
ameaça—assim uma rajada subita põe em convulsão
um arvoredo. Devia, pois, fazer
alguma cousa
antes que elle chegasse! Justamente Jorge escrevera-lhe,
que «não se demoraria, que a avisaria pelo
telegrapho...» Desejava, agora, que do ministerio o
mandassem fazer uma viagem mais longe, pela Hespanha
ou pela Africa; que alguma catastrophe, sem
lhe fazer mal, o retardasse mezes!...
Que faria elle, se soubesse! Matal-a-hia? Lembravam-lhe
as suas palavras muito sérias, n'aquella
noite, quando Ernestinho contára o final do seu
drama... Mettel-a-hia n'uma carruagem, leval-a-hia
a um convento? E via a grossa portaria fechar-se
com um ruido funerario de ferrolhos, olhos lugubres
estudal-a curiosamente...
O seu terror irraciocinado fizera-lhe mesmo perder
a idéa nitida do seu marido; imaginava um
outro
Jorge sanguinario e vingativo, esquecendo o seu
caracter bom, tão pouco melodramatico. Um dia foi
ao escriptorio, tomou a caixa das pistolas, fechou-a
n'um bahú de roupa velha, e escondeu a chave!...
Uma idéa amparava-a: era que apenas Sebastião
viesse d'Almada, estava salva; e apesar d'aquella
agonia miuda de todos os momentos, quasi receava
[383]
saber
que elle tivesse chegado,—tanto a confissão
da verdade lhe parecia uma agonia maior! Foi por
esse tempo, então, que lhe veio uma lembrança—escrever
a Bazilio. O terror permanente amollecera-lhe
o orgulho, como a lenta infiltração da agua faz
a uma parede; e todos os dias começou a achar uma
razão,
mais uma, para se dirigir «áquelle infame»:
fôra seu amante, já sabia todo o caso das cartas, era
o seu unico parente... E não teria de «dizer» a Sebastião!
Já ás vezes pensára que não aceitar dinheiro
de Bazilio fôra uma «fanfarronada bem tola»!
Um dia emfim escreveu-lhe. Era uma carta longa,
um pouco confusa, pedia-lhe
seiscentos mil reis. Foi
ella mesmo leval-a ao correio, sobrecarregando-a de
estampilhas.
N'essa tarde, por acaso, Sebastião, que chegára
d'Almada, veio vêl-a. Recebeu-o com alegria, feliz
por não ter de lhe contar... Fallou da volta de
Jorge;
alludiu mesmo ao primo Bazilio, á «pouca vergonha
da visinhança...»
—Não—disse—é a primeira cousa que hei-de
contar ao Jorge.
Porque se considerava salva, agora! E todos os
dias seguia a carta, no seu caminho para França, como
se a sua mesma vida fosse dentro d'aquelle sobrescripto
entregue ao acaso dos trens e á confusão
das viagens! Chegára a Madrid, depois a Bayonna,
depois a Paris! Um carteiro corria a entregal-a na
rua Saint Florentin. Bazilio abria-a tremendo, enchia
um sobrescripto de notas, muitas, que cobria de beijos,
[384]
e o enveloppe, trazendo a sua salvação e o seu
descanço, começava a rolar para baixo, pela França
e pela Navarra, soprando como um monstro e apressando-se
como um proprio.
No dia em que a resposta
devia chegar, levantou-se
mais cedo, agitada, com o ouvido pregado na
porta, esperando o toque do carteiro. Via-se já a expulsar
Juliana, a soluçar de alegria!... Mas ás dez
e meia começou a estar nervosa: ás onze chamou
Joanna, «que fosse saber se o carteiro passára».
—Diz que sim, minha senhora, que já passou.
—Canalha!—murmurou, pensando em Bazilio.
Talvez, todavia, não tivesse respondido no mesmo
dia! Esperou ainda, mas desconsolada, já sem
fé. Nada! Nem na outra manhã, nem nas seguintes!
O infame!
Veio-lhe então a idéa da loteria—porque insensivelmente
a esperança tornára-se-lhe necessaria. A
primeira vez que sahiu comprou umas poucas de cautelas.
Apesar de não ser religiosa nem supersticiosa,
metteu-as debaixo da peanha d'um S. Vicente de Paula
que tinha sobre a commoda, na alcova.
Não se
perdia nada! Examinava-as todos os dias, sommava
os algarismos a vêr se davam
nove,
noves
fóra,
nada,
ou um numero par—que é de bom agouro! E
aquelle contacto diario com a imagem do santo levando-a
a pensar de certo na protecção inesperada
do céo, fez uma promessa de cincoenta missas se as
cautelas fossem premiadas!...
Sahiram brancas—e então desesperou de tudo;
[385]
abandonou-se a uma inacção em que sentia quasi
uma voluptuosidade, passando dias sem se importar,
quasi sem se vestir, desejando morrer, devorando
nos jornaes todos os casos de suicidios, de fallencias,
de desgraças—consolando-se com a idéa de que
nem só ella soffria, e que a vida em redor, na cidade,
fervilhava de afflicções.
Ás vezes, de repente, vinha-lhe uma pontada de
medo. Decidia-se então de novo a «abrir-se» com
Sebastião; depois pensava que seria melhor escrever-lhe;
mas não achava as palavras, não conseguia
arranjar uma historia racional; vinha-lhe uma cobardia;
e recahia na sua inercia, pensando: «ámanhã,
ámanhã...»
Quando, só, no seu quarto, se chegava por acaso
á janella, punha-se a imaginar o que «diria a visinhança,
quando se soubesse»! Condemnal-a-hiam?
Lamental-a-hiam? Diriam—«Que desavergonhada»?
Diriam—«Coitadinha»? E por dentro da vidraça seguia,
com um olhar quasi aterrado, as passeatas do
Paula pela rua, o embasbacamento obeso da carvoeira,
as Azevedos por traz das bambinellas de cassa!
Como elles todos gritariam:—«Bem diziamos nós!
Bem diziamos nós!» Que desgraça! Ou então via de
repente Jorge, terrivel, fóra de si, com as
cartas
na
mão; e encolhia-se como se já estivesse sob a colera
dos seus punhos fechados.
Mas o que a torturava mais era a tranquillidade
de Juliana—espanejando, cantarolando, servindo-a
ao jantar d'avental branco. Que tencionava ella? Que
[386]
preparava ella? Ás vezes vinha-lhe uma onda de
raiva; se fosse forte ou corajosa, de certo atirar-se-lhe-hia
ao pescoço, para a esganar, arrancar-lhe a
carta! Mas pobre d'ella, era «uma mosquinha»!
Justamente, n'uma d'essas manhãs, Juliana entrou
no quarto—com o vestido de sêda preto no braço.
Estendeu-o na
causeuse, e mostrou a Luiza, na saia,
ao pé do ultimo folho, um rasgão largo que parecia
feito com um prego; vinha saber se a senhora queria
que o mandasse á costureira.
Luiza lembrava-se bem, rasgára-o uma manhã no
Paraiso a brincar com Bazilio!
—Isto é facil d'arranjar—dizia Juliana, passando
de leve a mão espalmada sobre a sêda, com a
lentidão d'uma caricia.
Luiza examinava-o, hesitando:
—Elle tambem já não está novo... Olhe, guarde-o
p'ra vossê!
Juliana estremeceu, fez-se vermelha:
—Oh minha senhora!—exclamou—Muito agradecida!
É um rico presente. Muito agradecida, minha
senhora! Realmente...—E a voz perturbava-se-lhe.
Tomou-o nos braços, com cuidado, correu logo á
cozinha. E Luiza, que a seguira pé ante pé, ouviu-a
dizer toda excitada:
—É um rico presente, é o que ha de melhor. E
novo! Uma rica sêda!—Fazia arrastar a cauda pelo
chão, com um
frou-frou. Sempre o invejára: e tinha-o
agora, era o
seu vestido de sêda!—É de muito
boa senhora, snr.
a Joanna, é d'um anjo!
[387]
Luiza voltou ao quarto, toda alvoroçada; era como
uma pessoa perdida de noite, n'um descampado—que
de repente, ao longe, vê reluzir um clarão de
vidraça! Estava salva! Era presenteal-a, era fartal-a!
Começou logo a pensar no que lhe podia dar mais,
pouco a pouco: o vestido rôxo, roupas brancas, o
roupão velho, uma pulseira!
D'ahi a dous dias—era um domingo—recebeu
um telegramma de Jorge: «Parto ámanhã do Carregado.
Chego pelo comboio do Porto ás 6.» Que sobresalto!
Voltava, emfim!
Era nova, era amorosa—e no primeiro momento
todos os sustos, as inquietações desappareceram sob
uma sensação d'amor e de desejo, que a inundou.
Viria de madrugada, encontral-a-hia deitada,—e já
pensava na delicia do seu primeiro beijo!...
Foi-se vêr ao espelho: estava um pouco magra,
talvez, com a physionomia um pouco fatigada... E a
imagem de Jorge apparecia-lhe então muito nitidamente,
mais queimado do sol, com os seus olhos ternos,
o cabello tão annelado! Que estranha cousa!
Nunca lhe appetecêra tanto vêl-o. Foi logo occupar-se
d'elle: o escriptorio estaria bem arranjado? Quereria
um banho morno, seria necessario aquecer a
agua na tina grande!... E ia e vinha, cantarolando,
com um brilho exaltado nos olhos.
Mas a voz de Juliana, de repente no corredor,
[388]
fêl-a estremecer. Que faria ella, a mulher? Ao menos
que a deixasse n'aquelles primeiros dias gozar
a volta de Jorge, tranquillamente!... Veio-lhe uma
audacia, chamou-a.
Juliana entrou, com o vestido de sêda novo, movendo-se
cuidadosamente:
—Quer alguma cousa, minha senhora?
—O snr. Jorge volta amanhã...—disse Luiza.
E suspendeu-se; o coração batia-lhe fortemente.
—Ah!—fez Juliana.—Bem, minha senhora.
E ia sahir.
—Juliana!—fez Luiza, com a voz alterada.
A outra voltou-se, surprehendida.
E Luiza batendo com as mãos, n'um movimento
supplicante:
—Mas vossê ao menos n'estes primeiros dias...
Eu hei-de arranjar, esteja certa!...
Juliana acudiu logo:
—Oh minha senhora! Eu não quero dar desgostos
a ninguem. O que eu quero é um bocadinho de
pão para a velhice. Da minha bocca não ha-de vir
mal a ninguem. O que peço á senhora é que se fôr
da sua vontade e me quizer ir ajudando...
—Lá isso, sim... O que vossê quizer...
—Pois póde estar certa que esta bocca...—E
fechou os labios com os dedos.
Que alegria para Luiza! Tinha uns dias, umas
semanas, emfim, sem tormentos, com o
seu Jorge!
Abandonou-se então toda á deliciosa impaciencia de
o vêr. Era singular—mas parecia-lhe que o amava
[389]
mais!...—E depois pensaria, veria, daria outros
presentes a Juliana, poderia pouco a pouco preparar
Sebastião... Quasi se sentia feliz.
De tarde Juliana veio dizer-lhe, muito risonha;
—A snr.
a Joanna sahiu, que era hoje o seu dia,
mas eu tinha tanta precisão de sahir, tambem! se a
senhora lhe não custasse ficar só...
—Não! Fico, que tem? Vá, vá!
E, d'ahi a pouco, sentiu-a bater os tacões no corredor,
fechar com ruido a cancella.
Então de repente uma idéa deslumbrou-a, como
a fulguração d'um relampago:—ir ao quarto d'ella,
rebuscar-lhe a arca, roubar-lhe as cartas!
Viu-a da janella dobrar a esquina. Subiu logo ao
sotão, devagar, escutando, com o coração aos saltos.
A porta do quarto de Juliana estava aberta; vinha
de lá um cheiro de mofo, de rato e de roupa enxovalhada
que a enjoou; pelo postigo entrava uma
luz triste, de tarde escura; e por baixo, encostada á
parede, ficava a arca! Mas estava fechada! De certo!
Desceu correndo, veio buscar o seu mólho de chaves...
Sentia uma vergonha,—mas se achasse as
cartas! Aquella esperança dava-lhe todos os atrevimentos,
como um vinho alcoolico. Começou a experimentar
as chaves; a mão tremia-lhe; de repente
a lingueta, com um estalinho secco, cedeu! Ergueu
a tampa, estavam alli, talvez! E então, com cautela,
muito femininamente, poz-se a tirar as cousas uma
por uma, pondo-as em cima do colxão:—o vestido
de merino; um leque com figuras douradas, embrulhado
[390]
em papel de sêda; velhas fitas rôxas e azues,
passadas a ferro; uma pregadeira de setim côr de
rosa, com um coração bordado a matiz: dous frasquinhos
de cheiro, intactos, tendo collados ao vidro
raminhos de rosas de papel recortado; tres pares de
botinas embrulhadas em jornaes; a roupa branca,
d'onde se exhalava um cheiro de madeira e de folhas
de maçã camoeza. Entre duas camisas estava um
maço de cartas atadas com um nastro... Nenhuma
era d'ella! Nem de Bazilio! Eram d'uma letra d'aldêa,
inintelligivel e amarellada! Que raiva! E ficou
a olhar para a arca vazia, de pé, com os braços tristemente
cahidos.
Uma sombra de repente passou diante do postigo.
Estremeceu, aterrada. Era um gato, que com
passos leves, vadiava pelo telhado.—Tornou a repôr
tudo com as mesmas dobras, fechou a arca, ia
a sahir,—mas lembrou-se de procurar na gaveta da
mesa e debaixo do travesseiro. Nada! Impacientou-se
então; não se queria ir sem ter gasto toda a esperança;
desmanchou a roupa da cama, remexeu a
palha amollentada do enxergão, sacudiu as velhas
botinas, esgaravatou os cantos... Nada! Nada!
Subitamente, a campainha tocou. Desceu a correr.
Que surpreza! Era D. Felicidade.
—És tu! Como estás tu? Entra.
Estava melhor, veio logo contando pelo corredor.
Sahira na vespera da Encarnação: o pé ás vezes
ainda lhe fazia mal: mas graças a Deus estava escapa!
E que lhe agradecesse, era a sua primeira visita!
[391]
Entraram no quarto. Escurecia, Luiza accendeu
as velas.
—E como me achas tu, hein?—perguntou D.
Felicidade, pondo-se diante d'ella.
—Um bocadito mais pallida.
Ai! tinha soffrido muito! Ergueu a saia, mostrou
o pé calçado n'um sapato largo, obrigou Luiza a
apalpal-o... Que uma consolação lhe restava: é que
toda a Lisboa a fôra vêr! Graças a Deus! Toda a Lisboa,
o que ha de melhor em Lisboa!
—E tu esta semana—acrescentou—nem appareceste!
Pois olha que te cortaram na pelle...
—Não pude, filha. O Jorge chega ámanhã, sabias?
—Ah sua brejeira! Viva! Está esse coraçãosinho
aos pulos!—E disse-lhe um segredinho.
Riram muito.
—Pois eu—continuou D. Felicidade sentando-se—arranjei-te
hoje a partida. Encontrei esta manhã
o Conselheiro, que me disse que vinha. Encontrei-o
aos Martyres! Olha que foi sorte, logo no primeiro
dia que sahi! E um bocado adiante dou com
o Julião: diz que tambem vinha!...—E com uma
voz desfallecida:
—Sabes? tomava uma colherinha de dôce...
Foi Luiza que abriu a porta ao Conselheiro e a
[392]
Julião, que se tinham encontrado na escada, dizendo-lhes
a rir:
—Hoje sou eu o guarda-portão!
D. Felicidade, na sala, para disfarçar a perturbação
que lhe deu o espectaculo amado da pessoa d'Accacio,
começou, fallando muito, a censural-a «por
deixar assim sahir no mesmo dia as duas criadas...»
—E se te achares incommodada, filha, se te dér
alguma cousa?
Luiza riu. Não era affecta a fanicos...
Todavia achavam-na abatida. E o Conselheiro,
com interesse:
—Tem continuado a soffrer dos dentes, D.
Luiza?
Dos dentes? Era a primeira vez que tal ouvia!—exclamou
logo D. Felicidade. Julião declarou que
raras vezes vira uma dentição tão perfeita.
O Conselheiro apressou-se a citar:
Em labios de coral, perolas finas...
E acrescentou:
—É verdade, mas a ultima vez que tive a honra
d'estar com D. Luiza, viu-se tão repentinamente
afflicta com um dente, que teve d'ir a correr chumbal-o
ao Vitry!
Luiza fez-se muito vermelha. Felizmente a campainha
tocou. Devia ser a Joanna, ia abrir...
—É verdade—continuou o Conselheiro—tinhamos
[393]
feito um delicioso passeio, quando de repente
D. Luiza empallidece, e parece que a dôr era tão
urgente, que se precipitou para a escada do dentista,
como louca...
A proposito de dôres, D. Felicidade, que estava
anciosa por interessar, commover o Conselheiro, começou
a historia do seu pé: disse a queda, o milagre
de não ter morrido, as visitas assiduas de condessas
e viscondessas, o susto em toda a Encarnação,
os cuidados do bom dr. Caminha...
—Ai! soffri muito!—suspirou, com os olhos
no Conselheiro, para provocar uma palavra sympathica.
Accacio, então, disse com authoridade:
—É sempre um erro, ao descer uma escada ingreme,
não procurar o apoio do corrimão.
—Mas podia ter morrido!—exclamou ella. E
voltando-se para Julião:—Pois não é verdade?
—N'este mundo morre-se por qualquer cousa—disse
elle enterrado n'uma poltrona, fumando voluptuosamente.
Elle mesmo estivera n'aquella tarde
para ser atropellado por um trem: destinára o domingo
para se dar
um feriado, e fizera um grande
passeio pela circumvallação...—Ha mais d'um mez
vivo no meu cubiculo, como um frade benedictino na
livraria do seu convento!—acrescentou, rindo, quebrando
complacentemente a cinza do cigarro sobre o
tapete.
O Conselheiro quiz saber então o assumpto da
these: de certo muito momentoso!... E apenas Julião
[394]
lhe disse: «Sobre physiologia, snr. Conselheiro»,
Accacio observou logo, com uma voz profunda:
—Ah! physiologia! Deve ser então de grande
magnitude! E presta-se mais ao estylo ameno.
Queixou-se, tambem, de «vergar ao peso dos
seus trabalhos litterarios...»
—Esperemos todavia, snr. Zuzarte, que não sejam
infructiferas as nossas vigilias!
—As suas, snr. Conselheiro, as suas!—E com
interesse:—Quando nos dá o seu novo trabalho?
Ha sofreguidão em o vêr!
—Ha alguma sofreguidão—concordou o Conselheiro
com seriedade.—Ha dias me dizia o snr.
ministro da justiça (esse robustissimo talento), ha
dias me dizia, me fazia a honra de me dizer: Dê-nos
depressa o seu livro, Accacio, estamos precisados de
luz, de muita luz! Foi assim que elle disse. Eu inclinei-me,
naturalmente, e respondi: Snr. ministro,
não serei eu que a negue ao meu paiz, quando o meu
paiz a necessitar!
—Muito bem, muito bem, Conselheiro!
—E—acrescentou—dir-lhes-hei, aqui em familia,
que o nosso ministro do reino me deixou entrevêr
n'um futuro não remoto, a commenda de S.
Thiago!
—Já lh'a deviam ter dado, Conselheiro!—exclamou
Julião, divertindo-se.—Mas n'este desgraçado
paiz... Já a devia ter ao peito, Conselheiro!
—Ha que tempos!—exclamou com força D. Felicidade.
[395]
—Obrigado, obrigado!—balbuciou o Conselheiro,
rubro. E na expansão do seu jubilo offereceu com
uma familiaridade agradecida, a sua caixa de rapé
a Julião.
—Tomarei para espirrar—disse elle.
Sentia-se n'aquella tarde n'uma disposição benevola:
o trabalho e as altas esperanças que elle lhe
dava tinham de certo dissipado o seu azedume: parecia
até ter esquecido a sua humilhação, quando
encontrára alli, n'aquella sala, o primo Bazilio, porque
apenas Luiza entrou, perguntou-lhe por elle.
—Partiu para Paris, não sabiam? ha que tempos!
D. Felicidade e o Conselheiro fizeram logo o elogio
de Bazilio. Tinha ido deixar bilhetes de visita a
ambos—o que encantára D. Felicidade, e ensoberbecera
o Conselheiro. Era um verdadeiro fidalgo!—exclamava
ella. E Accacio affirmou com authoridade:
—E uma voz de barytono, digna de S. Carlos.
—E muito elegante!—disse D. Felicidade.
—Um
gentleman!—resumiu o Conselheiro.
Julião, calado, bambaleava a perna. Agora, áquelles
elogios, o seu despeito renascia; lembrava a seccura
cortante de Luiza, n'aquella manhã, as
poses
do outro. Não resistiu a dizer:
—Um pouco sobrecarregado nas joias e nos
bordados das meias. De resto é moda no Brazil,
creio...
Luiza córou; teve-lhe odio. E, vagamente, veio-lhe
uma saudade de Bazilio.
[396]
D. Felicidade então, perguntou por Sebastião: não
o via havia um seculo; e lamentava, porque era uma
pessoa que lhe dava saude, só vêl-a.
—É uma grande alma—disse com emphase o
Conselheiro.—Todavia censurava-o um pouco por
não se occupar, não se tornar util ao seu paiz.—Porque
emfim—declarou—o piano é uma bonita
habilidade, mas não dá uma posição na sociedade.—Citou
então Ernestinho, que, posto que dando-se
á arte dramatica, era todavia (e a sua voz tornou-se
grave), segundo todas as informações, um excellente
empregado aduaneiro...
Que fazia elle, Ernestinho?—perguntaram.
Julião tinha-o encontrado. Dissera-lhe que a
Honra
e Paixão ia d'ahi a duas semanas, já se estavam
a imprimir os cartazes, e na rua dos Condes já lhe
não chamavam senão o
Dumas filho portuguez! E o
pobre rapaz crê-se realmente um
Dumas filho!
—Não conheço esse author—disse com gravidade
o Conselheiro—posto que me pareça, pelo nome,
ser filho do escriptor que se tornou famoso pelos
Tres Mosqueteiros e outras obras de imaginação!...
Mas, de resto, o nosso Ledesma é um esmerado
cultor da arte dos Corneilles! Não lhe parece,
D. Luiza?
—Sim—disse ella com um sorriso vago.
Parecia preoccupada. Fôra já duas vezes ao relogio
do quarto vêr as horas: quasi dez, e Juliana sem
voltar! Quem havia de servir o chá? Ella mesmo
foi pôr as chavenas no taboleiro, armar o paliteiro.
[397]
Quando voltou á sala notou um silencio enfastiado...—Queriam
que fosse tocar?—perguntou.
Mas D. Felicidade que olhava, ao pé de Julião,
as gravuras do Dante, illustrado por G. Doré, que
elle folheava, com o volume sobre os joelhos, exclamou,
de repente:
—Ai que bonito! que é? Muito bonito! Viste,
Luiza?
Luiza aproximou-se.
—É um caso d'amor infeliz, snr.
a D. Felicidade—disse
Julião.—É a historia triste de Paulo e Francesca
de Rimini.—E explicando o desenho:—Aquella
senhora sentada é Francesca: este moço de guedelha,
ajoelhado aos pés d'ella, e que a abraça, é
seu cunhado, e, lamento ter de o dizer, seu amante.
E aquelle barbaças, que lá ao fundo levanta o
reposteiro e saca da espada, é o marido que vem, e
zás!—E fez o gesto de enterrar o ferro.
—Safa!—fez D. Felicidade, arripiada—E aquelle
livro cahido o que é? Estavam a lêr?...
Julião disse discretamente:
—Sim... Tinham começado por lêr, mas depois...
Quel giorno più no vi leggiomi avante,
o que quer dizer:—
E nós não lemos mais em todo
o dia!
—Pozeram-se a derriçar—disse D. Felicidade
com um sorriso.
[398]
—Peor, minha rica senhora, peor! Porque segundo
a mesma confissão de Francesca, este moço,
o da guedelha, o cunhado,
La bocca me bacciò tutto tremante,
o que significa:—
A bocca me beijou tremendo
todo...
—Ah!—fez D. Felicidade, com um olhar rapido
para o Conselheiro.—É uma novella?
—É o Dante, D. Felicidade—acudiu com severidade
o Conselheiro—um poema epico classificado
entre os melhores. Inferior, porém, ao nosso Camões!
Mas rival do famoso Milton!
—Que n'essas historias estrangeiras os maridos
matam sempre as mulheres!—exclamou ella. E
voltando-se para o Conselheiro:—Pois não é verdade?
—Sim. D. Felicidade, repetem-se lá fóra com
frequencia essas tragedias domesticas. O desenfreamento
das paixões é maior. Mas entre nós, digamol-o
com orgulho, o lar é muito respeitado. Assim eu,
por exemplo, em todas as minhas relações em Lisboa,
que são numerosas, graças a Deus, não conheço
senão esposas modêlos.—E com um sorriso cortezão:—De
que é de certo a flôr a dona da casa!
D. Felicidade revirou os olhos para Luiza que estava
encostada á cadeira d'ella, e batendo-lhe no
braço:
—Isto é uma joia!—disse com amor.
[399]
—E de resto—acudiu o Conselheiro—o nosso
Jorge merece-o. Porque, como diz o poeta:
Seu coração é nobre, e a fronte altiva
Revela-lhe da alma a pura essencia.
Aquella conversação impacientava Luiza. Ia sentar-se
ao piano, quando D. Felicidade exclamou:—Dize
cá, então não se toma hoje chá n'esta casa?
Luiza foi outra vez á cozinha. Disse a Joanna
que viesse ella mesma com o chá.—E d'ahi a pouco
Joanna, d'avental branco, vermelha, muito atarantada,
entrou com o taboleiro.
—E a Juliana?—perguntou logo D. Felicidade.
—Sahiu, coitada—explicou Luiza—tem andado
doente...
—E anda-te então por fóra até estas horas?...
Boa! Até desacredita uma casa...
O Conselheiro tambem achava imprudente:
—Porque emfim as tentações são grandes n'uma
capital, minha senhora!
Julião exclamou, rindo:
—Não, se aquella é tentada, descreio para sempre
e totalmente, dos meus contemporaneos.
—Oh snr. Zuzarte!—acudiu o Conselheiro, quasi
severamente—referia-me a outras tentações: entrar,
por exemplo, n'uma loja de bebidas, appetecer-lhe
ir ao Circo e desleixar os seus deveres...
Mas D. Felicidade não podia soffrer a Juliana:
achava-lhe cara de Judas, tinha ar de ser capaz de
tudo...
[400]
Luiza defendeu-a: era muito serviçal, muito boa
engommadeira, muito honesta...
—E anda-te pela rua até ás onze da noite!...
Credo! Fosse commigo!
—E creio—observou o Conselheiro—que tem
uma doença mortal. Não é verdade, snr. Zuzarte?
—Mortal. Um aneurisma—respondeu Julião,
sem levantar os olhos do Dante.
—Ainda para mais!—exclamou D. Felicidade.
E abaixando a voz:—Tu o que deves fazer é descartar-te
d'ella! Uma criada com uma doença d'essas!
Que até lhe póde arrebentar a vir dar um copo
d'agua á gente. Cruzes!
O Conselheiro apoiava:
—E ás vezes, que embaraços com a authoridade!
Julião fechou o Dante, e disse:
—Eu tem-me esquecido d'avisar o Jorge; mas
um dia a creatura cahe-lhes redonda no chão.—E
sorveu um gole de chá.
Luiza estava afflicta. Parecia-lhe que uma nova
complicação se formava para a torturar... Pôz-se a
dizer que era tão difficil arranjar criadas...
Lá isso era, concordaram.
Fallaram de criados, das suas exigencias. Estavam
cada vez mais atrevidos! E em se lhes dando
confiança! E que immoralidade!...
—Muitas vezes é culpa das amas—disse D. Felicidade.—Fazem
das criadas confidentes, e isto, em
ellas apanhando um segredo, tornam-se as donas da
casa...
[401]
As mãos tremulas de Luiza faziam-lhe tilintar a
chavena. Disse, com uma voz affectadamente risonha:
—E o Conselheiro, que tal de criados?
Accacio tossiu:
—Bem. Tenho uma pessoa respeitavel, com bom
paladar, muito escrupulosa em contas...
—E que não é feia—acudiu Julião.—Assim
me pareceu uma vez que fui á rua do Ferregial...
Uma vermelhidão espalhára-se pela calva do Conselheiro.
D. Felicidade fitava-o anciosamente, com a
pupilla chammejante. Accacio, então, disse com severidade:
—Nunca reparo para a physionomia dos subalternos,
snr. Zuzarte.
Julião ergueu-se e enterrando as mãos nos bolsos,
jovialmente:
—Foi um grande erro abolir a escravatura!...
—E o principio da liberdade?—acudiu logo o
Conselheiro—E o principio da liberdade? Que os
pretos eram grandes cozinheiros, concordo... Mas a
liberdade é um bem maior.
Alargou-se então em considerações; fulminou os
horrores do trafico, lançou suspeitas sobre a philantropia
dos inglezes, foi severo com os plantadores da
Nova-Orleans, contou o caso da
Charles et Georges:
dirigia-se exclusivamente a Julião, que fumava, cabisbaixo.
D. Felicidade fôra-se sentar ao pé de Luiza, e
muito inquieta, fallando-lhe ao ouvido:
[402]
—Tu conheces a criada do Conselheiro?
—Não.
Será bonita?
Luiza encolheu os hombros.
—Não sei que me diz o coração, Luiza! Estou a
abafar!
E em quanto Accacio, de pé, perorava para Julião,
D. Felicidade ia murmurando a Luiza as queixas
da sua paixão.
Que allivio para Luiza quando elles sahiram! O
que ella soffrera, lá por dentro, toda aquella noite!
Que massadores, que idiotas!—E a outra sem vir!
Oh que vida a sua!
Foi á cozinha dizer a Joanna:
—Espere pela Juliana, tenha paciencia. Que ella
não póde tardar; aquillo a mulher achou-se
peor!
Mas já passava de meia noite, já Luiza estava
deitada, quando a campainha tocou de leve; depois
mais forte; emfim, com impaciencia.
A rapariga adormeceu, pensou Luiza. Saltou da
cama, subiu descalça á cozinha. Joanna, estirada para
cima da mesa, resonava ao pé do candieiro de
petroleo, que fumegava fetidamente. Sacudiu-a, fêl-a
pôr de pé, estremunhada; voltou, correndo, deitar-se;
e sentiu d'ahi a pouco, no corredor, a voz de
Juliana dizer com satisfação:
—Já está tudo acommodado, hein? Pois eu estive
no theatro. Muito bonito! Do melhor, snr.
a Joanna,
do melhor!
[403]
Luiza adormeceu tarde, e durante toda a noite
um sonho inquieto agitou-a.—Estava n'um theatro
immenso, dourado como uma igreja. Era uma gala:
joias faiscavam sobre seios mimosos, condecorações
reluziam sobre fardas palacianas. Na tribuna, um rei
triste e moço, immovel n'uma attitude rigida e hieratica,
sustentava na mão a esphera armillar, e o
seu manto de velludo escuro, constellado de pedrarias
como um firmamento, espalhava-se em redor
em pregas d'esculptura, fazendo tropeçar a multidão
dos cortezãos vestidos como valetes de paus.
Ella estava no palco; era actriz; debutava no
drama d'Ernestinho: e toda nervosa via diante de si
na vasta platéa susurrante, fileiras de olhos negros
e accesos, cravados n'ella com furor: no meio a calva
do Conselheiro, d'uma redondeza nevada e nobre,
sobresahia, rodeada como uma flôr d'um vôo amoroso
d'abelhas. No palco oscillava a vasta decoração
d'uma floresta; ella notava sobretudo, á esquerda,
um carvalho secular, d'uma arrogancia heroica—cujo
tronco tinha a vaga configuração d'uma physionomia,
e se parecia com Sebastião.
Mas o contra-regra bateu as palmas: era esguio,
parecia-se com D. Quixote, trazia oculos redondos
com aros de lata, brandia
o Jornal do Commercio
torcido em saca-rolhas, e gania: salta a scenasinha
de amor! salta-me essa maravilha! Então a orchestra,
onde os olhos dos musicos reluziam como granadas
e as suas cabelleiras se erriçavam como montões
d'estopa, tocou com uma lentidão melancolica o
[404]
fado de
Leopoldina; e uma voz aspera e
canalha
cantava em falsete:
Vejo-o nas nuvens da tarde,
Nas ondas do mar sem fim,
E por mais longe que esteja
Sinto-o sempre ao pé de mim.
Luiza achava-se nos braços de Bazilio que a enlaçavam,
a queimavam: toda desfallecida, sentia-se
perder, fundir-se n'um elemento quente como o sol
e dôce como o mel: gozava
prodigiosamente: mas,
por entre os seus soluços, sentia-se envergonhada,
porque Bazilio repetia no palco, sem pudor, os delirios
libertinos do
Paraiso! Como consentia ella?
O theatro n'uma acclamação immensa bradava:
Bravo! Bis! bis! Lenços aos milhares esvoaçavam
como borboletas brancas n'um campo de trevo: os
braços nús das mulheres lançavam com um gesto
ondeado ramos de violetas dobradas: o rei erguera-se
espectralmente, e, triste, arremessou como um
bouquet a sua esphera armillar: e o Conselheiro
logo,
n'um phrenesi, para seguir os exemplos de Sua
Magestade, desaparafusando rapidamente a calva, atirou-lh'a,
com um berro de dôr e de gloria! O contraregra
gania:—Agradeçam! Agradeçam! Ella curvava-se,
os seus cabellos de Magdalena rojavam pelo
tablado: e Bazilio, a seu lado, seguia com olhos vivos
os charutos que lhe atiravam, apanhando-os com
a graça d'um toureiro e a destreza d'um
clown!
Subitamente, porém, todo o theatro teve um
ah!
d'espanto. Fez-se um silencio ancioso e tragico; e
[405]
todos os olhos, milhares d'olhos attonitos se fitavam
no pano de fundo, onde um caramanchão arqueava
a sua estructura toda estrellada de rosinhas brancas.
Ella voltou-se tambem como magnetisada, e viu Jorge,
Jorge que se adiantava, vestido de luto, de luvas
pretas, com um punhal na mão; e a lamina reluzia—menos
que os olhos d'elle! Aproximou-se da
rampa e curvando-se, disse com uma voz graciosa:
—Real magestade, senhor infante, snr. governador
civil, minhas senhoras, e meus senhores—agora
é commigo! Reparem n'este trabalhinho!
Caminhou então para ella com passos marmoreos
que faziam oscillar o tablado; agarrou-lhe os cabellos,
como um mólho d'herva que se quer arrancar;
curvou-lhe a cabeça para traz; ergueu d'um modo
classico o punhal; fez a pontaria ao seio esquerdo:
e balançando o corpo, piscando o olho, cravou-lhe o
ferro!
—Muito bonito!—disse uma voz—Rico trabalho!
Era Bazilio que fizera entrar nobremente na platéa
o seu phaeton! Direito na almofada, com o chapéo
ao lado, uma rosa na sobrecasaca, continha com
a mão negligente a inquietação soberba dos seus
cavallos inglezes; e ao seu lado, sentado como um
trintanario coberto das suas vestes sacerdotaes, vinha
o patriarcha de Jerusalém!—Mas Jorge arrancára
o punhal todo escarlate; as gotas de sangue corriam
até á ponta, coalhavam; cahiam depois com um
som crystallino, punham-se a rolar pelo tablado como
[406]
continhas de vidro vermelho. Ella deitára-se, expirante,
sob o carvalho que se parecia com Sebastião:
então, como a terra era dura, a arvore estendeu
por baixo d'ella as suas raizes, macias como coxins
de pennas; como o sol a mordia, a arvore desdobrou
sobre ella as suas ramagens, como os panos
d'uma tenda: e das folhas deixava-lhe escorrer sobre
os labios gotas de vinho da Madeira! Ella via no
entanto com terror o seu sangue sahir da ferida,
vermelho e forte, correr, alastrar-se, fazendo poças
aqui, ribeirinhos tortuosos além. E ouvia a platéa
berrar:
—O author! Fóra o author!
Ernestinho, muito frisado, pallido, appareceu;
agradecia soluçando; e, ás cortezias, saltava aqui,
acolá—para não sujar no sangue da prima Luiza os
seus sapatinhos de verniz...
Sentiu que ia morrer! Uma voz disse vagamente:—Ólá,
como vai isso?—Parecia-lhe de Jorge.
D'onde vinha? Do céo? da platéa? do corredor? Um
ruido forte, como d'uma mala que se deixa cahir,
acordou-a. Sentou-se na cama.
—Bem, deixe ahi—disse a voz de Jorge.
Saltou em camisa. Elle entrava. E ficaram enlaçados,
n'um longo abraço, os beiços collados, sem
uma palavra. O relogio do quarto dava sete horas.
X
N'esse dia pela uma hora Jorge e Luiza acabavam
d'almoçar, como na vespera da partida d'elle. Mas
agora não pesava a faiscante inclemencia da calma,
as janellas estavam abertas ao sol amavel d'outubro;
já passavam no ar certas frescuras outonaes; havia
uma pallidez meiga na luz; á tardinha já «sabiam
bem» os paletots; e tons amarellados começavam a
envelhecer as verduras.
—Que bom achar-se a gente outra vez no seu
ninho!—disse Jorge, estirando-se na
voltaire.
Estivera contando a Luiza a sua viagem. Tinha
trabalhado como um mouro, e tinha ganho dinheiro!
Trazia os elementos d'um bello relatorio; creára
amigos n'aquella boa gente do Alemtejo; estavam
acabadas as soalheiras, as cavalgadas pelos montados,
[408]
os quartos d'hospedaria; e alli estava emfim na
sua casinha. E como na vespera da sua partida, soprava
o fumo do cigarro, cofiando com delicias o bigode,—porque
tinha cortado a barba! Fôra a grande
admiração de Luiza, quando o viu. Elle explicára,
com humilhação e melancolia, que tivera um
furunculo no queixo, com o calor...
—Mas que bem te fica!—tinha ella dito—que
bem que te fica!
Jorge trouxera-lhe como presente seis pratos de
louça da China, muito antigos, com mandarins bojudos,
de tunicas esmaltadas, suspensos magestosamente
no ar azulado; uma preciosidade que descobrira
em casa d'umas velhas miguelistas, em Mertola. Luiza
dispunha-os muito decorativamente nas prateleiras
do guarda-louça: e em bicos de pés, com a larga
cauda do seu roupão estendida por traz, a massa
loura do cabello pesado, um pouco desmanchado sobre
as costas—parecia a Jorge mais esbelta, mais
irresistivel, e nunca a sua cinta fina lhe attrahira
tanto os braços.
—A ultima vez que aqui almocei, antes de partir,
foi um domingo, lembras-te?
—Lembro—disse Luiza sem se voltar, collocando
muito delicadamente um prato.
—E é verdade—perguntou Jorge de repente—teu
primo? Vistel-o? Veio vêr-te?
O prato escorregou, houve um tlin-tlin de copos.
—Sim, veio—disse Luiza, depois d'um silencio—esteve
[409]
ahi umas poucas de vezes. Demorou-se
pouco...
Abaixou-se, abriu o gavetão do guarda-louça, esteve
a remexer nas colheres de prata: ergueu-se,
emfim, voltou-se com um sorriso, vermelha, sacudindo
as mãos:
—Prompto!
E foi sentar-se nos joelhos de Jorge.
—Como te fica bem!—dizia, torcendo-lhe o bigode.
Admirava-o, d'um modo ardente. Quando se
atirára aos seus braços n'aquella madrugada, sentira
como abrir-se-lhe o coração, e um amor repentino
revolver-lh'o deliciosamente; viera-lhe um desejo de
o adorar perpetuamente, de o servir, de o apertar
nos braços até lhe fazer mal, de lhe obedecer com
humildade; era uma sensação multipla, de uma doçura
infinita, que a traspassára até ás profundidades
do seu sêr. E passando-lhe um braço pelo pescoço,
murmurava com um movimento d'uma adulação
quasi lasciva:
—Estás contente? Sentes-te bom? Dize!
Nunca lhe parecera tão bonito, tão bom; a sua
pessoa depois d'aquella separação dava-lhe as admirações,
os enlevos d'uma paixão nova.
—É o snr. Sebastião—veio dizer Juliana toda
risonha para Jorge.
Jorge deu um pulo, afastou Luiza bruscamente,
atirou-se pelo corredor gritando:
—Aos meus braços! aos meus braços, scelerado!
[410]
D'ahi a dias, uma manhã que Jorge sahira para
o ministerio, Juliana entrou no quarto de Luiza, e
fechando a porta devagarinho, com uma voz muito
amavel:
—Eu desejava fallar á senhora n'uma cousa.
E começou a dizer,—que o seu quarto em cima
no sotão era peor que uma enxovia; que não podia
lá continuar; o calor, o mau cheiro, os persevejos, a
falta d'ar, e no inverno a humidade, matavam-na!
Emfim, desejava mudar p'ra baixo, p'ra o quarto dos
bahus.
O
quarto dos bahus tinha uma janella nas trazeiras;
era alto e espaçoso; guardavam-se alli os
oleados de Jorge, as suas malas, os paletots velhos,
e veneraveis bahus do tempo da avó, de couro vermelho
com pregos amarellos.
—Ficava alli como no céo, minha senhora!
E... aonde se haviam de pôr os bahus?
—No meu quarto, em cima.—E com um risinho:—Os
bahus não são gente, não soffrem...
Luiza disse um pouco embaraçada:
—Bem, eu verei, eu fallarei ao snr. Jorge.
—Conto com a senhora.
Mas apenas n'essa tarde Luiza explicou a Jorge
«a ambição da pobre de Christo», elle deu um salto:
—O quê? Mudar os bahus? Está douda!
Luiza então insistiu: era o sonho da pobre creatura
[411]
desde que viera para a casa! Enterneceu-o.
Não, elle não imaginava, ninguem imaginava o que
era o quarto da pobre mulher! O cheiro empestava,
os ratos passeavam-lhe pelo corpo, o forro estava
roto, chovia dentro; fôra lá ha dias, e ia tombando
para o lado...
—Santo Deus! Mas isso é o que minha avó contava
das enxovias d'Almeida! Muda-a, muda-a depressa,
filha!... Porei os meus ricos bahus no sotão.
Quando Juliana soube o
favor:
—Ai, minha senhora, é a vida que me dá! Deus
lh'o pague! Que eu não tinha saude para viver n'um
cacifro d'aquelles.
Ultimamente queixava-se mais: andava amarella,
trazia os beiços um pouco arroxeados; tinha dias
d'uma tristeza negra, ou d'uma irritabilidade morbida:
os pés nunca lhe aqueciam. Ah! Precisava muitos
cuidados, muitos cuidados!...
Foi por isso que d'ahi a dous dias veio pedir a
Luiza, «se fazia o favor d'ir ao quarto dos bahus». E
lá, mostrando-lhe o soalho velho e carunchoso:
—Isto não póde ficar assim, minha senhora, isto
precisa uma esteira senão, não vale a pena mudar.
Eu se tivesse dinheiro não importunava a senhora,
mas...
—Bem, bem, eu arranjarei—disse Luiza com
uma voz paciente.
E pagou a esteira, sem dizer nada a Jorge. Mas
na manhã em que os esteireiros a pregavam Jorge
[412]
veio perguntar attonito a Luiza o que era aquillo,
«rolos d'esteira no corredor»?
Ella pôz-se a rir, pousou-lhe as mãos sobre os
hombros:
—Foi a pobre Juliana que pediu como uma esmola
a esteira, que o soalho estava podre. Até a
queria pagar, e que eu lh'a descontasse nas soldadas.
Ora por uma ridicularia...—E com um gesto
compassivo:—Tambem são creaturas de Deus, não
são escravas, filho!
—Magnifico! E que não tardem os espelhos e os
bronzes! Mas que mudança foi essa, tu que a não
podias vêr?
—Coitada!—fez Luiza—reconheci que era boa
mulher. E como estive tão só, dei-me mais com ella.
Não tinha com quem fallar, fez-me muita companhia.
Até quando estive doente...
—Estiveste doente?—exclamou Jorge espantado.
—Oh! tres dias, só—acudiu ella—uma constipação.
Pois olha que dia e noite não se tirou d'ao
pé de mim.
Luiza ficou logo com receio que Jorge fallasse
na
doença, e Juliana desprevenida negasse; por isso,
n'essa tarde, ao escurecer, chamou-a ao quarto:
—Eu disse ao snr. Jorge que vossê me tinha
feito muito boa companhia n'uma doença...—E o
seu rosto abrazava-se de vergonha.
Juliana logo, risonha, contente da cumplicidade:
[413]
—Fico entendida, minha senhora! Póde estar
socegada!
Com effeito Jorge, ao outro dia, depois do café,
voltou-se para Juliana, e com bondade:
—Parece que vossê fez boa companhia á snr.
a
D. Luiza.
—Fiz o meu dever—exclamou, curvando-se com
a mão no peito.
—Bem, bem—fez Jorge, remexendo no bolso.
E ao sahir da sala meteu-lhe na mão meia libra.
—Palerma!—rosnou ella.
Foi n'essa semana que começou a queixar-se a
Luiza, «que a roupa e os vestidos, na arca, se lhe
amarfanhavam...» Estava-se-lhe a estragar tudo! Se
ella tivesse dinheiro, não vinha com aquelles pedidos
á senhora, mas... Emfim uma manhã declarou
terminantemente que precisava uma commoda.
Luiza sentiu uma raiva accender-lhe o sangue, e
sem levantar os olhos do bordado:
—Uma meia commoda?
—Se a senhora quer fazer o favor, então uma
commoda inteira...
—Mas vossê tem pouca roupa—disse Luiza.
Começava a installar-se na humilhação e já regateava
as condescendencias.
—Tenho, sim, minha senhora—replicou Juliana—mas
vou agora completar-me!
A commoda foi comprada em segredo, e introduzida
occultamente. Que dia de felicidade para Juliana!
Não se fartava de lhe saborear o cheiro da madeira
[414]
nova! Passava a mão, com a tremura d'uma
caricia, sobre o polimento luzidio!... Forrou-lhe as
gavetas de papel de sêda,
e começou a completar-se!
Foram semanas d'amargura para Luiza.
Juliana entrava no quarto todas as manhãs, muito
comprimenteira, começava a arrumar, e de repente
com uma voz lamentosa:
—Ai! estou tão falta de camisas! se a senhora
me podesse ajudar...
Luiza ia ás suas gavetas cheias, cheirosas, e começava
melancolicamente a pôr á parte as peças
mais usadas. Adorava a sua roupa branca: tinha tudo
ás duzias, com lindas marcas,
sachets para perfumar;
e aquellas dadivas dilaceravam-n'a como mutilações!
Juliana por fim já pedia com seccura, com
direito:
—Que bonita que é esta camisinha!—dizia simplesmente.—A
senhora não a quer; não?
—Leve, leve!—dizia Luiza sorrindo, por orgulho,
para não se mostrar violentada.
E todas as noites Juliana fechada no seu quarto,
encruzada na esteira, inchada d'alegria, com o candieiro
sobre uma cadeira, desmarcava roupa, desfazendo
as duas letras de Luiza, marcando regaladamente
as suas, a linha vermelha, enormes—
J. C.
T.,—Juliana Couceiro Tavira!
[415]
Mas emfim cessou, porque, como ella dizia, «de
roupa branca estava como um ovo».
—Agora, se a senhora me quizer ajudar com alguma
cousa para sahir...
E Luiza começou a
vestil-a.
Deu-lhe um vestido roxo de sêda, um casaco de
casimira preta, com bordados a
soutache. E receando
que Jorge estranhasse as generosidades, transformava-as
para elle as não reconhecer: mandou tingir de
castanho o vestido, ella mesmo por sua mão pôz
uma guarnição de velludo no casaco. Trabalhava para
ella, agora!—Como acabaria tudo aquillo, Santo
Deus?
Todavia Jorge um domingo disse ao jantar, rindo:
—Esta Juliana anda uma janota! Prospera a
olhos vistos.
D. Felicidade, á noite, tambem notou:
—Que
chic! Nem uma criada do paço!
—Coitada! cousas que ella aproveita...
Prosperava, com effeito! Não punha na cama senão
lençoes de linho. Reclamára colxões novos, um
tapete para os pés da cama, felpudo! Os
sachets que
perfumavam a roupa de Luiza iam passando para a
dobra das suas calcinhas. Tinha cortinas de cassa na
janella, apanhadas com velhas fitas de sêda azul; e
sobre a commoda dous vasos da Vista Alegre dourados!
Emfim um dia santo, em lugar da
cuia de retroz,
appareceu com um
chignon de cabello!
Joanna pasmava d'aquellas tafularias. Attribuia-as
á bondade da senhora, e resentia-se de ser «esquecida».
[416]
Um dia mesmo, que Juliana estreára uma
sombrinha, disse diante de Luiza, com uma voz de
despeito:
—Para umas tudo, para outras nada!...
Luiza riu, acudiu:
—Tolices! Eu sou a mesma p'ra todas.
Mas reflectiu: Joanna podia ter desconfianças
tambem, ter ouvido
alguma cousa a Juliana... E logo
ao outro dia, para a conservar contente e amiga,
deu-lhe dous lenços de sêda, depois dous mil reis
para um vestido; e d'ahi por diante nunca lhe recusou
licença para sahir á noitinha
a casa d'uma
tia...
A Joanna ia por toda a parte fallando da «senhora,
que era um anjo». Na rua, de resto, tinha-se
notado o luxo de Juliana. Sabia-se do «quarto novo»,
dizia-se baixo que tinha alcatifa! O Paula decidira,
com indignação, «que alli positivamente havia
marosca». Mas Juliana uma tarde, diante do Paula e
da estanqueira, explicou, acalmou as suspeitas.
—Ora! dizem que tenho isto e aquillo. Não é
tanto! Tenho as minhas commodidades. Mas tambem
a maneira como eu lhes tratei a tia, de dia e de
noite, sem arredar pé... Por mais que façam não me
pagam, que arruinei a minha saude!
Assim se justificou a prosperidade de Juliana. Era
a familia agradecida, dizia-se; tratavam-na como parenta!
E, pouco a pouco, a casa do «Engenheiro» teve
para os criados da visinhança a vaga seducção d'um
[417]
paraiso: dizia-se que as soldadas eram enormes, havia
vinho á discrição, recebiam-se presentes todas as
semanas, ceava-se todas as noites caldo do gallinha!
Cada um invejava aquella «pechincha». Pela inculcadeira,
a fama da «casa do Engenheiro» alargou-se.
Creou-se uma legenda.
Jorge, attonito, recebia todos os dias cartas de
pessoas offerecendo-se para criados de quarto, criadas
de dentro, cozinheiros, escudeiros, governantas,
cocheiros, guarda-portões, ajudantes de cozinha...
Citavam as casas titulares de que tinham sahido; pediam
audiencia; suspeitando certas cousas uma bonita
criada de quarto juntou a sua photographia; um
cozinheiro trouxe uma carta d'empenho do director
geral do ministerio.
—Estranho caso!—dizia Jorge, pasmado—disputam-se
a honra de me servir! Imaginarão que me
sahiu a sorte grande?
Mas não dava muita attenção áquella singularidade.
Vivia então muito occupado: andava escrevendo
o seu relatorio; e todos os dias sahia ao meio
dia, voltava ás seis, com rolos de papeis, mappas,
brochuras, fatigado, berrando pelo jantar, radiante.
Contou o
caso, todavia, rindo, um domingo á
noite. O Conselheiro observou logo:
—Com o bom genio da D. Luiza, com o seu,
Jorge, n'este bairro saudavel, n'uma casa sem escandalos,
sem questões de familia, toda virtude, é natural
que a criadagem menos favorecida aspire a
uma posição tão agradavel.
[418]
—Somos os amos ideaes!—disse Jorge, batendo
muito alegre no hombro de Luiza.
A casa, com effeito, tornava-se «agradavel». Juliana
exigira que o jantar fosse mais largo (para ter
uma parte sua, sem sobejos), e como era boa cozinheira
vigiava os fogões, provava, ensinava pratos á
Joanna.
—Esta Joanna é uma revelação—dizia Jorge—vê-se-lhe
crescer o talento!...
Juliana, bem alojada, bem alimentada, com roupa
fina sobre a pelle, colxões macios, saboreava a
vida: o seu temperamento adoçára-se n'aquellas
abundancias; depois, bem aconselhada pela tia Victoria,
fazia o seu serviço com um zelo minucioso e
habil. Os vestidos de Luiza andavam cuidados como
reliquias. Nunca os peitilhos de Jorge tinham resplandecido
tanto! O sol d'outubro alegrava a casa,
muito aceada, d'uma pacatez d'abbadia. Até o gato
engordava.
E no meio d'aquella prosperidade—Luiza definhava-se.
Até onde iria a tyrannia de Juliana? era
agora o seu terror. E como a odiava! Seguia-a por
vezes com um olhar tão intensamente rancoroso, que
receava que ella se voltasse subitamente, como ferida
pelas costas. E via-a satisfeita, cantarolando a
Carta adorada, dormindo em colxões tão bons como
[419]
os seus, pavoneando-se na
sua roupa, reinando na
sua casa! Era justo, justos céos?
Ás vezes vinha-lhe uma revolta, torcia os braços,
blasphemava, debatia-se na sua desgraça, como
nas malhas d'uma rêde; mas, não encontrando nenhuma
solução, recahia n'uma melancolia aspera—em
que o seu genio se pervertia. Seguia com satisfação
a amarellidão crescente das feições de Juliana;
tinha esperanças no aneurisma: não rebentaria um
dia, o demonio?
E diante de Jorge tinha de a elogiar!
A vida pesava-lhe. Apenas elle pela manhã sahia
e fechava a cancella, logo as suas tristezas, os seus
receios lhe desciam sobre a alma, devagar, como
grandes véos espessos que se abatem lugubremente;
não se vestia então até ás quatro, cinco horas, e com
o roupão solto, em chinellas, despenteada, arrastava
o seu aborrecimento pelo quarto. Vinham-lhe, por
momentos, de repente, desejos de fugir, ir metter-se
n'um convento! A sua sensibilidade muito exaltada
impellil-a-hia de certo a alguma resolução melodramatica,—se
a não retivesse, com a força d'uma seducção
permanente, o seu amor por Jorge. Porque o
amava agora, immensamente! Amava-o com cuidados
de mãi, com impetos de concubina... Tinha ciumes
de tudo, até do ministerio, até do relatorio! Ia
interrompêl-o a cada momento, tirar-lhe a penna da
mão, reclamar o seu olhar, a sua voz; e os passos
d'elle no corredor davam-lhe o alvoroço dos amores
illegitimos...
[420]
De resto ella mesma se esforçava por desenvolver
aquella paixão, achando n'ella a compensação
ineffavel das suas humilhações. Como lhe viera
aquillo?
Porque sempre o amára, de certo, reconhecia-o
agora,—mas não tanto, não tão exclusivamente!
Nem ella sabia. Envergonhava-se mesmo, sentindo
vagamente n'aquella violencia amorosa pouca dignidade
conjugal: suspeitava que o que tinha era apenas
um
capricho. Um capricho por seu marido! Não
lhe parecia rigorosamente casto... Que lhe importava,
de resto? Aquillo fazia-a feliz, prodigiosamente.
Fosse o que fosse era delicioso!
Ao principio a idéa do
outro pairava constantemente
sobre este amor, pondo um gosto infeliz em
cada beijo, um remorso em cada noite. Mas pouco a
pouco esquecêra-o tanto, o
outro—que a sua recordação,
quando por acaso voltava, não dava mais
amargor á nova paixão, que um torrão de sal póde
dar ás aguas d'uma torrente. Que feliz que seria—se
não fosse a
infame!
Era a
infame que se sentia feliz! Ás vezes só no
seu quarto, punha-se a olhar em redor com um riso
d'avaro: desdobrava, batia os vestidos de sêda: punha
as botinas em fileira, contemplando-as de longe,
extatica; e debruçada sobre as gavetas abertas da
commoda contava, recontava a roupa branca, acariciando-a
[421]
com o olhar de posse satisfeita. Como a da
Piorrinha!—murmurava, afogada em jubilo.
—Ai! estou muito bem!—dizia ella á tia Victoria.
—Que duvida que estás! A carta não te rendeu
um conto de reis, mas olha que te trouxe um par de
regalos. E é que ha-de ser uma pingadeira: ha-de
ser a boa peça de linho, o bom adereço, boas moedas...
E ainda muito obrigada por cima. Carda-a, filha,
carda-a!
Mas já havia pouco que
cardar. E lentamente
Juliana começou a pensar, que agora o que devia
era
gozar. Se tinha bons colxões—para que se havia
de levantar cêdo? Se tinha bons vestidos—porque
não havia d'ir espairecer para a rua? Toca a tirar
partido!
Uma manhã que estava mais frio deixou-se ficar
na cama até ás nove horas, com as janellas entreabertas,
um bom raio de sol na esteira. Depois explicou
seccamente, que tinha estado com a dôr.
D'ahi a dous dias Joanna, ás dez horas, veio dizer
baixo a Luiza:
—A snr.
a Juliana ainda está na cama, está tudo
por arrumar.
Luiza ficou aterrada. O quê? Teria de soffrer os
seus desmazelos, como soffrera as suas exigencias?
Foi ao quarto d'ella:
—Então vossê levanta-se a estas horas?
—Foi o que me recommendou o medico—replicou
muito insolente.
[422]
E d'ahi por diante Juliana poucas vezes se erguia
antes da hora de servir ao almoço. Luiza pediu logo
a Joanna que fizesse «o serviço por ella»: era por
pouco tempo, a pobre creatura andava tão adoentada!
E para acommodar a cozinheira deu-lhe meia
moeda, para a ajuda d'um vestido.
Juliana depois, sem pedir licença, começou a sahir.
Quando voltava tarde, para o jantar, não se desculpava!
Um dia Luiza não se conteve, disse-lhe, vendo-a
passar no corredor a calçar as luvas pretas:
—Vossê vai sahir?
Ella respondeu, muito atrevidamente:
—É como vê. Fica tudo arrumado, tudo o que é
minha obrigação.—E abalou, batendo os tacões.
Ora, não lhe faltava mais senão estar a constranger-se
por causa da
Piorrinha!
Joanna começava a resmungar: «passa a sua
vida na rua a snr.
a Juliana, e eu é que aguento...»
—Se vossê estivesse doente, tambem ninguem
lhe ia á mão—acudia Luiza, afflicta, quando percebia
estas revoltas. E presenteava-a. Dava-lhe mesmo
vinho e sobremesa.
Havia agora um desperdicio na casa. Os roes cresciam.
Luiza andava succumbida.—Como acabaria tudo
aquillo?
Os desleixos de Juliana iam-se tornando graves.
Para sahir mais cedo fazia apenas o «essencial».
Era Luiza que acabava d'encher os jarros, que levantava
[423]
muitas vezes a mesa do almoço, que levava
para o sotão roupa suja que ficava pelos cantos...
Um dia Jorge que entrára ás quatro horas, viu
por acaso a cama por fazer. Luiza apressou-se a dizer
que «Juliana sahira, mandára-a ella á modista».
D'ahi a dias, eram seis horas, ainda não tinha
voltado para servir ao jantar. «Tinha ido á modista...»
explicou Luiza.
—Mas se a Juliana é unicamente para ir á modista,
então toma-se outra criada para fazer o serviço
da casa—disse elle.
Áquellas palavras seccas Luiza fez-se pallida,
duas lagrimas rolaram-lhe pela face.
Jorge ficou pasmado. Que era? Que tinha? Luiza
não se dominou, rompeu n'um choro nervoso, hysterico.
—Mas que é, minha filha, que tens? Zangaste-te?...
Ella não podia responder, suffocada. Jorge fez-lhe
respirar vinagre de
toillette, beijou-a muito.
Só quando o choro acalmou é que ella pôde dizer,
com uma voz soluçada:
—Fallaste-me tão seccamente, e eu estou tão
nervosa...
Elle riu, chamou-lhe tontinha, limpou-lhe as lagrimas—mas
ficou inquieto.
Já então lhe notára certas tristezas, abatimentos
inexplicaveis, uma irritabilidade nervosa... Que seria?
Para que Jorge não tornasse a surprehender os
[424]
desleixos, Luiza começou a completar todas as manhãs
os arranjos. Juliana percebeu logo; e muito
tranquillamente decidiu-se a «deixar-lhe de cada vez
mais com que se entreter». Ora não varria, depois
não fazia a cama; emfim uma manhã não vasou as
aguas sujas. Luiza foi espreitar no corredor que Joanna
não descesse, não a visse, e fez ella mesma os
despejos! Quando veio ensaboar as mãos, as lagrimas
corriam-lhe pelo rosto. Desejava morrer!... A
que tinha chegado!...
D. Felicidade, um dia, tendo entrado de repente,
surprehendera-a a varrer a sala.
—Que eu o faça—exclamou—que tenho só
uma criada, mas tu!...
A Juliana tinha tanto que engommar...
—Ai! não lhe tires serviço do corpo, que não t'o
agradece. E ainda se ri por cima! Se a pões em
maus costumes!... Que aguente, que aguente!
Luiza sorriu, disse:
—Ora, por uma vez na vida!
A sua tristeza augmentava cada dia.
Refugiava-se então no amor de Jorge como na
sua unica consolação. A noite trazia-lhe a sua desforra:
Juliana a essa hora dormia; não via a sua cara
medonha; não a receava; não tinha de a elogiar;
não trabalhava por ella! Era
ella mesma, era
Luiza, como d'antes! Estava na sua alcova com o seu
[425]
marido, fechada por dentro, livre! Podia viver, rir,
conversar, ter até appetite! E trazia com effeito ás
vezes marmelada e pão para o quarto—para fazer
uma cêasinha!
Jorge estranhava-a. «Tu de noite és outra», dizia.
Chamava-lhe
ave nocturna. Ella ria em saia branca
pelo quarto, com os braços nús, o collo nú, o cabello
n'um rolo; e passarinhava, cantarolava, chalrava—até
que Jorge lhe dizia:
—Passa da uma hora, filha!
Despia-se então rapidamente, cahia-lhe nos braços.
Mas que acordar! Por mais clara que estivesse a
manhã, tudo lhe parecia vagamente pardo. A vida
sabia-lhe mal. Vestia-se devagar, com repugnancia—entrando
no seu dia como n'uma prisão.
Perdêra agora toda a esperança de se libertar!
Ás vezes ainda lhe vinha, como um relampago, a vontade
«de contar tudo a Sebastião, tudo». Mas quando
o via, com o seu olhar honesto, abraçar Jorge, rirem
ambos, e irem fumar o seu cachimbo, e elle tão
cheio sempre d'admiração por ella, parecia-lhe mais
facil sahir p'ra a rua, pedir dinheiro ao primeiro homem
que encontrasse—que ir a
Sebastião, ao
intimo
de Jorge, ao melhor amigo da casa, dizer-lhe:
escrevi uma carta a um homem, a criada roubou-m'a!
Não, antes morrer n'aquella agonia de todos os dias,
e ter ella mesma, de rastos, de lavar as escadas! Ás
vezes reflectia, pensava:—Mas com que conto eu?—Não
sabia. Com o acaso, com a morte de Juliana...
[426]
E deixava-se viver, gozando como um favor
cada dia que vinha, sentindo vagamente, a distancia,
alguma cousa de indefinido e de tenebroso onde se
afundaria!
Por esse tempo Jorge começou a queixar-se que
as suas camisas andavam mal engommadas. A Juliana
positivamente «perdia a mão». Um dia mesmo zangou-se:
chamou-a, e atirando-lhe uma camisa toda
amarrotada:
—Isto não se póde vestir, está indecente!
Juliana fez-se amarella, cravou em Luiza um olhar
chammejante; mas, com os beiços tremulos, desculpou-se:
«a gomma era má, fôra já trocal-a», etc.
Apenas, porém, Jorge sahiu, veio com uma rajada
ao quarto, fechou a porta e poz-se a gritar—que
a senhora sujava
um rôr de roupa, o senhor
um
rôr de camisas, que se não tivesse alguem que a
ajudasse não podia dar aviamento!... Quem queria
negras trazia-as do Brazil!
—E não estou para aturar o genio de seu marido,
percebe a senhora? Se quer é arranjar quem me
ajude.
Luiza disse simplesmente:
—Eu a ajudarei.
Tinha agora uma resignação muda, sombria,
aceitava tudo!
Logo no fim da semana houve uma grande trouxa
de roupa: e Juliana veio dizer—que se a senhora
passasse, ella engommava. Senão, não!
Estava um dia adoravel, Luiza tencionava sahir...
[427]
Pôz um roupão, e, sem uma palavra, foi buscar o
ferro.
Joanna ficou attonita.
—Então a senhora vai engommar?
—Ha uma carga, e a Juliana só não póde aviar
tudo, coitada!
Installou-se no quarto dos
engommados,—e
estava
laboriosamente passando a roupa branca de Jorge,
quando Juliana appareceu, de chapéo.
—Vossê vai sahir?—exclamou Luiza.
—É o que eu vinha dizer á senhora. Não posso
deixar de sahir.—E abotoava as luvas pretas.
—Mas as camisas, quem as engomma?
—Eu vou sahir—disse a outra seccamente.
—Mas, com os diabos, quem engomma as camisas?
—Engomme-as a senhora! Olha a sarna!
—Infame!—gritou Luiza. Atirou o ferro para o
chão, sahiu impetuosamente.
Juliana sentiu-a ir pelo corredor aos soluços. Pôz-se
logo a tirar o chapéo e as luvas, assustada. D'ahi
a um momento ouviu a cancella da rua bater com
força. Veio ao quarto, viu o roupão de Luiza arremessado,
a chapelleira tombada. Onde teria ido?
Queixar-se á policia? Procurar o marido? C'os diabos!
Fôra estupida, com o genio! Arrumou depressa
o quarto, foi-se pôr a engommar, com o ouvido á
escuta, muito arrependida. Onde diabo teria ido?
Devia ter cuidado! Se a impellisse a fazer algum
desproposito, quem perdia? Ella, que teria de sahir
[428]
da casa, deixar o seu quarto, os seus regalos, a sua
posição! Safa!
Luiza sahira, como louca. Na rua da Escóla um
coupé passava, vazio: atirou-se para dentro, deu ao
cocheiro a morada de Leopoldina. Leopoldina devia
ter voltado do Porto, queria vêl-a, precisava d'ella,
sem saber para que... Para desabafar! Pedir-lhe
uma idéa, um meio de se vingar! Porque a vontade
de se libertar d'aquella tyrannia—era agora menor
que o desejo de se vingar d'aquellas humilhações.
Vinham-lhe idéas insensatas! Se a envenenasse! Parecia-lhe
que sentiria um prazer delicioso em a vêr
torcer-se com vomitos dilacerantes, uivando d'agonia,
largando a alma!
Galgou as escadas de Leopoldina; a campainha
ficou a retinir muito tempo do puxão da sua mão febril.
A Justina apenas a viu foi a gritar pelo corredor:
—É a snr.
a D. Luiza, minha senhora, é a snr.
a
D. Luiza!
E Leopoldina despenteada, com um roupão escarlate
de grande cauda, correu estendendo os braços:
—És tu! Que milagre é este? Eu levantei-me
agora! Entra cá p'ra o quarto. Está tudo desarranjado,
mas não importa. Mas que é isto, que é isto?
[429]
Abriu as janellas que estavam ainda cerradas.
Havia um forte cheiro de vinagre de
toilette; a
Justina
tirava á pressa uma bacia de latão, com agua ensaboada;
toalhas sujas arrastavam; sobre uma jardineira
tinham ficado da vespera os rolos de cabello,
o collete, uma chavena com um fundo de chá cheio
de pontas de cigarros. E Leopoldina corria o transparente,
dizendo:
—Ora graças a Deus que honras esta casa, minha
fidalga!...
Mas vendo o rosto perturbado de Luiza, os seus
olhos vermelhos de lagrimas:
—Que é? Que tens tu? Que succedeu?
—Um horror, Leopoldina!—exclamou, apertando
as mãos.
A outra foi fechar a porta, rapidamente.
—Então?
Mas Luiza chorava sem responder. Leopoldina
olhava-a, petrificada.
—A Juliana apanhou-me umas cartas!—disse
emfim por entre soluços.—Quer seiscentos mil reis!
Estou perdida... Tem-me martyrisado... Quero que
me digas, vê se te lembras... Estou como douda.
Sou eu que faço tudo em casa... Morro, não posso!—E
as lagrimas redobravam.
—E as tuas joias?
—Valem duzentos mil reis. E Jorge, que lhe havia
eu de dizer?
Leopoldina ficou um momento calada, e olhando
em roda de si, abrindo os braços:
[430]
—Tudo o que eu tenho, no prego, minha filha,
dá vinte libras!...
Luiza murmurava, limpando os olhos:
—Que expiação esta, Santo Deus, que expiação!
—Que diz a carta?
—Horrores! Estava douda... É uma minha,
duas d'elle.
—De teu primo?
Luiza disse «sim», com a cabeça, lentamente.
—E elle?
—Não sei! Está em França, nunca me respondeu.
—Pulha! Como t'as apanhou, a mulher?
Luiza contou rapidamente a historia do sarcophago,
e do cofre.
—Mas tu tambem, Luiza, atirar uma carta d'essas!
Oh mulher, isso é medonho!
E
Leopoldina pôz-se a passear pelo quarto,
arrastando
a longa cauda do roupão escarlate: os seus
grandes olhos negros, excitados, pareciam procurar
um meio, um expediente... Murmurava:
—A questão é de dinheiro...
Luiza, prostrada no sophá, repetia:
—A questão é de dinheiro!
Então Leopoldina, parando bruscamente diante
d'ella:
—Eu sei quem te dava o dinheiro!...
—Quem?
—Um homem.
Luiza ergueu-se, espantada:
[431]
—Quem?
—O Castro.
—O d'oculos?
—O d'oculos.
Luiza fez-se muito córada:
—Oh Leopoldina!—murmurou. E depois d'um
silencio, rapidamente:
—Quem t'o disse?
—Sei-o eu. Disse-o elle ao Mendonça. Sabes que
eram unha e carne. Que te dava tudo o que tu lhe
pedisses! Disse-lh'o mais d'uma vez.
—Que horror!—exclamou Luiza subitamente
indignada.—E tu propões-me semelhante cousa?—O
seu olhar, sob as sobrancelhas franzidas, dardejava
de colera. Ir com um homem por dinheiro!—Tirou
o chapéo, violentamente, com as mãos tremulas,
arremessou-o para a jardineira, e com passos rapidos
pelo quarto:—Antes fugir, ir para um convento,
ser criada, apanhar a lama das ruas!
—Não te exaltes, creatura! Quem te diz isso?
Talvez o homem te emprestasse o dinheiro, desinteressadamente...
—Acreditas tu?
Leopoldina não respondeu: com a cabeça baixa,
fazia girar os anneis nos dedos.
—E quando fosse outra cousa?—exclamou de
repente—Era um conto de reis, eram dous, estavas
salva, estavas feliz!
Luiza sacudia os hombros, indignada d'aquellas
fazia girar os anneis nos dedos.
—E quando fosse outra cousa?—exclamou de
repente—Era um conto de reis, eram dous, estavas
salva, estavas feliz!
Luiza sacudia os hombros, indignada d'aquellas
palavras—dos seus proprios pensamentos, talvez!
[432]
—É indecente! É horrivel!—dizia.
Ficaram caladas.
—Ah! fosse eu!...—disse Leopoldina.
—Que fazias?
—Escrevia ao Castro, que viesse e com dinheiro!
—Isso és tu!—exclamou Luiza, arrebatadamente.
Leopoldina fez-se escarlate sob a camada de pó
d'arroz.
Mas Luiza atirou-lhe os braços ao pescoço:
—Perdôa-me, perdôa-me! estou douda, não sei
o que digo!...
Começaram ambas a chorar, muito nervosas.
—Tu zangaste-te!—dizia Leopoldina cortada de
soluços.—Mas é p'ra teu bem. É o que me parece
melhor. Se eu podesse dava-te o dinheiro... Fazia
tudo. Acredita!
E abrindo os braços, indicando o seu corpo com
um impudor sublime:
—Seiscentos mil reis! Se eu valesse tanto dinheiro,
tinhal-o ámanhã!
Nós de dedos bateram á porta.
—Quem é?
—Eu—disse uma voz rouca.
—É meu marido. O animal ainda hoje não despegou
de casa... Não posso abrir. Logo.
Luiza limpava os olhos, á pressa, punha o chapéo.
—Quando voltas?—perguntou Leopoldina.
[433]
—Quando puder, senão escrevo-te.
—Bem. Eu vou pensar, vou esquadrinhar...
Luiza agarrou-lhe o braço:
—E d'isto, nem palavra.
—Douda!
Sahiu. Foi subindo devagar até ao largo de S.
Roque. A porta da igreja da Misericordia estava aberta,
com o seu largo reposteiro vermelho d'armas
bordadas que o vento agitava brandamente. Veio-lhe
um desejo d'entrar. Não sabia para quê; mas parecia-lhe
que depois da excitação apaixonada em que
vibrára, o fresco silencio da igreja a calmaria. E depois
sentia-se tão infeliz que se lembrou de Deus!
necessitava alguma cousa de superior, de forte a que
se amparar. Foi-se ajoelhar ao pé d'um altar, persignou-se,
rezou o
Padre-Nosso, depois a
Salve Rainha.
Mas aquellas orações, que ella recitava em pequena,
não a consolavam; sentia que eram sons inertes
que não iam mais alto no caminho do céo que a
sua mesma respiração; não as comprehendia bem,
nem se applicavam ao seu
caso: Deus por ellas,
nunca poderia saber o que ella pedia, alli, prostrada
na afflicção. Quereria fallar a Deus, abrir-se toda a
elle: mas com que linguagem? Com as palavras triviaes,
como se fallasse a Leopoldina? Iriam as suas
confidencias tão longe, que o alcançassem? Estaria
elle tão perto, que a ouvisse? E ficou ajoelhada, os
[434]
braços molles, as mãos cruzadas no regaço, olhando
as velas de cera tristes, os bordados desbotados do
frontal, a carinha rosada e redonda d'um menino Jesus!
Lentamente perdeu-se n'um scismar que ella não
dirigia, que se formava e se movia no seu cerebro,
como a fluctuação d'um fumo que se eleva. Pensava
no tempo tão distante, em que, por melancolia e por
sentimentalidade, frequentava mais as igrejas. Ainda
a mamã vivia então; e ella, com o coração quebrado—quando
o
outro, Bazilio, lhe escrevera, rompendo—procurava
dissipar a sua tristeza nas consolações
da devoção. Uma amiga sua, a Joanna Silveira,
fôra por esse tempo professar a França: e ella
ás vezes lembrava-se de partir tambem, ser irmã de
caridade, levantar os feridos nos campos de batalha,
ou viver na paz d'uma cella mystica! Que differente
a sua vida teria sido—d'esta agora tão alvoroçada
de cólera, e tão carregada de peccado!... Onde estaria?
Longe, n'algum mosteiro antigo, entre arvoredos
escuros, n'um valle solitario e contemplativo:
na Escocia, talvez, paiz que ella sempre amára desde
as suas leituras de Walter Scott. Podia ser nas verde-negras
terras de Lamermoor ou de Glencoe, n'alguma
velha abbadia saxonia. Em redor os montes
cobertos d'abetos, esbatidos nas nevoas, isolam aquelles
retiros n'uma paz funeraria: n'um céo saudoso,
as nuvens passam devagar, com recolhimento: nenhum
som festivo quebra a meiga taciturnidade das
cousas: revoadas de corvos cortam á tarde o ar n'um
[435]
vôo triangular. Alli viveria entre as monjas d'alta
estatura e olhar celtico, filhas de duques normandos,
ou de lords de
clans convertidos a Roma: leria livros
dôces e cheios das cousas do céo: sentada na
estreita janella da sua cella, veria passar nas mattas
baixas os altos paus dos veados, ou pelas tardes
vaporosas escutaria o som distante da
bagpipe, que
vai tristemente tocando o pastor que vem dos valles
de Callendar: e todo o ar estaria cheio do murmurio
choroso e gottejante dos fios d'agua, que por
entre as relvas escuras cahem de rocha em rocha!
Ou então seria outra existencia mais regalada,
no convento pacato d'uma boa provincia portugueza.
Alli os tectos são baixos; as paredes caiadas faiscam
ao sol, com as suas gradesinhas devotas; os sinos
repicam no vivo ar azul; em roda, nos campos
d'oliveiras que dão azeite para o convento, raparigas
varejam a azeitona cantando; no pateo lageado
d'uma pedra miudinha as mulas do almocreve, sacudindo
a mosca, batem com a ferradura: matronas
cochicham ao pé da roda; um carro chia na estrada
empoeirada e branca; gallos cacarejam, brilhando ao
sol; e freiras gordinhas, d'olho negro, chalram nos
frescos corredores.
Alli viveria, engordando, com uma quebrasinha
de somno á hora do côro, bebendo copinhos de licôr
de rosa no quarto da madre-escrivã, copiando receitas
de dôces com uma letra garrafal; morreria velha,
ouvindo as andorinhas cantar á beira da sua
grade; e o senhor bispo na sua visita, com a pitada
[436]
nos seus dedos brancos, ouviria sorrindo da bocca
da madre abbadessa a historia edificante da sua santa
morte...
Um sacristão, que passava, escarrou fortemente;
e, como um bando de passaros que se cala a um
ruido brusco, todos os seus sonhos fugiram. Suspirou,
ergueu-se devagar, foi indo para casa, triste.
Foi Juliana quem veio abrir, e logo no corredor,
com a voz supplicante e baixa:
—A senhora por quem é perdôe, que depois estava
douda! Estava com a cabeça perdida, não tinha
dormido nada toda a noite. Fiquei mais afflicta...
Luiza não respondeu, entrou na sala. Sebastião
que vinha jantar, tocava a serenata de D. Juan—e
apenas ella appareceu:
—D'onde vem, tão pallida?
—Debilidade, Sebastião, venho da igreja...
Jorge entrava do escriptorio com uns papeis na
mão:
—Da igreja!—exclamou—Que horror!
XII
Foi por esse tempo que, n'um sabbado, o
Diario
do Governo publicou a nomeação do conselheiro
Accacio ao
grau de cavalleiro da ordem de S. Thiago,
attendendo aos seus grandes merecimentos litterarios,
ás obras publicadas de reconhecida utilidade,
e mais partes...
Na noite seguinte, ao entrar em casa de Jorge,
todos o cercaram, felicitando-o com alarido; o Conselheiro,
depois de os abraçar um por um, n'uma
pressão nervosa e commovida, cahiu no sophá, exhausto,
e murmurou:
—Não o esperava tão cedo da real munificencia!
Não o esperava tão cedo!—E acrescentou, pondo a
mão espalmada sobre o peito:—Direi como o philosopho:
Esta condecoração é o melhor dia da minha
vida!
[438]
E convidou logo Jorge, Sebastião e Julião para
um jantar na quinta-feira, «um modesto jantar de
rapazes, no seu humilde tugurio, para festejarem a
regia graça».
—Ás cinco e meia, meus bons amigos!
Na quinta-feira, os tres, que se tinham encontrado
na Casa Havaneza, eram introduzidos por uma
rapariguita vesga, suja como um esfregão, na sala
do Conselheiro. Um vasto canapé de damasco amarello
occupava a parede do fundo, tendo aos pés um
tapete onde um chileno roxo caçava ao laço um bufalo
côr de chocolate; por cima uma pintura tratada
a tons côr de carne, e cheia de corpos nús cobertos
de capacetes, representava o valente Achilles arrastando
Heitor em torno dos muros de Troya. Um
piano de cauda, mudo e triste sob a sua capa de
baeta verde, enchia o intervallo das duas janellas.
Sobre uma mesa de jogo, entre dous castiçaes de
prata, uma galguinha de vidro transparente galopava;
e o objecto em que se sentia mais o calor do
uso era uma caixa de musica de 18 peças!
O Conselheiro recebeu-os, com o
habito de S.
Thiago sobre a lapella do
frac preto. Havia outro
sujeito na sala, o snr. Alves Coutinho. Era picado das
bexigas, tinha a cabeça muito enterrada nos hombros;
quando o seu olhar parvo se fixava nas pessoas,
com pasmo, o seu bigode pellado arreganhava-se
logo por habito, n'um sorriso alvar que mostrava
uma bocca medonha cheia de dentes pôdres; fallava
pouco, esfregava sempre as mãos, concordava em
[439]
tudo; havia n'elle o ar d'um deboche banal, e d'um
embrutecimento antigo. Era um empregado do ministerio
do reino, illustre pela sua boa letra.
D'ahi a pouco entrou a figura conhecida do Savedra,
redactor do
Seculo. A sua face branca parecia
mais balofa; o bigode muito preto reluzia de brilhantina;
as lunetas d'ouro accentuavam o seu tom official:
trazia ainda no queixo o pó d'arroz, que lhe pozera
momentos antes o barbeiro; e a mão, que escrevia
tanta banalidade e tanta mentira, vinha aperreada
n'uma luva nova, côr de gema d'ovo!
—Estamos todos!—disse com jubilo o Conselheiro.
E curvando-se:—Bemvindos, meus amigos!
Estamos talvez mais á vontade no meu quarto de
estudo! Por aqui. Ha um degrau, cuidado! Eis o meu
Sanctus Sanctorum!
N'uma saleta muito espanejada a que as cortinas
de cassa, a luz de duas janellas de peitoril, e o papel
claro davam um aspecto alvadio, estava a larga
escrivaninha de trabalho, com um tinteiro de prata,
os lapis muito aparados, as regoas bem dispostas.
Via-se o sinete d'armas do Conselheiro, pousado sobre
a
Carta Constitucional ricamente encadernada.
Encaixilhada, na parede, pendia a
carta regia que o
nomeára Conselheiro; defronte uma lithographia d'El-Rei;
e sobre uma mesa, era eminente o busto em
gesso de Rodrigo da Fonseca Magalhães, tendo no alto
da cabeça uma corôa de perpetuas—que ao mesmo
tempo o glorificava e o chorava.
Julião pozera-se logo a examinar a livraria.
[440]
—Prezo-me de ter os authores mais illustres,
amigo Zuzarte!—disse com orgulho o Conselheiro.
Mostrou-lhe a
Historia do consulado e do imperio,
as obras de Delille, o
Diccionario da conversação,
a ediçãosinha bojuda da
Encyclopedia Roret, o
Parnaso lusitano. Fallou dos seus trabalhos; e acrescentou
que, vendo alli reunidas pessoas de tão subida
illustração, desejaria muito lêr-lhes algumas das
provas que estava revendo do seu novo livro—
Descripção
das principaes cidades do reino e seus
estabelecimentos, para ouvir a opinião d'elles, desassombrada
e severa!
—Se não acham massada...
—Prazer, Conselheiro! prazer!
Escolheu então «como mais propria para dar
idéa da importancia do trabalho» a pagina relativa
a Coimbra. Assoou-se, collocou-se no meio da saleta,
de pé, com as folhas na mão, e, com uma voz cheia,
gestos pausados, leu:
«—...Reclinada mollemente na sua verdejante
collina, como odalisca em seus aposentos, está a sabia
Coimbra, a Lusa Athenas. Beija-lhe os pés, segredando-lhe
d'amor, o saudoso Mondego. E em seus
bosques, no bem conhecido salgueiral, o rouxinol e
outras aves canoras soltam seus melancolicos trilos.
Quando vos aproximaes pela estrada de Lisboa, onde
outr'ora uma bem organisada
mala-posta fazia o
serviço que o progresso hoje encarregou á fumegante
locomotiva, vêdel-a branquejando, coroada do edificio
imponente da Universidade, asylo da sabedoria.
[441]
Lá campêa a torre com o sino, que em sua folgazã
linguagem a mocidade estudiosa chama
a cabra. Para
além logo uma copada arvore vos attrahe as vistas:
é a celebrada
arvore dos Dorias, que dilata
seus seculares ramos no jardim d'um dos membros
d'esta respeitavel familia. E avistaes logo, sentados
nos parapeitos da antiga ponte, em seus innocentes
recreios, os briosos moços, esperança da patria, ou
requebrando galanteios com as ternas camponezas
que passam reflorindo de mocidade e frescura, ou revolvendo
em suas mentes os problemas mais arduos
de seus bem elaborados compendios...»
—Está a sôpa na mesa—veio dizer uma criada,
de avental branco, muito nutrida.
—Muito bem, Conselheiro, muito bem!—disse
logo o Savedra do
Seculo, erguendo-se.—É admiravel!
Declarou para os lados com authoridade: «que o
estylo era digno d'um Rebello ou d'um Latino, e que
realmente estava-se precisando muito em Portugal
d'uma obra daquelle quilate...» E pensava baixo:
«Grandissima cavalgadura!...» O que era a sua
apreciação generica de todas as obras contemporaneas—exceptuando
os seus artigos no
Seculo.
—Que lhe pareceu, meu bom amigo?—perguntou
baixo o Conselheiro a Julião, passando-lhe a mão
sobre o hombro.—Mas uma opinião desaffrontada,
meu Zuzarte!
—Snr. Conselheiro—disse Julião com uma voz
profunda—tenho-lhe inveja!—E as suas lunetas
[442]
escuras fixavam-se com uma preoccupação crescente
n'um chale-manta pardo, que a um canto cobria cuidadosamente,
a julgar pelas saliencias, altas pilhas
de livros. Que seria?—Tenho-lhe inveja!—repetiu—E
outra cousa, Conselheiro, não se me dava de
lavar as mãos.
Accacio levou-o logo ao seu quarto, e retirou-se
discretamente. Julião, sempre curioso, observou, surprehendido,
duas grandes lithographias aos lados da
cama—um
Ecce Homo! e a
Virgem das sete Dôres.
O quarto era esteirado, o leito baixo e largo. Abriu
então a gavetinha da mesa de cabeceira, e viu, espantado,
uma touca e o volume brochado das poesias
obscenas de Bocage! Entreabriu os cortinados fechados;
e teve a consolação de verificar,—que havia
sobre o travesseiro duas fronhasinhas chegadas d'um
modo conjugal e terno!
Apenas elle sahiu do quarto, limpando as unhas
com o lenço, o Conselheiro conduziu-os á sala de
jantar, dizendo, jovialmente:
—Não esperem o festim de Lucullo: é apenas o
modesto passadio d'um humilde philosopho!
Mas o Alves Coutinho extasiou-se sobre a abundancia
das travessas de dôce; havia
creme crestado
a ferro d'engomar, um prato
d'ovos queimados, aletria
com as iniciaes do Conselheiro desenhadas a canella.
—É um grande dia para Sebastião!—disse
Jorge.
O Alves Coutinho voltou-se logo para Sebastião,
esfregando as mãos, com um riso na face amarella:
[443]
—É cá dos meus, hein? Gosta do bello dôce!
Tambem me péllo, tambem me péllo!...
Houve então um silencio. As colheres de prata,
remexendo devagar a sopa muito quente, agitavam
os longos canudos brancos e molles do macarrão.
O Conselheiro disse:
—Não sei se gostarão da sopa. Eu adoro o macarrão!
—Gosta do macarrão?—acudiu o Alves.
—Muito, meu Alves. Lembra-me a Italia!—E
acrescentou:—Paiz que sempre desejei vêr. Dizem-me
que as suas ruinas são de primeira ordem. Póde
ir trazendo o cozido, snr.
a Philomena...—Mas detendo-a,
com um gesto grave:—Perdão, com franqueza,
preferem o cozido ou o peixe? É um pargo.
Houve uma hesitação, Jorge disse:
—O cozido talvez.
E o Conselheiro com affecto:
—O nosso Jorge opina pelo cozido.
—Tambem estou pela sua!—exclamou o Alves
Coutinho, voltado para Jorge, com o olho afogado em
reconhecimento:—O cozidinho!
E o Conselheiro que julgava do seu dever dar á
conversação nobreza e interesse, disse, limpando devagar
o bigode da gordura da sopa:
—Dizem-me que é muito liberal a constituição
da Italia!
Liberal! Segundo Julião, se a Italia fosse liberal,
devia ter ha muito expulso a coronhadas o papa, o
sacro collegio, e a sociedade de Jesus!
[444]
O Conselheiro pediu, com bondade, a benevolencia
do amigo Zuzarte para o «chefe da Igreja».
—Não—explicou—que eu seja um sectario do
Syllabus. Não que eu queira vêr os jesuitas enthronisados
no seio da familia! Mas—e a sua voz tornou-se
profunda—o respeitavel prisioneiro do Vaticano
é o vigario de Christo! Meu Sebastião, sirva o
arroz!
Não havia que estranhar aquellas opiniões catholicas
do Conselheiro, ia observando Julião, porque tinha
duas imagens de santos pendentes á cabeceira da
cama...
A calva d'Accacio fez-se rubra. O Savedra do
Seculo
exclamou com a bocca cheia:
—Não o sabia carola, Conselheiro!
Accacio, afflicto, suspendeu o trinchador sobre o
paio escarlate, e acudiu:
—Eu peço ao meu Savedra que não tire d'esse
facto illações erradas. Os meus principios são bem
conhecidos. Não sou ultramontano, nem faço votos
pelo restabelecimento da perseguição religiosa. Sou
liberal. Creio em Deus. Mas reconheço que a religião
é um freio...
—Para os que o precisam—interrompeu Julião.
Riram; o Alves Coutinho torcia-se. O Conselheiro
interdicto respondeu, devagar, dispondo na travessa
as rodelas do paio:
—Não o precisamos nós de certo, que somos as
classes illustradas. Mas precisa-o a massa do povo,
[445]
snr. Zuzarte. Senão veriamos augmentar a estatistica
dos crimes.
E o Savedra do
Seculo, erguendo as sobrancelhas,
com a physionomia muito séria:
—Pois olhe que diz uma grandissima verdade.—Repetiu
a maxima, modificando-a:—A religião é
um bridão!—Fazia com o gesto o esforço de conter
uma mula. E pediu mais arroz. Devorava.
O Conselheiro continuava, explicando:
—Como dizia, sou liberal, mas entendo que algumas
lithographias ou gravuras, allusivas ao mysterio
da Paixão, tem o seu lugar n'um quarto de cama,
e inspiram de certo modo sentimentos christãos.
Não é verdade, meu Jorge?
Mas o Savedra interrompeu ruidosamente, com a
face accesa n'uma jovialidade libertina:
—Eu, n'um quarto de dormir, as unicas pinturas
que admitto são uma bella nympha núa, ou uma
bacchante desenfreada!
—Isso, isso!—bradou o Alves Coutinho. A bocca
dilatava-se-lhe n'uma admiração sensual.—Este
Savedra! Este Savedra!—E baixo para Sebastião:—Tem
um talento! Tem um talento!
O Conselheiro voltou-se para Julião, e puxando o
guardanapo para o estomago:
—Espero que não sejam esses os paineis immoraes,
que se vêem no seu gabinete d'estudo.
Julião emendou:
—No meu cubiculo. Ah! não, Conselheiro! Tenho
apenas duas lithographias—uma é um homem
[446]
sem pelle para representar o systema arterial, o outro
é o mesmo individuo igualmente sem pelle para
se vêr o systema nervoso.
O Conselheiro teve com a sua mão branca um
vago gesto enojado, e exprimiu a opinião—que na
medicina, aliás uma grande sciencia! havia cousas
bastante asquerosas. Assim, ouvira dizer que nos
theatros anatomicos, os estudantes d'idéas mais
avançadas levavam o seu desprezo pela moral até
atirarem uns aos outros, brincando, pedaços de
membros humanos, pés, coxas, narizes...
—Mas é como quem mexe em terra, Conselheiro!—disse
Julião, enchendo o copo—é materia
inerte!
—E a alma, snr. Zuzarte?...—exclamou o
Conselheiro. Fez um gesto de vaga reticencia; e julgando
tel-o aniquilado com aquella palavra suprema,
abriu para Sebastião um sorriso cortez e protector:
—E que diz o nosso bondoso Sebastião?
—Estou a ouvir, snr. Conselheiro.
—Não dê ouvidos a estas doutrinas!—Com o
garfo mostrava a figura biliosa de Julião.—Mantenha
a sua alma pura. São perniciosas. Que o nosso
Jorge (o que é de lamentar n'um homem estabelecido
e empregado do Estado) tambem vai um pouco
para estas exagerações materialistas!
Jorge riu; affirmou que
sim, que tinha essa
honra...
—Então o Conselheiro quer que eu, um engenheiro,
[447]
um estudante de mathematica, acredite que
ha almas que vivem no céo, com azinhas brancas,
tunicas azues, e tocando instrumentos?
O Conselheiro acudiu:
—Não, instrumentos não!—E como appellando
para todos:—Não creio que tivesse fallado em
instrumentos. Os instrumentos são uma exageração.
São, podemos dizel-o, tacticas do partido reaccionario...
Ia fulminar a doutrina ultramontana—mas a snr.
a
Philomena collocou-lhe diante a travessa com a perna
de vitella assada. Compenetrou-se logo do seu
dever, afiou o trinchador com solemnidade, foi cortando
fatias finas, com a testa muito franzida como
na applicação d'uma funcção grave. Então Julião,
pousando os cotovêlos sobre a mesa, e escabichando
os dentes com a unha, perguntou:
—E o ministerio, cahe ou não cahe?
Sebastião ouvira dizer no vapor d'Almada, de
tarde, que «a situação estava firme».
Mas o Savedra esvaziou o copo, limpou os beiços
e declarou que em duas semanas «estavam em terra».
Nem aquelle escandalo podia continuar! Não
tinham a mais pequena idéa de governo. Nem a mais
leve! Assim, por exemplo, elle...—E metteu as mãos
nos bolsos, firmando-se nas costas da cadeira—Elle
tinha-os apoiado, não é verdade? E com lealdade.
Porque era leal! Sempre o fôra em politica! Pois
bem, não lhe tinham despachado o primo recebedor
d'Aljustrel, tendo-lh'o promettido! e nem lhe tinham
[448]
dado uma satisfação. Assim não era possivel fazer
politica! Era uma collecção de idiotas!
Jorge alegrava-se que viessem outros; talvez lhe
dessem de novo a sua commissão no ministerio; e
elle o que queria era estar quieto ao seu cantinho...
O Alves Coutinho calava-se, com prudencia, engulindo
buchas de pão.
—Eu que caiam, ou que fiquem—disse Julião—que
venham estes, ou que venham aquelles...
Obrigado, Conselheiro—e recebeu o seu prato de
vitella—...é-me inteiramente indifferente. É tudo
a mesma podridão! O paiz inspirava-lhe nojo; de
cima a baixo era uma
choldra: e esperava breve
que, pela logica das cousas, uma revolução varresse
a porcaria...
—Uma revolução!—fez o Alves Coutinho, assustado,
com olhares inquietos para os lados, coçando
nervosamente o queixo.
O Conselheiro sentára-se, e disse, então:
—Eu não quero entrar em discussões politicas,
só servem para dividir as familias mais unidas, mas
só lhe lembrarei, snr. Zuzarte, uma cousa, os excessos
da Communa...
Julião recostou-se, e com uma voz muito tranquilla:
—Mas onde está o mal, snr. Conselheiro, se fuzilarmos
alguns banqueiros, alguns padres, alguns
proprietarios obesos, e alguns marquezes cacheticos!
Era uma limpezasinha!...—E fazia o gesto d'afiar a
faca.
[449]
O Conselheiro sorriu, cortezmente; tomava como
um gracejo aquella sahida sanguinaria.
O Savedra porém interpoz-se, com authoridade:
—Eu no fundo sou republicano...
—E eu—disse Jorge.
—E eu—fez o Alves Coutinho, já inquieto.—Contem-me
a mim tambem!
—Mas—continuou o Savedra—sou-o em principio.
Porque o principio é bello, o principio é ideal!
Mas a pratica? Sim, a pratica?—E voltava para todos
os lados a sua face balofa.
—Sim, na pratica!—exclamava o Alves Coutinho,
em echo admirativo.
—A pratica é impossivel!—declarou o Savedra.
E encheu a bocca de vitella.
O Conselheiro então resumiu:
—A verdade é esta: o paiz está sinceramente
abraçado á familia real... Não acha, meu bom Sebastião?—Dirigia-se
a elle, como proprietario e possuidor
d'inscripções.
Sebastião, interpellado, córou, declarou que não
entendia nada de politica; havia todavia factos que
o affligiam; parecia-lhe que os operarios eram mal
pagos; a miseria crescia; os cigarreiros, por exemplo,
tinham apenas de nove a onze vintens por dia,
e, com familia, era triste...
—É uma infamia—disse Julião, encolhendo os
hombros.
—E ha poucas escólas...—observou timidamente
Sebastião.
[450]
—É uma torpeza!—insistiu Julião.
O Savedra calava-se, occupado com o alimento;
tinha desabotoado a fivela do collete; espalhava-se-lhe
no rosto gordo uma côr d'enfartação, e sorria
vagamente, inchado.
—E os idiotas de S. Bento?...—exclamou Julião.
Mas o Conselheiro interrompeu-o:
—Meus bons amigos, fallemos d'outra cousa. É
mais digno de portuguezes e de subditos fieis.
E voltando-se logo para Jorge, quiz saber como
ficára a interessante D. Luiza?
Estava um pouco adoentada havia dias—disse
Jorge.—Mas não era nada, mudança d'estação, um
bocadito d'anemia...
O Savedra pousando o copo, e comprimentando:
—Tive o prazer de a vêr passar este verão quasi
todas as manhãs por minha casa—disse.—Ia
para os lados d'Arroios. Ás vezes de trem, ás vezes
a pé...
Jorge pareceu um pouco surprehendido; mas o
Conselheiro ia dizendo quanto lhe pezava não ter o
prazer de a vêr partilhar d'aquelle modesto repasto;
como celibatario porém... não tendo uma esposa
para fazer as honras...
—E é o que eu admiro, Conselheiro—observou
Julião—é que tendo uma casa tão confortavel, não
se tenha casado, não se tenha dado o conchego d'uma
senhora...
[451]
Todos apoiaram. Era verdade! O Conselheiro devia-se
ter casado.
—São graves, perante Deus e perante a sociedade,
as responsabilidades d'um chefe de familia—considerou
elle.
Mas emfim—disseram—é o estado mais natural.
E depois, que diabo, ás vezes havia de se sentir
só! E n'uma doença! Sem contar a alegria que
dão os filhos!...
O Conselheiro objectou: «os annos, as neves da
fronte...»
Tambem ninguem lhe dizia que fosse casar com
uma rapariga de quinze annos! Não, era arriscado.
Mas com uma pessoa de certa idade que tivesse attractivos,
cuidados de interior... Era mesmo moral.
—Porque emfim, Conselheiro, a natureza, é a
natureza!—disse Julião com malicia.
—Ha muito, meu amigo, que se apagou dentro
em mim o fogo das paixões.
Ora qual! era um fogo que nunca se extinguia!
Que diabo! era impossivel que o Conselheiro, apesar
dos seus cincoenta e cinco, fosse indifferente a uns
bellos olhos pretos, a umas fórmasinhas redondas!...
O Conselheiro córava. E o Savedra declarou, com
um circumloquio pudico—que nenhuma idade se
eximia á influencia de Venus. Toda a questão é nos
gostos—disse:—aos quinze annos gosta-se d'uma
matrona cheia, aos cincoenta d'um fructosinho tenro...
Pois não é verdade, amigo Alves?
[452]
O Alves arregalou os olhos concupiscentes, e fez
estalar a lingua.
E o Savedra continuou:
—Eu, a minha primeira paixão foi uma visinha,
mulher d'um capitão de navios, mãi de seis filhos,
e que não cabia por aquella porta. Pois senhores,
fiz-lhe versos, e a excellente creatura ensinou-me um
par de cousas agradaveis... Deve-se começar cedo,
não é verdade?—E voltou-se para Sebastião.
Quizeram então saber as opiniões de Sebastião—que
se fez escarlate.
Por fim, muito solicitado, disse com timidez:
—Eu acho que se deve casar com uma rapariga
de bem, e estimal-a toda a vida...
Aquellas palavras simples produziram um curto
silencio. Mas o Savedra, reclinando-se, classificou uma
tal opinião de «burgueza»; o casamento era um fardo;
não havia nada como a variedade...
E Julião expôz dogmaticamente:
—O casamento é uma formula administrativa,
que ha-de um dia acabar...—De resto, segundo elle,
a femea era um ente subalterno; o homem deveria
aproximar-se d'ella em certas épocas do anno (como
fazem os animaes, que comprehendem estas cousas
melhor que nós), fecundal-a, e afastar-se com tedio.
Aquella opinião escandalisou a todos, sobretudo o
Conselheiro que a achou «d'um materialismo repugnante».
—Essas femeas para quem é tão severo, snr.
Zuzarte—exclamava elle—essas femeas são nossas
[453]
mães, nossas carinhosas irmãs, a esposa do Chefe
do Estado, as damas illustres da nobreza...
—São o melhor bocadinho d'este valle de lagrimas—interrompeu
com fatuidade o Savedra, dando
palmadinhas sobre o estomago. Dissertou então sobre
as mulheres. O que sobretudo lhes exigia era um bonito
pé; não havia nada como um pésinho catita! E
a todas preferia a mulher hespanhola!
O Alves votava pelas francezas: citava algumas
do Café Concerto, creaturas de fazer perder a cabeça!...—E
injectavam-se-lhe os olhos.
O Savedra disse com um trejeito hostil:
—Sim, para um bocado de can-can... Para o
can-can não ha como as francezas... Mas muito chupistas!
O Conselheiro affirmou ageitando as lunetas:
—Viajantes instruidos teem-me afiançado que as
inglezas são notaveis mães de familia...
—Mas frias como esta madeira—disse o Savedra,
batendo no mesa.—Mulheres de gêlo!—E reclamava
hespanholas! Queria fogo! Queria
salero!
Tinha o olho brilhante do vinho; a comida accendia-lhe
o sentimento!
—Uma bella
gaditana, hein, amigo Alves?
Mas em presença dos dôces que a snr.
a Philomena
dispôz sobre a mesa, o Alves Coutinho esquecera
as mulheres, e, voltado para Sebastião, discutia gulodices.
Indicava as especialidades: Para os folhados,
o Cócó! Para as natas, o Baltresqui! Para as
gelatinas, o largo de S. Domingos! Dava receitas;
[454]
contava proezas de lambarice, revirando os olhos:
—Porque—dizia—o docinho e a mulherzinha
é o que me toca cá por dentro a alma.
Era: todo o tempo que não dedicava ao serviço
do Estado, dividia-o, com solicitude, entre as confeitarias
e os lupanares.
Savedra e Julião discutiam a imprensa. O redactor
do
Seculo gabava a profissão de jornalista—quando
a gente, já sabe, tem alguma cousa de seu;
mais tarde ou mais cedo apanha-se um nicho, não é
verdade? Depois as entradas nos theatros, a influencia
nas cantoras. Sempre se é um bocado temido...
E o Conselheiro, cortando os ovos queimados, saboreando
as alegrias da convivencia, dizia a Jorge:
—Que maior prazer, meu Jorge, que passar assim
as horas entre amigos, todos de reconhecida illustração,
discutir as questões mais importantes, e
vêr travada uma conversação erudita?... Parecem
excellentes os ovos.
A snr.
a Philomena, então, com solemnidade, veio
collocar-lhe ao pé uma garrafa de champagne.
O Savedra pediu logo para a abrir, porque o fazia
com muito
chic. E apenas a rolha saltou, e, no
silencio que creou a ceremonia, se encheram os copos,
o Savedra, que ficára de pé, disse:
—Conselheiro!
Accacio curvou-se, pallido.
—Conselheiro, é com o maior prazer que bebo,
que todos bebemos, á saude d'um homem, que—e
arremessando o braço, deu um puxão ao punho da
[455]
camisa com eloquencia—pela sua respeitabilidade, a
sua posição, os seus vastos conhecimentos, é um dos
vultos d'este paiz. Á sua saude, Conselheiro!
—Conselheiro! Conselheiro! Amigo Conselheiro!
Beberam com ruido. Accacio, depois de limpar os
beiços, passou a mão tremula pela calva, levantou-se
commovido, e começou:
—Meus bons amigos! Eu não me preparei para
esta circumstancia. Se o soubesse d'antemão, teria
tomado algumas notas. Não tenho a verbosidade dos
Rodrigos ou dos Garretts. E sinto que as lagrimas
me vão embargar a voz...
Fallou então de si, com modestia: reconhecia,
quando via na capital tão illustres parlamentares, oradores
tão sublimes, tão consummados estylistas, reconhecia
que era um Zero!—E com a mão erguida
formava no ar, pela junção do pollegar e do indicador,
um 0: um
zero! Proclamou o seu amor á patria:
que ámanhã as instituições ou a familia real
precisassem d'elle—e o seu corpo, a sua penna, o
seu modesto peculio, tudo offerecia de bom grado!
Quereria derramar todo o seu sangue pelo throno!—E,
prolixo, citou o
Eurico, as instituições da Belgica,
Bocage e passagens dos seus prologos. Honrou-se de
pretencer á Sociedade Primeiro de Dezembro...—N'esse
dia memoravel—exclamou—eu mesmo illumino
as minhas janellas, sem o luxo dos grandes estabelecimentos
do Chiado, mas com uma alma sincera!
E terminou dizendo:—Não esqueçamos, meus
[456]
amigos, como portuguezes, de fazer votos pelo illustrado
monarcha, que deu ás neves da minha fronte,
antes de descerem ao tumulo, a consolação de se poderem
revestir com o honroso habito de S. Thiago!
Meus amigos, á familia real!—e ergueu o copo—á
familia modêlo, que sentada ao leme do Estado, dirige,
cercada dos grandes vultos da nossa politica,
dirige...—Procurou o fecho; havia um silencio
ancioso—dirige...—Através das lunetas negras, os
seus olhos cravavam-se, á busca da inspiração, na
travessa d'aletria—dirige...—Coçou a calva, afflicto;
mas um sorriso clareou-lhe o aspecto, encontrára
a phrase; e estendendo o braço:—...dirige a
barca da governação publica com inveja das nações
visinhas! Á familia real!
—Á familia real!—disseram com respeito.
O café foi servido na sala. As velas d'estearina
punham uma luz triste n'aquella habitação fria; o
Conselheiro foi dar corda á caixa de musica; e, ao
som do côro nupcial da
Lucia, offereceu em redor
charutos.
—E a snr.
a Adelaide póde trazer os licôres—disse
á Philomena.
Viram então
apparecer uma bella mulher de trinta
annos, muito branca, de olhos negros, e fórmas ricas,
com um vestido de merino azul, trazendo n'uma
bandeja de prata, onde tremelicavam copinhos, a garrafa
de cognac e o frasco de curaçáo.
—Boa moça!—rosnou com o rosto acceso o Alves
Coutinho.
[457]
Julião quasi lhe tapou a bocca com a mão.
E fallando-lhe
ao ouvido, olhando o Conselheiro,
recitou:
Não ouses, temerario, erguer teus olhos
Para a mulher de Cesar!
E em quanto se bebia o curaçáo, Julião pé ante
pé dirigiu-se ao escriptorio, e foi erguer a ponta do
chale-manta pardo que tanto o preoccupava; eram
rumas de livros brochados, atadas com guitas,—as
obras do Conselheiro, intactas!
Quando Jorge entrou, ás onze horas, Luiza já deitada
lia, esperando-o.
Quiz saber do jantar do Conselheiro.
Excellente, contou Jorge, começando a despir-se.
Gabou muito os vinhos. Tinha havido
speechs... E
de repente:
—É verdade, onde ias tu a Arroios?
Luiza passou devagar as mãos sobre o rosto para
lhe cobrir a alteração. Disse bocejando ligeiramente:
—A Arroios?
—Sim. O Savedra, um sujeito que estava em casa
do Conselheiro, diz que te via passar todos os
dias para lá, de trem e a pé.
—Ah!—fez Luiza, depois de tossir—ia vêr a
Guedes, uma rapariga que andou commigo no collegio,
que tinha chegado do Porto. A Silva Guedes!
—Silva Guedes!...—disse Jorge reflectindo—Imaginei
que estava secretario geral em Cabo-Verde!
—Não sei. Estiveram ahi um mez no verão. Moravam
[458]
a Arroios. Ella estava doente, coitada: eu ia
lá ás vezes. Mandava-me pedir para ir lá. Põe essa
luz fóra, está-me a fazer impressão.
Queixou-se então que toda a tarde estivera exquisita.
Sentia-se fraca, e com uma pontinha de febre...
E nos dias seguintes não se achou melhor. Queixava-se
ainda vagamente de peso na cabeça, mal estar...
Uma manhã mesmo ficou de cama. Jorge não
sahiu, inquieto, querendo já mandar chamar Julião.
Mas Luiza insistiu que «não era nada, um bocadito
de fraqueza, talvez...»
Foi tambem a opinião de Juliana, em cima na
cozinha.
—Que aquella senhora é fraca; alli ha cousa do
peito—disse com importancia.
Joanna que estava debruçada sobre o fogão, acudiu
logo:
—O que ella é, é uma santa!...
Juliana cravou-lhe nas costas um olhar rancoroso.
E com um risinho:
—A snr.
a Joanna diz isso como se as outras fossem
uma peste.
—Que outras?
—Eu, vossemecê, a mais gente...
Joanna sempre remexendo nas panellas sem se voltar:
[459]
—Olhe, outra não encontra vossemessê, snr.
a
Juliana! Uma senhora que lhe deixa fazer tudo o que
quer, e faz ella mesma o serviço! N'outra dia andava
a despejar as aguas. É uma santa!
Aquelle tom hostil de Joanna exasperou-a; mas
conteve-se; apesar da sua
posição na casa, dependia
d'ella para os caldinhos, os bifes, os petiscos;
tinha diante d'ella a vaga timidez respeitosa das
constituições franzinas pelos corpos possantes; pôz-se
a dizer com uma voz tortuosa, ambigua:
—Ora!—são genios! Gosta d'arrumar. Ah, lá
isso deve-se dizer, é senhora de muita ordem. Mas
gosta, gosta de trabalhar. Ás vezes basta-lhe vêr um
bocadinho de pó, agarra logo no espanador... É genio.
Tenho visto outras assim...—E punha a cabeça
de lado, franzindo os beiços.
—O que ella é, é uma santa—repetiu a Joanna.
—É genio! Está sempre n'uma labutação. Eu
nunca sáio sem deixar tudo n'um brinco. Pois senhores,
nunca está satisfeita. Até n'outro dia, lá em
baixo a passar a roupa... Eu ia a sahir, pois tirei
logo o chapéo, e não consenti... Olhe, quer que lhe
diga? falta de cuidados, não ter filhos... Que ella
não lhe falta nada...
Calou-se, remirou o pé, e com satisfação:
—Nem a mim—disse reclinando-se na cadeira.
A Joanna pôz-se a cantarolar. Não queria «questões».
Mas ultimamente achava «tudo aquillo muito
fóra dos eixos», a Juliana sempre na rua, ou mettida
[460]
no quarto a trabalhar para si, sem se importar, deixando
tudo ao Deus dará, e a pobre senhora a varrer,
a passar, a emmagrecer! Não, alli havia cousa!
Mas o seu Pedro que ella consultára, disse-lhe com
finura, retorcendo o buço:—Ellas lá se entendem!
Trata tu de gozar, e não te importes com a vida dos
outros. A casa é boa, toca a tirar partido!
Mas Joanna sentia «lá por dentro» a crescer-lhe
uma embirração pela snr.
a Juliana. Tinha-lhe asca
pelas tafularias, pelos luxos do quarto, pelas passeatas
todo o dia, pelos modos de madama; não se recusava
a fazer-lhe o serviço, porque isso lhe rendia
presentinhos da senhora; mas, quê, tinha-lhe birra!
O que a consolava era a idéa de que um piparote
desfazia aquella magricella! e ia tirando partido da
casa, tambem. O Pedro tinha razão...
Juliana com effeito, agora, não se constrangia.
Depois da «scena da roupa», assustára-se, porque,
emfim, o escandalo podia-lhe fazer perder a
posição;
durante alguns dias não sahiu, foi cuidadosa: mas
quando viu Luiza resignar-se, abandonou-se logo,
quasi com fervor, ás satisfações da preguiça e ás
alegriasinhas da vingança. Passeava, costurava fechada
no seu quarto, e a
Piorrinha que se arranjasse!
Diante de Jorge ainda se continha: temia-o.
Mas apenas elle sahia! Que desforra! Ás vezes estava
varrendo ou arrumando—e, mal o sentia fechar
a cancella, atirava o ferro, a vassoura, punha-se
a «panriar». Lá estava a
Piorrinha, para acabar!
Luiza, no entanto, passava peor: tinha de repente,
[461]
sem razão, febres ephemeras; emmagrecia, e as
suas melancolias torturavam Jorge.
Ella explicava tudo pelo
nervoso.
—Que será, Sebastião?—era a pergunta incessante
de Jorge. E lembrava-se com terror que a mãi
de Luiza morrera d'uma doença de coração!
Na rua, pela cozinheira, pela tia Joanna, sabia-se
que a do Engenheiro «ia mal». A tia Joanna jurava
que era a solitaria. Porque emfim, uma pessoa a
quem não faltava nada, com um marido que era um
anjo, uma boa casa, todos os seus commodos—e a
esmorecer, a esmorecer... Era a bicha! Não podia
ser senão a bicha! E todos os dias lembrava a Sebastião
que se devia mandar chamar o homem de
Villa Nova de Famalicão, que tinha o remedio «para
a bicha».
O Paula explicava d'outro modo.
—Alli anda cousa de cabeça—dizia, franzindo
a testa, com o ar profundo.—Sabe o que ella tem,
snr.
a Helena? É muita dóse de novellas n'aquella cachimonia.
Eu vejo-o de pela manhã até á noite de
livro na mão. Põe-se a lêr romances e mais romances...
Ahi teem o resultado: arrazada!
Um dia Luiza de repente, sem razão, desmaiou;
e quando voltou a si ficou muito fraca, com o pulso
sumido, os olhos cavados. Jorge foi logo buscar Julião:
encontrou-o muito agitado, porque o concurso
era para o dia seguinte, e «sentia cólicas».
Durante todo o caminho não deixou de fallar excitadamente
da sua these, do escandalo dos patrocinatos,
[462]
do barulho que faria se fossem injustos,—arrependido
agora de não ter «mettido mais cunhas»!
Depois de ter examinado Luiza veio dizer, furioso,
a Jorge:
—Não tem nada! E vaes-me buscar p'ra isto!
Tem anemia, o que todos temos. Que passeie, que
se distráia. Distracções e ferro, muito ferro... E agua
fria, agua fria p'ra cima d'aquella espinha!
Como eram cinco horas, convidou-se para jantar,
deblaterando toda a tarde contra o paiz, amaldiçoando
a carreira medica, injuriando o seu concorrente,
e fumando com desespero os charutos de Jorge.
Luiza tomava o ferro, mas recusava as distracções;
fatigava-a vestir-se, aborrecia-lhe ir ao theatro...
Depois, logo que viu Jorge preoccupar-se do
seu estado, quiz affectar força, alegria, bom humor;
e aquelle esforço abatia-a, extraordinariamente.
—Vamos para o campo, queres tu?—dizia-lhe
Jorge desolado, vendo-a esmorecida.
Ella, receando complicações possiveis, não aceitava;
não se sentia bastante forte, dizia: onde estava
mais confortavel que em casa? Depois as despezas,
os incommodos...
Uma manhã, que Jorge voltára a casa inesperadamente,
encontrou-a em
robe-de-chambre, com um
lenço amarrado na cabeça, varrendo, lugubremente.
Ficou á porta attonito:
—Que andas tu a fazer? andas a varrer?
Ella córou muito, atirou logo a vassoura, veio
abraçal-o.
[463]
—Não tinha que fazer... Deu-me a mania da
limpeza... Estava aborrecida, além d'isso faz-me
bem, é um exercicio.
Jorge, á noite, contou a Sebastião aquella «tolice,
de se andar a esfalfar...»
—Uma pessoa que está tão fraca, minha senhora...—observou
reprehensivamente Sebastião.
Mas não! dizia ella, achava-se bem melhor! Até
agora andava muito melhor...
Todavia, quasi não fallou n'essa noite, curvada
sobre o seu
crochet, um pouco pallida: e os seus
olhos ás vezes erguiam-se com uma fadiga triste,
sorrindo silenciosamente, d'um modo desconsolado.
Pediu a Sebastião que tocasse algum cousa do
Requiem de Mozart. Achava tão lindo! Gostava que
lh'o cantassem na igreja quando ella morresse...
Jorge zangou-se. Que mania de fallar em cousas
ridiculas!
—Mas então, não é possivel que eu morra?...
—Pois bem, morre e deixa-nos em paz!—exclamou
elle furioso.
—Que bom marido!—dizia ella sorrindo a Sebastião.—Deixou
cahir o
crochet no regaço, pediu-lhe
então os
Dezeseis compassos da Africana. Escutava,
com a cabeça apoiada á mão: aquelles sons
entravam-lhe na alma com a doçura de vozes mysticas
que a chamavam; parecia-lhe que ia levada
por ellas, se desprendia de tudo o que era terrestre
e agitado, se achava n'uma praia deserta, junto ao
mar triste, sob um frio luar—e alli, puro espirito,
[464]
livre das miserias carnaes, rolava nas ondulações do
ar, tremia nos raios luminosos, passava sobre as
urzes nos sopros salgados...
A melancolica attitude do seu corpo abatido enfureceu
Jorge:
—Ó Sebastião, fazes-me favor de tocar o fandango,
o Barba Azul, o Pirolito, o diabo? Senão, se
querem melancolia, eu começo com o canto-chão!
E cantou, com um tom funebre:
Dies iræ, dies illa
Solvunt sæcula in favilla!...
Luiza riu-se:
—Que doudo! Nem póde a gente estar triste...
—Póde!—exclamou Jorge.—Mas então venha
a bella tristeza, venha a tristeza completa.—E com
uma voz medonha entoou o
Bemdito!
—Os visinhos hão-de dizer que estamos doudos,
Jorge—acudiu ella.
—É justamente o que nós estamos!—E entrou
no escriptorio, atirando com a porta.
Sebastião bateu alguns compassos, e voltando-se
para ella, baixo:
—Então que idéas são essas? Que melancolia é
essa?
Luiza ergueu os olhos para elle; viu a sua face
boa e amiga, cheia de sympathia; ia talvez dizer-lhe
tudo n'uma explosão de dôr, mas Jorge sahia do
escriptorio. Sorriu, encolheu os hombros, retomou
devagar o seu
crochet.
[465]
No domingo seguinte, á noite, conversava-se na
sala. Julião contára o seu concurso. Em resumo, estava
contente: tinha fallado duas horas bem, com precisão,
com lucidez.
O dr. Figueiredo dissera-lhe que «devia ter amenisado
um bocado mais...»
—Litteratos!—fazia Julião, encolhendo os hombros,
com desprezo.—Não podem fallar cinco minutos
sobre o osso do tornozelo, sem trazerem as «flôres
da primavera» e «o facho da civilisação»!
—O portuguez tem a mania da rhetorica...—disse
Jorge.
N'este momento Juliana entrou na sala, com uma
carta.
—Oh! é do Conselheiro!
Ficaram inquietos. Mas Accacio apenas se desculpava
de «não poder vir, como promettera na vespera,
partilhar do excellente chá de D. Luiza. Um
trabalho urgente retinha-o á banca do dever. Pedia
lembranças aos nossos Sebastião e Julião, e affectuosos
respeitos á interessante D. Felicidade».
Uma onda de sangue abrazou o rosto da excellente
senhora. Ficou a arfar, toda alterada; mudou
duas vezes de cadeira, foi tocar no teclado com um
dedo a
Perola d'Ophir; e emfim, não se dominando,
pediu baixo a Luiza «que fossem para o quarto, tinha
um segredo...»
Apenas entraram, fechando a porta da sala:
[466]
—Que me dizes á carta d'elle?
—Os meus parabens—disse Luiza, rindo.
—É o milagre!—exclamou D. Felicidade—já é
o milagre a fazer-se!—E mais baixo:—Mandei o
homem! O que eu te disse, o gallego!
Luiza não comprehendia.
—O homem a Tuy, á mulher de virtude! Levou
o meu retrato e o d'elle. Partiu ha uma semana: a
mulher naturalmente já começou a enterrar-lhe as
agulhas no coração...
—Que agulhas?—perguntou Luiza attonita.
Estavam de pé, junto ao toucador. E D. Felicidade
com uma voz mysteriosa:
—A mulher faz um coração de cera, colla-o ao
retrato do Conselheiro, e durante uma semana á meia
noite crava-lhe uma agulha benta com o preparo que
ella tem, e faz as orações...
—E déste o dinheiro ao homem?
—Oito moedas.
—Oh D. Felicidade!
—Ai! não me digas. Que já vês! Que mudança!
D'aqui a uns dias, baba-se! Ai! Nossa Senhora
da Alegria o permitta. Nossa Senhora o permitta!
Que aquelle homem traz-me douda. De noite, é cada
sonho! Até ando em peccado mortal! e são suores!
Mudo de camisa tres e quatro vezes!
E ia-se olhando ao espelho: queria convencer-se
que as bellezas da sua pessoa ajudariam as agulhas
da bruxa: alisou o cabello.
—Não me achas mais magra?
[467]
—Não.
—Ai estou, filha, estou!—E mostrou o corpete
lasso.
Já fazia planos. Iria passar a
lua de mel a Cintra...
Os olhos afogavam-se-lhe n'um fluido lubrico.
—Nossa Senhora da Alegria o permitta. Tenho-lhe
duas velas accesas, de dia e de noite...
Mas de repente a voz afflicta de Joanna bradou
da escada da cozinha:
—Minha senhora! Minha senhora, acuda!
Luiza correu, Jorge tambem, que ouvira na sala
o grito. Juliana estava estendida no soalho da cozinha,
desmaiada!
—Deu-lhe de repente, deu-lhe de repente!—exclamava
Joanna, muito branca, a tremer.—Tombou
p'ra o lado de repente...
Julião tranquillisou-os logo: era uma syncope,
simples. Transportaram-na para a cama. Julião fez-lhe
esfregar violentamente com uma flanella quente
as extremidades,—e, mesmo antes que Joanna atarantada,
em cabello, corresse á botica por um antispasmodico,
Juliana voltava a si, muito fraca. Quando
desceram á sala, Julião disse, enrolando o cigarro:
—Não vale nada. São muito frequentes, estas
syncopes, nas doenças de coração. Esta é simples.
Mas é o diabo, ás vezes tem um caracter apopletico,
e vem a paralysia; pouco duradoura, sim, porque a
effusão de sangue no cerebro é muito pequena, mas
emfim, sempre desagradavel.—E accendendo o cigarro:—Esta
mulher um dia morre-lhes em casa.
[468]
Jorge, preoccupado, passeava pela sala com as
mãos nos bolsos.
—Sempre o tenho dito—acudiu D. Felicidade,
baixando a voz, assustada.—Sempre o tenho dito.
É desfazerem-se d'ella.
—Além d'isso o tratamento é incompativel com
o serviço—disse Julião.—Emfim, mesmo a engommar
roupa se póde tomar digitalis ou quinino; mas
é que o verdadeiro tratamento é o repouso, é a absoluta
exclusão da fadiga. Que ella um dia se zangue
ou que tenha uma manhã de canceira, e póde
ir-se!
—E vai adiantada a doença?—perguntou Jorge.
—Pelo que ella diz já tem a difficuldade asthmatica,
oppressões, uma dôr aguda na região cardiaca,
flatulencia, humidade nas extremidades—o diabo!
—Olha que espiga!—murmurou Jorge, olhando
em roda.
—É pôl-a na rua!—resumiu D. Felicidade.
Quando ficaram sós, ás onze horas, Jorge disse
logo a Luiza:
—Que te parece esta, hein? É necessario descartarmo-nos
da creatura. Não quero que me morra
em casa!
Ella, sem se voltar, diante do toucador, tirando
os brincos, começou a dizer, que não se podia mandar
tambem a pobre creatura morrer p'ra a rua...
Lembrou vagamente o que ella tinha feito pela tia
Virginia... Ia collocando devagar as suas palavras
com a cautela com que se pousa o pé n'um terreno
[469]
traiçoeiro.—Podia-se talvez dar-lhe algum dinheiro,
que ella fosse viver algures...
Jorge, depois d'um silencio, respondeu:
—Não tenho duvida em lhe dar dez ou doze libras,
e que se vá, que se arranje!
Dez ou doze libras!—pensou Luiza com um sorriso
infeliz.—E á beira do toucador olhava para o
seu rosto, ao espelho, com uma indefinida saudade,
como se as suas faces devessem dentro em pouco
estar cavadas pela afflicção, e os seus olhos fatigados
pelas lagrimas...
Porque, emfim, a
crise tinha chegado. Se Jorge
insistisse em despedir a creatura, ella não podia,
sem provocar um espanto e uma explicação, dizer a
Jorge: não quero que ella sáia, quero que ella aqui
morra! E Juliana vendo-se expulsa, desesperada,
doente, percebendo que Luiza não a defendia, não
a reclamava,—vingar-se-hia! Que havia de fazer?
Ergueu-se ao outro dia n'uma grande agitação.
Juliana muito fatigada, ainda estava na cama. E em
quanto Joanna punha a mesa, Luiza sentada na
voltaire,
á janella da sala de jantar, lia machinalmente
o
Diario de Noticias, quasi sem comprehender, quando
uma noticia, no alto da pagina, lhe deu um sobresalto:
«Parte além d'ámanhã para França o nosso
amigo e conhecido banqueiro Castro, da firma Castro
Miranda & C.
a S. exc.
a retira-se dos negocios da
[470]
praça, e vai estabelecer-se definitivamente em França,
perto de Bordeus, onde comprou ultimamente
uma valiosa propriedade.»
O Castro! O homem que lhe dava dinheiro, o
que ella quizesse! dizia Leopoldina. Partia!... E apesar
de ter achado, desde o primeiro momento, aquelle
recurso infame, vinha-lhe a seu pezar como uma
desconsolação de o vêr desapparecer! Porque nunca
mais voltaria a Portugal, o Castro!... E de repente
uma idéa atravessou-a, que a fez vibrar toda, erguer-se
direita, muito pallida.—Se na vespera da
partida d'elle, Santo Deus! se na vespera ella consentisse!...
Oh! era horrivel! Nem pensar em tal!...
Mas pensou—e sentia-se toda fraca contra uma
tentação crescente, que se lhe enroscava na alma
com caricias persuasivas. É que então estava salva!
Dava seiscentos mil reis a Juliana! E o demonio
iria morrer para longe!
E elle, o homem, tomaria o paquete! Não teria
de córar diante d'elle; o seu segredo ia para o estrangeiro,
tão perdido como se fosse para o tumulo!—E,
além d'isso, se o Castro tinha uma paixão
por ella, era bem possivel que lhe emprestasse, sem
condições!...
Bom Deus! No dia seguinte podia ter alli na algibeira
do seu roupão as notas, o ouro... Porque
não?—Porque não? E vinha-lhe um desejo ancioso
de se libertar, de viver feliz, sem agonias, sem martyrios...
Voltou ao quarto. Pôz-se a remexer no toucador,
[471]
olhando de lado Jorge que se vestia... A presença
d'elle deu-lhe logo um remorso; ir pedir a um homem
dinheiro, consentir nos seus olhares lascivos,
nas suas palavras intencionaes!... Que horror!—Mas
já subtilisava. Era por Jorge, era por elle! Era
para lhe poupar o desgosto de
saber! Era para o poder
amar livremente, toda a vida, sem receios, sem
reservas...
Durante todo o almoço esteve calada. O rosto
sympathico de Jorge enternecia-a; o
outro parecia-lhe
medonho, odiava-o já!...
Quando Jorge sahiu ficou muito nervosa. Ia á janella;
o sol parecia-lhe adoravel, a rua attrahia-a.—Porque
não? Porque não?
A voz de Juliana, muito aspera, fallou então nas
escadas da cozinha; e aquelle cantado odioso decidiu-a
bruscamente.
Vestiu-se com cuidado: era mulher, quiz parecer
bonita.—E chegou toda esbaforida a casa de Leopoldina,
quando dava meio dia a S. Roque.
Encontrou-a vestida, esperando o almoço. E tirando
immediamente o chapéo, installando-se no sophá,
explicou muito claramente a Leopoldina a sua
resolução. Queria o dinheiro do Castro. Emprestado
ou dado, queria o dinheiro!... Estava n'uma afflicção,
devia valer-se de tudo!... Jorge queria despedir a
mulher... Tinha medo d'uma vingança d'ella... Queria
dinheiro, alli estava!
—Mas assim de repente, filha!—disse Leopoldina,
pasmada do seu olhar decidido.
[472]
—O Castro vai-se ámanhã. Vai para Bordeus,
para o inferno! É necessario fazer alguma
cousa, já!
Leopoldina lembrou escrever-lhe.
—O que quizeres... Eu aqui estou!
A outra sentou-se devagar á mesa, escolheu uma
folha de papel, e, com o dedinho no ar, a cabeça de
lado, começou a escrevinhar.
Luiza passeava pelo quarto, nervosa. Tinha agora
uma resolução teimosa, que a presença de Leopoldina
fortificava! Divertia-se, aquella, dançava, ia ao
campo, gozava, vivia, sem ter como ella uma tortura
a minar-lhe, a estragar-lhe a vida! Ah! não voltaria
para casa sem levar na algibeira em boas libras o
resgate, a salvação! Ainda que tivesse de ser vil como
as do Bairro Alto! Estava farta das humilhações,
dos sustos, das noites cortadas de pesadêlos!... Queria
saborear a vida, que diabo! o seu amor, o seu
jantar, sem cuidados, com o coração contente!
—Vê lá—disse Leopoldina, lendo:
«Meu caro amigo.
«Desejo absolutamente fallar-lhe. É um negocio
grave. Venha logo que possa. Talvez me agradeça.
Espero-o até ás tres horas, o mais tardar.
«Com toda a estima
Sua amiga
Leopoldina».
[473]
—Que te parece?
—Horrivel! Mas está bem... Está muito bem!
Risca-lhe o
talvez me agradeça. É melhor.
Leopoldina copiou o bilhete, mandou-o pela Justina,
n'um trem.
—E agora vou almoçar, que me não tenho nas
pernas.
A sala de jantar dava para um saguão estreito.
As paredes estavam cobertas d'uma pintura medonha,
em que grandes manchas verdes semelhavam
collinas, e linhas azues ferretes representavam lagos.
Um armario, no angulo da parede, servia de guarda-louça.
As cadeiras de palhinha tinham almofadinhas
de paninho vermelho; e na toalha havia nodoas do
café da vespera.
—D'uma cousa pódes tu ter a certeza—dizia
Leopoldina, bebendo grandes goles de chá—é que
o Castro é um homem p'ra um segredo!... Se te
emprestar o dinheiro, que empresta, d'aquella bocca
não sahe uma palavra. Lá n'isso é perfeito... Olha
que foi o amante da Videira annos! e nem ao Mendonça,
que é o seu intimo, disse uma palavra. Nem
uma allusão! É um poço.
—Que Videira?—perguntou Luiza.
—Uma alta, de nariz grande, que tem um
landau.
—Mas passa por uma mulher tão séria...
—Já tu vês!—E com um risinho:—Ai ellas
passam, passam. Lá passar, passam. A questão é conhecer-lhes
os pôdres, minha fidalga!
[474]
E barrando de manteiga grandes fatias de pão,
pôz-se a fallar complacentemente dos escandalos de
Lisboa, a desdobrar o
sudario: citava nomes, especialidades,
as que depois de terem «feito o diabo»,
gastam, n'uma devoção tardia, o resto d'uma velha
sensibilidade; que é por onde ellas acabam, algumas
é pelas sacristias! As que, cançadas de certo
d'uma virtude monotona, preparam habilmente o seu
«fracasso» n'uma estação em Cintra ou em Cascaes.
E as meninas solteiras! Muito pequerrucho por essas
amas, dos arredores tem o direito de lhes chamar
mamã! Outras mais prudentes, receando os resultados
do amor, refugiam-se nas precauções da libertinagem...
Sem contar as senhoras que em vista dos
pequenos ordenados, completam o marido com um
sujeito supplementar!—Exagerava muito; mas odiava-as
tanto! Porque todas tinham, mais ou menos,
sabido conservar a exterioridade decente que ella perdera,
e manobravam com habilidade, onde ella, a
tola, tivera só a sinceridade! E em quanto ellas conservavam
as suas relações, convites para
soirées, a
estima da côrte,—ella perdera tudo, era apenas a
Quebraes!...
Aquella conversação enervava Luiza; n'uma tal
generalidade do vicio parecia-lhe que o seu caso,
como um edificio n'um nevoeiro, perdia o seu relevo
cruel, se esbatia; e sentindo-o tão pouco visivel
quasi o julgava já justificado.
Ficaram caladas, vagamente entorpecidas por
aquelle sentimento d'uma forte immoralidade geral,
[475]
onde as resistencias, os orgulhos se amollecem, se
enlanguecem,—como os musculos n'uma estufa fortemente
saturada de exhalações mornas.
—Este mundo é uma historia—disse Leopoldina
erguendo-se e espreguiçando-se.
—E teu marido onde está?—perguntou Luiza
no corredor.
Fôra p'ra o Porto. Estavam á vontade, podiam
commetter crimes!
E Leopoldina, no quarto, estirando-se no canapé,
com o cigarrinho
laferme na bocca, começou
tambem a queixar-se.
Andava aborrecida ha tempos; enfastiava-se,
achava tudo seccante; queria alguma cousa de novo,
de desusado! Sentia-se bocejar por todos os poros
do seu corpo...
—E o Fernando, então?—disse distrahidamente
Luiza, que a cada momento se aproximava da janella.
—Um idiota!—respondeu Leopoldina com um
movimento d'hombros, cheio de saciedade e de desprezo.
Não, realmente tinha vontade d'outra cousa, não
sabia bem de quê! Ás vezes lembrava-se fazer-se
freira! (E estirava os braços com um tedio molle).
Eram tão semsaborões todos os homens que conhecia!
tão corriqueiros todos os prazeres que encontrára!
Queria uma outra vida, forte, aventurosa, perigosa,
que a fizesse palpitar—ser mulher d'um
salteador, andar no mar, n'um navio pirata... Em
[476]
quanto ao Fernando, o amado Fernando dava-lhe
nauseas! E outro que viesse seria o mesmo. Sentia-se
farta dos homens! Estava capaz de tentar
Deus!
E, depois d'escancarar a bocca, n'um bocejo de
fera engaiolada:
—Aborreço-me! Aborreço-me!... Oh céos!
Ficaram um momento caladas.
—Mas, que se lhe ha-de dizer, a esse homem?—perguntou
de repente Luiza.
Leopoldina, soprando o fumo do cigarro, com a
voz muito preguiçosa:
—Diz-se-lhe que se precisa um conto de reis,
ou seiscentos mil reis... Que se lhe ha-de então dizer?
Que se lhe paga.
—Como?
Leopoldina disse, deitada, com os olhos no tecto:
—Em affecto.
—Oh! és horrivel!—exclamou Luiza, exasperada.—Vês-me
aqui desgraçada, meia douda, dizes
que és minha amiga, e estás a rir, a escarnecer...—A
sua voz tremia, quasi chorava.
—Mas tambem que pergunta tão tola! Como se
lhe ha-de pagar?... Tu não sabes?
Olharam-se um momento.
—Não, eu vou-me embora, Leopoldina!—exclamou
Luiza.
—Não sejas criança!
Um trem parou na rua. A Justina appareceu. Não
encontrára o snr. Castro em casa, estava no escriptorio.
[477]
Fôra lá, disse que vinha immediatamente.
Mas Luiza, muito pallida, tinha o chapéo na mão.
—Não—disse Leopoldina, quasi escandalisada—tu
agora não me deixas aqui com o homem! Que
lhe hei-de eu dizer?
—É horrivel!—murmurou Luiza com uma lagrima
nas palpebras, deixando cahir os braços, solicitada
pelo interesse, enleada pela vergonha, muito
infeliz!
—É como quem toma oleo de ricino—disse a
outra com um gesto cynico. E acrescentou, vendo o
horror de Luiza:—Que diabo! onde é que está a
deshonra, em pedir dinheiro emprestado? Todo o
mundo pede...
N'aquelle momento outra carruagem, a largo trote,
parou.
—Entra tu primeiro! falla-lhe tu primeiro!—supplicou
Luiza, erguendo as mãos para ella.
A campainha retiniu. Luiza muito tremula, muito
branca, olhava para todos os lados com um olhar
muito aberto, de susto, d'ancia, como procurando
uma idéa, uma resolução ou um recanto para se esconder!
Botas d'homem rangeram na esteira da sala
ao lado. Leopoldina então disse-lhe baixo, devagar,
como para lhe cravar
as palavras na alma, uma a uma:
—Lembra-te que d'aqui a uma hora pódes estar
salva, com as tuas cartas na algibeira, feliz, livre!
Luiza pôz-se de pé com uma decisão brusca. Foi
pôr pós d'arroz, alisou o cabello,—e entraram na
sala.
[478]
Ao vêr Luiza, o Castro teve um movimento surprehendido.
Curvou-se, com os pés pequeninos muito
juntos, inclinando a cabeça grossa, onde os cabellos
muito finos alourados já rareavam.
Sobre o seu ventresinho redondo, que a perna
curta fazia parecer quasi pansudo, o medalhão do
relogio pousava com opulencia. Trazia na mão um
chicote, cujo cabo de prata representava uma Venus
retorcendo os braços. A pelle tinha um rubor prospero;
o bigode farto, terminava em pontas agudas,
empastadas em cera mostacha, d'um aspecto napoleonico.
E os seus oculos de ouro tinham um ar authoritario,
bancario, amigo da Ordem. Parecia contente
da vida como um pardal muito farto.
Com que! Era necessario mandal-o chamar, para
que se lhe pozesse a vista em cima,—começou logo
Leopoldina. E depois de o apresentar a Luiza «sua
intima, sua amiga de collegio»:
—Que tem feito, porque não tem apparecido?
O Castro repoltreou-se n'uma cadeira de braços,
e batendo com o chicote nas botas, desculpou-se
com os preparativos da partida...
—Sempre é verdade? Deixa-nos?
O Castro curvou-se:
—Além d'amanhã. No
Orenoque.
—Então d'esta vez os jornaes não mentiram. E
com demora?
—
Per omnia sæcula sæculorum.
Leopoldina pasmava. Deixar Lisboa! Um homem
tão estimado, que se podia divertir tanto!—Pois
[479]
não é verdade?—disse voltando-se para Luiza, para
a tirar do seu silencio embaraçado.
—Com certeza—murmurou ella.
Estava sentada á beira da cadeira, como assustada,
prompta a fugir. E os olhares do Castro, insistentes
por traz dos reflexos dos oculos, incommodavam-na.
Leopoldina reclinára-se no sophá e ameaçando-o
com o dedo erguido:
—Ah! Ahi n'essa ida p'ra França anda historia
de saias!
Elle negou frouxamente, com um sorriso fatuo.
Mas Leopoldina não achava as francezas bonitas—o
que era é que tinham muito
chic, muita
animação...
O Castro declarou-as adoraveis. Sobretudo para a
estroinice! Ah! conhecia-as bem! Emfim, lá como
mães de familia não dizia. Mas para uma cêa, para
um bocado de
can-can não havia outras...—Affirmava-o
com convicção, pois, como os burguezes «da
sua roda», avaliava doze milhões de francezas por
seis prostitutas de Café Concerto,—que tinha pago
caro e enfastiado immenso!
Leopoldina, para o lisonjear, chamou-lhe
estroina!
Elle sorria, deliciando-se, afiando as pontas do
bigode:
—Calumnias, calumnias...—murmurava.
E Leopoldina voltando-se para Luiza:
—Comprou uma quinta magnifica em Bordeus,
um palacio!...
[480]
—Uma choupana, uma choupana...
—E naturalmente vai dar festas magnificas!...
—Modestos chás, modestos chás...—dizia, repoltreando-se.
E riam ambos d'um modo muito affectado.
O Castro curvou-se então para Luiza:
—Tive o gosto de vêr v. exc.
a ha tempos, na
rua do Ouro...
—Creio que tambem me lembro—respondeu
ella.
E ficaram calados. Leopoldina tossiu, sentou-se
mais á beira do sophá, e depois de sorrir:
—Pois eu mandei-o chamar porque temos uma
cousa a dizer-lhe.
Castro inclinou-se. O seu olhar não deixava Luiza,
percorria-a com atrevimento, palpava-a.
—Aqui está o que é. Eu vou direita ás cousas,
sem preambulos.—E teve outro risinho.—Aqui a
minha amiga está n'um grande apuro, e precisa um
conto de reis.
Luiza acudiu com a voz quasi sumida:
—Seiscentos mil reis...
—Isso não importa—disse Leopoldina com uma
indifferença opulenta—estamos a fallar com um millionario!
A questão é esta: quer o meu amigo fazer
o favor?
O Castro endireitou-se na cadeira, devagar, e
com uma voz arrastada, ambigua:
—Certamente, certamente...
Leopoldina ergueu-se logo:
[481]
—Bem. Eu tenho alli no quarto a costureira á
espera. Deixo-os fallar do negocio.
E á porta do quarto, voltando-se para o Castro,
ameaçando-o com o dedo, a voz muito alegre:
—Que o juro seja pequeno, hein?
E sahiu, rindo.
O Castro disse logo a Luiza, curvando-se:
—Pois minha senhora, eu...
—A Leopoldina contou-lhe a verdade, estou
n'uma grande afflicção de dinheiro. E dirijo-me a
si... São seiscentos mil reis... Procurarei pagar,
o mais depressa...
—Oh minha senhora!—fez o Castro com um
gesto generoso. Começou então a dizer, que comprehendia
perfeitamente, todo o mundo tinha os
seus embaraços... Lamentava que a não tivesse
conhecido ha mais tempo... Sempre tivera uma
grande sympathia por ella... Uma grande sympathia!...
Luiza calava-se, com os olhos baixos. Elle foi
pousar o chicote na jardineira, veio sentar-se no sophá
junto d'ella. Vendo o seu ar embaraçado, pediu-lhe
que não se affligisse. Valia lá a pena por
questões de dinheiro! Tinha o maior prazer em servir
uma senhora nova, tão interessante... Fizera
perfeitamente em se dirigir a elle. Conhecia casos
em que senhoras se dirigiam a agiotas que as exploravam,
eram indiscretos...—E fallando tinha-lhe
tomado a mão; o contacto d'aquella pelle appetecida,
exaltando-lhe o desejo brutalmente, fazia-o
[482]
respirar alto; Luiza, toda constrangida, nem retirára
a mão; e Castro abrazado—com uma verbosidade
um pouco rouca, promettia
tudo,
tudo o que ella
quizesse!... Os seus olhinhos arregalados devoravam-lhe
o pescoço muito branco.
—Seiscentos mil reis..., o que quizer!...
—E quando?—disse Luiza muito perturbada.
Elle via-lhe o seio arfar—e sob a irrupção d'um
desejo brutal:
—Já!
Agarrou-a pela cinta, atirou-lhe um beijo voraz,
quasi lhe mordeu a face.
Luiza ergueu-se com o salto d'uma mola d'aço.
Mas o Castro escorregára sobre o tapete, de
joelhos; e, prendendo-lhe sofregamente os vestidos:
—Dou-lhe o que quizer, mas sente-se! Ha annos
que tenho uma paixão por si. Escute!—Os seus
braços tremulos subiam; envolviam-na, e o que sentia
das suas fórmas inflammava-o.
Luiza, sem ruido, repellia-lhe as mãos, recusava-se.
—O que quizer! Mas ouça!—balbuciava elle
puxando-a violentamente para si. A concupiscencia
brutal dava-lhe uma respiração de touro.
Então, com um puxão desesperado ás saias, ella
soltou-se, e recuando afflicta:
—Deixe-me! Deixe-me!
O Castro ergueu-se, a bufar, e com os dentes
cerrados, os braços abertos, rompeu para ella.
[483]
Diante d'aquella luxuria bestial, Luiza, indignada,
agarrou instinctivamente de sobre a jardineira o chicote
e deu-lhe uma forte chicotada na mão.
A dôr, a raiva, o desejo enfureceram-no.
—Seu diabo!—rosnou, rangendo os dentes.
Ia-se arremessar. Mas Luiza então, erguendo o
braço, revolvida por uma cólera phrenetica, atirou-lhe
chicotadas rapidamente pelos braços, pelos hombros—muito
pallida, muito séria, com uma crueldade
a reluzir-lhe nos olhos, gozando uma alegria
de desforra em fustigar aquella carne gorda.
O Castro, assombrado, defendia-se vagamente,
com os braços diante da cara, recuando; de repente,
topou contra a jardineira; o candieiro de porcelana
oscillou, desequilibrou-se, rolou no chão, com
estilhaços de louça, e uma nodoa escura d'azeite
alastrou-se na esteira.
—Ahi está! Vê?—disse Luiza toda a tremer,
apertando ainda convulsivamente o chicote.
Leopoldina ao barulho correu, do quarto.
—Que foi? Que foi?
—Nada, estavamos a brincar—disse Luiza.
Atirou o chicote para o chão, sahiu da sala.
O Castro, livido de raiva, tinha agarrado o chapéo;
e fixando terrivelmente Leopoldina:
—Agradecido! Conte commigo quando quizer!
—Mas que foi? Que foi?
—Até á vista!—rugiu o Castro.—E indo apanhar
o chicote, sacudindo-o ameaçadoramente para
o quarto, onde Luiza entrára:
[484]
—Grande bebeda!—murmurou com rancor.
E sahiu, atirando com as portas.
Leopoldina, attonita, veio encontrar Luiza no
quarto a pôr o chapéo, com as mãos ainda tremulas,
os olhos muito brilhantes, satisfeita.
—Chegou-me cá uma cousa, e enchi-lhe a cara
de chicotadas—disse ella.
Leopoldina esteve um momento a olhal-a petrificada.
—Bateste-lhe?...—E de repente desatou a rir,
convulsivamente.—O Castro d'oculos, o Castro coberto
de chicotadas! O Castro a levar uma coça!—Atirou-se
para cima da
chaise-longue, rolou-se; suffocava.—Até
já tinha uma pontada, Jesus! O Castro!...
Vir a uma casa amiga, levar o tiro de
seiscentos mil reis e ser corrido a chicote!...
Com o seu proprio chicote!... Oh! era para estourar!...
—O peor foi o candieiro—disse Luiza.
Leopoldina ergueu-se, de salto.
—E o azeite! Ai que agouro!—Correu á sala.
Luiza veio encontral-a diante da nodoa escura,
com os braços cruzados, como se visse, toda pallida,
catastrophes avisinharem-se.—Que agouro,
Santo Deus!
—Deita-lhe sal depressa.
—Faz bem?
—Quebra o agouro.
Leopoldina correu a buscar sal; e de joelhos,
salgando a nodoa:
[485]
—Ai! Nossa Senhora permitta que não haja nada
mau! Mas que caso este, que caso este! E agora,
filha?
Luiza encolheu os hombros.
—Eu sei cá! Soffrer!...
XIII
N'essa semana, uma manhã, Jorge, que se não
recordava que era dia de gala, encontrou a secretaria
fechada, e voltou para casa ao meio dia. Joanna
á porta conversava com a velha que comprava os ossos;
a cancella em cima estava aberta; e Jorge, chegando
despercebido ao quarto, surprehendeu Juliana
commodamente deitada na
chaise-longue, lendo
tranquillamente o jornal.
Ergueu-se, muita vermelha, mal o viu, balbuciou:
—Peço desculpa, tinha-me dado uma palpitação
tão forte...
—Que se pôz a lêr o jornal, hein?...—disse
Jorge, apertando instinctivamente o castão da bengala.—Onde
está a senhora?
[488]
—Deve estar p'ra a sala de jantar—disse Juliana,
que se pôz logo a varrer, muito apressada.
Jorge não encontrou Luiza na sala de jantar; foi
dar com ella no quarto dos engommados, despenteada,
em roupão de manhã, passando roupa, muito
applicada e muito desconsolada.
—Tu estás a engommar?—exclamou.
Luiza córou um pouco, pousou o ferro.—A Juliana
estava adoentada, juntára-se uma carga de
roupa...
—Dize-me cá, quem é aqui a criada e quem é
aqui a senhora?
A sua voz era tão aspera, que Luiza fez-se pallida,
murmurou:
—Que queres tu dizer?
—Quero dizer que te venho encontrar a ti a engommar,
e que a encontrei a ella lá em baixo muito
repimpada na tua cadeira, a lêr o jornal.
Luiza, atarantada, abaixou-se sobre o cesto da
roupa lavada, começou a remexer, a desdobrar, a
sacudir com a mão tremula...
—Tu não pódes fazer idéa do que aqui vai por
fazer—ia dizendo.—É a limpeza, são os engommados,
é um servição. A pobre de Christo tem estado
doente...
—Pois se está doente que vá p'ra o hospital!
—Não, tambem não tens razão!
Aquella insistencia em defender a outra, que se
repoltreava em baixo na sua
chaise-longue, exasperou-o:
[489]
—Dize cá, tu dependes d'ella? Havia de dizer
que tens medo d'ella!
—Ah! se estás com esse genio!—fez Luiza com
os beiços tremulos, uma lagrima já nas palpebras.
Mas Jorge continuava, muito zangado:
—Não, essas condescendencias hão-de acabar
por uma vez! Vêr aquelle estafermo, com os pés
p'ra cova, a prosperar em minha casa, a deitar-se
nas minhas cadeiras, a passear, e tu a defendel-a,
a fazer-lhe o serviço, ah! não! É necessario acabar
com isso. Sempre desculpas! sempre desculpas! Se
não póde que arreie. Que vá p'ra o hospital, que vá
p'ra o inferno!
Luiza lavada em lagrimas assoava-se, soluçando.
—Bem! Agora choras. Que tens tu? Por que
choras?
Ella não respondia, n'um grande pranto.
—Porque choras, filha?—perguntou elle, com
uma impaciencia commovida, chegando-se a ella.
—Para que me fallas tu assim?—dizia, toda soluçante,
limpando os olhos.—Sabes que estou doente,
nervosa, e tens mau genio p'ra mim! O que me
sabes dizer são cousas desagradaveis.
—Cousas desagradaveis! Minha filha, eu disse-te
lá nada desagradavel!—E abraçou-a, ternamente.
Mas ella desprendeu-se, e com a voz cortada de
soluços:
—Então é algum crime estar a engommar? Por
que trabalho, por que trato das minhas cousas, zangas-te?
Querias que eu fosse uma desarranjada? A
[490]
mulher tem estado doente! Em quanto se não arranja
outra, é necessario fazer as cousas... Mas tu fallas,
fallas! P'ra me affligir!...
—Estás a dizer tolices, filha. Não estás em ti.
Eu o que não quero é que te cances!
—P'ra que dizes então que tenho medo d'ella?—E
as lagrimas recomeçavam.—Medo de quê?
Porque hei-de eu ter medo d'ella? Que desproposito!
—Pois bem, não digo. Não se falla mais na
creatura. Mas não chores... Vá, acabou-se!—Beijou-a.
E tomando-a pela cinta, levando-a dôcemente:—Vá,
deixa o ferro agora. Vem! Que criança que
tu és!
Por bondade, por consideração com os nervos de
Luiza, Jorge durante alguns dias não fallou «na
creatura». Mas pensava n'ella; e aquelle estafermo,
com os pés para a cova, em sua casa, exasperava-o.
Depois as madracices que lhe percebera, os confortos
do quarto que vira na noite em que ella desmaiára,
aquella bondade ridicula de Luiza!... Achava aquillo
estranho, irritante!... Como estava fóra de casa todo
o dia, e diante d'ella Juliana só tinha sorrisos
para Luiza, muitas attitudes de affecto, imaginava
que ella se soubera insinuar, e, pelas pequenas intimidades
de ama a criada, se tornára necessaria e
estimada. Isso augmentava a sua antipathia. E não a
disfarçava.
[491]
Luiza vendo-o ás vezes seguir Juliana com um
olhar rancoroso, tremia! Mas o que a torturava era a
maneira que Jorge adoptára de fallar d'ella com uma
veneração ironica; chamava-lhe
a illustre D. Juliana,
a minha ama e senhora! Se faltava um guardanapo
ou um copo, fingia-se espantado: «Como! a
D. Juliana esqueceu-se! Uma pessoa tão perfeita!»
Tinha gracejos que gelavam Luiza.
—A que sabia o filtro que ella te deu? Era
bom?
Luiza agora, diante d'elle, já nem se atrevia a
fallar a Juliana com um modo natural; temia os sorrisos
malignos, os ápartes:—«Anda, atira-lhe um
beijo, conhece-se na cara que estás com a vontade de
lh'o atirar!» E, receando as suspeitas d'elle, querendo
mostrar-se
independente, começou na sua presença,
a fallar a Juliana com uma dureza brusca,
muito affectada. A pedir-lhe agua, uma faca, dava á
voz inflexões d'um rancor postiço.
Juliana, muito fina, tinha percebido
tudo, e supportava,
calada.
Queria evitar toda a questão que a perturbasse
no seu conchego. Sentia-se agora muito mal, e nas
noites em que não podia dormir com afflicções asthmaticas,
punha-se a pensar com terror—se fosse
expulsa d'aquella casa, para onde iria? Para o hospital!
Tinha por isso medo de Jorge.
—Elle está morto por me pilhar em desleixo
grosso, e descartar-se de mim—dizia ella á tia Victoria—mas
[492]
não lhe hei-de dar esse gosto, ao boi
manso!
E Luiza, pasmada, vira-a pouco a pouco recomeçar
a fazer todo o serviço, com zelo, apparentemente;
e todavia ás vezes não podia, vencida pela doença;
tinha «flatos» que a faziam cahir n'uma cadeira,
arquejando, com as mãos no coração. Mas reagia.
Uma occasião mesmo vendo Luiza a passar um espanejador
pelos
consoles da sala, zangou-se:
—A senhora faz favor de se não metter no meu
serviço? Eu ainda posso! Ainda não estou na cova!
Consolava-se então com regalos de gulodice. Durante
todo o dia debicava sopinhas, croquettes, pudinzinhos
de batata. Tinha no quarto gelatina e vinho
do Porto. Em certos dias mesmo queria caldos
de gallinha á noite.
—Com o meu corpo o pago—dizia ella a Joanna—que
trabalho como uma negra! Arrazo-me!
Um dia, porém, que Jorge se irritára mais com
a figura amarellada de Juliana, e que estava nervoso,
ao achar á noite o jarro vazio e o lavatorio sem
toalha, enfureceu-se desproporcionadamente:
—Não estou para aturar estes desleixos! Irra!—gritou.
Luiza veio logo, inquieta, desculpar Juliana.
Jorge mordeu o beiço, curvou-se profundamente,
e com a voz um pouco tremula:
—Perdão! esquecia-me que a pessoa de Juliana
é sagrada! eu mesmo vou buscar agua!
Luiza então zangou-se: se havia de estar sempre
[493]
com aquelles remoques, era mandar a criada embora
por uma vez! Imaginava talvez que ella amava
de paixão a Juliana? Se a conservava é porque era
uma boa criada. Mas se ella se tornava a causa de
maus humores, de questões, se elle lhe ganhára tamanho
odio, bem, então que se fosse! Era uma sécca
aquella ironia constante...
Jorge não respondeu.
E durante a noite Luiza, sem dormir, pensava
que aquillo não podia durar! Estava farta! Aturar a
mulher, a sua tyranna, e ouvir a todo o momento
ditinhos, allusões, ah, não! era de mais! Bastava!
Elle começava a desconfiar, a bomba ia estalar! Pois
bem, ella mesma chegaria o lume ao rastilho! Ia
mandar a Juliana embora! E que mostrasse as cartas,
acabou-se! Se elle a mettesse n'um convento,
se separasse d'ella, bem! Soffreria, morreria! Tudo,
menos aquelle martyrio reles, ás picadinhas, medonho
e grotesco!
—Que tens tu?—perguntou Jorge, meio a dormir,
sentindo-a inquieta.
—Espertina.
—Coitada! Conta cento e cincoenta p'ra traz!—E
voltou-se, enrolando-se commodamente na roupa.
Ao outro dia Jorge levantára-se cedo. Devia encontrar-se
com o Alonso, o hespanhol das minas, e
jantar com elle no Gibraltar. Depois de vestido foi á
>[494]
sala de jantar—eram dez horas—e
voltou a dizer a
Luiza, com uma cortezia profunda, espaçando as palavras:—que
não estava a mesa posta! que as chavenas
do chá da vespera estavam ainda por lavar!
e que a snr.
a D. Juliana, a illustre snr.
a D. Juliana,
tinha sahido, a seu passeio!
—Eu disse-lhe hontem á noite que me fosse ao
sapateiro...—começou Luiza, que vestia o seu roupão.
—Ah, perdão!—interrompeu Jorge muito ceremoniosamente.—Esquecia-me
outra vez que se
trata de Juliana, tua ama e senhora! Perdão!
Luiza acudiu logo:
—Não. Tens razão. Tu verás! É preciso pôr um
côbro...
Subiu logo á cozinha, desesperada:
—Vossê porque não pôz a mesa, Joanna, se a
outra sahiu?
Mas a rapariga não ouvira sahir a snr.
a Juliana!
Imaginára que estava p'ra baixo, p'ra a sala! Como
ella agora é que queria fazer tudo!...
Quando Joanna trouxe o almoço d'ahi a pouco
Jorge veio sentar-se á mesa, torcendo muito nervosamente
o bigode. Levantou-se duas vezes com um
sorriso mudo para ir buscar uma colhér, o assucareiro.
Luiza via-lhe os musculos da face contrahidos:
mal podia comer, atarantada; a chavena, quando a
erguia, tremia-lhe na mão; com os olhos baixos espreitava
Jorge ás furtadellas, e o seu silencio torturava-a.
[495]
—Tu fallaste hontem que ias jantar fóra hoje...
—Vou—disse seccamente. E acrescentou:—Graças
a Deus!
—Estás de bom humor!...—murmurou ella.
—Como vês!
Luiza fez-se pallida, pousou o talher: tomou o
jornal para disfarçar uma lagrimasinha que lhe tremia
na palpebra; mas as letras confundiam-se, sentia pular
o coração. De repente a campainha tocou. Era a
outra, de certo!
Jorge, que se ia erguer, disse logo:
—Ha-de ser essa senhora. Ora, vou-lhe dizer
duas palavras...
E ficou de pé, junto á mesa, aguçando devagar
um palito.
Luiza, a tremer, levantou-se tambem:
—Eu vou-lhe fallar...
Jorge reteve-a pelo braço, e tranquillamente:
—Não, deixa-a vir. Deixa-me gozar!...
Luiza recahiu na cadeira, muito pallida.
Os tacões de Juliana soaram no corredor. Jorge
aguçava tranquillamente o seu palito.
Luiza então voltou-se para elle, e batendo as
mãos, afflicta:
—Não lhe digas nada!...
Elle fixou-a, assombrado:
—Porque?
Juliana n'este momento abriu o reposteiro.
—Então que desaforo é este, sahir e deixar tudo
por arrumar?—disse-lhe Luiza logo, erguendo-se.
[496]
Juliana, que vinha sorrindo, estacou á porta, petrificada:
apesar da sua amarellidão, uma vaga côr
de sangue espalhou-se-lhe nas feições.
—Não lhe torne a acontecer semelhante cousa,
ouviu? A sua obrigação é estar em casa pela manhã...—Mas
o olhar de Juliana, que se cravava
n'ella terrivelmente, emmudeceu-a. Agarrou no
bule com as mãos tremulas.—Deite agua n'este bule,
vá.
Juliana não se mexeu.
—Vossê não ouviu?—berrou de repente Jorge.
E atirou uma punhada á mesa, que fez saltar a
louça.
—Jorge!—gritou Luiza, agarrando-lhe no braço.
Mas Juliana fugira da sala, correndo.
—E logo, na rua!—exclamou Jorge.—Faze-lhe
as contas, e que se vá. Ah! estou farto! Nem mais
um dia! Se a torno a vêr, desfaço-a! Até que emfim!
Chegou-me a minha vez!
Foi buscar o paletot, muito excitado, e antes de
sahir, voltando á sala:
—E que se vá hoje mesmo, ouviste? Nem uma
hora mais! Ha quinze dias que a trago aqui atravessada.
P'ra a rua!
Luiza veio para o quarto quasi sem se poder suster.
Estava perdida! estava perdida! Uma multidão
d'idéas, todas extremas e insensatas, redemoinhava
[497]
no seu cerebro como um montão de folhas seccas
n'uma ventania: queria fugir, atirar-se ao rio, de
noite; arrependia-se de não ter cedido ao Castro... De
repente imaginou Jorge abrindo as cartas que Juliana
lhe entregava, lendo:
Meu adorado Bazilio! Então
uma cobardia immensa amolleceu-lhe a alma.
Correu ao quarto de Juliana. Ia supplicar-lhe que lhe
perdoasse, que ficasse, que a martyrisasse!... E
Jorge depois? Diria que a Juliana chorára, se atirára
de joelhos! Mentiria, cobril-o-hia de beijos... Era
nova, era bonita, era ardente—convencel-o-hia!
Juliana não estava no quarto. Subiu á cozinha;
estava lá, sentada, com os olhos chammejantes, os
braços nervosamente cruzados, n'uma raiva muda.
Apenas viu Luiza, deu um salto sobre os calcanhares,
e mostrando-lhe o punho, berrou:
—Olhe que a primeira vez que vossê me torna
a fallar como hoje, vai aqui tudo raso n'esta casa!
—Cale-se, sua infame!—gritou Luiza.
—Vossê manda-me calar, sua p...!—E Juliana
disse a palavra.
Mas a Joanna correu, atirou-lhe pelo queixo uma
bofetada que a fez cahir, com um gemido, sobre os
joelhos.
—Mulher!—bradou Luiza, arremessando-se sobre
a Joanna, agarrando-a pelos braços.
Juliana, assombrada, fugiu.
—Ó Joanna! ó mulher! que desgraça, que escandalo!—exclamava
Luiza com as mãos apertadas
na cabeça.
[498]
—Racho-a!—dizia a rapariga com os dentes
cerrados, os olhos como brazas—racho-a!
Luiza andava em volta da mesa da cozinha, automaticamente,
pallida como a cal, repetindo, toda a
tremer:
—O que vossê foi fazer, mulher! o que vossê
foi fazer!
A Joanna ainda toda revolvida de sua colera, com
o rosto manchado de vermelho, remexia furiosamente
as panellas.
—E se ella me diz uma palavra, acabo-a, aquella
bebeda! Acabo-a!
Luiza desceu ao quarto. No corredor sahiu-lhe Juliana,
com a cuia á banda, as dedadas escarlates na
face, medonha.
—Ou aquella desavergonhada vai já p'ra a rua—gritou
ella—ou eu vou-me pôr lá em baixo na
escada, e quando o seu homem vier, mostro-lhe tudo!...
—Pois mostre, faça o que quizer!—disse Luiza,
passando, sem a olhar.
Fôra uma desesperação, um odio que a tinham
decidido. Mais valia acabar por uma vez!...
Sentia então como um allivio doloroso, em vêr o
fim do seu longo martyrio! Havia mezes que elle
durava. E pensando em tudo o que tinha feito e que
tinha soffrido, as infamias em que chafurdára e as
humilhações a que descera, vinha-lhe um tedio de
si mesma, um nojo immenso da vida. Parecia-lhe
que a tinham sujado e espesinhado; que n'ella nem
[499]
havia orgulho intacto, nem sentimento limpo; que
tudo em si, no seu corpo e na sua alma, estava enxovalhado,
como um trapo que foi pisado por uma
multidão, sobre a lama. Não valia a pena luctar por
uma vida tão vil. O convento seria já uma purificação,
a morte uma purificação maior...—E onde estava
elle, o homem que a desgraçára? Em Paris, retorcendo
a guia dos bigodes, chalaceando, governando
os seus cavallos, dormindo com outras! E ella
morria alli, estupidamente! E quando lhe escrevera
a pedir-lhe que a salvasse, nem uma palavra de resposta;
nem a julgára digna do meio tostão da estampilha!
O que elle lhe dizia pelas terras da Polvora
acima, n'aquelle
coupé:—Dar-lhe-hia toda a
sua vida, viveria á sombra das suas saias! O infame!
Já tinha talvez no bolso o bilhete da passagem!
Em quanto ella fôra a mulher alegre, que vem, despe
o corpete, mostra um lindo collo—então bem,
prompto! Mas teve uma difficuldade, chorou, soffreu—ah!
não, isso não! És um bello animal que me
dás um grande prazer—perfeitamente, tudo o que
quizeres: mas tornas-te uma creatura dolorida que
precisa consolações, talvez uns poucos de centos de
mil reis—então boas noites, cá vou no paquete!
Oh que estupida que é a vida! Ainda bem que a
deixava!
Foi-se encostar á janella. Estava um dia muito
azul, muito dôce. O sol punha grandes claridades de
um dourado ligeiro sobre as paredes brancas, sobre
a calçada. E havia no ar uma suavidade avelludada.
[500]
O Paula, em chinellas de tapete, aquecia-se á porta
do estanque. Então, diante do lindo ar d'inverno, enterneceu-se.
Todos eram felizes n'aquella manhã de
rosas, só ella soffria, pobre d'ella! E ficou a olhar,
como esquecida n'uma vaga saudade, com uma lagrima
na palpebra... De repente viu Juliana atravessar
a rua, dobrar a esquina,—e d'ahi a pouco
voltar com um gallego, velho e pesado, que trazia
o seu sacco ao hombro.
Ia-se embora!—pensou Luiza.—Mandava pôr
fóra os bahus! E depois? Remettia as cartas a Jorge,
ou entregava-lh'as ella mesma, no portal! Santo
Deus!—E parecia-lhe vêr Jorge apparecer no quarto,
livido, com as cartas na mão!...
Veio-lhe um terror allucinado: não queria perder
o seu marido, o seu Jorge, o seu amor, a sua
casa, o seu homem! Apossou-se d'ella a revolta da
femea contra a viuvez: aos vinte e cinco annos ir
murchar para um convento! Não, c'os diabos!
Foi direita ao quarto de Juliana.
—Vem vêr se lhe levo alguma cousa?—gritou
logo a outra furiosa.
Sobre a cama estava roupa branca espalhada,
pelo chão botinas embrulhadas em jornaes velhos.
—E ainda cá me ficam quatro camisas, dous pares
de calcinhas, tres pares de meias, seis punhos
na lavadeira. Fica ahi o rol. E quero as minhas contas!...
—Escute, Juliana, não se vá.—Mas a voz desappareceu-lhe,
as lagrimas saltaram-lhe dos olhos.
[501]
Juliana poz-se a olhar para ella d'alto, triumphando,
com uma botina de duraque em cada mão.
—É mandar aquella desavergonhada embora, e
está tudo acabado!—E com uma voz aguda, batendo
as solas das botinas:—Fica tudo como d'antes,
na paz do Senhor!
Uma alegria extraordinaria accendia-lhe o olhar.
Vingava-se! fazia-a chorar! expulsava a
outra! e
não perdia os seus commodos!
—É pôr a bebeda na rua! É pôl-a na rua!
Luiza curvou os hombros, foi á cozinha devagar;
os degraus da escada pareciam-lhe immensos, infindaveis.
Deixou-se cahir n'um banco, e limpando os
olhos:
—Joanna, venha cá, escute, vossê não póde
continuar na casa...
A rapariga ficou a olhar para ella, espantada.
—O que a Juliana disse foi n'um repente... Tem
estado a chorar, a arrepender-se. É a criada mais
antiga. O senhor estima-a muito...
—Então a senhora manda-me embora? Então a
senhora manda-me embora?
Luiza insistiu, baixo, envergonhada:
—Foi um repente, tem estado a pedir perdão...
—Eu foi para defender a senhora!—exclamou
a rapariga, abrindo os braços, afflicta.
Luiza sentiu-se indigna; e impaciente, para acabar:
—Bem, Joanna, não estejamos com mais. Eu é
que sou a dona da casa... Vou-lhe fazer as contas.
[502]
—Olha que pago este!—gritou Joanna, então,
desesperada. E com uma resolução, batendo o pé:—Pois
o senhor é que ha-de dizer! Eu vou dizer
tudo ao senhor! Hei-de-lhe contar tudo o que se passou!
A senhora não tem razão!...
Luiza olhava-a, estupida. Agora era aquella! Era
d'aquella rapariga, teimosa na sua justiça, que vinha
o desastre! Era de mais! Veio-lhe um terror sobrenatural,
como um espanto da consciencia, e apertando
as fontes nas mãos abertas:
—Que expiação! Que expiação, Santo Deus!
De repente, como desvairada, agarrou Joanna
pelos braços, e fallando-lhe junto do rosto:
—Joanna, vá-se pelo amor de Deus, vá-se! Não
diga nada. Despeça-se vossê!—E perdendo inteiramente
todo o respeito proprio, cahiu de joelhos,
diante da cozinheira, soluçando:—Pelas cinco chagas
de Christo, vá, Joanna, minha rica Joanna, vá.
Peço-lhe eu, Joanna! Pelo amor de Deus!
A rapariga, assombrada, rompeu n'um choro estridente.
—Vou, sim, minha senhora!... vou, sim, minha
rica senhora!
—Sim, Joanna, sim. Eu dou-lhe alguma cousa.
Vossê bem vê... Não chore... Espere...
Desceu ao quarto correndo, tirou da gaveta duas
libras das suas economias, voltou, galgando os degraus,
metteu-lh'as na mão, dizendo-lhe baixo:
—Faça uma trouxa, eu ámanhã lhe mandarei o
bahu.
[503]
—Sim, minha senhora—soluçava a rapariga,
babada de dôr—sim, minha rica senhora!
Luiza veio deixar-se cahir de bruços sobre a sua
chaise-longue, n'um choro convulsivo tambem, desejando
a morte, pedindo, n'um terror, piedade a
Deus!
Mas a voz aspera de Juliana disse bruscamente á
porta:
—Então em que ficamos?
—A Joanna vai-se. Que quer mais?
—Que sáia já!—disse a outra imperiosamente.—Que
o jantar o faço eu. Por hoje, já se vê!
As lagrimas de Luiza seccavam-se, de raiva.
—E a senhora agora ouça!
O tom de Juliana era tão insultante, que Luiza
ergueu-se, como ferida.
E Juliana, ameaçando-a, d'alto, com o dedo erguido:
—E a senhora agora é andar-me direita, senão
eu lh'as cantarei!...
E voltou as costas, batendo os tacões.
Luiza olhou em roda, como se um raio tivesse
atravessado o quarto; mas tudo estava immovel e
correcto; nem uma prega das cortinas se movera, e
os dous pastorinhos de porcelana sobre o toucador
sorriam pretenciosamente.
Então tirou o roupão violentamente, passou um
[504]
vestido sem apertar o corpete, vestiu por cima um
casaco largo d'inverno, atirou o chapéo para a cabeça
despenteada, sahiu, desceu a rua tropeçando nas
saias, quasi a correr.
O Paula saltou para o meio da rua para a seguir:
viu-a parar á porta de Sebastião, e veio dizer
á estanqueira:
—Em casa do Engenheiro ha novidade!
E ficou plantado á porta com os olhos cravados
para as janellas abertas, onde as bambinellas de
reps verde cahiam com as suas pregas immoveis.
—O snr. Sebastião?—perguntava Luiza á rapariguita
sardenta, que correra a abrir a porta.
E ia entrando pelo corredor.
—Na sala—disse a pequena.
Luiza subiu; sentia sons de piano; abriu violentamente
a porta, e correndo para elle, apertando as
mãos contra o peito, n'uma voz angustiosa e sumida:
—Sebastião, escrevi uma carta a um homem, a
Juliana apanhou-m'a. Estou perdida!
Elle ergueu-se devagar, assombrado, muito branco;
viu-lhe o rosto manchado, o chapéo mal posto,
a afflicção do olhar:
—Que é? Que é?
—Escrevi a meu primo—repetiu, com os olhos
cravados n'elle, anciosamente—a mulher apanhou-me
a carta... Estou perdida!
Fez-se muito pallida, os olhos cerraram-se-lhe.
Sebastião amparou-a, levou-a meio desmaiada
para o sophá de damasco amarello. E ficou de pé,
[505]
mais descórado que ella, com as mãos nos bolsos
do seu jaquetão azul, immovel, estupido.
De repente correu fóra, trouxe um copo d'agua,
borrifou-lhe o rosto ao acaso. Ella abriu os olhos,
as suas mãos errantes apalparam em redor, fitou-o
espantada, e deixando-se cahir sobre o braço do canapé,
com o rosto escondido nas mãos, rompeu
n'um choro hysterico.
O seu chapéo cahira. Sebastião apanhou-o, sacudiu-lhe
delicadamente as flôres, pôl-o sobre a jardineira
com cuidado; e vindo nas pontas dos pés
debruçar-se junto d'ella:
—Então! então!—murmurava. E as suas mãos
tocando-lhe de leve o braço, tremiam como folhas.
Quiz dar-lhe agua para a socegar: ella recusou
com a mão, endireitou-se devagar no sophá, limpando
os olhos, assoando-se com grandes soluços.
—Desculpe, Sebastião, desculpe—dizia.—Bebeu
então um gole d'agua, ficou com as mãos no
regaço, quebrada; e, uma a uma, as suas lagrimas
silenciosas cahiam sem cessar.
Sebastião foi fechar a porta—e vindo ao pé
d'ella, com muita doçura:
—Mas então? Que foi?
Ella ergueu para elle a sua face chorosa, onde
os olhos brilhavam febrilmente; olhou-o um momento,
e deixando pender a cabeça, toda humilhada:
—Uma desgraça, Sebastião, uma vergonha!—murmurou.
—Não se afflija! Não se afflija!
[506]
Sentou-se ao pé d'ella, e baixo, com solemnidade:
—Tudo o que eu puder, tudo o que fôr necessario,
aqui me tem!
—Oh Sebastião!...—exclamou n'um impulso
de reconhecimento humilde; e acrescentou:—Acredite,
tenho sido bem castigada! O que eu tenho soffrido,
Sebastião!
Esteve um momento com os olhos cravados no
chão; e agarrando-lhe o braço de repente, com força,
as palavras romperam abundantes e precipitadas,
como os borbulhões d'uma agua comprimida que
rebenta.
—Apanhou-me a carta, não sei como, por um
descuido meu! Ao principio pediu-me seiscentos mil
reis. Depois começou a martyrisar-me... Tive de lhe
dar vestidos, roupa, tudo! Mudou de quarto, servia-se
dos meus lençoes, dos finos. Era a dona da casa.
O serviço quem o faz sou eu!... Ameaça-me todos
os dias, é um monstro. Tudo tem sido baldado, boas
palavras, bons modos... E onde tenho eu dinheiro?
Pois não é verdade? Ella bem via... O que eu tenho
soffrido! Dizem que estou mais magra, até o Sebastião
reparou. A minha vida é um inferno. Se Jorge
soubesse!... Aquella infame queria hoje dizer-lhe
tudo!... E trabalho como uma negra. Logo pela manhã
a limpar e varrer. Ás vezes tenho de lavar as
chicaras do almoço. Tenha piedade de mim, Sebastião,
por quem é, Sebastião! coitada de mim, não
tenho ninguem n'este mundo.
[507]
E chorava, com as mãos sobre o rosto.
Sebastião, calado, mordia o beiço; duas lagrimas
rolavam-lhe tambem pela face, sobre a barba. E levantando-se,
devagar:
—Mas Santo nome de Deus, minha senhora! porque
me não disse ha mais tempo?
—Ó Sebastião, podia lá! Uma vez estive para
lh'o dizer... Mas não pude, não pude!
—Fez mal!...
—Esta manhã o Jorge quiz pôl-a fóra. Embirra
com ella, percebe os desmazelos. Mas não desconfia
de nada, Sebastião!...—E desviou os olhos, muito
escarlate.—Escarnecia-me ás vezes por eu parecer
tão
apaixonada por ella... Mas esta manhã zangou-se,
mandou-a embora. Apenas elle sahiu, veio como uma
furia, insultou-me...
—Santo Deus!—murmurava Sebastião assombrado,
com a mão sobre a testa.
—Talvez não acredite, Sebastião, sou eu que
faço os despejos!...
—Mas merece a morte, essa infame!—exclamou
batendo com o pé no chão.
Deu alguns passos pesados pela sala, devagar, as
mãos nos bolsos, os seus largos hombros curvados.
Voltou sentar-se ao pé d'ella, e tocando-lhe timidamente
no braço, muito baixo:
—É necessario tirar-lhe as cartas...
—Mas como?
Sebastião coçava a barba, a testa.
—Ha-de-se arranjar—disse, por fim.
[508]
Ella agarrou-lhe a mão:
—Oh Sebastião, se fizesse isso!
—Ha-de-se arranjar.
Esteve um momento calculando—e com o seu
tom grave:
—Eu vou-me entender com ella... É necessario
que ella esteja só em casa... Podiam ir ao theatro,
esta noite.
Levantou-se lentamente, foi buscar o
Jornal do
Commercio, sobre a mesa, olhou os annuncios:
—Podiam ir a S. Carlos, que acaba mais tarde...
É o
Fausto... Podiam ir vêr o
Fausto...
—Podiamos ir vêr o
Fausto—repetiu Luiza, suspirando.
E então, muito chegados, ao canto do sophá, Sebastião
foi-lhe dizendo um plano, em palavras baixas,
que ella devorava, anciosa.
Devia escrever a D. Felicidade, para a acompanhar
ao theatro... Mandar um recado a Jorge, prevenindo-o
que o iriam buscar ao
Hotel Gibraltar...
E a Joanna? A Joanna deixára a casa. Bem. Ás nove
horas, então, Juliana estaria só.
—Vê como tudo se arranja?—disse elle, sorrindo.
Era verdade... Mas daria a mulher as cartas?
Sebastião tornou a coçar a barba, a testa:
—Ha-de dar—disse.
Luiza olhava-o quasi com ternura: parecia-lhe
vêr na sua face honesta, uma alta belleza moral. E
de pé diante d'elle, com uma melancolia na voz:
[509]
—E vai fazer isso por mim, Sebastião, por mim,
que fui tão má mulher...
Sebastião córou, respondeu encolhendo os hombros:
—Não ha más mulheres, minha rica senhora, ha
maus homens, é o que ha!
E acrescentou logo:
—Eu vou buscar o camarote. Uma boa frisa,
hein?... Uma frisasinha ao pé do palco...
Sorria, para a tranquillisar. Ella punha o chapéo,
descia o véo com pequeninos soluços tristes, que
voltavam a espaços.
No corredor encontraram a tia Joanna com os
braços abertos; beijou muito Luiza; aquella visita
era um milagre! E que bonita que estava! era a flôr
do bairro!
—Está bom, tia Joanna, está bom—disse Sebastião,
afastando-a brandamente.
Ora que não fosse mettediço! Já lá a tinha tido
mais de meia hora, tambem ella agora a queria um
bocadinho! Assim é que elle devia ter uma mulherzinha!
Uma rapariga de bem! Uma açucena!
Luiza corava, embaraçada.
E o snr. Jorge? que era feito d'elle? Ninguem o
via. E a D. Felicidade?
—Está bom, basta, tia Joanna!—fez Sebastião
impaciente.
—Olha o sofrego!... Ninguem lhe come a menina!...
Cruzes!...
Luiza sorriu; lembrou-se então de repente que
[510]
não tinha por quem mandar os bilhetes a D. Felicidade
e a Jorge, ao hotel.
Sebastião fel-a entrar logo em baixo no escriptorio:
que escrevesse, elle os mandaria: escolheu-lhe
o papel, molhando-lhe a penna—mais prompto, mais
delicado desde que a sabia infeliz. Luiza fez o bilhete
para Jorge; e, como apesar das suas afflicções,
se lembrou com terror de certo vestido verde decotado
de D. Felicidade, acrescentou n'um
P. S., no
bilhete para ella: «o melhor é vires de preto, e não
fazeres grande
toilette. Nada de decotes nem de côres
claras.»
Quando entrou em casa, viu um gallego sahindo
com a trouxasita de Joanna. E logo no corredor sentiu
a voz grossa da rapariga, que das escadas da cozinha
dizia para cima, ameaçadoramente:
—Torne eu a apanhal-a, que não me sahe viva
das mãos, sua bebeda!
—Bufa! bufa!—gritou de cima Juliana—mas
vai-te indo para o olho da rua!
Luiza escutava mordendo os beiços. Em que se
convertera a sua casa! Uma praça! Uma taberna!
—Se eu t'apanho!—rosnava a Joanna descendo.
—Rua! rua, sua porca!—gania a Juliana.
Luiza então chamou a rapariga:
—Joanna, não procure casa, venha por aqui
além d'amanhã—disse-lhe baixo.
[511]
Juliana em cima cantava a
Carta adorada, com
um jubilo estridente.
E d'ahi a pouco desceu, veio dizer, muito seccamente,
«que estava o jantar na mesa».
Luiza não respondeu. Esperou que ella subisse á
cozinha, correu á sala de jantar, trouxe pão, um
prato de marmelada, uma faca, veio fechar-se no
quarto;—e alli
jantou, a um canto da jardineira.
Ás seis horas um trem parou á porta. Devia ser
Sebastião! Foi ella mesma abrir, em bicos de pés.
Era elle, animado, vermelho, com o chapéo na mão:
trazia-lhe a chave da frisa numero dezoito...
—E isto...
Era um ramo de camelias vermelhas, rodeadas
de violetas dobradas.
—Oh Sebastião!—murmurou ella, com um reconhecimento
commovido.
—E carruagem, tem?
—Não
—Eu cá mando. Ás oito, hein?
E desceu, todo feliz de a servir. Ella seguiu-o
com o olhar que se humedecia. Foi á janella do
quarto vêl-o sahir.—Que homem! pensava. E cheirava
as violetas, voltava o ramo na mão, sentia
tambem um prazer dôce na protecção d'elle, nos seus
cuidados.
Nós de dedos bateram á porta do quarto:
—Então a senhora não quer jantar?—disse a
voz impaciente de Juliana, de fóra.
[512]
—Não.
—Mais fica!
D. Felicidade veio um pouco antes das oito. Luiza
ficou tranquilla, vendo-a com vestido preto afogado,
e o seu adereço d'esmeraldas.
—Então que é isto? Que estroinice é esta, vamos
a saber?—disse logo, muito alegre, a excellente
senhora.
Um capricho!—O Jorge tinha jantado fóra, ella
sentira-se tão só!... Dera-lhe o appetite d'ir ao theatro.
Não pudera resistir... Tinham de o ir buscar pelo
Hotel Gibraltar.
—Eu tinha acabado de jantar quando recebi o
teu bilhete. Fiquei!... E estive p'ra não vir—disse,
sentando-se, com pancadinhas muito satisfeitas nas
pregas do vestido.—Apertar-me depois de jantar!
Felizmente, não tinha comido quasi nada!
Quiz então saber o que ia. O
Fausto? Ainda bem!
De que lado era a frisa? dezoito. Perdiam a vista da
familia real, era pena!... Pois estava mais longe
d'aquella noitada de theatro!...—E
erguendo-se passeava
diante do toucador com olhares de lado, alisando
os bandós, ageitando as pulseiras, entalada
nos espartilhos, a pupilla luzidia.
Uma carruagem parou á porta.
—O trem!—disse, toda risonha.
Luiza calçando as luvas, já com a capa, olhava
[513]
em redor: o coração batia-lhe alto; nos seus olhos
havia uma febre. Não lhe faltava nada? perguntou
D. Felicidade. A chave da frisa? o lenço?
—Ai! o meu ramo!—exclamou Luiza.
Juliana ficou espantada quando a viu vestida
p'ra theatro. Foi alumiar, calada; e atirando a cancella
com uma pancada insolente:
—Não tem mesmo vergonha n'aquella cara!—rosnou.
O trem já rodava, quando D. Felicidade rompeu
a gritar, batendo nos vidros:
—Espere, pare! Que ferro, esqueceu-me o leque!
Não posso ir sem leque! Pare, cocheiro!
—Faz-se tarde, filha, dou-te o meu. Toma!—fez
Luiza impaciente.
Aquellas agitações abalavam a digestão comprimida
de D. Felicidade; felizmente, como ella dizia,
arrotava! Graças a Deus, louvada seja Nossa Senhora,
que podia arrotar!
Mas a descida do Chiado alegrou-a muito. Grupos
escuros, onde se gesticulava, destacavam ás portas
vivamente alumiadas da Casa Havaneza; os trens
passavam para o lado do Picadeiro, com um rapido
reluzir de lanternas ricas, que alumiavam as bandas
brancas dos capotes dos criados. D. Felicidade com
a sua face jubilosa á portinhola, gozava a claridade
do gaz nas vitrines, o ar d'inverno; e foi com uma
satisfação que viu o guarda-portão do
Gibraltar, de
calções vermelhos, vir com o boné na mão, á portinhola.
[514]
Perguntaram por Jorge.
E, caladas, olhavam a escada de lance decorativo
onde globos foscos derramavam uma luz dôce. D.
Felicidade, muito curiosa da «vida d'hotel», reparou
na engommadeira que entrou com um cesto de roupa;
depois n'uma senhora que lhe pareceu «estabanada»,
e que descia, vestida de
soirée, mostrando o
pé calçado n'um sapato redondo de setim branco: e
sorria de vêr sujeitos roçarem-se pelo trem, lançando
para dentro olhares gulosos.
—Estão a arder por saber quem somos.
Luiza calada apertava nas mãos o seu ramo.
Emfim Jorge appareceu no alto da escada, conversando
muito interessadamente com um sujeito magrissimo,
de chapéo ao lado, as mãos nos bolsos d'umas
calças muito estreitas, e um enorme charuto enristado
ao canto da bocca. Paravam, gesticulavam, cochichavam.
Por fim o sujeito apertou a mão de Jorge,
fallou-lhe ao ouvido, riu baixo, torcendo-se, bateu-lhe
no hombro, obrigou-o muito sériamente a aceitar
outro charuto,—e pondo o chapéo mais ao lado
foi conversar com o guarda-portão.
Jorge correu á portinhola do trem, rindo:
—Então que extravagancia é esta? Theatro, tipoias!...
Eu reclamo o divorcio!
Parecia muito jovial. Sómente tinha pena de não
estar vestido... Ficaria atraz no camarote.—E para
as não amarrotar subiu para a almofada.
XV
Passava das oito horas quando o trem parou em
S. Carlos. Um gaiato, que tossia muito, com o casaco
pregado sobre o peito por um alfinete, precipitou-se
a abrir a portinhola; e D. Felicidade sorria de
contentamento, sentindo a cauda do vestido de sêda
arrastar sobre o tapete esfiado do corredor das frisas.
O pano já estava levantado. Era á luz diminuida
da rampa, a decoração classica d'uma cella d'alchimista;
embrulhado n'um roupão monastico, com uma
abundancia hirsuta de barbas grisalhas, tremuras senis,
Fausto cantava, desilludido das sciencias, pousando
sobre o coração a mão onde reluzia um brilhante.
Um cheiro vago de gaz extravasado errava
subtilmente. Aqui e além tosses expectoravam. Havia
ainda pouca gente. Entrava-se.
[516]
Na frisa, para se collocarem, D. Felicidade e Luiza
cochichavam, com gestosinhos de recusa, olhares
supplicantes:
—Oh D. Felicidade, por quem é!
—Se estou aqui muito bem...
—Não consinto...
Emfim D. Felicidade sentou-se no lugar superior
alteando o peito. Luiza ficára atraz calçando as luvas;
em quanto Jorge arrumava os agasalhos, furioso com
o chapéo que já duas vezes rolára.
—Tem banquinho, D. Felicidade?
—Obrigada, cá o sinto.—E remexeu os pés.—Que
pena não se vêr a familia real!
Nos camarotes d'assignantes iam apparecendo os
altos penteados medonhos, enchumaçados de postiços;
peitilhos de camisas branquejavam. Sujeitos entravam
para as cadeiras devagar, com um ar gasto
e intimo, compondo o cabello. Conversava-se baixo.
Ao fundo da platéa havia um rumor desinquieto entre
moços de jaquetão; e á entrada, sob a tribuna,
viam-se, n'um apparato militar, correames polidos
de municipaes, bonés carregados de policias; e reluzindo
á luz, punhos de sabres.
Mas na orchestra correram fortes estremecimentos
metallicos, dando um pavor sobrenatural; Fausto
tremia como um arbusto ao vento; um ruido de folhas
de lata, fortemente sacudidas, estalou; e Mephistopheles
ergueu-se ao fundo, escarlate, lançando a
perna com um ar charlatão, as duas sobrancelhas
arrebitadas, uma barbilha insolente,
un bel cavalier;
[517]
e em quanto a sua voz poderosa saudava o Doutor,
as duas plumas vermelhas do gorro oscillavam sem
cessar d'um modo fanfarrão.
Luiza chegára-se para a frente; ao ruido da cadeira,
cabeças na platéa voltaram-se, languidamente;
pareceu de certo bonita, examinaram-na; ella,
embaraçada, pôz-se a olhar para o palco muito séria:—por
traz de véos sobrepostos que se levantavam,
n'uma affectação de visão, Margarida appareceu
fiando o linho, toda vestida de branco; a luz electrica,
envolvendo-a n'um tom crú, fazia-a parecer de
gesso muito caiado; e D. Felicidade achou-a tão linda
que a comparou a uma santa!
A visão desappareceu n'um tremulo de rebecas.
E depois d'uma aria, Fausto, que ficára immovel ao
fundo do palco, debateu-se um momento dentro da
tunica e das barbas, e emergiu joven, gordinho, vestido
de côr de lilaz, coberto de pôs d'arroz, compondo
o frisado do cabello. As luzes da rampa subiram:
uma instrumentação alegre e expansiva resoou: Mephistopheles,
apossando-se d'elle, arrastou-o sofrego
através da decoração. E o pano desceu rapidamente.
As platéas ergueram-se com um rumor grosso e
lento. D. Felicidade um pouco affrontada abanava-se.
Examinaram então as familias, algumas
toilettes; e
sorrindo concordaram que estava «do mais fino».
Nos camarotes conversava-se sobriamente; ás vezes
uma joia brilhava, ou a luz punha tons lustrosos
d'aza de corvo nos cabellos pretos onde alvejavam
camelias ou reluzia o aro de metal d'um pente; os
[518]
vidros redondos dos binoculos moviam-se devagar,
picados de pontos luminosos.
Na platéa, nas bancadas clareadas, sujeitos quasi
deitados namoravam com languidez; ou de pé, taciturnos,
acariciavam as luvas; velhos
dilettanti, de
lenço de sêda, tomavam rapé, caturravam; e D. Felicidade
interessava-se por duas hespanholas de verde,
que na superior immobilisavam, n'uma affectação
casta, os seus corpos de lupanar.
Um collega de Jorge magrinho e janota entrou
então no camarote: parecia animado, e perguntou
logo se não sabiam o grande escandalo? Não. E o
engenheiro, com gestos vivos das suas mãosinhas
calçadas n'umas luvas esverdeadas, contou que a
mulher do Palma, o deputado, sabiam, tinha fugido!...
—P'ra o estrangeiro?
—Qual!—E a voz do engenheiro tinha agudos
triumphantes.—Ahi é que estava o bonito. P'ra casa
d'um hespanhol que morava defronte!... Era divino!
De resto—e a sua voz tornou-se grave—estava
enthusiasmado com o baixo!
E depois de ter sorrido, olhado pelo binoculo, ficou
calado, extenuado do que dissera, batendo apenas
de vez em quando no joelho de Jorge, com um
Sim, senhor! familiar, ou um
Então que é feito?
amigavel.
Mas a campainha retinia finamente. O engenheiro
sahiu, em bicos de pés. E o pano ergueu-se
devagar na alegria da kermesse, cheia de uma luz
[519]
branca e dura. Casas acastelladas branquejavam no
pano de fundo, n'alguma collina do Rheno amiga
das vinhas. Escarranchado sobre uma pipa, o barrigudo
e folgazão rei Cambrinus ria enormemente, erguendo,
na sua attitude de taboleta gothica, a vasta
caneca emblematica da cerveja germanica. E estudantes,
judeus, reitres e donzellas, nas suas côres
vivas de paninho, moviam-se d'um modo automatico
e somnambulo, aos compassos largos da instrumentação
festiva.
A walsa então desenrolou-se languidamente, como
um fio de melodia, em espiraes suaves que ondeavam
e fugiam: Luiza seguia os pésinhos das dançarinas,
as pernas musculosas volteando no tablado; e
as saias tufadas e curtas faziam como o girar multiplicado
e reproduzido de vagos discos de cambraia.
—Que bonito!—murmurava ella, com uma felicidade
no rosto.
—D'appetite—affirmava D. Felicidade, revirando
os olhos.
Certas agudezas delicadas dos flautins enterneciam
Luiza; e a casa, Juliana, as suas miserias,
tudo lhe parecia recuado, no fundo d'uma noite esquecida.
Mas o jovial Diabo adiantava-se por entre os grupos,
e logo, com gestos aduncos e rapaces, cantou
o
Dio del oro. A sua voz arremessada affirmava,
n'um tom brutal, o poder do dinheiro; nas massas
da instrumentação passavam sonoridades claras e tilintantes
d'um remexer sofrego de thesouros; e as
[520]
notas altas finaes cahiam, d'um modo curto e secco,
como martelladas triumphantes cunhando o divino
ouro!
Luiza então viu D. Felicidade perturbar-se; e
seguindo o seu olhar negro, subitamente avivado,
descobriu na geral a calva polida do conselheiro
Accacio,—que comprimentava, promettendo generosamente,
com a mão espalmada, a sua visita proxima.
Veio, apenas o pano desceu, e felicitou-as immediatamente
por terem escolhido aquella noite: a
opera era das melhores e estava gente muito fina.
Lamentou ter perdido o primeiro acto;—ainda que
não gostasse extremamente da musica, apreciava-o
por ser muito philosophico. E, tomando da mão de
Luiza o binoculo, explicou os camarotes, disse os titulos,
citou as herdeiras ricas, nomeou os deputados,
apontou os litteratos.—Ah! conhecia bem S. Carlos!
Havia dezoito annos!
D. Felicidade, rubra, admirava-o. O Conselheiro
sentia que não podessem vêr o camarote real: a
rainha, como sempre, estava adoravel.
Sim? Como estava?
—De velludo. Não sabia se rôxo, se azul escuro.
Affirmar-se-hia, e viria dizer...
Mas quando o pano subiu, ficou sentado por traz
de Luiza começando logo a explicar—que aquella
(Siebel, colhendo flôres no jardim de Margarida) posto
que segunda dama, ganhava quinhentos mil reis
por mez...
[521]
—Mas apesar d'estes ordenadões morrem quasi
sempre na miseria—disse com reprovação.—Vicios,
cêas, orgias, cavalgadas...
A portinha verde do jardim abriu-se, e Margarida
entrou devagar, desfolhando o malmequer da legenda,
caracterisada de virgem, com as duas longas
tranças louras. Scismava, fallava só, amava: a
dôce creatura sente em volta de si o ar pesado, e
quereria bem que sua mãi voltasse!
Os olhos de Luiza encheram-se então de melancolia,
com a saudosa ballada do rei de Thule; aquella
melodia dava-lhe a vaga sensação d'um pallido
paiz d'amores espirituaes, banhado de luares frios,
longe, no Norte, junto a um mar gemente—ou de
tristezas aristocraticas, scismadas n'um terraço, sob
a sombra d'um parque...
Mas o Conselheiro preveniu-as, dizendo:
—Agora é que é! Reparem. Agora é o ponto
capital.
De joelhos, diante do cofre das joias, a dama requebrava-se,
garganteando; apertava nas mãos o
collar, extasiada; punha os brincos com denguices
delirantes; e da sua bocca muito aberta sahia um
canto trinado, d'uma crystallinidade aguda—entre
o vago
susurro da admiração burgueza.
O Conselheiro disse discretamente:
—Bravo! Bravo!
E, excitado, dissertou: aquillo era o melhor da
opera! Era alli que se via a força das cantoras...
D. Felicidade quasi tinha medo que lhe estalasse
[522]
alguma cousa na garganta. Preoccupava-se tambem
com as joias. Seriam falsas? Seriam d'ella?
—É p'ra a tentar, não é verdade?
—É um drama allemão—disse-lhe baixo o Conselheiro.
Mas Mephistopheles ia arrastando a boa Martha;
Fausto e Margarida perdiam-se nas sombras cumplices
do jardim aphrodisiaco,—e o Conselheiro observou
que todo aquelle acto era um pouco fresco.
D. Felicidade murmurou-lhe—entre reprehensiva
e extatica:
—Quantas scenas não terá tido assim, maganão!
O Conselheiro fitou-a, indignado:
—O quê, minha senhora! levar a deshonra ao
seio d'uma familia!
Luiza fez-lhe
chut, sorrindo. Interessava-se agora.
Tinha escurecido; uma facha de luz electrica enchia
o jardim d'um vago luar azulado, onde os maciços
arredondados se recortavam em pastas escuras;
e Fausto e Margarida enlaçados, quasi desfallecidos,
soltavam d'um modo expirante o seu duetto:
uma sensualidade delicada e moderna, com elances
d'um requinte devoto, arrastava-se na orchestra gemente;
o tenor esforçava-se, agarrando o peito,
com um geito morbido dos quadris, o olhar anuviado:
e desprendendo-se da languida arcada dos
violoncellos, o canto subia para as estrellas...
Al pallido chiarore
Dei astri d'oro.
[523]
Mas o coração de Luiza batia precipitadamente;
vira-se de repente sentada no divan, na sua sala,
ainda tomada dos soluços do adulterio, e Bazilio,
com o charuto ao canto da bocca, batia distrahido
no piano aquella aria—
Al pallido chiarore dei astri
d'oro. D'essa noite tinha vindo toda a sua miseria!—e
subitamente, como longos véos funebres que
descem e abafam, as recordações de Juliana, da casa,
de Sebastião, vieram escurecer-lhe a alma.
Olhou o relogio. Eram dez horas. Que se passaria?
—Estás incommodada?—perguntou-lhe Jorge.
—Um pouco.
Margarida apoiava-se, expirante de voluptuosidade,
ao rebordo da sua janellinha. Fausto corre.
Enlaçam-se. E entre as gargalhadas do Diabo e o
roncar dos rebecões—o pano desceu, pondo uma
reticencia pudica...
D. Felicidade, abrazada, quiz agua. Jorge apressou-se:
queria bolos? neve? A excellente senhora
hesitou; o
chic da neve attrahia-a, mas cohibiu-se
com terror da colica. Veio sentar-se ao fundo ao pé
de Luiza, e ficou a olhar, vagamente cançada; havia
um susurro lento; bocejava-se discretamente; e
o fumo dos cigarros, entrando, de fóra, fazia uma
nevoa apenas perceptivel que enchia a sala, ia prender-se
ao lustre, embaciando ligeiramente as luzes.
Quando Jorge sahiu o Conselheiro acompanhou-o: ia
acima tomar o seu copo de gelatina...
—É a minha cêa em dia de S. Carlos—disse.
[524]
Voltou d'ahi a pouco, limpando os beiços ao lenço
de sêda, ter com Jorge que fumava no pequeno
patamar junto á entrada das cadeiras:
—Veja isto, Conselheiro—disse-lhe logo Jorge,
indignado, mostrando a parede—que escandalo!
Tinham desenhado, com o charuto apagado sobre
a parede caiada, enormes figuras obscenas: e alguem,
prudente e amigo da clareza, ajuntára por baixo as
designações sexuaes com uma boa letra cursiva.
E Jorge, revoltado:
—E passam por aqui senhoras! Vêem, lêem!
Isto só em Portugal!...
O Conselheiro disse:
—A autoridade devia intervir de certo...—Acrescentou
com bonhomia:—São rapazes, com o
charuto. Apreciam muito esta distracção...—E sorrindo,
recordando-se:—Uma occasião mesmo, o conde
de Villa Rica, que tem graça, muita graça, insistiu
commigo, dando-me o charuto, para que eu fizesse
um desenho...—E mais baixo:—Eu dei-lhe
uma lição severa. Tomei o charuto...
—E fumou-o?
—Escrevi.
—Uma obscenidade?
O Conselheiro, recuando, exclamou com severidade:
—Jorge, conhece o meu caracter! Pois suppõe...?—E
acalmando-se:—Não, tomei o charuto e escrevi
com mão firme:
honra ao merito!
Mas a campainha retiniu, entraram no camarote.
[525]
Luiza incommodada não quiz sentar-se á frente. E
o Conselheiro, grave, tomou o seu lugar—defronte
de D. Felicidade. Foi para a nutrida senhora um
momento feliz, de um gozo requintado. Estavam
ambos,
alli, como noivos! O seu peito abundante arfava:
via-se a sahirem, mais tarde, de braço dado,
entrarem n'um
coupé estreito, pararem á porta da
casa conjugal, pisarem o tapete da alcova... Tinha
um suor á raiz dos cabellos—e vendo o Conselheiro
sorrir-lhe, amavel, com a sua calva toda luzidia
ao gaz, sentia um reconhecimento apaixonado
pela mulher de virtude que, áquella hora, no fundo
da Galliza, estava cravando agulhas n'um coração
de cera!...
Mas de repente o Conselheiro bateu na testa, arremessou-se
sobre o chapéo, sahiu impetuosamente.
Olharam-se inquietos. D. Felicidade empallideceu:
seria alguma dôr? Santo Deus! Já murmurava baixo
uma reza.
Mas viram-no entrar logo, e dizer com uma voz
triumphante:
—D'azul escuro!
Abriram grandes olhos, sem comprehender.
—Sua magestade a rainha! Tinha promettido
verifical-o, cumpri-o!
E sentou-se com solemnidade, dizendo a Luiza:
—Lamento que se esconda n'esse recanto, D.
Luiza! Na sua idade! Na flôr dos annos! Quando
tudo na vida é côr de rosa!
Ella sorriu. Estava agora muito sobresaltada. A
[526]
cada momento olhava o relogio. Sentia-se doente:
os pés arrefeciam-lhe, uma vaga febre fazia-lhe a
cabeça pesada. O seu pensamento estava na casa,
em Juliana, em Sebastião, cortado de palpites, de
esperanças, de terrores... E via, sem comprehender,
a multidão de soldados vestidos de côres mipartidas,
com armas obsoletas, que marchavam, paravam
n'uma cadencia affectada, erguendo uma poeira
subtil no tablado mal regado. Um côro vigoroso
resoava: era a marcha arrogante e festiva dos reitres
allemães, celebrando a alegria das excursões victoriosas
pelos paizes do vinho, e a posse das bolsas
mercenarias cheias de sonoros rixdales! E os
seus olhos seguiam um barbaças corpulento, que,
por cima dos gorros quadrados dos bésteiros, balançava
monotonamente um largo quadrado de paninho—a
bandeira do Santo Imperio, negra, vermelha
e d'ouro!
Mas então ergueu-se um rumor no fundo da platéa.
Vozes duras altercavam. Ordem! ordem! dizia-se.
Localistas na superior pozeram-se rapidamente
em bicos de pés na palhinha das cadeiras. Quatro policias
e dous municipaes appareceram á porta do
fundo; e depois d'uma troça, de risadas, foram levando
um moço livido, que cambaleava,—e o lado
esquerdo do seu jaquetão de pellucia estava todo
vomitado!
Mas fez-se logo silencio: o pano de fundo oscillava
um pouco, acotovellado pela sahida festiva dos
reitres e dos populares; e no palco deserto, tendo á
[527]
direita um portico oscillante de cathedral e á esquerda
a portinha triste d'uma casa burgueza, Valentim,
com uma longa pera, á beira da rampa, beijava
sofregamente uma medalha:—mas Luiza não
o escutava. Pensava com o coração confrangido: que
fará a esta hora Sebastião?
Sebastião, ás nove horas, por um nordeste agudo
que torcia as luzes do gaz dentro dos candieiros,
dirigia-se devagar a casa d'um commissario de policia,
seu primo afastado, o Vicente Azurara. Uma
velha servente, engelhada como uma maçã raineta,
levou-o ao quarto escolastico, «onde o snr. commissario
estava a cozer uma grande constipação»: encontrou-o
com um gabão pelos hombros, os pés embrulhados
n'um cobertor, tomando
grogs quentes, e
lendo o
Homem dos tres calções. Apenas Sebastião
entrou tirou do nariz adunco as grandes lunetas, e
erguendo para elle os olhos pequeninos, chorosos
do defluxo, exclamou:
—Estou com um diabo d'uma constipação ha
tres dias, que me não quer largar...—E rosnou
algumas pragas, passando a mão magra e nodosa
sobre uma face trigueira, de linhas duras, a que um
espesso bigode grisalho dava ferocidade.
Sebastião lamentou-o muito: não admirava com
a estação que ia!... Aconselhou-lhe agua sulfurica
com leite fervido.
[528]
—Eu, se isto não despega—disse o commissario
rancorosamente—atiro-lhe ámanhã p'ra dentro
com meia garrafa de genebra; e se não fôr por bem,
ha-de ir á força... E que ha de novo?
Sebastião tossiu, queixou-se d'andar tambem
adoentado, e chegando a cadeira para ao pé do primo
Vicente, pondo-lhe a mão sobre o joelho:
—Ó Vicente, tu, se eu te pedisse um policia p'ra
me acompanhar cá p'ra uma cousa, só p'ra metter
medo, só p'ra fazer que uma pessoa restitua o
que tirou, tu davas ordem, hein?
—Ordem p'ra quê?—perguntou lentamente o
Vicente com a cabeça baixa, os olhinhos avermelhados
em Sebastião.
—Ordem p'ra me acompanhar, p'ra se mostrar.
É só p'ra se mostrar. É um caso exquisito... P'ra
metter medo... Tu sabes que eu não sou capaz...
É p'ra que uma pessoa restitua o que tirou. Sem
fazer escandalo...
—Roupas? Dinheiro?
E o commissario cofiava reflectidamente o bigode
com os seus longos dedos magros, muito queimados
do cigarro.
Sebastião hesitou:
—Sim. Roupas, cousas... É p'ra não haver escandalo...
Tu percebes...
O Vicente murmurou com um ar profundo, fixando-o:
—Um policia p'ra se mostrar...
Escarrou ruidosamente. E franzindo a testa:
[529]
—Não é cousa de politica?
—Não!—fez Sebastião.
O commissario embrulhou mais os pés no cobertor,
rolou em redor os olhos, ferozmente:
—Nem toca com gente grauda?
—Qual!
—Um policia p'ra se mostrar...—ruminava o
Vicente.—Tu és um homem de bem... Dá cá aquella
pasta de cima da commoda.
Tirou um papel pautado, examinou-o, acavallando
a luneta no nariz, meditou com a mão em garra sobre
a testa:
—O Mendes... Serve-te o Mendes?
Sebastião, que não conhecia o Mendes, acudiu
logo:
—Sim, quem quizeres. É só p'ra se mostrar...
—O Mendes. É um homemzarrão. É serio, foi da
Guarda.
Fez-lhe aproximar o tinteiro; escreveu devagar a
ordem; releu-a duas vezes; cortou os
tt, seccou-a
á chaminé do candieiro; e dobrando-a com solemnidade:
—Á segunda divisão!
—Obrigado, Vicente. É um grande favor... Obrigado.
E agasalha-te, homem! E não te esqueça:
agua sulfurica da pharmacia Azevedo na rua de S.
Roque: meia chavena de leite fervido... E obrigado.
Não queres nada, hein?
—Não. Dá uma placa ao Mendes. É serio, foi da
Guarda!
[530]
E acavallando as lunetas retomou o
Homem dos
tres calções.
Sebastião d'ahi a meia hora, seguido do robusto
Mendes, que marchava militarmente, com os braços
um pouco arqueados, encaminhava-se para casa de
Jorge. Não tinha ainda um plano definido. Calculava
naturalmente que Juliana vendo, áquella hora da noite,
o policia com o seu terçado, se aterraria, imaginaria
logo a Boa Hora, o Limoeiro, a costa d'Africa,
entregaria as cartas, pediria misericordia! E depois?
Pensava vagamente em lhe pagar a passagem para
o Brazil, ou dar-lhe quinhentos mil reis para ella se
estabelecer longe, na provincia... Veria. O essencial
era aterral-a!
Juliana, com effeito, depois d'abrir a porta, apenas
viu subir, atraz de Sebastião, o policia, fez-se
muito amarella, exclamou:
—Credo! Que temos nós?
Estava embrulhada n'um chale preto, e o candieiro
de petroleo, que ella erguia, prolongava na parede
a sombra disforme da cuia.
—Ó snr.
a Juliana, faça favor d'accender luz na
sala—disse Sebastião, tranquillamente.
Ella fixava no policia um olhar faiscante e inquieto.
—Ó senhor, que aconteceu? Credo! Os senhores
[531]
não estão em casa. Eu se soubesse nem tinha aberto...
Ha alguma novidade? Olha o proposito!
—Não é nada—disse Sebastião, abrindo a porta
da sala—tudo em paz!
Elle mesmo accendeu com um phosphoro uma
vela na serpentina—que fez sahir vagamente da
sombra os dourados dos caixilhos das gravuras, a
pallida face do retrato da mãi de Jorge, um reflexo
de espelho.
—Ó snr. Mendes, sente-se, sente-se!
O Mendes collocou-se á beira da cadeira com a
mão na cinta, o terçado entre os joelhos, muito soturno.
—Esta é que é a pessoa—disse Sebastião, indicando
Juliana, que ficára á porta da sala, attonita.
A mulher recuou, livida:
—Ó snr. Sebastião, que brincadeira é esta?
—Não é nada, não é nada...
Tomou-lhe o candieiro da mão, e tocando-lhe no
braço:
—Vamos lá dentro á sala de jantar.
—Mas que é? É alguma cousa commigo? Credo!
E esta! Olha que desconchavo!
Sebastião fechou a porta da sala de jantar, pousou
o candieiro sobre a mesa, onde havia ainda um
prato com codeas de queijo, e um fundo de vinho
n'um copo, deu alguns passos, fazendo estalar nervosamente
os dedos, e parando bruscamente diante
de Juliana:
[532]
—Dê cá umas cartas que roubou á senhora...
Juliana teve um movimento para correr á janella,
gritar.
Sebastião agarrou-lhe o braço, e fazendo-a sentar
com força sobre uma cadeira:
—Escusa d'ir á janella gritar, a policia já está
dentro de casa. Dê cá as cartas, ou p'ra a enxovia!
Juliana entreviu n'um relance um quarto tenebroso
no Limoeiro, o caldo do rancho, a enxerga nas
lages frias...
—Mas que fiz eu?—balbuciava—que fiz eu?
—Roubou as cartas. Dê-as p'ra cá, avie-se.
Juliana sentada á beira da cadeira, apertando
desesperadamente as mãos, rosnava por entre os
dentes cerrados:
—A bebeda! A bebeda!
Sebastião, impaciente, pôz a mão no fecho da
porta.
—Espere, seu diabo!—gritou ella, erguendo-se
com um salto. Fixou-o rancorosamente, desabotoou
o corpete, enterrou a mão no peito, tirou uma carteirinha.
Mas de repente batendo com o pé, n'um
phrenesi:
—Não! não! não!
—Diabos me levem se vossê não fôr dormir á
enxovia!—Entre-abriu a porta.—Ó snr. Mendes!
—Ahi tem!—gritou ella atirando-lhe a carteira.
E brandindo para elle os punhos:—Raios te
partam, malvado!
[533]
Sebastião apanhou a carteira. Havia tres cartas:
uma muito dobrada era de Luiza; leu a primeira linha:
Meu adorado Bazilio; e muito pallido guardou
logo tudo na algibeira interior do casaco. Abriu então
a porta: a possante figura do Mendes estava na
sombra.
—Está tudo arranjado, snr. Mendes,—a voz
tremia-lhe um pouco—não lhe quero tomar mais
tempo.
O homem fez uma continencia, calado: quando
Sebastião, no patamar, lhe resvalou na mão uma libra,
o Mendes curvou-se respeitosamente e disse,
com uma voz pegajosa:
—E para o que quizer, o sessenta e quatro, o
Mendes, que foi da Guarda. Não se incommode v. s.
a
Ás ordens de v. s.
a Minha mulher e filhos agradecem.
Não se incommode v. s.
a O sessenta e quatro, o Mendes,
que foi da Guarda!
Sebastião fechou a cancella, voltou á sala de jantar.
Juliana ficára n'uma cadeira, aniquilada; mas
apenas o viu, erguendo-se furiosamente:
—A bebeda foi-lhe contar tudo! Foi vossê que
arranjou a armadilha! Tambem vossê dormiu com
ella!...
Sebastião, muito branco, dominava-se.
—Vá pôr o chapéo, mulher. O snr. Jorge despediu-a.
Ámanhã mandará buscar os bahus...
—Mas o homem ha-de saber tudo!—berrou ella.—Este
tecto me rache se eu não lhe disser tudo
tim-tim por tim-tim. Tudo! As cartas que recebia,
[534]
onde ia vêr o homem. Deitava-se com ella na sala,
até os pentes lhe cahiam na balburdia. Até a cozinheira
lhes sentia o alarido!
—Cale-se!—bradou Sebastião com uma punhada
na mesa, que fez tremer toda a louça no aparador,
e esvoaçar os canarios. E com a voz toda tremula,
os beiços brancos:—A policia tem o seu nome,
sua ladra! Á menor palavra que vossê diga vai
para o Limoeiro, e pela barra fóra. Vossê não roubou
só as cartas; roubou roupas, camisas, lençoes,
vestidos...—Juliana ia fallar, gritar.—Bem sei—continuou
elle violentamente—deu-lh'os ella, mas
á força, porque vossê a ameaçava. Vossê arrancou-lhe
tudo. É roubo. É d'Africa!—E o que é dizer
ao snr. Jorge, póde ir dizer. Vá. Veja se elle a
acredita. Diga! São algumas bengaladas que leva
por esses hombros, ladra!
Ella rangia os dentes. Estava apanhada!
Elles tinham
tudo por si, a policia, a Boa-Hora, a cadêa, a
Africa!... E ella—nada!
Todo o seu odio contra a
Piorrinha fez explosão.
Chamou-lhe os nomes mais obscenos. Inventou
infamias.
—É que nem as do Bairro-Alto! E eu—gritava—sou
uma mulher de bem, nunca um homem
se pôde gabar de tocar n'este corpo. Nunca houve
raio nenhum que me visse a côr da pelle. E a bebeda!...—Tinha
arremessado o chale, alargou anciosamente
o collar do vestido.—Era um desaforo
por essa casa! E o que eu passei com a bruxa da
[535]
tia! É o pago que me dão! Os diabos me levem se
eu não fôr para os jornaes. Vi-a eu abraçada ao janota,
como uma cabra!
Sebastião a seu pezar escutava-a, com uma curiosidade
dolorosa por aquelles pormenores; sentia desejos
agudos de a esganar, e os seus olhos devoravam-lhe
as palavras. Quando ella se calou arquejante:
—Vá, ponha o chapéo, e p'ra a rua!
Juliana então allucinada de raiva, com os olhos sahidos
das orbitas, veio para elle, e cuspiu-lhe na cara!
Mas de repente a bocca abriu-se-lhe desmedidamente,
arqueou-se para traz, levou com ancia as
mãos ambas ao coração, e cahiu para o lado, com
um som molle, como um fardo de roupa.
Sebastião abaixou-se, sacudiu-a; estava hirta, uma
escuma rôxa apparecia-lhe aos cantos da bocca.
Agarrou no chapéo, desceu as escadas, correu
até á Patriarchal. Um
coupé vazio passava; atirou-se
para dentro, mandou a «todo o que dér», para casa
de Julião; e obrigou-o a vir immediatamente, mesmo
em chinellas, sem collarinho.
—É caso de morte, é a Juliana—balbuciava
muito pallido.
E pelo caminho, entre o ruido das rodas e o tilintar
dos caixilhos, contava confusamente que entrára
em casa de Luiza, que achára Juliana muito despeitada
por ter sido despedida, e que a fallar, a esbracejar,
de repente, tombára p'ra o lado!
—Foi o coração. Estava p'ra dias—disse Julião,
chupando a ponta do cigarro.
[536]
Pararam. Mas Sebastião desorientado, ao sahir,
fechára a porta! E dentro só a morta! O cocheiro
offereceu a sua gazua, que serviu.
—Então nem se vai a uma passeadinha ao Dáfundo,
meus fidalgos?—disse o homem, mettendo
a gorgeta na algibeira.
Mas vendo-os atirar com a porta:
—Tambem não é gente d'isso—rosnou com
desprezo, batendo a parelha.
Entraram.
No pequeno pateo o silencio da casa pareceu a
Sebastião pavoroso. Subia, aterrado, os degraus, que
se afiguravam infindaveis; e, com fortes pancadas do
coração, esperava ainda que ella estivesse apenas
adormecida n'um desmaio simples, ou já de pé, pallida
e respirando!
Não. Lá estava como a deixára, estendida na esteira,
com os braços abertos, os dedos retorcidos como
garras. A convulsão das pernas arregaçára-lhe as
saias, viam-se as suas canellas magras com meias
de riscadinho côr de rosa e as chinellas de tapete;
o candieiro de petroleo, que Sebastião esquecera ao
pé sobre uma cadeira, punha tons lividos na testa,
nas faces rigidas; a bocca torcida fazia um sombra;
e os olhos medonhamente abertos, immobilisados
na agonia repentina, tinham uma vaga nevoa,
como cobertos d'uma têa d'aranha diaphana. Em redor
tudo parecia mais immovel, d'um hirto morto.
Vagos reflexos de prata reluziam no aparador; e o
tic-tac do
cuco palpitava sem descontinuar.
[537]
—Julião apalpou-a, ergueu-se sacudindo as mãos,
disse:
—Está morta com todas as regras. É necessario
tiral-a d'aqui. Onde é o quarto?
Sebastião, pallido, fez signal com o dedo que era
por cima.
—Bem. Arrasta-a tu, que eu levo o candieiro.—E
como Sebastião não se movia:—Tens medo?—perguntou
rindo.
Escarneceu-o: que diabo, era materia inerte, era
como quem agarrava uma boneca! Sebastião, com
um suor á raiz dos cabellos, levantou o cadaver por
debaixo dos braços, começou a arrastal-o, devagar.
Julião adiante erguia o candieiro; e por fanfarronada
cantou os primeiros compassos da marcha do
Fausto.
Mas Sebastião escandalisou-se, e com uma voz
que tremia:
—Largo tudo, e vou-me...
—Respeitarei os nervos da menina!—disse Julião
curvando-se.
Continuaram calados. Aquelle corpo magro parecia
a Sebastião d'um peso de chumbo. Arquejava.
Nas escadas uma das chinellas do cadaver soltou-se,
rolou. E Sebastião sentia aterrado alguma cousa que
lhe batia contra os joelhos; era a cuia cahida, suspensa
por um atilho.
Estenderam-na na cama; Julião, dizendo que se
deviam seguir as tradições,—pôz-lhe os braços
em cruz e fechou-lhe os olhos.
Esteve um momento a olhal-a:
[538]
—Feia besta!—murmurou, estendendo-lhe sobre
o rosto uma toalha enxovalhada.
Ao sahir examinou, admirado, o quarto:
—Estava mais bem alojada que eu, o estafermo!
Fechou a porta, deu volta á chave:
—
Requiescat in pace—disse.
E desceram, calados.
Ao entrar na sala, Sebastião, muito pallido, pôz
a mão no hombro de Julião:
—Então achas que foi o aneurisma?
—Foi. Enfureceu-se, estourou. É dos livros...
—Se não se tivesse zangado hoje...
—Estourava ámanhã. Estava nas ultimas... Deixa
em paz a creatura. Está começando a esta hora
a apodrecer, não a perturbemos.
Declarou então, esfregando as mãos com frio,
que «comia alguma cousa». Achou no armario um
pedaço de vitella fria, uma garrafa meia de Collares.
Installou-se e, com a bocca cheia, deitando o
vinho d'alto:
—Então sabes a novidade, Sebastião?
—Não.
—O meu concorrente foi despachado!
Sebastião murmurou:
—Que ferro!
—Era previsto—disse Julião com um grande
gesto.—Eu ia fazer um escandalo, mas...—e teve
um risinho—amansaram-me! Estou n'um posto medico,
deram-me um posto medico! Atiraram-me um
osso!
[539]
—Sim?—fez Sebastião.—Homem, ainda bem,
parabens. E agora?
—Agora, roel-o!
De resto, tinham-lhe promettido a primeira vagatura.
O posto medico não era mau... Em definitiva,
a situação melhorára...
—Mas mesquinha, mesquinha! Não sáio do atoleiro...
Estava farto de medicina, disse depois d'um silencio.
Era um bêco sem sahida. Devia-se ter feito
advogado, politico, intrigante. Tinha nascido p'ra
isso!
Ergueu-se, e com grandes passadas pela sala, o
cigarro na mão, a voz cortante, expoz um plano de
ambição:—O paiz está a preceito para um intrigante
com vontade! Esta gente toda está velha, cheia
de doenças, de catarrhos de bexiga, de antigas syphilis!
tudo isto está pôdre por dentro e por fóra!
o velho mundo constitucional vai a cahir aos pedaços...
Necessitam-se homens!
E plantando-se diante de Sebastião:
—Este paiz, meu caro amigo, tem-se governado
até aqui com
expedientes. Quando vier a revolução
contra os
expedientes, o paiz ha-de procurar quem
tenha os
principios. Mas quem tem ahi principios?
Quem tem ahi quatro principios? Ninguem; teem dividas,
vicios secretos, dentes postiços; mas principios,
nem meio! Por consequencia se houver tres
patuscos que se dêem ao trabalho de estabelecer
meia duzia de principios sérios, racionaes, modernos,
[540]
positivos, o paiz tem se atirar de joelhos, e
supplicar-lhes: Senhores, fazei-me a honra insigne
de me pôr o freio nos dentes! Ora eu devia ser um
d'estes. Nasci p'ra isso! E secca-me a idéa de que
em quanto outros idiotas, mais astutos e mais previdentes,
hão-de estar no poleiro a reluzir ao sol,
al
hermoso sol português, como se diz nas zarzuelas,
eu hei-de estar a receitar cataplasmas a velhas devotas,
ou a ligar as rupturas d'algum desembargador
caduco.
Sebastião calado pensava na outra, morta em
cima.
—Estupido paiz, estupida vida!—rosnou Julião.
Mas uma carruagem entrou na rua, parou á porta.
—Chegam os principes!—disse Julião. Desceram
logo.
Jorge ajudava Luiza a sahir do trem, quando Sebastião,
abrindo a porta, bruscamente:
—Houve cá grande novidade!
—Fogo?—gritou Jorge voltando-se aterrado.
—A Juliana, que lhe rebentou o aneurisma—disse
a voz de Julião da sombra da porta.
—Oh c'os diabos!—E Jorge atarantado procurava
á pressa na algibeira troco para o cocheiro.
—Ai, eu já não entro!—exclamou logo D. Felicidade,
mostrando á portinhola a sua larga face envolvida
n'uma manta branca.—Eu já não entro!
—Nem eu!—fez Luiza, toda tremula.
—Mas para onde queres que vamos, filha?—exclamou
Jorge.
[541]
Sebastião lembrou que podiam ir para casa d'elle.
Tinha o quarto da mamã, era só pôr lençoes na
cama.
—Vamos, sim! Vamos, Jorge! É o melhor!—supplicou
Luiza.
Jorge hesitava. A patrulha que ia passando ao
alto da rua, ao vêr aquelle grupo junto á lanterna
do trem, parou. E Jorge emfim, instado, muito contrariado,
consentiu.
—Diabo da mulher, morrer a semelhante hora!
A carruagem vai-a levar, D. Felicidade...
—E a mim, que estou em chinellas!—acudiu
Julião.
D. Felicidade lembrou então, como christã, que
era necessario alguem, para velar a morta...
—Ora, pelo amor de Deus, D. Felicidade!—exclamou
Julião, entrando logo para a carruagem, batendo
com a portinhola.
Mas D. Felicidade insistia: era uma falta de religião!
ao menos pôr duas velas, mandar chamar um
padre!...
—Largue, cocheiro!—berrou Julião, impaciente.
A carruagem deu a volta. E D. Felicidade á portinhola,
apesar de Julião que a puxava pelos vestidos,
gritava:
—É um peccado mortal! É uma irreverencia!
Ao menos duas velas!
O trem partiu a trote.
Luiza agora tinha escrupulos: realmente podia-se
mandar chamar alguem...
[542]
Mas Jorge enfureceu-se. Chamar quem, áquella
hora? Que beatice! Estava morta, acabou-se! Enterrava-se...
Velar o estafermo! Fazer-lhe talvez camara
ardente tambem? Queria ella ir velal-a?...
—Então, Jorge, então!...—murmurava Sebastião.
—Não, é de mais! É vontade de crear embaraços,
que diabo!
Luiza baixava a cabeça: e, em quanto Jorge, praguejando,
ficou atraz a fechar a porta da casa, ella
foi descendo a rua pelo braço de Sebastião.
—Estourou de raiva—disse-lhe elle baixinho.
Toda a rua Jorge resmungou. Que idéa, irem dormir
agora fóra de casa! Realmente era levar muito
longe as mariquices...!
Até que Luiza lhe disse, quasi chorando:
—Vê se me queres torturar mais, e fazer-me
mais doente, Jorge!
Elle calou-se, mordendo furioso o charuto. E Sebastião,
para a socegar, propoz que viesse a tia Vicencia,
a preta, velar a Juliana.
—Era talvez melhor—murmurou Luiza.
Chegaram á porta de Sebastião. O
frou-frou do
vestido de sêda de Luiza, áquella hora, na sua casa,
dava uma commoção a Sebastião: a mão tremia-lhe
ao accender as velas da sala. Foi acordar a tia Vicencia
para fazer chá; tirou elle mesmo os lençoes
dos bahús, apressado, feliz d'aquella hospitalidade.
Quando voltou á sala, Luiza estava só, muito pallida,
ao canto do sophá.
[543]
—Jorge?—perguntou elle.
—Foi ao seu escriptorio, Sebastião, escrever ao
parocho para o enterro...—E com os olhos brilhantes,
n'uma voz sumida e assustada:—Então?
Sebastião tirou da algibeira a carteirinha de Juliana.
Ella agarrou-a sofregamente—e com um movimento
brusco, tomou-lhe a mão, e beijou-lh'a.
Mas Jorge entrava, sorrindo.
—Então agora está mais descançada, a menina?
—Inteiramente—disse ella, com um suspiro de
allivio.
Foram tomar chá. Sebastião contou a Jorge, corando
um pouco, a maneira como entrára em casa,
a Juliana lhe estivera a dizer que fôra despedida, e
fallando, exaltando-se, zás, de repente, cahira para
o lado morta...
E acrescentou:
—Coitada!
Luiza via-o mentir, olhando-o com adoração.
—E a Joanna?—perguntou Jorge, de repente.
Luiza, sem se perturbar, respondeu:
—Ah, esqueci-me dizer-te... Tinha pedido licença
p'ra ir vêr uma tia que está muito mal, p'ra os
lados de Bellas... Diz que volta ámanhã... Mais uma
gota de chá, Sebastião...
Esqueceram-se depois de mandar a Vicencia—e
ninguem velou a morta.
XVI
Luiza passou a noite ás voltas, com febre. Jorge
de madrugada ficou assustado da frequencia do seu
pulso e do calor secco da pelle.
Elle mesmo, muito nervoso, não pudera dormir.
O quarto, onde se não accendera luz havia muito,
tinha uma frialdade deshabitada: na parede, junto
ao tecto, havia manchas de humidade: e a cama
antiga de columnas torneadas sem cortinados, o velho
tremó do seculo passado com o seu espelho embaciado
davam, á luz bruxuleante da lamparina, um
sentimento triste de convivencias extinctas. O achar-se
alli com sua mulher, n'uma cama alheia, trazia-lhe,
sem saber porque, uma vaga saudade; parecia-lhe
que se dera na sua vida uma alteração brusca—e
que, semelhante a um rio a que se muda o leito,
[546]
a sua existencia, desde essa noite, começaria a correr
entre aspectos differentes. O nordeste fazia bater
os caixilhos da vidraça, e uivava encanado na rua.
Pela manhã, Luiza não se pôde levantar.
Julião, chamado á pressa, tranquillisou-os:
—É uma febresita nervosa. Quer socego, não vale
nada. Foi o medosinho d'hontem, hein?
—Sonhei toda a noite com ella—disse Luiza.—Que
tinha resuscitado... Que horror!
—Ah! póde estar socegada... E já a aviaram,
a mulher?
—O Sebastião lá anda com a massada—disse
Jorge.—E eu vou dar uma vista d'olhos.
Na rua já se sabia a morte da
tripa-velha.
A mulher que a veio amortalhar, uma matrona
muito picada das bexigas, com os olhos avermelhados
da paixão da aguardente, era conhecida da snr.
a
Helena. Estiveram um momento a palrar ao sol, á
porta do estanque:
—Muito que fazer agora, snr.
a Margarida, hein?
—Bastante, bastante, snr.
a Helena—disse a
amortalhadeira com a voz um pouco rouca.—No inverno
sempre ha mais obra. Mas tudo gente velha,
com os frios. Nem um corpinho bonito p'ra vestir...
A snr.
a Margarida tinha predilecções artisticas.
Gostava d'um bonito corpo de dezoito annos, uma
mocinha fresca para lavar, escarolar, enfeitar... Entrouxava
á má cara a gente velha. Mas com as raparigas
novas esmerava-se: acatitava as pregas da
mortalha; calculava o
chic d'uma flôr, d'um laço;
[547]
trabalhava com os requintes ajanotados d'uma modista
do sepulchro.
A estanqueira contou-lhe muitas particularidades
sobre a Juliana, os favores dos patrões, as tafularias
d'ella, os luxos do quarto tapetado... A snr.
a Margarida
dizia-se «banzada». E para quem iria agora tudo
aquillo?—perguntavam.—A
tripa-velha não tinha
parentes...
—Era uma riqueza p'ra a minha Antoninha!—disse
a amortalhadeira, traçando o chale com tristeza.
—Como vai ella, a pequena?...
—Aquillo vai mal, snr.
a Helena. Aquella cabeça
douda!—E exhalando a sua dôr com loquacidade:—Deixar
o brazileiro que a trazia nas palminhas...
E por quem? Por aquelle desalmado, que lhe come
tudo, que já lhe arranjou um filho, e que a derrêa
com pau... Mas então, as raparigas são assim... Vão
atraz do palmo de cara... Que elle é bonito rapaz!
Mas um bebedo!... Coitada!... Pois vou vestir a boneca,
snr.
a Helena.—E entrou na casa compungidamente.
O padre já chegára tambem. Estava na sala com
Sebastião, que conhecia d'Almada, e fallava de lavoura,
d'enxertos, das regas, n'uma voz grossa—passando,
com um gesto lento da sua mão cabelluda,
o lenço enrolado por debaixo do nariz. As janellas
em toda a casa estavam abertas ao sol muito dôce.
Os canarios chilreavam.
—E estava ha muito tempo na casa, a defunta?—perguntou
[548]
o padre, a Jorge que passeava pela sala,
fumando.
—Ha quasi um anno.
O padre desdobrou lentamente o lenço, e sacudindo-o,
antes de se assoar:
—A sua senhora ha-de sentir muito... É um tributo
universal!...
E assoou-se, com estrondo.
A Joanna, então, de chale e lenço, appareceu,
em bicos de pés. Soubera pelos visinhos que a Juliana
«arrebentára», que os senhores estavam em
casa do snr. Sebastião. Vinha de lá. Luiz mandára-a
entrar no quarto. Quando a viu doente, a sua rica
senhora, lagrimejou muito. Luiza disse-lhe—«que
agora estava tudo como d'antes, podia voltar...»
—E ouça, Joanna, se o snr. Jorge lhe perguntar...
que esteve em Bellas, com a tia...
A rapariga fôra logo buscar a trouxa e vinha installar-se—um
pouco assustada da morte em casa.
D'ahi a pouco o Paula bateu discretamente á
porta.
Alli vinha offerecer-se para o que fosse necessario
n'aquelle transe! E tirando e pondo rapidamente
o boné, raspando o pé, dizia com a sua voz catarrhosa:
—Lamento a desgraça, lamento a desgraça! Todos
somos mortaes...
—Bem, bem, snr. Paula, não é necessario nada—disse
Jorge.—Obrigado!
E fechou bruscamente a cancella.
[549]
Estava impaciente por se desembaraçar «d'aquella
estopada»: e mesmo como o enfastiavam as martelladas
espaçadas dos homens pregando o caixão,
em cima, chamou a Joanna:
—Diga a essa gente que se avie. Não vamos ficar
aqui toda a vida!
A Joanna foi logo dizer que o senhor estava
n'um phrenesi! Tinha-se feito já intima da snr.
a Margarida.
A amortalhadeira fôra mesmo com ella á cozinha
para tomar uma «sustanciasinha». Como o lume
estava apagado, contentou-se com sopas de pão
em vinho.
—Sopinha de burro—dizia, fazendo estalar a
lingua.
Mas estava enojada com a defunta! Nunca vira
bicho mais feio. Um corpo de sardinha secca! E pondo
um olhar complacente nas bellas fórmas de Joanna:—A
menina, não. A menina tem-me o ar de
ter muito bom corpo...—E parecia calcular como
talharia a mortalha para aquellas linhas robustas.
Joanna disse escandalisada:
—Longe vá o agouro, cruzes!
A outra sorriu; faltavam-lhe dous dentes: e aflautando
a voz:
—Tem-me passado pela mão muita gente fina,
minha menina. Mais uma gotinha de vinho, faz favor?
É do Cartaxo, não? é muito avelludado! rica
gota!
Emfim, com grande satisfação de Jorge, ás quatro
[550]
horas os homens desceram o caixão. A visinhança
estava pelas portas. O Paula mesmo, por fanfarronada,
disse com dous dedos adeus ao esquife, murmurando:
—Boa viagem!
Jorge em cima, ao sahir, perguntou a Joanna:
—E vossê não tem medo de ficar aqui só?
—Eu não, meu senhor. Quem vai não volta!
Tinha medo, com effeito; mas preparava-se a
passar a noite com o Pedro, e batia-lhe o coração
de alegria de «terem a casa por sua» até de manhã,
e de se poderem rolar amorosamente, como fidalgos,
por cima do divan da sala.
Jorge voltou com Sebastião para casa, e apenas
entrou no quarto, onde Luiza estava deitada:
—Tudo prompto—disse, esfregando as mãos.—Lá
vai para o Alto de S. João, devidamente acondicionada.
Per omnia sæcula sæculorum!
A tia Joanna, que estava á cabeceira de Luiza,
acudiu:
—Ai, quem lá vai, lá vai... Mas boa mulher, não
era ella!
—Era um bom estafermo—disse Jorge.—Esperemos
que a esta hora esteja a ferver na caldeira
de Pero Botelho. Não é verdade, tia Joanna?
—Jorge!—fez Luiza reprehensivamente. E julgou
dever rezar-lhe baixo dous padre-nossos por
alma.
Foi tudo o que a terra deu na sua morte áquella
que ia rolando a essa hora, ao trote de duas velhas
[551]
eguas, para a valla dos pobres, e que fôra na vida
Juliana Couceiro Tavira!
No dia seguinte Luiza estava melhor: fallaram
mesmo, com grande desconsolação da tia Joanna, em
voltar para casa. Sebastião não dizia nada, mas quasi
desejava secretamente que uma convalescença a
retivesse alli semanas indefinidas. Ella parecia tão
agradecida! Tinha olhares tão reconhecidos, que só
elle comprehendia! E era tão feliz tendo-a alli e a
Jorge na sua casa! Conferenciava com a tia Vicencia
sobre o jantar; andava pelos corredores e pela sala,
com respeito, quasi em bicos de pés, como se a presença
d'ella santificasse a casa; enchia os vasos de
camelias e de violetas; sorria beatamente ao vêr
Jorge, á sobremesa, saborear e gabar o seu velho
cognac; sentia alguma cousa de bom acalental-o como
um manto acolchoado e macio; e já pensava que
quando ella partisse tudo lhe pareceria mais frio, e
com uma tristeza de ruina!
Mas d'ahi a dous dias voltaram para casa.
Luiza ficou muito agradada com a criada nova.
Fôra Sebastião que a arranjára. Era uma rapariguita
aceadinha e branca, com grandes olhos bonitos e
pasmados, um ar amoravel: chamava-se Marianna;
e foi logo correndo dizer a Joanna «que morria pela
senhora! tinha uma carinha d'anjo! que linda que
era!»
[552]
Jorge logo n'essa manhã mandou os dous bahus
de Juliana á tia Victoria.
Luiza, quando elle sahiu á tardinha, fechou-se no
quarto, com a carteirinha de Juliana, correu os transparentes
por precaução, accendeu uma vela, e queimou
as cartas. As mãos tremiam-lhe; e via, com os
olhos marejados de lagrimas, a sua vergonha, a sua
escravidão irem-se, dissiparem-se n'um fumo alvadio!
Respirou completamente! Emfim! E fôra Sebastião,
aquelle querido Sebastião!
Foi então á sala, á cozinha, vêr a casa: tudo lhe
pareceu novo, a sua vida cheia de doçura: abriu todas
as janellas; experimentou o piano; rasgou mesmo
em pedaços, por superstição, a musica da
Médjé,
que lhe dera Bazilio; conversou muito com a Marianna;
e saboreando o seu caldo de gallinha de convalescente,
com a face alumiada da felicidade:
—Que bem que vou passar agora!—pensava.
Quando sentiu no corredor os passos de Jorge
que entrava, correu, deitou-lhe os braços ao pescoço,
e com a cabeça no hombro d'elle:
—Estou tão contente hoje! E se tu soubesses,
é tão boa rapariga a Marianna!
Mas n'essa noite a febre voltou. Julião, de manhã,
achou-a peor.
—Crescimentos...—disse descontente.
[553]
Estava receitando, quando D. Felicidade entrou,
muito excitada. Ficou toda surprehendida de vêr
Luiza doente; e debruçando-se sobre ella, disse-lhe
logo ao ouvido:
—Tenho que te contar!
Apenas Jorge e Julião sahiram, desabafou, sentada
aos pés da cama,—com uma voz ora baixa
pela gravidade da confidencia, ora aguda pelo impeto
da indignação:
Tinha sido roubada! Indignamente roubada! O
homem que mandára a Tuy, o grande ladrão, tinha
escripto á Gertrudes, á criada, que não estava resolvido
a voltar a Lisboa; que a mulher de virtude
mudára de povoação; que elle não queria saber mais
d'esse negocio e que até o achava exquisito; que
offerecia o seu prestimo em Tuy,—tudo isto n'uma
boa letra d'escrevente publico, n'um portuguez horrivel,—e
do dinheiro nem palavra!
—Que te parece o mariola? Oito moedas! Eu
se não fosse pela vergonha, ia direita á policia...
Ai! os gallegos p'ra mim acabaram! Por isso o Conselheiro
não se chegava ao rego! Pudera! A mulher
nunca lançou a sorte!...—Porque se já não acreditava
na honestidade dos gallegos, não perdera a fé
no poder das bruxas.
Que ella não era pelas oito moedas! Era pelo
ferro! E depois, quem sabe onde estaria agora a
mulher! Ai, era d'endoudecer!... Que te parece,
hein?
Luiza encolheu os hombros: muito abafada na
[554]
roupa, as faces escarlates, cerravam-se-lhe os olhos
n'uma somnolencia pesada: D. Felicidade aconselhou-lhe
vagamente um «suadouro», suspirando; e
como Luiza não lhe podia dar consolações, sahiu para
ir á Encarnação desabafar com a Silveira.
N'essa madrugada Luiza peorou. A febre recrudecera.
Jorge, inquieto, vestiu-se á pressa, ás nove
horas da manhã, foi buscar Julião. Descia a escada
rapidamente, abotoando ainda o paletot, quando o
carteiro subia, tossindo o seu catarrho.
—Cartas?—perguntou Jorge.
—Uma p'ra a senhora—disse o homem.—Ha-de
ser p'ra a senhora...
Jorge olhou o enveloppe: tinha o nome de Luiza,
vinha de França.
—De quem diabo é isto?—pensou. Metteu-a
no bolso do paletot, e sahiu.
D'ahi a meia hora voltava com Julião, n'um trem.
Luiza dormitava, amodorrada.
—É preciso cautela... Vamos a vêr...—murmurou
Julião, coçando devagar a cabeça, em quanto
do outro lado do leito Jorge o olhava anciosamente.
Receitou e ficou para almoçar com Jorge. Estava
um dia frio e pardo. A Marianna, abafada n'um casabeque,
servia, com os dedos vermelhos, inchados
de frieiras. E Jorge sentia-se entristecer, como se
toda a nevoa do ar se lhe fosse lentamente depositando
e condensando n'alma.
A que se podia attribuir semelhante febre? dizia,
[555]
muito desconsolado. Tão extraordinario! Havia
seis dias, ora melhor, ora peor...
—Estas febres veem por tudo—replicou Julião,
partindo tranquillamente uma torrada.—Ás vezes
por uma corrente d'ar ás vezes por um desgosto.
Tenho eu, por exemplo, um caso curioso: um sujeito,
um Alves, que esteve p'ra fallir, e que viveu,
coitado, durante dous mezes em torturas. Ha duas
semanas, por um golpe de fortuna,—a velhaca ás
vezes tem d'estes caprichos,—arranjou todos os
seus negocios, viu-se livre. Pois senhor, desde então
tem uma febre assim, tortuosa, complexa, com
symptomas disparatados... O que é? É que a excitação
nervosa abateu, e a felicidade trouxe-lhe uma
revolução no sangue. Póde muito bem dar á casca.
Faz então a fallencia geral, a grande, aquella em
que o crédor é implacavel, saca á vista, e...
per
omnia sæcula!
Ergueu-se, e accendendo o cigarro:
—Em todo o caso um repouso absoluto. É necessario
ter-lhe o espirito em algodão em rama. Nada
de palestra, nada de phrases, e se tiver sêde, limonada.
Até logo!
E sahiu, calçando as luvas pretas que usava agora
desde que pertencia ao Posto Medico.
Jorge voltou á alcova: Luiza ainda dormitava.
Marianna sentada ao pé n'uma cadeirinha baixa, com
o rostinho muito triste, não tirava de Luiza os seus
grandes olhos vagamente espantados.
—Tem estado muito inquieta—murmurou.
[556]
Jorge apalpou a mão de Luiza que ardia, conchegou-lhe
a roupa. Beijou-a devagarinho na testa,
foi cerrar as portas da janella, defronte da alcova.—E
passeando no escriptorio, voltavam-lhe as palavras
de Julião: são febres que veem por um desgosto!
Pensava na historia do negociante, recordava aquelle
estado de abatimento e de fraqueza de Luiza que
o preoccupára tanto, ultimamente, tão inexplicavel!
Ora, tolices! Desgosto de quê? Em casa de Sebastião
estivera tão animada! Nem a morte da outra lhe fizera
abalo!—De resto acreditava pouco nas
febres
de desgosto! Julião tinha uma medicina litteraria. Pensou
mesmo que seria mais prudente chamar o velho
dr. Caminha...
Ao metter a mão no bolso, então, os seus dedos
encontraram uma carta; era a que o carteiro lhe dera,
de manhã, para Luiza. Tornou a examinal-a com
curiosidade; o sobrescripto era banal, como os que
ha nos cafés ou nos restaurantes; não conhecia a
letra; era d'homem, vinha de França... Atravessou-o
um desejo rapido de a abrir. Mas conteve-se, atirou-a
para cima da mesa, embrulhou devagar um
cigarro.
Voltou á alcova. Luiza permanecia na sua modorra:
a manga do chambre arregaçada descobria o
braço mimoso, com a sua pennugem loura; a face
escarlate reluzia; as pestanas longas pousavam pesadamente,
no adormecimento das palpebras finas;
um annel do cabello cahira-lhe sobre a testa, e pareceu
a Jorge adoravel e tocante com aquella côr, a
[557]
expressão da febre. Pensou, sem saber porque, que
outros a deveriam achar linda, desejal-a, dizer-lh'o,
se podessem... Para que lhe escreviam de França,
quem?
Voltou ao escriptorio, mas aquella carta sobre
a mesa irritava-o: quiz lêr um livro, atirou-o logo
impaciente; e poz-se a passear, torcendo muito
nervoso o forro das algibeiras.
Agarrou então a carta, quiz vêr, através do papel
delgado do enveloppe; os seus dedos, mesmo
irresistivelmente, começaram a rasgar um angulo
do sobrescripto. Ah! Não era delicado aquillo!...
Mas a curiosidade, que governava o seu cerebro,
suggeriu-lhe toda a sorte de raciocinios, com uma
tentação persuasiva:—Ella estava doente, e podia
ter alguma cousa urgente; se fosse uma herança?
depois ella não tinha segredos, e então em França!
Os seus escrupulos eram pueris! Dir-lhe-hia
que a abrira por engano. E se a carta contivesse
o segredo d'aquelle desgosto, do
desgosto das theorias
de Julião!... Devia abril-a então para a curar
melhor!
Sem querer achou-se com a carta desdobrada
na mão. N'um relanço avido devorou-a. Mas não
comprehendeu bem; as letras embrulhavam-se;
chegou-se á janella, releu devagar:
«Minha querida Luiza.
«Seria longo explicar-te, como só antes d'hontem
[558]
em Nice—d'onde cheguei esta madrugada a
Paris—recebi a tua carta, que pelos carimbos vejo
que percorreu toda a Europa atraz de mim. Como
já lá vão dous mezes e meio que a escreveste,
imagino que te arranjaste com a mulher, e que
não precisas do dinheiro. De resto se por acaso o
queres, manda um telegramma e tens-l'o ahi em
dous dias. Vejo pela tua carta que não acreditaste
nunca que a minha partida fosse motivada por negocios.
És bem injusta. A minha partida não te
devia ter tirado, como tu dizes,
todas as illusões
sobre o amor, porque foi realmente quando sahi
de Lisboa que percebi quanto te amava, e não ha
dia, acredita, em que me não lembre do
Paraiso.
Que boas manhãs! Passaste por lá por acaso alguma
outra vez? Lembras-te do nosso
lunch? Não tenho
tempo para mais. Talvez em breve volte a
Lisboa. Espero vêr-te, porque sem ti Lisboa é para
mim um desterro.
«Um longo beijo do
«Teu do C.
«Bazilio».
Jorge dobrou o papel, lentamente, em duas, em
quatro dobras, atirou-o para cima da mesa, disse
alto:
—Sim, senhor! bonito!
Encheu o cachimbo de tabaco machinalmente,
[559]
com os olhos vagos, os beiços a tremer: deu alguns
passos incertos pelo escriptorio:—de repente arremessou
o cachimbo que despedaçou um vidro da janella,
bateu com as mãos desvairado, e atirando-se
de bruços para cima da mesa, rompeu a chorar, rolando
a cabeça entre os braços, mordendo as mangas,
batendo com os pés, louco!
Ergueu-se subitamente, agarrou a carta, ia com
ella á alcova de Luiza. Mas a lembrança das palavras
de Julião immobilisou-o: que esteja socegada, nada
de phrases, nenhuma excitação! Fechou a carta n'uma
gaveta, metteu a chave na algibeira. E de pé, a
tremer, com os olhos raiados de sangue, sentia idéas
insensatas alumiarem-lhe bruscamente o cerebro, como
relampagos n'uma tormenta—matal-a, sahir de
casa, abandonal-a, fazer saltar os miolos...
A Marianna bateu ligeiramente á porta, disse-lhe
que a senhora o chamava.
Uma onda de sangue subiu-lhe á cabeça; fitava
Marianna, estupido, batendo as palpebras:
—Já vou—disse com a voz rouca.
Ao passar na sala, diante do espelho oval, ficou
pasmado do seu rosto manchado, envelhecido. Foi
correr uma toalha molhada pela face, alisou o cabello:
e ao entrar na alcova, ao vêl-a, com os seus
grandes olhos dilatados onde a febre reluzia, teve
de se agarrar á barra do leito, porque sentiu, em
redor, as paredes oscillarem como lonas ao vento.
Mas sorriu-lhe:
—Como estás?
[560]
—Mal—murmurou ella debilmente.
Chamou-o para ao pé de si com um gesto muito
fatigado.
Elle veio, sentou-se sem a olhar.
—Que tens?—disse ella chegando o rosto para
elle.—Não te afflijas.—E tomou a mão que elle
pousára á beira do leito.
Jorge, com um repellão secco, sacudiu a mão
d'ella, ergueu-se bruscamente com os dentes cerrados;
sentia uma colera brutal; ia-se, com medo de
si, de um crime, quando ouviu a voz de Luiza, arrastando-se,
n'uma lamentação:
—Porque, Jorge? Que tens?...
Voltou-se; viu-a meia erguida com os olhos abertos
para elle, uma angustia no rosto; e duas lagrimas
cahiam-lhe, silenciosamente.
Atirou-se de joelhos, agarrou-lhe as mãos, aos
soluços.
—Que é isto?—exclamou a voz de Julião á
porta da alcova.
Jorge, muito pallido, ergueu-se devagar.
Julião levou-o para a sala, e cruzando terrivelmente
os braços diante d'elle:
—Tu estás doudo? Pois tu sabes que ella está
n'um estado d'aquelles, e vaes-te pôr a fazer-lhe
scenas de lagrimas?
—Não me pude conter...
—Estoura. Eu estou a cortar-lhe a febre por um
lado, e tu a dar-lh'a por outro? Estás doudo!
Estava realmente indignado. Interessava-se por
[561]
Luiza como doente. Desejava muito cural-a; e sentia
uma satisfação em exercer o dominio de pessoa
necessaria n'aquella casa, onde as suas visitas tinham
tido sempre uma attitude dependente; mesmo
agora ao sahir, não se esquecia de offerecer negligentemente
um charuto a Jorge.
Jorge foi heroico durante toda essa tarde. Não
podia estar muito tempo na alcova de Luiza, a desesperação
trazia-o n'um movimento contradictorio;
mas ia lá a cada momento, sorria-lhe, conchegava-lhe
a roupa com as mãos tremulas; e como ella dormitava,
ficava immovel a olhal-a feição por feição,
com uma curiosidade dolorosa e immoral, com para
lhe surprehender no rosto vestigios de beijos alheios,
esperando ouvir-lhe n'algum sonho da febre murmurar
um nome ou uma data; e amava-a mais desde
que a suppunha infiel, mas d'um outro amor, carnal
e perverso. Depois ia-se fechar no escriptorio, e movia-se
alli entre as paredes estreitas, como um animal
n'uma jaula. Releu a carta infinitas vezes, e a
mesma curiosidade roedora, baixa, vil, torturava-o
sem cessar: Como tinha sido? Onde era o
Paraiso?
Havia uma cama? Que vestido levava ella? O que
lhe dizia? Que beijos lhe dava?
Foi relêr todas as cartas que ella lhe escrevêra
para o Alemtejo, procurando descobrir nas palavras
symptomas de frieza, a data da traição! Tinha-lhe
[562]
odio então, voltavam-lhe ao cerebro idéas homicidas—esganal-a,
dar-lhe chloroformio, fazer-lhe beber
laudano! E depois immovel, encostado á janella,
ficava esquecido n'um scismar espesso, revendo o
passado, o dia do seu casamento, certos passeios que
déra com ella, palavras que ella dissera...
Ás vezes pensava—seria a carta uma
mistificação?
Algum inimigo d'elle podia tel-a escripto, remettido
para França. Ou talvez Bazilio tivesse
outra
Luiza em Lisboa, e por engano ao sobrescriptar o enveloppe
tivesse escripto o nome da prima; e a alegria
momentanea que lhe davam aquellas phantasias
fazia-lhe parecer a realidade mais cruel. Mas como
fôra? como fôra? Se podesse saber a verdade! Tinha
a certeza que socegaria, então! Arrancaria de certo
do seu peito aquelle amor como um parasita immundo;
apenas ella melhorasse, leval-a-hia a um
convento, e elle iria morrer longe, n'Africa, ou algures...
Mas quem saberia?...
Juliana!
Era ella que sabia! De certo! E todas as condescendencias
d'ella por Juliana, os moveis, o quarto,
as roupas, comprehendeu tudo! Era a pagar a cumplicidade!
Era a sua confidente! Levava as cartas,
sabia tudo. E estava na valla, morta, sem poder fallar,
a maldita!
Sebastião, como costumava, veio á noitinha. Não
havia ainda luzes, e, apenas elle entrou, Jorge chamou-o
ao escriptorio, calado, accendeu uma vela, tirou
a carta da gaveta.
—Lê isto.
[563]
Sebastião ficára assombrado ao vêr o rosto de Jorge.
Olhava a carta fechada, e tremia. Apenas viu a
assignatura, uma pallidez d'agonia cobriu-lhe o rosto.
Parecia-lhe que o soalho tinha uma vibração onde
elle se firmava mal. Mas dominou-se, leu devagar,
pousou a carta sobre a mesa, sem uma palavra.
Jorge disse então:
—Sebastião, isto p'ra mim é a morte. Sebastião,
tu sabes alguma cousa. Tu vinhas aqui. Tu sabes.
Dize-me a verdade!
Sebastião abriu devagar os braços e respondeu:
—Que te hei-de eu dizer? Não sei nada!
Jorge agarrou-lhe as mãos, sacudiu-lh'as, e procurando
o seu olhar anciosamente:
—Sebastião, pela nossa amizade, pela alma de
tua mãi, por tantos annos que temos passado juntos,
Sebastião, dize-me a verdade!...
—Não sei nada. Que hei-de eu saber?
—Mentes!
Sebastião disse apenas:
—Podem-te ouvir, homem!
Houve um silencio: Jorge apertava as fontes nas
mãos, com passadas pelo escriptorio, que faziam vibrar
o soalho; e de repente pondo-se diante de Sebastião,
quasi supplicante:
—Mas dize-me ao menos o que fazia ella! Sahia?
Vinha aqui alguem?
Sebastião respondeu devagar, os olhos fixos na
luz:
[564]
—Vinha o primo ás vezes, ao principio. Quando
a D. Felicidade esteve doente, ella ia vêl-a... O primo
depois partiu... Não sei mais nada.
Jorge esteve um momento a olhar Sebastião,
com uma fixidez abstracta.
—Mas que lhe fiz eu, Sebastião? Que lhe fiz eu?
Adorava-a! Que lhe fiz eu p'ra isto? Eu, que a adorava,
áquella mulher!
Rompeu a chorar.
Sebastião ficára de pé junto á mesa, estupido,
aniquilado.
—Foi talvez uma brincadeira, apenas...—murmurou.
—E o que diz a carta?—gritou Jorge, voltando-se
n'uma colera, sacudindo o papel.—Este
Paraiso!
As boas manhãs lá passadas! É uma infame!...
—Está doente, Jorge—disse apenas Sebastião.
Jorge não respondeu. Passeou calado algum tempo.
Sebastião, immovel, fatigava a vista contra a
chamma da luz. Jorge então fechou a carta na gaveta,
e tomando o castiçal com um tom de lassidão
lugubre e resignado:
—Queres vir tomar chá, Sebastião?
E não tornaram mais a fallar na carta.
N'essa noite Jorge dormiu profundamente. Ao
outro dia o seu rosto estava impassivel, d'uma serenidade
livida.
[565]
Foi d'ahi por diante o enfermeiro de Luiza.
A doença, depois d'uma marcha incerta durante
tres dias, definiu-se: eram crescimentos; enfraquecia
muito, mas Julião estava tranquillo.
Jorge passava os seus dias ao pé d'ella. D. Felicidade
vinha ordinariamente pelas manhãs: sentava-se
aos pés da cama, e ficava calada, com uma face
envelhecida; aquella esperança na mulher de Tuy
tão subitamente destruida abalára-a como um velho
edificio a que se tira subitamente um pilar; ia-se
tornando ruina; e só se animava quando o Conselheiro
apparecia pelas tres horas a saber da «nossa
formosa enferma». Trazia sempre alguma palavra
grave que dizia com um tom profundo, conservando
o chapéo na mão, sem querer entrar na alcova,
por pudor:
—A saude é um bem que só apreciamos quando
nos foge!
Ou:
—A doença serve para aquilatarmos os amigos.
E terminava sempre:
—Meu Jorge, as rosas da saude bem cedo reflorirão
nas faces de sua virtuosa esposa!...
De noite Jorge dormia vestido, n'um enxergão
sobre o chão; mas apenas cerrava os olhos uma ou
duas horas. O resto da noite procurava lêr: começava
um romance, mas nunca ia além das primeiras
linhas; esquecia o livro, e com a cabeça entre as
mãos punha-se a pensar: era sempre a mesma idéa—
como
tinha sido? Conseguira reconstruir aproximadamente,
[566]
com logica, certos factos; via bem Bazilio
chegando, vindo visital-a, desejando-a, mandando-lhe
ramos, perseguindo-a, indo-a vêr aqui e
além, escrevendo-lhe; mas depois? Viera já a comprehender
que o dinheiro era para Juliana. A creatura
tivera alguma exigencia: tinha-os surprehendido?
possuia cartas?... E encontrava, n'aquella reconstrucção
dolorosa, falhas, vazios, como buracos
escuros, onde a sua alma se arremessava sofregamente.
Então começava a recordar os ultimos mezes
desde a sua volta do Alemtejo, e como ella se mostrára
amante, e que ardor punha nas suas caricias...
Para que o enganára então?
Uma noite, com precauções de ladrão, rebuscou
todas as gavetas d'ella, esquadrinhou os vestidos,
até as dobras da roupa branca, as caixas de collares,
de rendas; viu bem o cofre de sandalo; estava
vazio; nem o pó d'uma flôr secca! Ás vezes punha-se
a fitar os moveis no quarto, na sala, a sondal-os
como se quizesse descobrir n'elles os vestigios do
adulterio. Ter-se-hiam sentado alli? Elle teria ajoelhado
aos pés d'ella, acolá, sobre o tapete? Sobretudo
o divan tão largo, tão commodo, desesperava-o;
tomou-lhe odio. Veio a detestar mesmo a casa, como
se os tectos que os tinham coberto, os soalhos
que os tinham sustentado tivessem uma cumplicidade
consciente. Mas o que o torturava sobretudo eram
aquellas palavras—o
Paraiso,
as boas manhãs...
Luiza então já dormia tranquillamente. Ao fim de
uma semana os crescimentos desappareceram. Mas
[567]
estava muito fraca: no dia em que pela primeira vez
se levantou, desmaiou duas vezes: era necessario
vestil-a, trazel-a amparada para a
chaise-longue: e
não dispensava Jorge, queria-o alli, ao pé, com exigencias
de criança! Parecia receber a vida dos seus
olhos, a saude do contacto das suas mãos. Fazia-lhe
lêr o jornal pela manhã, e vir escrever para ao pé
d'ella. Elle obedecia, e mesmo aquellas instancias
eram para a sua dôr como caricias consoladoras. É
porque o amava de certo!
Sentia então, machinalmente, abertas de felicidade.
Surprehendia-se a dizer-lhe ternuras, a rir com
ella, esquecido, como d'antes! E, estendida na
chaise-longue,
Luiza, contente, percorria antigos volumes
da
Illustração franceza, que lhe mandára o Conselheiro,—«onde»,
segundo elle lhe dissera, «podia,
ao mesmo tempo que se divertia com os desenhos,
adquirir noções uteis sobre importantes acontecimentos
historicos»; ou, com a cabeça reclinada, saboreava
a felicidade de melhorar, de estar livre das
tyrannias da
outra, das amarguras do
passado.
Uma das suas alegrias era vêr entrar a Marianna
com o seu jantarzinho disposto n'um guardanapo
sobre o taboleiro; tinha appetite, saboreava muito o
calix de vinho do Porto, que Julião recommendára;
quando Jorge não estava, fazia longas conversações
com Marianna, palrando baixo, consolada, e lambendo
colherinhas de gelatina.
Ás vezes, calada, com os olhos no tecto, fazia
planos. Dizia-os depois a Jorge: iria estar duas semanas
[568]
no campo, para ganhar forças; á volta começaria
a bordar tiras de casimira para cobrir as cadeiras
da sala; porque queria occupar-se muito da casa,
viver recolhida; elle não voltaria ao Alemtejo,
não sahiria de Lisboa, não é verdade? E a sua vida
seria d'ahi por diante d'uma doçura continua e facil.
Mas Luiza ás vezes achava-o «macambusio». Que
tinha? Elle explicava pela fadiga, pelas noites mal
dormidas... Se adoecesse, ao menos, dizia ella, que
fosse quando ella estivesse forte para o tratar, para
o velar!... Mas não adoeceria, não? E fazia-o sentar
ao pé de si, passava-lhe a mão pelos cabellos, com
o olhar quebrado, porque com as forças que renasciam
vinham os impulsos do seu temperamento amoroso.
Jorge sentia que a adorava, e era mais desgraçado!
Luiza, só comsigo, tinha outras resoluções. Não
tornaria a vêr Leopoldina, e frequentaria as igrejas.
Sahia da doença com uma vaga sentimentalidade devota.
Durante a febre, em certos pesadêlos de que
lhe ficára uma indistincta idéa aterrada, vira-se ás
vezes n'um lugar pavoroso, onde corpos se erguiam,
torcendo os braços, do meio de chammas escarlates:
fórmas negras giravam com espetos em braza, um
rugido d'agonia subia para a mudez do céo: e já lhe
tocavam o peito linguas de fogueiras, quando alguma
cousa de dôce e d'ineffavel de repente a refrescava;
eram as azas d'um anjo luminoso e sereno,
que a tomava nos braços; e ella sentia-se elevar,
apoiando a cabeça contra o seio divino, que a penetrava
[569]
d'uma felicidade sobrenatural; via as estrellas
de perto, ouvia fremitos d'azas. Aquella sensação
deixára-lhe como uma recordação saudosa do céo. E
aspirava a ella, nas debilidades da convalescença,
esperando ganhal-a pela pontualidade á missa, e pela
repetição de corôas á Virgem.
Emfim uma manhã veio á sala, e abriu pela primeira
vez o piano; Jorge, á janella, olhava para a
rua—quando ella o chamou, e sorrindo:
—Estou a detestar, ha tempos, aquelle divan—disse.—Podia-se
tirar, não te parece?
Jorge sentiu uma pancada no coração: não pôde
responder logo; disse, emfim, com esforço:
—Sim, parece...
—Estou com vontade de o tirar—disse ella sahindo
da sala, arrastando tranquillamente a longa
cauda do seu roupão.
Jorge não pôde destacar os olhos do divan. Veio
mesmo sentar-se n'elle; passava a mão sobre o estofo
ás listras; e sentia um prazer doloroso em verificar
que fôra alli!
Principiára a vir-lhe agora uma especie de resignação
sombria; quando a ouvia gozar tanto as melhoras,
fallar com felicidade de futuros tranquillos,
decidia-se a aniquilar a carta, esquecer tudo. Ella
tinha-se arrependido de certo, amava-o: para que
havia de crear a sangue frio uma infelicidade perpetua?
Mas quando a via com os seus movimentos
languidos estender-se na
chaise-longue, ou ao despir-se
mostrar a brancura do seu collo—e pensava
[570]
que aquelles braços tinham enlaçado outro homem,
aquella bocca gemido de amor n'uma cama alheia—vinha-lhe
uma onda de cólera bruta, precisava
sahir para a não esganar!
Para explicar os seus maus humores, os seus silencios,
começou a queixar-se, a dizer-se doente. E
as solicitudes d'ella, então, as interrogações mudas
do seu olhar inquieto faziam-o mais infeliz—por se
sentir amado, agora que se sabia trahido!
Um domingo emfim Julião deu licença a Luiza
para se deitar mais tarde, e fazer á noite as honras
da casa. Foi uma alegria para todos vel-a na sala,
ainda um pouco pallida e fraca,—mas, como disse
o Conselheiro, restituida aos deveres domesticos e
aos prazeres da sociedade!
Julião que veio ás nove horas achou-a
como nova.
E abrindo os braços, no meio da sala:
—E que me dizem á novidade?—exclamou—A
peça do Ernesto teve um triumpho!...
Assim tinham lido nos jornaes. O
Diario de Noticias
dizia mesmo que o «author chamado ao proscenio,
no meio do mais vivo enthusiasmo, recebera uma
formosa corôa de louros». Luiza declarou logo que
queria ir vêr!
—Mais tarde, D. Luiza, mais tarde—acudiu
com prudencia o Conselheiro.—Por ora é conveniente
evitar toda a commoção forte. As lagrimas que
não deixaria de derramar, conheço o seu bom coração,
podiam produzir uma recahida. Não é verdade,
amigo Julião?
[571]
—De certo, Conselheiro, de certo. Eu tambem
quero ir. Quero convencer-me por meus olhos...
Mas o ruido d'uma carruagem, lançada a trote
largo, que parou á porta, interrompeu-o. A campainha
retiniu fortemente.
—Aposto que é o author!—exclamou elle.
E quasi immediatamente a figura radiante de Ernestinho,
de casaca, precipitou-se na sala: ergueram-se
com ruido, abraçaram-no: mil parabens! mil
parabens! E a voz do Conselheiro, dominando as outras:
—Bem vindo o festejado author! Bem vindo!
Ernesto suffocava de jubilo. Tinha um sorriso
immobilisado; as azas do nariz dilatavam-se-lhe, como
para respirar os incensos; trazia o peito alto,
enfunado d'orgulho; e movia a cabeça, sem cessar,
como n'um agradecimento instinctivo a multidões applaudidoras.
—Aqui estou! aqui estou!—disse.
Sentou-se offegante; e, com um modo amavel de
Deus-bom-rapaz, declarou que os ultimos ensaios de
apuro não lhe tinham deixado um momento para vir
vêr a prima Luiza. Tinha tido n'aquella noite um instante
de seu, mas devia voltar ás dez horas para
o theatro: até nem mandára a tipoia embora...
Contou então largamente o triumpho. Ao principio
tivera «grandes colicas». Todos as tinham, os
mais acostumados, os mais illustres! Mas apenas o
Campos disse o monologo do primeiro acto—e como
o disse! haviam de vêr, uma cousa sublime!—os
[572]
applausos romperam. Tinha agradado tudo. No fim
era um barulho, gritos pelo author, salvas de palmas...
Elle viera ao palco, arrastado; não queria,
mas obrigaram-no, a Jesuina por um lado, a Maria
Adelaide por outro! Um delirio! O Savedra do
Seculo
tinha-lhe dito: o amigo é o nosso Shakspeare! O
Bastos da
Verdade tinha affirmado: és o nosso Scribe!
Houve uma cêa. E tinham-lhe dado uma corôa.
—E serve-lhe?—acudiu Julião.
—Perfeitamente; um bocadinho larga...
O Conselheiro disse com authoridade:
—Os grandes authores, o famigerado Tasso, o
nosso Camões são sempre representados com as suas
respectivas corôas.
—É o que eu lhe aconselho, snr. Ledesma—acudiu
Julião, erguendo-se e batendo-lhe no hombro—é
que se faça retratar de corôa!...
Riram.
E Ernestinho, um pouco despeitado, desdobrando
o seu lenço perfumado:
—O snr. Zuzarte não dispensa o seu epigrammasinho...
—É a prova da gloria, meu amigo. Nos triumphos
dos generaes victoriosos, em Roma, havia um
bobo no prestito!
—Eu não sei!—disse Luiza muito risonha—É
uma honra p'ra a familia!...
Jorge concordou. Passeava pela sala fumando; e
disse que gozava tanto a corôa, como se tivesse direito
a usal-a...
[573]
E Ernestinho voltando-se logo para elle:
—Sabes que lhe perdoei, primo Jorge? Perdoei
á esposa...
—Como Christo...
—Como Christo—confirmou Ernestinho, com satisfação.
D. Felicidade approvou logo:
—Fez muito bem! Até é mais moral!
—O Jorge é que queria que eu désse cabo d'ella—disse
Ernestinho, rindo tolamente.—Não se lembra,
n'aquella noite...
—Sim, sim—fez Jorge, rindo tambem, nervosamente.
—O nosso Jorge—disse com solemnidade o
Conselheiro—não podia conservar idéas tão extremas.
E de certo a reflexão, a experiencia da vida...
—Mudei, Conselheiro, mudei—interrompeu Jorge.
E entrou bruscamente no escriptorio.
Sebastião, inquieto, foi devagar ter com elle. Estava
ás escuras.
—Aquelles idiotas não se calarão? Não se irão?—disse
elle abafadamente, agarrando o braço de Sebastião.
—Socega!
—Oh Sebastião! Sebastião!—E sua voz tremia,
com lagrimas.
Mas Luiza, da sala, gritou:
—Que conspiração é essa ahi dentro ás escuras?
Sebastião appareceu logo, dizendo:
[574]
—Nada, nada. Estavamos lá dentro...—E acrescentou
baixo:—O Jorge está fatigado. Está adoentado,
coitado!
Notaram, quando elle voltou—que tinha com effeito
o ar exquisito.
—Não, realmente não me sinto bom, estou incommodado!
—E a debil D. Luiza precisa o repouso do seu
leito—disse o Conselheiro erguendo-se.
Ernestinho que não se podia demorar, offereceu
logo ao Conselheiro e a Julião—«a sua carruagem,
que era um caleche, se iam para a baixa...»
—Que honra—exclamou Julião olhando Accacio—irmos
na tipoia do Grande Homem!
E em quanto D. Felicidade se agasalhava, os
tres desceram.
No meio da escada Julião parou, e cruzando os
braços:
—Ora aqui vou eu entre os representantes dos
dous grandes movimentos de Portugal desde 1820.
A Litteratura—e comprimentou Ernestinho—e o
Constitucionalismo!—e curvou-se para o Conselheiro.
Os dous riram, lisongeados.
—E o amigo Zuzarte?
—Eu?—E baixando a voz:—Até ha dias um
revolucionario terrivel. Mas agora...
—O quê?
—Um amigo da ordem—gritou com jubilo.
E desceram, contentes de si e do seu paiz, para
se metterem na tipoia do Grande Homem!
XVII
Ao outro dia Jorge foi ao ministerio, onde não
tinha apparecido nos ultimos tempos. Mas demorou-se
pouco. A rua, a presença dos conhecidos ou dos
estranhos torturava-o; parecia-lhe que
todo o mundo
sabia; nos olhares mais naturaes via uma intenção
maligna, e nos apertos de mão mais sinceros uma
ironica pressão de pezames; as carruagens mesmo
que passavam davam-lhe a suspeita de a terem conduzido
ao
rendez-vous, e todas as casas lhe pareciam
a fachada infame do
Paraiso. Voltou mais sombrio,
infeliz, sentindo a vida estragada. E logo do corredor
ao entrar ouviu Luiza cantarolando, como outr'ora, a
Mandolinata!
Estava-se a vestir.
—Como estás tu?—perguntou, pondo a um
canto a sua bengala.
[576]
—Estou boa. Hoje estou muito melhor. Um bocado
fraca ainda...
Jorge deu alguns passos pelo quarto, taciturno.
—E tu?—perguntou-lhe ella.
—P'ra aqui ando—disse tão desconsoladamente
que Luiza pousou o pente, e com os cabellos soltos
veio pôr-lhe as mãos nos hombros, muito carinhosa:
—Que tens tu? Tu tens alguma cousa. Estranho-te
tanto ha dias! Não és o mesmo! Ás vezes estás
com uma cara de réo... Que é? Dize.
E os seus olhos procuravam os d'elle, que se desviavam
perturbados.
Abraçou-o. Insistia, queria que dissesse tudo á
«sua mulherzinha».
—Dize. Que tens?
Elle olhou-a muito, e de repente, com uma resolução
violenta:
—Pois bem, digo-te. Tu agora estás boa, pódes
ouvir... Luiza! vivo n'um inferno ha duas semanas.
Não posso mais... Tu estás boa, não é verdade? Pois
bem, que quer dizer isto? Dize a verdade!
E estendeu-lhe a carta de Bazilio.
—O que é?—fez ella muito branca. E o papel
dobrado tremia-lhe na mão.
Abriu-a devagar, viu a letra de Bazilio, n'um relance
adivinhou-a. Fixou Jorge um momento d'um
modo desvairado, estendeu os braços sem poder fallar,
levou as mãos á cabeça com um gesto ancioso
como se se sentisse ferida, e oscillando, com um
[577]
grito rouco, cahiu sobre os joelhos, ficou estirada no
tapete.
Jorge gritou. As criadas acudiram. Estenderam-na
na cama. Elle quiz que Joanna corresse a chamar
Sebastião; e ficou, como petrificado, junto ao leito,
olhando-a, em quanto Marianna toda tremula desatacava
os espartilhos da senhora.
Sebastião veio logo. Felizmente havia ether, fizeram-lh'o
respirar; apenas abriu lentamente os olhos,
Jorge precipitou-se sobre ella:
—Luiza, ouve, falla! Não, não tem duvida. Mas
falla. Dize, que tens?
Ao ouvir a voz d'elle desmaiou outra vez. Movimentos
convulsivos sacudiam-lhe o corpo. Sebastião
correu a buscar Julião.
Luiza parecia adormecida agora, immovel, branca
como cera, as mãos pousadas sobre a colcha; e
duas lagrimas corriam-lhe devagar pelas faces.
Um trem parou. Julião appareceu esbaforido.
—Achou-se mal de repente... Vê, Julião. Está
muito mal!—disse Jorge.
Fizeram-lhe respirar mais ether; despertou outra
vez. Julião fallou-lhe, tomando-lhe o pulso.
—Não, não, ninguem!—murmurou ella, retirando
a mão. Repetiu com impaciencia:—Não, vão-se,
não quero...—As suas lagrimas redobravam. E
como elles sahiam da alcova para a não excitar contrariando-a,
ouviram-na chamar:—Jorge!
Elle ajoelhou-se ao pé da cama, e fallando-lhe
junto do rosto:
[578]
—Que tens tu? Não se falla mais em tal. Acabou-se.
Não estejas doente. Juro-te, amo-te... Fosse
o que fosse, não me importa. Não quero saber, não.
E como ella ia fallar, elle pousou-lhe a mão na
bocca:
—Não, não quero ouvir. Quero que estejas boa,
que não soffras! Dize que estás boa! Que tens? Vamos
ámanhã para o campo, e esquece-se tudo. Foi
uma cousa que passou...
Ella disse apenas com a voz sumida:
—Oh! Jorge! Jorge!
—Bem sei... Mas agora vaes ser feliz outra
vez... Dize, que sentes?
—Aqui—disse ella, e levava as mãos á cabeça.—Dóe-me!
Elle ergueu-se para chamar Julião, mas ella reteve-o,
attrahiu-o; e devorando-o com olhos onde a
febre se accendia, adiantando o rosto, estendia-lhe
os labios. Elle deu-lhe um beijo inteiro, sincero, cheio
de perdão.
—Oh! minha pobre cabeça!—gritou ella.
As fontes latejavam-lhe, e uma côr ardente, sêcca,
esbrazeava-lhe o rosto.
Como era habituada a enxaquecas, Julião traquillisou-os;
recommendou um socego immovel e
sinapismos de mostarda aos pés,—até que elle voltasse.
Jorge ficou junto do leito, taciturno, cortado de
presentimentos, de sustos, suspirando ás vezes.
Eram então quatro horas; cahia uma chuva miudinha,
[579]
ennevoada; a alcova tinha uma luz lugubre.
—Não ha-de ser nada...—dizia Sebastião.
Luiza agitava-se no leito, apertando as mãos na
cabeça, torturada pela dôr crescente, cheia de sêde.
Marianna acabava d'arrumar em pontas de pés,
vagamente assombrada d'aquella casa, onde só vira
desgosto e doença: mas só o pousar subtil dos seus
passos fazia soffrer Luiza, como se fossem martelladas
sobre o craneo.
Julião não tardou; logo da porta do quarto, o
aspecto d'ella inquietou-o. Accendeu um phosphoro,
aproximou-lh'o do rosto; e aquella luz fez-lhe dar
um grito como se um ferro frio lhe trespassasse a
cabeça.
Os olhos dilatados tinham um reluzir metallico.
Conservava-se muito quieta, porque o gesto mais
lento lhe dava na nuca dôres penetrantes que a dilaceravam.
Só de vez em quando sorria para Jorge
com uma expressão d'afflicção serena e muda.
Julião fez logo pôr tres travesseiros, para lhe
conservar a cabeça alta. Fóra cahia o crepusculo humido.
Andavam em bicos de pés, com cuidado; e
mesmo tiraram o relogio da parede para afastar o
tic-tac monotono. Ella começava agora a murmurar
sons cançados, e a voltar-se com movimentos bruscos
que lhe arrancavam gritos; ou immovel gemia
d'um modo continuo e angustioso. Tinham-lhe envolvido
as pernas n'um longo sinapismo; mas não o
sentia. Pelas nove horas começou a delirar; a lingua
tornára-se-lhe branca e dura, como de gesso sujo.
[580]
Julião fez logo applicar na cabeça compressas
d'agua fria. Mas o delirio exacerbava-se.
Ora tinha um murmurio espesso, um vago rosnar
modorrento—onde os nomes de Leopoldina, de
Jorge, de Bazilio voltavam incessantemente: depois
debatia-se, esgaçava a camisa com as mãos; e, arqueando-se,
os seus olhos rolavam, como largos bugalhos
prateados onde a pupilla se sumia.
Socegava mais; dava risadinhas d'uma doçura
idiota; tinha gestos lentos sobre o lençol, que aconchegavam
e acariciavam, como n'um gozo tepido:
depois começava a respirar anciosamente, vinham-lhe
expressões torturadas de terror, queria enterrar-se
nos travesseiros e nos colxões, fugindo a aspectos
pavorosos: punha-se então a apertar a cabeça phreneticamente,
pedia que lh'a abrissem, que a tinha
cheia de pedras, que tivessem piedade d'ella!—e
fios de lagrimas corriam-lhe pelo rosto. Não sentia
os sinapismos; expunham-lhe agora os pés nús ao
vapor d'agua a ferver, carregada de mostarda; um
cheiro acre adstringia o ar do quarto. Jorge fallava-lhe
com toda a sorte de palavras consoladoras e
supplicantes: pedia-lhe que socegasse, que o conhecesse;
mas de repente ella desesperava-se, gritava
pela carta, maldizia Juliana—ou então dizia palavras
d'amor, enumerava sommas de dinheiro... Jorge
temia que aquelle delirio revelasse tudo a Julião,
ás criadas: tinha um suor á raiz dos cabellos—e
quando ella, um momento, julgando-se no
Paraiso e
nas exaltações do adulterio, chamou Bazilio, pediu
[581]
champagne, teve palavras libertinas, Jorge fugiu da
alcova allucinado, foi para a sala ás escuras, atirou-se
para o divan a soluçar, arrepellou-se, blasphemou.
—Está em perigo?—perguntou Sebastião.
—Está—disse Julião.—Se sentisse os sinapismos,
ao menos! Mas estas malditas febres cerebraes...
Calaram-se vendo Jorge entrar na alcova, com o
rosto manchado, esguedelhado.
E Julião tomando-o pelo braço, levando-o para
fóra:
—Ouve lá, é necessario cortar-lhe o cabello, e
rapar-lhe a cabeça.
Jorge olhou-o com um ar estupido:
—O cabello?—E agarrando-lhe os braços:—Não,
Julião, não, hein? Póde-se fazer outra cousa.
Tu deves saber. O cabello não! Não! Isso não, pelo
amor de Deus! Ella não está em perigo. P'ra quê?
Mas aquella massa de cabello era o diabo, impedia
a acção da agua!
—Ámanhã, se fôr necessario. Ámanhã! Espera
até ámanhã... Obrigado, Julião, obrigado!
Julião consentiu, contrariado. Fazia então humedecer
constantemente as compressas da cabeça, e como
Marianna tremula, desgeitosa, molhava muito o
travesseiro, foi Sebastião que se collocou á cabeceira
da cama, toda a noite, espremendo sem cessar
uma esponja, d'onde a agua gotejava lentamente; tinham
jarros fóra da varanda, na sala, para dar á
[582]
agua uma frialdade gelada. O delirio alta noite acalmára
um pouco. Mas o seu olhar injectado tinha um
aspecto selvagem: as pupillas pareciam apenas um
ponto negro.
Jorge, sentado aos pés da cama, com a cabeça
entre as mãos, olhava para ella: lembravam-lhe vagamente
outras noites de doença assim, quando ella
tivera a pneumonia: e melhorára! Até ficára mais
linda, com tons de pallidez que lhe adoçavam a expressão!
Iriam para o campo quando ella convalescesse:
alugaria uma casinha: voltaria á noite no
omnibus, e vêl-a-hia de longe na estrada vindo ao
seu encontro, com um vestido claro, na tarde suave!...
Mas ella gemia, elle erguia os olhos sobresaltado:
e não lhe parecia a mesma: afigurava-se-lhe
que se ia dissipando, desapparecendo n'aquelle ar
de febre que enchia a alcova, no silencio morbido
da noite, e no cheiro da mostarda. Um soluço sacudia-o,
e recahia na sua immobilidade.
Joanna, em cima, rezava. As velas, com uma
chamma alta e direita, extinguiam-se.
Emfim uma vaga claridade desenhou nos transparentes
brancos os caixilhos da vidraça. Amanhecia.
Jorge ergueu-se, foi olhar para a rua. Não chovia;
a calçada seccava. O ar tinha uma vaga côr d'aço.
Tudo dormia: e uma toalha, esquecida á janella das
Azevedos, agitava-se ao vento frio, silenciosamente.
Quando entrou na alcova Luiza fallava com uma
voz extincta: sentia muito vagamente os sinapismos,
mas a dôr de cabeça não cessava. Começou a agitar-se—e
[583]
o delirio d'ahi a pouco voltou. Julião, então,
determinou que se lhe rapasse o cabello.
Sebastião foi acordar um barbeiro na rua da Escóla—que
veio logo, com um ar transido, a gola
do casaco levantada; e batendo o queixo começou
a tirar immediatamente d'um sacco de couro as navalhas,
as tesouras, devagar, com as mãos molles da
gordura das pomadas.
Jorge foi refugiar-se na sala: parecia-lhe que
grandes pedaços mutilados da sua felicidade cahiam
com aquellas lindas tranças, destruidas ás tesouradas;
e com a cabeça nas mãos recordava certos penteados
que ella usava, noites em que os seus cabellos
se tinham desmanchado nas alegrias da paixão,
tons com que brilhavam á luz... Voltou ao quarto,
attrahido irresistivelmente; sentiu na alcova o ruido
secco e metallico das tesouras; sobre a mesa, n'uma
caixa de sabão, estava um velho pincel de barba,
entre flocos d'espuma... Chamou Sebastião baixo:
—Dize-lhe que se avie! Estão-me a matar a fogo
lento! É de mais. Que ande depressa!
Foi á sala de jantar, errou pela casa: a manhã
fria clareava; erguera-se vento, que ia levando, aos
pedaços, nuvens d'um tom alvadio.
Quando tornou a entrar no quarto, o barbeiro
guardava as navalhas com a mesma lentidão molle;
e tomando o seu chapéo desabado, sahiu em bicos
de pés, murmurando n'um tom funerario:
—Estimo as melhoras. Deus ha-de permittir que
não seja nada...
[584]
O delirio com effeito d'ahi a uma hora acalmou:—e
Luiza cahiu n'uma somnolencia prostrada com
gemidos fracos, que sahiam de seus labios como a
lamentação interior da vida vencida.
Jorge tinha então dito a Sebastião que desejava
chamar o doutor Caminha. Era um medico velho que
tratára sua mãi, e que curára Luiza da pneumonia,
no segundo anno de casada. Jorge conservára
uma admiração agradecida por aquella reputação antiquada;
e agora a sua esperança voltava-se sofregamente
para elle, anciando pela sua presença como
pela apparição d'um santo.
Julião condescendeu logo. Até estimava! E Sebastião
desceu correndo, para ir a casa do dr. Caminha.
Luiza, que sahira um momento do seu torpôr,
sentiu-os fallar baixo. A sua voz extincta chamou
Jorge:
—Cortaram-me o cabello...—murmurou tristemente.
—É para te fazer bem—disse-lhe Jorge, quasi
tão agonisante como ella.—Cresce logo. Até te vem
melhor...
Ella não respondeu; duas lagrimas silenciosas
correram-lhe pelos cantos dos olhos.
Devia ser a sua ultima sensação: a prostração comatosa
ia-a immobilisando, apenas a sua cabeça rolava
n'um movimento dôce e vagaroso sobre o travesseiro,
gemendo sempre com um cansaço triste; a
pelle empallidecia como um vidro de janella, por
[585]
traz do qual lentamente uma luz se apaga; e mesmo
os ruidos da rua que começavam não a impressionavam,
como se fossem muito distantes e abafados em
algodão.
Ao meio dia D. Felicidade appareceu. Ficou petrificada
quando a viu tão mal: e ella que a vinha
buscar para irem á Encarnação, talvez ás lojas! Tirou
logo o chapéo, installou-se; fez arranjar a alcova,
tirar as bacias, os velhos sinapismos que arrastavam,
compôr a cama—«porque não havia peor
p'ra um doente que desarranjo no quarto»: e muito
corajosamente animava Jorge.
Uma carruagem parou á porta. Era o doutor Caminha,
emfim!... Entrou atabafado no seu cachenez
de quadrados verdes e pretos, queixando-se muito do
frio;—e tirando devagar as grossas luvas de casimira,
que pôz dentro do chapéo methodicamente,
adiantou-se para a alcova com um passo cadenciado,
acamando com a mão as suas repas grisalhas já muito
colladas ao craneo pela escova.
Julião e elle ficaram sós na alcova.
No quarto os outros esperavam calados, ao pé de
Jorge, pallido como cêra, com os olhos vermelhos
como carvões.
—Vai-se-lhe pôr um caustico na nuca—veio dizer
Julião.
Jorge devorava com o olhar ancioso o doutor Caminha,
que se pozera a calçar tranquillamente as
suas luvas de casimira, dizendo:
—Vamos a vêr com o caustico. Não está bem...
[586]
Mas ha ainda peor. E eu volto, meu amigo, eu
volto.
O caustico foi inutil. Não o sentia, immovel e
branca, com as feições crispadas; e tremuras passaram-lhe
de repente nos nervos da face como vibrações
fugitivas.
—Está perdida—disse Julião baixo a Sebastião.
D. Felicidade ficou muito aterrada, fallou logo
nos sacramentos.
—P'ra quê?—resmungou Julião impaciente.
Mas D. Felicidade declarou que tinha escrupulos,
que era um peccado mortal; e chamando Jorge para
o vão da janella, toda tremula:
—Jorge, não se assuste, mas seria bom pensar
nos sacramentos...
Elle murmurava como assombrado:
—Os sacramentos!
Julião chegou-se bruscamente, e quasi zangado:
—Nada de tolices! Qual sacramentos! P'ra quê?
Ella nem ouve, nem comprehende, nem sente. É necessario
deitar-lhe outro caustico, talvez ventosas, e
é o que é! Isso é que são os sacramentos!
Mas D. Felicidade escandalisada, muito abalada,
começou a chorar. Esqueciam Deus, e em Deus é
que está o remedio!—dizia, assoando-se com estrondo.
—Pelo que Deus faz por mim...—exclamou
Jorge, sahindo do seu torpôr. E batendo as mãos,
como revoltado por uma injustiça:—Porque realmente,
que fiz eu p'ra isto? Que fiz eu!...
[587]
Julião ordenára outro caustico. Havia agora na
casa um movimento allucinado. Joanna entrava de
repente com um caldo inutil que ninguem pedira,
os olhos muito vermelhos de chorar. Marianna soluçava
pelos cantos. D. Felicidade ia, vinha pelo
quarto, refugiando-se na sala para rezar, fazendo
promessas, lembrando que se chamasse o doutor
Barbosa, o doutor Barral.
E Luiza no entanto estava immovel; uma côr macilenta
ia-lhe dando ás faces tons cavados e rigidos.
Julião extenuado pediu um calix de vinho, uma
fatia de pão. Lembraram-se então que desde a vespera
não tinham comido, e foram á sala de jantar
onde Joanna, sempre lavada em lagrimas, serviu
uma sopa, e ovos. Mas não achava os colheres,
nem os guardanapos; murmurava rezas, pedia desculpa;
em quanto Jorge, com os olhos inchados,
fitos na borda da mesa, a face contrahida, fazia
dobras na toalha.
Depois d'um momento pousou devagarinho a
colhér, desceu ao quarto. Marianna estava sentada
aos pés do leito: Jorge disse-lhe que fosse servir os
senhores: e apenas ella sahiu, deixou-se cahir de
joelhos, tomou uma das mãos de Luiza, chamou-a
baixo; depois mais forte:
—Escuta-me. Ouve, pelo amor de Deus. Não estejas
assim, faze por melhorar. Não me deixes n'este
mundo, não tenho mais ninguem! Perdôa-me. Dize
que sim. Faze signal que sim ao menos. Não me
ouve, meu Deus!
[588]
E olhava-a anciosamente. Ella não se movia.
Ergueu então os braços ao ar n'uma desesperação
allucinada.
—Sabes que creio em ti, meu Deus. Salva-a!
Salva-a!—E arremessava a sua alma para as alturas:—Ouve,
meu Deus! Escuta-me! Sê bom!
Olhava em roda, esperando um movimento, uma
voz, um acaso, um milagre! Mas tudo lhe pareceu
mais immovel. A face livida cavava-se; o lenço que
lhe envolvia a cabeça desarranjára-se, via-se o craneo
rapado, d'uma côr ligeiramente amarellada.
Pôz-lhe então a mão na testa, hesitando, com medo;
pareceu-lhe que estava fria! Abafou um grito, correu
para fóra do quarto, e deu com o doutor Caminha
que entrava, tirando pausadamente as luvas.
—Doutor! Está morta! Veja. Não falla, está
fria...
—Então! Então!—disse elle—Nada de barulho,
nada de barulho!
Tomou o pulso de Luiza, sentiu-o fugir sob os
dedos, como a vibração expirante d'uma corda.
Julião veio logo. E concordou com o doutor Caminha
que as ventosas eram inuteis.
—Já as não sente—disse o doutor, sacudindo
o tabaco dos dedos.
—Se se lhe désse um copo de cognac?...—lembrou
de repente Julião. E vendo o olhar espantado
do doutor:—Ás vezes estes symptomas de coma
não querem dizer que o cerebro esteja desorganisado:
podem ser apenas a inacção da força nervosa
[589]
exhausta. Se a morte é irremediavel não se
perde nada; se é apenas uma depressão do systema
nervoso, póde-se salvar...
O doutor Caminha, com o beiço descahido, oscillava
incredulamente a cabeça:
—Theorias!—murmurou.
—Nos hospitaes inglezes...—começou Julião.
O doutor Caminha encolheu os hombros com desprezo.
—Mas se o doutor lêsse...—insistiu Julião.
—Não leio nada!—disse o doutor Caminha com
força—tenho lido de mais! Os livros são os doentes...—E
curvando-se, com ironia:—Mas se o
meu talentoso collega quer fazer a experiencia...
—Um copo de cognac ou d'aguardente!—pediu
Julião á porta.
E o doutor Caminha sentou-se commodamente
«para gozar o fracasso do talentoso collega».
Levantaram Luiza; Julião fez-lhe engulir o cognac;
quando a deitaram ficou na mesma immobilidade
comatosa: o doutor Caminha tirou o relogio, viu
as horas, esperou: havia um silencio ancioso: emfim
o doutor ergueu-se, tomou-lhe o pulso, apalpou a
frialdade crescente das extremidades; e indo buscar
silenciosamente o chapéo começou a calçar as luvas.
Jorge foi com elle até á porta:
—Então, doutor?—disse, agarrando com uma
força desvairada o braço.
—Fez-se o que se pôde—disse o velho, encolhendo
os hombros.
[590]
Jorge ficou estupido no patamar, vendo-o descer.
As suas passadas vagarosas nos degraus cahiam-lhe
com uma percussão medonha no coração. Debruçou-se
no corrimão, chamou-o baixo. O doutor parou,
levantou os olhos; Jorge pôz as mãos para elle,
com uma anciedade humilde:
—Então não é possivel mais nada?
O doutor fez um gesto vago, indicou o céo.
Jorge voltou para o quarto, encostando-se ás paredes.
Entrou na alcova, atirou-se de joelhos aos
pés da cama, e alli ficou com a cabeça entre as
mãos n'um soluçar baixo e continuo.
Luiza morria: os seus braços tão bonitos, que
ella costumava acariciar diante do espelho, estavam
já paralysados; os seus olhos, a que a paixão dera
chammas e a voluptuosidade lagrimas, embaciavam-se
como sob a camada ligeira d'uma pulverisação
muito fina.
D. Felicidade e Marianna tinham accendido uma
lamparina a uma gravura de Nossa Senhora das Dôres,
e de joelhos rezavam.
O crepusculo triste descia, parecia trazer um silencio
funerario.
A campainha, então, tocou discretamente; e d'ahi
a momentos appareceu a figura do Conselheiro Accacio.
D. Felicidade ergueu-se logo; e vendo as suas
lagrimas, o Conselheiro disse lugubremente:
—Venho cumprir o meu dever, ajudar-lhes a passar
este transe!
Explicou «que encontrára por acaso o bom doutor
[591]
Caminha, que lhe contára a fatal occorrencia»! Mas
muito discretamente não quiz entrar na alcova. Sentou-se
n'uma cadeira, collocou melancolicamente o
cotovêlo sobre o joelho, a testa sobre a mão, dizendo
baixo a D. Felicidade:
—Continue as suas orações. Deus é imperscrutavel
em seus decretos.
Na alcova, Julião estivera tomando o pulso de
Luiza; olhou então Sebastião, fez-lhe o gesto d'alguma
cousa que vôa e desapparece... Aproximaram-se
de Jorge, que não se movia, de joelhos, com a face
enterrada no leito:
—Jorge—disse baixinho Sebastião.
Elle levantou o rosto desfigurado, envelhecido,
os cabellos nos olhos, as olheiras escuras.
—Vá, vem—disse Julião. E vendo o espanto
do seu olhar:—Não, não está morta, está n'aquella
somnolencia... Mas vem.
Elle ergueu-se, dizendo com mansidão:
—Pois sim, eu vou. Estou bem... Obrigado.
Sahiu da alcova.
O Conselheiro levantou-se, foi abraçal-o com solemnidade:
—Aqui estou, meu Jorge!
—Obrigado, Conselheiro, obrigado.
Deu alguns passos pelo quarto; os seus olhos pareciam
preoccupar-se com um embrulho que estava
sobre a mesa; foi apalpal-o; desapertou as pontas,
e viu os cabellos de Luiza. Ficou a olhal-os, erguendo-os,
[592]
passando-os d'uma das mãos para outra, e
disse com os beiços a tremer:
—Fazia tanto gosto n'elles, coitadinha!
Tornou a entrar na alcova. Mas Julião tomou-lhe
o braço, queria-o afastar do leito. Elle debatia-se dôcemente;
e, como uma vela ardia sobre a mesinha
ao pé da cabeceira, disse, mostrando-a:
—Talvez a incommode a luz...
Julião respondeu commovido:
—Já não a vê, Jorge!
Elle soltou-se da mão de Julião, foi debruçar-se
sobre ella; tomou-lhe a cabeça entre as mãos com
cuidado para a não magoar, esteve a olhal-a um momento;
depois pousou-lhe sobre os labios frios um
beijo, outro, outro, e murmurava:
—Adeus! Adeus!
Endireitou-se, abriu os braços, cahiu no chão.
Todos correram. Levaram-no para a
chaise-longue.
E em quanto D. Felicidade n'um pranto afflicto
fechava os olhos de Luiza, o Conselheiro, com o chapéo
sempre na mão, cruzava os braços, e oscillando
a sua calva respeitavel, dizia a Sebastião:
—Que profundo desgosto de familia!
XVIII
Depois do enterro de Luiza, Jorge despediu as
criadas, foi para casa de Sebastião.
N'essa noite pelas nove horas o Conselheiro Accacio,
muito abafado, descia o Moinho de Vento, quando
encontrou Julião, que vinha de vêr um doente
na rua da Rosa. Foram andando juntos, conversando
de Luiza, do enterro, da afflicção de Jorge.
—Pobre rapaz! Aquillo é que é soffrer!—disse
Julião compadecido.
—Era uma esposa modêlo!...—murmurou o
Conselheiro.
De resto, disse, vinha justamente de casa do bom
Sebastião, mas não podéra vêr o seu Jorge; tinha-se
estirado sobre a cama, e dormia profundamente.
E acrescentou:
[594]
—Ultimamente lia eu que aos grandes golpes
succedem sempre somnos prolongados. Assim, por
exemplo, Napoleão depois de Waterloo, depois do
grande desastre de Waterloo!
E passado um momento, continuou:
—É verdade. Fui vêr o nosso Sebastião... Fui
mostrar-lhe...—E interrompendo-se, parando:—Porque
eu entendi que era o meu dever dedicar um
tributo á memoria da infeliz senhora. Era o meu dever,
e não me eximi a elle! E estimo tel-o encontrado,
porque quero saber a sua opinião conscienciosa
e desassombrada.
Julião tossiu, e perguntou:
—É um necrologio?
—É um necrologio.
E o Conselheiro, apesar de «não achar proprio,
na sua posição, o entrar em cafés publicos», lembrou
a Julião que poderiam descançar um momento
no Tavares, se não estivesse muita gente, e elle poderia
lêr-lhe «a producção».
Espreitaram.
Estavam apenas, a uma mesa, dous velhos calados
defronte dos seus cafés, com os chapéos na cabeça,
apoiados a bengalas de cana da India. O moço
dormitava ao fundo. Uma luz crua e intensa enchia
a sala estreita.
—Ha um silencio propicio—disse o Conselheiro.
Offereceu um café a Julião; e tirando então do
bolso uma folha de papel pautado, murmurou:—Infeliz
senhora!—Inclinou-se para Julião, e leu:
[595]
NECROLOGIO
Á MEMORIA DA SNR.a D. LUIZA MENDONÇA DE BRITO
CARVALHO
Rosa d'amor, rosa purpurea e bella,
Quem entre os goivos te esfolhou na campa?
—É do immortal Garrett!—E continuou com
uma voz lenta e lugubre:
«... Mais um anjo que subiu ao céo! Mais uma
flôr pendida na tenra haste que o vendaval da morte,
em sua inclemente furia, arremessou mal desabrochada
para as trevas do tumulo...»
Olhou Julião para solicitar a sua admiração, e
vendo-o curvado a remexer o seu café, proseguiu
com entonações mais funerarias:
—«Detende-vos, e olhai a terra fria! Alli jaz a
casta esposa tão cedo arrancada ás caricias do seu
talentoso conjuge. Alli sossobrou, como baixel no escarcéo
da costa, a virtuosa senhora, que em sua folgazã
natureza era o encanto de quantos tinham a
honra de se aproximar do seu lar! Por que soluçaes?»
—Um café, ó Antonio!—bradou a voz rouca de
um sujeito grosso, de jaquetão, que se sentou ao pé,
pondo com ruido a bengala sobre a mesa e deitando
o chapéo para o cachaço.
O Conselheiro olhou-o de lado, com rancor. E
baixando a voz:
[596]
—«...Não soluceis! Que o anjo se não pertence
á terra pertence ao céo!...»
—O sô Guedes esteve já por ahi?—perguntou
a voz rouca.
O criado disse de traz do balcão, limpando com
uma rodilha as travessas de metal:
—Ainda não, snr. D. José!
—«...Alli—continuou o Conselheiro—seu
espirito, librando-se nas candidas azas, entôa louvores
ao Eterno! E não cessa de pedir ao Omnipotente
mercês e favores para derramar sobre a cabeça do
dilecto esposo, que um dia, não duvideis, a encontrará
nas regiões celestes, patria das almas de tão
subido quilate...»—E a voz do Conselheiro aflautava-se
para indicar aquella ascensão paradisiaca.
—E hontem á noite esteve cá, o sô Guedes?—insistiu
o sujeito de jaquetão com os cotovêlos sobre
a mesa, fumando como uma chaminé.
—Esteve tarde. Lá pelas duas horas.
O Conselheiro sacudiu o papel com um desespero
mudo: por traz dos vidros da luneta escura fusilavam-lhe
nos olhos os despeitos homicidas de author
interrompido. Mas proseguiu:
—«...E vós, ó almas sensiveis, vertei as lagrimas,
mas vertendo-as, não percaes de vista que o homem
deve curvar-se aos decretos da Providencia...»
E interrompendo-se:
—Isto é para dar coragem ao nosso pobre Jorge!—Continuou:—«...da
Providencia. Deus conta
mais um anjo, e a sua alma brilha pura...»
[597]
—Esteve com a pequena, o sô Guedes?—fez o
sujeito, quebrando no marmore da mesa a cinza do
charuto.
O Conselheiro suspendeu-se pallido de raiva:
—Deve ser pessoa da mais baixa extracção—rosnou
com odio.
E o criado erguendo a vozinha fina detraz do
balcão:
—Nada, não; tem vindo agora com uma hespanhola
d'ahi de cima da rua. Uma magrinha, com o
cabello riçado, uma capa vermelha...
—A Lola!—acudiu o outro com satisfação. E espreguiçou-se
com voluptuosidade á recordação da Lola.
O Conselheiro agora apressava-se:
«... E de resto, o que é a vida? Uma rapida
passagem sobre o orbe, e um vão sonho de que
acordamos no seio do Deus dos Exercitos, de que todos
somos indignos vassallos».
E com esta phrase monarchica o Conselheiro
terminou.
—Que lhe parece, com franqueza?
Julião sorveu o fundo da chavena, e collocando-a
devagar no pires, lambendo os beiços:
—É para imprimir?
—Na
Voz Popular, com tarjeta preta.
Julião coçou convulsivamente a caspa, e erguendo-se:
—Está muito bom. Muito bom, Conselheiro!
E Accacio procurando o troco para o moço:
—Creio que está digno d'ella, e de mim!
[598]
E sahiram calados.
A noite estava muito escura: erguera-se um nordeste
frio: gotas de chuva tinham cahido. Ao Loreto,
Julião parou subitamente; e exclamou:
—Ai esquecia-me! Sabe a novidade, Conselheiro?
A D. Felicidade recolhe-se á Encarnação.
—Ah!
—Disse-m'o agora. Eu fui justamente vêl-a antes
de ir vêr um doente á rua da Rosa. Estava com
uma febresita. Cousa de nada... A commoção; o susto!
E deu-me parte: recolhe-se ámanhã á Encarnação.
O Conselheiro disse:
—Sempre conheci n'aquella senhora idéas retrogradas.
É o resultado das manobras jesuiticas, meu
amigo!—E ajuntou com a melancolia do liberal descontente:—A
reacção levanta a cabeça!
Julião tomou familiarmente o braço do Conselheiro,
e sorrindo:
—Qual reacção! É por sua causa, ingrato...
O Conselheiro estacou:
—Que quer o meu nobre amigo insinuar?
—Sim, homem! Não sei como diabo descobriu
uma cousa grave...
—O que? Acredite...
—O que eu tambem descobri, seu maganão!
Que o Conselheiro tem duas travesseirinhas na cama,
tendo só uma cabeça... Disse-m'o ella!—E rindo
muito, dizendo-lhe
adeus!
adeus! desceu rapidamente
a rua do Alecrim. O Conselheiro ficou immovel, no
largo, de braços cruzados, como petrificado.—Que
[599]
infeliz senhora! Que funesta paixão!—murmurou
emfim. E acariciou o bigode, com satisfação.
Como tinha de passar a limpo o
Necrologio apressou-se
a entrar em casa. Abancou com uma manta
sobre os joelhos; bem depressa as responsabilidades
de prosador distrahiram-no das preoccupações d'homem;
e até às onze horas a sua bella letra cursiva
e burocratica desenrolou-se nobremente sobre uma
larga folha de papel inglez, no silencio do seu
Sanctus
Sanctorum. Terminava quando a porta rangeu,
e a Adelaide, com um chale forte pelos hombros,
veio dizer, n'uma voz constipada:
—Então hoje não se faz néné?
—Não tardo, minha Adelaide, não tardo!
E releu baixo, enlevado. Pareceu-lhe então que o
final não era commovente: queria terminar por uma
exclamação dolorosa, prolongada como um
ai! Meditou,
com os cotovêlos sobre a mesa, a cabeça entre
os dedos muito abertos: Adelaide então, chegando-se
devagar, passou-lhe a mão pela calva: aquelle
dôce roçar amoroso fez de certo saltar a idéa como
uma faisca, porque tomou rapidamente a penna, e
acrescentou:
—«Chorai! Chorai! Em quanto a mim, a dôr suffoca-me!»
Esfregou as mãos com orgulho. Repetiu alto n'um
tom plangente:
—«Chorai, Chorai, em quanto a mim, a dôr suffoca-me!»—E
passando o braço concupiscente pela
cinta da Adelaide, exclamou:
[600]
—Está de fazer sensação, minha Adelaide!
Ergueu-se. Tinha terminado o seu dia. Fôra bem
preenchido e digno: da manhã certificára-se com regosijo
no
Diario do Governo, que a familia real «passava
sem novidade»; cumprira o dever d'amigo,
acompanhando Luiza aos Prazeres n'uma carruagem
da Companhia; a alta das inscripções assegurava-lhe
a paz da sua patria; compozera uma prosa notavel;
a sua Adelaide amava-o! E de certo se deliciou na
certeza d'estas felicidades, que contrastavam tanto
com as imagens sepulchraes que a sua penna revolvera,
porque Adelaide ouviu-o murmurar:
—A vida é um bem inestimavel!—E acrescentar
como bom cidadão:—Sobretudo n'esta era de
grande prosperidade publica!
E entrou no quarto com a cabeça erecta, o peito
cheio, os passos firmes, erguendo alto o castiçal.
A sua Adelaide seguia-o, bocejando; estava cançada
da constipação e—de uma hora de ternuras,
que tivera á tardinha, com o louro e meigo Arnaldo,
caixeiro da
Loja da America.
Áquella hora dous homens desciam d'uma carruagem
á porta do Hotel Central: um trazia uma
ulster
de xadrez, o outro uma longa pelliça. Um omnibus
quasi ao mesmo tempo parou, carregado de bagagens.
Um criado allemão, que conversava em baixo
com o porteiro, reconheceu-os logo, e tirando o côco:
[601]
—Oh snr. D. Bazilio! Oh snr. visconde!
O visconde Reynaldo, que batia os pés nas lages,
rosnou de dentro da sua pelliça:
—É verdade, aqui estamos outra vez na possilga!
Mas áquella hora?
—A que horas queria vossê que chegassemos?
Ás horas da tabella, talvez! Doze horas d'atrazo, essa
bagatella! Em Portugal é quasi nada...
—Houve algum transtorno?—perguntava o criado
com solicitude, seguindo-os pela escada.
E Reynaldo, pisando com um pé nervoso o esparto
do corredor:
—O transtorno nacional! Descarrilou tudo! Estamos
aqui por milagre! Abjecto paiz!...—E desabafava
a sua cólera com o criado: tel-a-hia desabafado
com as pedras da rua, tanto era o excesso da
bilis:—Ha um anno que a minha oração é esta:
Meu Deus, manda-lhe outra vez o terromoto!
Pois
todos os dias leio os telegrammas a vêr se o terromoto
chegou... e nada! Algum ministro que cahe,
ou algum barão que surge. E de terremoto nada!
O Omnipotente faz ouvidos de mercador ás minhas
preces... Protege o paiz! Tão bom é um como outro!—E
sorria, vagamente reconhecido a uma nação,
cujos defeitos lhe forneciam tantas pilherias.
Mas quando o criado, muito consternado, lhe declarou—que
não havia senão um salão e uma alcova
com duas camas, no terceiro andar—a cólera de
Reynaldo não conheceu restricções:
—Então havemos de dormir no mesmo quarto?
[602]
Vossê pensa que o snr. D. Bazilio é meu amante, seu
devasso? Está tudo cheio? Mas quem diabo se lembra
de vir a Portugal? Estrangeiros? É justamente o
que me espanta!—E encolhendo os hombros com
rancôr.—É o clima, é o clima que os attrahe! O
clima, este prodigioso engodo nacional! Um clima
pestifero. Não ha nada mais reles de que um bom
clima!...
E não cessou d'invectivar o seu paiz, em quanto
o criado á pressa, sorrindo servilmente, punha sobre
a jardineira pratos, fiambre, um frango frio e
Bourgogne.
Reynaldo vinha vender a ultima propriedade, e
acompanhára Bazilio que voltava a terminar «o seccante
negocio da borracha». E não cessava de rosnar
soturnamente de dentro da pelliça:
—Aqui estamos! Aqui estamos no chiqueiro!
Bazilio não respondia. Desde que chegára a Santa
Apolonia, recordações do
Paraiso, da casa de Luiza,
de todo aquelle romance do verão passado, começavam
a voltar, a attrahil-o, com um encanto picante.
Fôra encostar-se á vidraça. Uma lua fria, livida, corria
agora entre grossas nuvens côr de chumbo: ás
vezes uma grande malha luminosa cahia sobre a
agua, faiscava: depois tudo escurecia: vagas mastreações
desenhavam-se na obscuridade diffusa: e algum
fanal de navio tremeluzia friamente.
—Que fará ella a esta hora?—pensava Bazilio.—Naturalmente,
deitava-se... Mal sabia que elle estava
alli, n'um quarto do Hotel Central...
[603]
Cearam.
Bazilio levou a garrafinha de cognac para a cabeceira
da cama: e com a cara coberta de pó d'arroz,
os folhos da sua camisa de dormir abertos sobre o
peito, muito estendido, soprando o fumo do charuto,
gozava uma lassidão confortavel.
—E ámanhã estou-te d'aqui a vêr—disse Reynaldo.—Vaes-te
logo metter com a prima!
Bazilio sorriu, o seu olhar errou um pouco pelo
tecto; certas recordações das bellezas d'ella, do seu
temperamento amoroso, trouxeram-lhe uma vaga voluptuosidade:
espreguiçou-se.—Que diabo!—disse—é
uma linda rapariga! Vale immenso a pena!—Bebeu
mais um calice de cognac, e d'ahi a pouco
dormia profundamente. Era meia noite.
Áquella hora Jorge acordava, e sentado n'uma
cadeira, immovel, com soluços cançados que ainda o
sacudiam, pensava n'ella. Sebastião, no seu quarto,
chorava baixo. Julião, no Posto Medico, estendido
n'um sophá, lia a
Revista dos Dous Mundos. Leopoldina
dançava n'uma
soirée da Cunha. Os outros dormiam.
E o vento frio que varria as nuvens e agitava
o gaz dos candieiros ia fazer ramalhar tristemente
uma arvore sobre a sepultura de Luiza.
D'ahi a dous dias pela manhã Bazilio, no Rocio,
procurava, com o olhar em redor, um
coupé decente.
Mas o Pintéos, avistando-o de longe, lançou logo
[604]
a parelha. Cá está o Pintéos, meu amo! Parecia encantado
de tornar a vêr o snr. D. Bazilinho, e apenas
elle lhe disse:
—Lá acima, á Patriarchal, ó Pintéos!
—A casa da senhora? Prompto, meu amo.—E
endireitando-se na almofada, bateu.
Quando a tipoia parou á porta de Jorge—o Paula
sahiu para a rua, a estanqueira correu de dentro
do balcão, a criada do doutor debruçou-se logo na
janella. E immoveis arregalavam os olhos.
Bazilio tocára a campainha, um pouco nervoso:
esperou, arremessou o charuto, tornou a puxar o
cordão com força.
—As janellas estão trancadas, meu amo—disse
o Pintéos.
Bazilio recuou ao meio da rua: as portadas verdes
estavam fechadas, a casa tinha um aspecto
mudo.
Bazilio dirigiu-se ao Paula:
—Os senhores que alli moram, estão p'ra fóra?
—Já não moram—disse o Paula soturnamente,
passando a mão sobre o bigode.
Bazilio fixou-o, surprehendido d'aquella entonação
funebre.
—Onde vivem agora então?
O Paula escarrou, e cravando em Bazilio um
olhar desolado:
—V. s.
a é o parente?
Bazilio disse sorrindo:
—Sou o parente, sou.
[605]
—Então não sabe?
—O quê, homem de Deus?
O Paula esfregou o queixo, e bamboleando a cabeça:
—Pois sinto dizer-lh'o. A senhora morreu.
—Que senhora?—perguntou Bazilio. E fez-se
muito branco.
—A senhora! A senhora D. Luiza, a mulher do
snr. Carvalho, o Engenheiro... E o snr. Jorge está
em casa do snr. Sebastião. Alli ao fim da rua. Se
v. s.
a lá quer ir...
—Não!—fez Bazilio com um gesto rapido da
mão. Os beiços tremiam-lhe um pouco.—Mas que
foi?
—Uma febre! Rapou-a em dous dias!
Bazilio dirigiu-se ao
coupé devagar, com a cabeça
baixa. Olhou mais uma vez para a casa; fechou com
força a portinhola. O Pintéos
bateu p'ra a Baixa.
O Paula então aproximou-se do estanque:
—Não lhe fez muita móssa! Fidalgos! Canalha!—murmurou.
A estanqueira disse lamentosamente:
—Pois eu não sou parenta, e todas as noites lhe
rezo dous padre-nossos por alma...
—E eu!—suspirou a carvoeira.
—Ha-de-lhe isso servir de muito!—rosnou o
Paula, afastando-se.
Estava ultimamente mais amargo. Vendia pouco.
Aquellas mortes na rua traziam-no desconfiado da
vida. Cada dia detestava mais os padres! e todas
[606]
as noites lia a
Nação que lhe emprestava o Azevedo,
repastando-se com rancor d'artigos devotos, que
o exasperavam, o impelliam para o atheismo; e o
descontentamento das cousas publicas inclinava-o
para a communa. Como elle dizia, achava tudo uma
porcaria.
Foi de certo sob este sentimento que, voltando á
porta do estanque, disse ás visinhas com um ar lugubre:
—Sabem o que isto é? Sabem o que tudo isto
é?—Fazia um gesto que abrangia o universo. Fitou-as
d'um modo irado, e rosnou esta palavra suprema:
—Um monte d'estrume!
Ao descer a rua do Alecrim, Bazilio viu o visconde
Reynaldo á porta do hotel
Street. Mandou parar
o Pintéos, e saltando do
coupé:
—Sabes?
—O quê?
—Minha prima morreu.
O visconde Reynaldo murmurou polidamente:
—Coitada!...
E foram descendo a rua, de braço dado, até ao
Aterro. O dia estava glorioso; um friosinho subtil
errava; no ar luminoso, leve, trespassado de sol, as
casas, os galhos das arvores, os mastros das faluas,
as mastreações dos navios tinham uma nitidez muito
[607]
desenhada; os sons sobresahiam com uma tonalidade
cantada e alegre; o rio reluzia como um metal azul;
o vapor de Cacilhas ia soltando rolos de fumo que
tomavam a côr do leite; e ao fundo as collinas faziam
na pulverisação da luz uma sombra azulada,
onde as casarias caiadas rebrilhavam.
E os dous passeando devagar, iam fallando de
Luiza.
O visconde Reynaldo, delicado, lamentava a pobre
senhora, coitada, que se tinha deixado morrer
por um tempo tão lindo!—Mas em resumo, sempre
achára aquella ligação absurda...
Porque emfim fossem francos: que tinha ella?
Não queria dizer mal «da pobre senhora que estava
n'aquelle horror dos Prazeres», mas a verdade é
que não era uma amante
chic; andava em tipoias
de praça; usava meias de tear; casára com um reles
individuo de secretaria; vivia numa casinhola,
não possuia relações decentes; jogava naturalmente
o quino, e andava por casa de sepatos d'ourello;
não
tinha espirito, não tinha
toilette... que diabo! Era
um trambolho!
—Para um ou dous meses que eu estivesse em
Lisboa...—resmungou Bazilio com a cabeça baixa.
—Sim, p'ra isso talvez. Como hygiene!—disse
Reynaldo com desdem.
E continuaram calados, devagar. Riram-se muito
d'um sujeito que passava governando atarantadamente
dous cavallos pretos:—Que phaeton! Que
arreios! Que estylo! Só em Lisboa!...
[608]
Ao fundo do Aterro voltaram; e o visconde Reynaldo
passando os dedos pelas suiças:
—De modo que estás sem mulher...
Bazilio teve um sorriso resignado. E, depois d'um
silencio, dando um forte raspão no chão com a bengala:
—Que ferro! Podia ter trazido a Alphonsine!
E foram tomar Xerez á
Taverna Ingleza.
Setembro 1876—Setembro 1877.
FIM
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
Não existem os capítulo XI e XIV nesta obra:
Não havendo interrupção na paginação respeitámos a ordem da obra original.
A
página 525 surge no original como 425. Corrigimos para 525 para manter a ordem
(após verificação que não se tratava de uma página fora de sítio).