The Project Gutenberg eBook of As Netas do Padre Eterno This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: As Netas do Padre Eterno Author: Alberto Pimentel Release date: July 19, 2020 [eBook #62706] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK AS NETAS DO PADRE ETERNO *** Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) N.º 32—COLLECÇÃO ANTONIO MARIA PEREIRA AS NETAS DO PADRE ETERNO COLLECÇÃO ANTONIO MARIA PEREIRA AS NETAS DO PADRE ETERNO ROMANCE ORIGINAL POR Alberto Pimentel [Illustration] LISBOA LIVRARIA DE ANTONIO MARIA PEREIRA—EDITOR 50, 52—Rua Augusta—52, 54 1895 LISBOA—Typ. e Stereotypia Moderna—Apostolos, 11, 1.º I Desde a primavera até ao inverno de 1873, decorre, na historia da moderna Hespanha, um periodo de rubra agitação demagogica, em que tanto a abandonada coroa da velha Monarchia de S. Fernando como o recente barrete phrygio da Republica fluctuam n’um mar de sangue, golphado do proprio coração d’esse bello paiz meridional, e sinistramente illuminado pelos reflexos coruscantes dos incendios de Alcoy, que eram o facho tristemente glorioso da insurreição cantonal. Nação essencialmente catholica, a Hespanha viu profanados os seus templos, principalmente em Barcelona, onde as mulheres, n’uma infrene orgia de bacchantes, envergavam as vestes sacerdotaes, entoando cantares obscenos, e derramando por sobre os altares o vinho que trasbordava das taças. Nas ruas, as allucinações da musa popular, terrivelmente revolucionaria, alternavam-se com as detonações dos fuzilamentos, e aos dithyrambos entoados á beira dos altares correspondiam, fóra dos templos, trovas sacrilegas, dissolventes, anarchicas: Yá se le acabó á los curas El comer á dos carrillos, Y el ir de noche al café Con el ama y los chiquillos. Abajo las estrellas, Abajo los galones, Que no quiere mandones La santa federal. É certo que na alma popular da Hespanha não estavam de todo pervertidos os sentimentos cavalheirescos da raça castelhana, mas a revolução ia alastrando dia a dia o seu dominio,—em Sevilha era incendiada a _calle de las Sierpes_, em Cadiz punha-se em almoeda a custodia do _Corpus Christi_, em Málaga dois bandos rivaes porfiavam em horrores de barbarie, em Granada os desenfreamentos do vandalismo desmoronavam as instituições e os templos, como acontecia em Barcelona, em cujos campos os bosques incendiados chammejavam como enorme fornalha: por isso só timidamente a musa das ruas ousava contrapôr um grito de justa indignação aos desvarios da demagogia que golpeava o coração da patria, enodoando de sangue as mais bellas paginas da historia nacional. D’esses timidos gritos de reacção popular não se perdeu comtudo a nota caracteristica, que ainda hoje póde encontrar ecco na apreciação imparcial d’esse periodo demagogico: La republica en Guarena La cantan los taberneros, Y en D. Benito la cantan Los sastres y zapateros. El candido de Figueras, Y el radical Figuerola, Nos ha dejado em cuerines Sin calzon ni camisola. Um illustre escriptor hespanhol, o sr. Vicente Barrantes, emigrando n’essa epocha para Portugal, escreveu sob o titulo de _Dias sin sol_, um livro interessante, em que estão consignadas as dolorosas impressões que as desgraças da Hespanha punham no coração dos seus angustiados filhos. Uma pagina d’esse livro diz: «Com mão debil e porventura timida empunhou o tribuno Emilio Castellar as redeas da dictadura, ao tempo que a fronteira portugueza, onde eu me achava, offerecia um lancinante espectaculo. Cerrada a do norte pelos carlistas, era aquella a unica porta para escapar d’este inferno de Hespanha, e cada trem do caminho de ferro iberico parecia barcada de Acheronte, como aquellas que rangendo os dentes e blasphemando até dos paes de seus paes viu passar o grande poeta da Edade-Média pelo lodoso lago que ao inferno conduz... De Madrid, de Alcoy, de Cartagena, de Valencia, de Cadiz, de Sevilha, de Jerez chegavam por centenas familias dispersas, como quem foge de uma peste; e isto um dia e outro dia, e mezes inteiros; e récuas e caravanas de inoffensivos lavradores, de pacificos artistas, de laboriosos industriaes desembocavam simultaneamente por todas as povoções da fronteira, desde Barrancos a Setubal, desde Elvas a Lisboa, desde Zamora e Ciudad-Rodrigo ao Porto: misero formigueiro de emigrantes de todas as classes e condições, com os olhos voltados para Hespanha, mas receiando, a cada hora que o horror os convertesse em estatuas, como á mulher da Biblia.» Setubal, pela amenidade do seu clima, e pela belleza dos seus campos, hospedou uma importante colonia hespanhola, atravez da qual eu passeei algumas vezes os meus ocios de _touriste_. Principalmente no verão, em julho, que foi a epocha mais calamitosa da revolução, a affluencia de emigrados era numerosissima ali. E o que é verdadeiramente notavel é que os havia de todas as côres politicas, porque o perigo era egual para todos. A revolução não curava de perscrutar as opiniões de cada um. Perseguia, roubava, incendiava, fuzilava indistinctamente. Já não era pequena felicidade poder fugir á morte, salvar a vida. Dos emigrados, conheci alguns ricos, poucos, e esses eram os que tinham logrado liquidar a tempo os seus haveres, antes que a _santa federal_ se encarregasse da liquidação. D’este numero era a familia Saavedra, de Sevilha, que tem de figurar n’esta historia. Tres pessoas apenas: pae, mãe e filha. O pae, o sr. D. Enrique Saavedra, havia collocado uma somma importante n’um Banco inglez. Era um industrial acreditado, e teve o bom senso de fechar as suas fabricas mal que soaram os primeiros rugidos da insurreição cantonal. Se não tivesse procedido assim, haveria decerto succumbido ás mãos dos seus proprios operarios. Em politica, era francamente monarchico; principalmente, partidario dos Bourbons. «Qué broma! dizia-me elle, D. Izabel está exilada. Mas ou a revolução aniquila de vez a Hespanha, ou a Hespanha ainda chamará a rainha». Com effeito, em pouco se enganou D. Enrique: um filho de Isabel II occupou o throno de S. Fernando. Os Bourbons voltaram. Quem se não importava grandemente com os acontecimentos politicos de Hespanha, era sua filha, Soledad, a mais _salerosa_ individualidade de mulher que é dado phantasiar na vaga idealisação de uma noite de serenata. Bocage, quando do alto do seu monumento a viu, estremeceu. Setubal ficou encantada, não obstante ter-se iberisado então pelas relações commerciaes que mantinha com a colonia dos emigrados. E digo commerciaes, porque os hespanhoes eram os primeiros a queixar-se que só tratassem com elles os setubalenses nas transacções ordinarias da vida: dá cá, toma lá. De resto os emigrados entretinham-se uns com os outros, com duas ou tres pessoas da terra, e com as que eram de fóra. O ideal de Soledad era uma _tertulia_ ou, como hoje dizemos á franceza, uma _soirée_. Por muito tempo procurou desesperadamente uma _tertulia_, e se alguma vez ouvia tocar piano, parava de subito, attentava o ouvido e, com uma graça vivaz, picante, exclamava: _Qué! És una tertulia?_ Era apenas um piano que tertuliava uma valsa... platonicamente. Chegára o verão, começaram a apparecer os banhistas, muita gente do Alemtejo. Ao fim da tarde sentavam-se na praia, olhando para o mar, e ou fallavam dos seus montados e das suas courellas, ou descahiam em somnolencia mazomba. Alguns d’elles, de faces rosaceas, abdomen enxundioso, e instinctos retemperados pela bella fibra suina tinham exclamações carnaes quando a hespanhola passava, e digo a hespanhola, porque era assim que toda a gente fallava d’ella, sem embargo de que n’esse momento outras muitas estivessem em Setubal. Era, porém, como se se dissesse: a bella hespanhola, a formosa por excellencia. Das pessoas da terra foram poucas as que romperam com a tradição local de retraimento bisonho, arrastadas pela fascinação. E essas poucas, eram homens. As senhoras visitavam-se então em Setubal difficilmente, e esta difficuldade augmentava para com os estrangeiros, cuja procedencia era quasi impossivel esquadrinhar, a não se fazer obra pelas informações dos seus patricios, suspeitas para o caso. Um dia, porém, Soledad comprehendeu que os seus olhos podiam, elles mesmos, em toda a parte, improvisar uma _tertulia_; que no seu sorriso alegre e resplendente de andaluza havia encantos de sobra para fazer conhecidos e namorados, e desde esse momento ella zombou poderosamente da semsaboria setubalense, trazendo comsigo, a toda a hora, de manhã ou á noite, uma _tertulia_ completa, attrahida pelo iman da sua formosura, rebocada pela sua fascinação iberica. Era a sua côrte, a sua _coterie_, o seu séquito. Por accordo tacito, conferiu-se-lhe o sceptro das Hespanhas, que a princeza de la Cisterna havia deposto. Vassalos enthusiastas rodeavam-n’a como nunca os tivera a rainha Maria Victoria. Cada dia que passava trazia um novo alliado. Alguem que vinha a Lisboa, dizia: «Que bella hespanhola que está em Setubal!»—«O que?!» perguntavam no Chiado.—«Unica! incomparavel! sublime!» era a replica. Os curiosos iam, e ficavam. Creio que os generos alimenticios chegaram a encarecer em Setubal. Mas o que embarateceu foi a poesia. N’aquelle tempo, ainda o verso era o vehiculo do amor, e com razão se julgava que para uma mulher de um paiz ardente não havia para inflammar-lhe a phantasia como uma metralha de alexandrinos. Em redor da bella andaluza, fallava-se um hespanhol mascavado, que ás vezes parecia ser-lhe ainda de mais difficil comprehensão do que o vasconço o é para o commum dos hespanhoes. Mas que se importava Soledad com as palavras? Ella já sabia o que lhe diziam, o que por força se havia de dizer ao pé d’ella: que a amavam. Sorria, e respondia com os olhos, augmentando a fascinação, sem se comprometter: este segredo que só os olhos das hespanholas possuem. As portuguezas, com habitarem a mesma peninsula e serem da mesma raça, affirmam ou negam com os olhos, compromettem-se pelo olhar. Os olhos das hespanholas fallam sempre, mas raras vezes para affirmar ou negar. A duvida atiça o amor, e ella espalhava a duvida com o olhar. Não era bem prometter, não era bem recusar, seria tudo isso talvez, ou, ainda melhor, nada d’isso seria. Semeava esperanças, atirava flores e olhares ao acaso, emquanto o pae fallava dos assassinatos de Montilla, dos incendios de Alcoy e dos sacrilegios de Barcelona, e emquanto a mãe, que se morria por peixe, e era ainda arrebitada, ia por ali fóra, deixando vêr no sorriso uns dentes alvissimos, marchando com um desembaraço verdadeiramente hespanhol, em direcção á Ribeira, para comprar um safio ou uma corvina. Assim mesmo é que era; sem _ficelles_ realistas, pela minha parte.—Ah! ditoso safio! ah! venturosa corvina! diziam muitos, que não podendo occupar o coração de Soledad, se contentariam com achar logar no seu estomago. Eu nunca fui d’esta opinião; não pelo acto em si mesmo, mas pelas consequencias. Todavia ha paladares para tudo... Alguns entendiam que o melhor modo de conquistar a filha era captivar a mãe—pela bocca. Offereciam-lhe carregações de peixe-espada, cardumes de salmonetes, cabazes de laranjas—e então aquellas laranjas, as de Setubal! Um adorador setubalense mandou-lhe de uma vez um presente de sal, que chegava bem para salgar uma geração inteira. Outro _attaché_, lisboeta, riu do caso, fazendo notar que quem possuia uma filha assim tinha mais sal do que todas as marinhas do Sado. Para brindar Soledad, os seus admiradores iam colhêr as melhores flores das quintas de Brancannes, que dispunham em graciosos _bouquets_ e lindas _corbeilles_, recorrendo ao velho estratagema amoroso de esconder entre as flores uns versos ou uma carta, se bem que ella parecesse ás vezes gostar muito mais de laranjas que de flores. O proprio D. Enrique era obsequiado com garrafas de excellente moscatel, e seja dito em abono da verdade que o moscatel de Setubal parecia ter o condão de lhe aligeirar os desgostos causados pelas desgraças da patria. De dia para dia se tornava cada vez mais numerosa e obsequiadora a côrte em que a bella andaluza era rainha absoluta, omnipotente. Soledad sabia, como ninguem mais, conservar a illusão, a duvida ao mesmo passo cruel e deleitosa, que traz suspensos os namorados entre a esperança e o desalento. Não se deixava comprehender: esse era o seu grande segredo. A maior desgraça que póde acontecer a uma mulher é o ser comprehendida por todos. Umas vezes, parecia enlevada em extasis romanticos, tinha vagas abstracções, o seu olhar pairava no azul luminoso da noite. _Que bella es la luna!_ dizia. Dos seus labios adejava um suspiro, que era impossivel interpretar. Outras vezes, quando lhe faziam notar a belleza da lua, ria com desdem petulante, replicando que já estava enfastiada de ouvir fallar da lua de Portugal e da revolução de Hespanha. Emquanto uns fallavam a Soledad, vogando na ondulação das suas esperanças, ora afagadas, ora combatidas, D. Estanislada, a mãe, discorria a proposito do peixe-espada que tinha comido ao jantar com salada de alface e azeitonas, e D. Enrique discursava sobre a queda dos Bourbons ou sobre a frasqueira do sr. Fonseca, de Azeitão. Eu não posso dizer quantos e quaes fossem os satellites de Soledad a esse tempo. Eram muitos. Citarei apenas os que me forem lembrando. Um jornalista de Lisboa, o Goes, que mandava mais versos do que laranjas, e um morgado de Reguengos, que mandava mais laranjas do que versos. Um proprietario das Alcaçovas que se atirava ao coração de Soledad com sorrisos e presuntos. Um rapaz de Setubal, o Vianninha, que recorria ao auxilio das flôres, e que deixára pela bella hespanhola uma menina da terra, a Sequeira, que estava padecendo horriveis hysterismos por se vêr abandonada. O conselheiro Antunes, de Santarem, pessoa grave e dinheirosa, que se dirigia principalmente á mãe, não se sabia se para ficar por ahi, se como ponto de partida para se aproximar da filha. Um morrinhento hespanholito, tambem emigrado, D. Ramon Mendoza, que recitava versos como quem está a solfejar cantochão. O alferes Ruivo e o tenente Epaminondas, de caçadores 1. Um sueco, que estava ali a negocio: alto, louro, rosado e inintelligivel. Um marialva do Chiado, que fôra a uma corrida de touros, e não se demorára menos de quinze dias. Um estudante de Alcacer, Julio de Lemos, que tinha ido a férias, e não chegára a casa. Mas, francamente, é-me completamente impossivel enumerar todos os cortezãos da bella andaluza, tanto mais que todos os dias pareciam multiplicar-se como as cabeças da hydra de Lerna e os algarismos da divida fluctuante. Em face de tão numeroso cortejo, terá decerto perguntado já o leitor a si proprio como é que elles podiam conviver uns com os outros, sem desatar á descompostura e ao murro. A todos os trazia illudidos a esperança, como a duzentos candidatos que requerem o mesmo emprego. Fallavam-se, como os pretendentes se fallam debaixo da Arcada. Cada um tratava de metter memorial, e de arranjar as suas coisas. Havia _hotel_, o _Escoveiro_ por exemplo, onde dormiam dois a dois, por falta de leitos. Ás vezes intrigavam-se. Finalmente, estavam em Setubal a amar a bella hespanhola como podiam estar em Lisboa a amar o deputado do circulo. Todos elles possuiam o retrato de Soledad, reproduzido do _cliché_ que um photographo ambulante, temporariamente estabelecido no largo das Almas, durante a estação de banhos, punha ao serviço do amor, na razão de 1$500 réis por photographia. O retratista estava fazendo um grande negocio; parecia ter fome, quando ali chegou, mas, passados dias, ia todas as manhãs á praça do Sapal comprar uma bella posta de carne de vacca e um chouriço, levando tudo para casa n’uma folha de couve. Estes retratos duravam só mais quatorze manhãs do que a rosa de Malherbe. Quando muito, ao cabo de tres semanas a imagem desapparecia, apagava-se. Os enamorados iam fornecer-se de novo, n’uma grande anciedade amorosa, da qual o photographo ambulante desentranhava chouriços no dia seguinte. Á hora da ceia, na longa meza dos _hoteis_, um grupo de amorosos, n’uma orgia de moscatel, brindava pelo amor e pela esperança, havendo cada um encostado á garrafa ou á compoteira o retrato de Soledad. Então extasiavam-se, soltando _hurrahs_ perante o seu talhe _mignon_, o seu collo de pomba, os seus bellos cabellos negros, caprichosamente amontoados sob as rendas brancas da mantilha, os seus olhos penetrantes como punhaes de Toledo e vivos como carvões accesos, o seu gracioso ar petulante, illuminado por essa luz mysteriosa, que se projecta sobre as mulheres hespanholas, e que se chama—o _salero_. O conselheiro Antunes, que tambem estava n’um _hotel_, não tomava parte n’estas bacchanaes amorosas, condemnava-as mesmo, e tiravam-lhe o somno, quer fosse pelo ciume ou pela algazarra. No dia seguinte queixava-se de persevejos. O sueco, esse, embebedava-se com kirsch, e tornava-se inintelligivelmente gárrulo. Punha os olhos no tecto, parecendo recitar as mais sentimentaes estrophes da Scandinavia, ao passo que os portuguezes choravam de riso ao vel-o arroubado, e perguntavam entre si: «_Que diabo estará a dizer este pedaço de bruto!_» Uma noite, havia dado uma hora na egreja de S. Julião, e no _Hotel Escoveiro_ o grupo dos enamorados abordava a setima garrafa de moscatel, tendo cada um o retrato de Soledad em frente do seu prato, quando de repente, á porta da sala, uma figura inesperada apparece. Era D. Enrique Saavedra. O estudante d’Alcacer, que receiou uma tragedia de colera paterna em cinco actos e outras tantas bengaladas, lembrou-se de apagar o candeeiro. Fez-se um silencio profundo, que o sueco, alheio ao que se passava, e grandemente enkirschado, interrompeu começando a declamar palavras de quinze syllabas, longas e sibilantes como um comboyo. De repente, a voz de D. Enrique troveja: —_Hombres, por Dios, atencion!_ O estudante foi tacteando a meza, ás escuras, para esconder os retratos, e aconteceu-lhe metter uma das mãos dentro de uma chicara de café. O sueco calou-se, porque o proprietario das Alcaçovas lhe deitou as mãos ás guelas. O jornalista lisboeta gritou que deixassem ouvir. Então D. Enrique declarou o que queria: Procurar o cirurgião ajudante de caçadores 1, para acudir a D. Estanislada, que estava afflictissima com uma indigestão de peixe-espada e salada d’alface. II No dia seguinte, Julio de Lemos, o estudante de Alcacer do Sal, passeiava a sua paixão escholastica sob as arvores do largo das Almas, quando de repente lhe apparece, de physionomia completamente transtornada, o photographo ambulante. Que se encontrava n’uma situação afflictissima, disse-lhe o retratista. Um agiota de Lisboa, a quem devia cem mil réis, sabendo que estava fazendo interesses em Setubal, cahira sobre elle de chofre, tendo chegado no comboyo da manhã, para exigir-lhe o prompto reembolso de uma parte da divida. Que elle photographo se havia esquecido realmente de satisfazer as prestações estipuladas, que a mulher e os filhos gostavam muito de bifes, e que elle gostava não só de bifes mas tambem de moscatel de Azeitão. Que não tinha dinheiro algum de que podesse dispôr, e que o agiota queria retirar-se para Lisboa no comboyo da tarde, levando algum dinheiro. Sou um homem muito desgraçado! exclamava o photographo. E acrescentava: Portugal é um paiz perdido para os artistas! São todos como eu. (Referia-se certamente á pobreza, não ao moscatel e aos bifes). O estudante ouviu-o tendo nos labios um sorriso de extranha superioridade, com as mãos nos bolsos das calças, enfunando-as á hussard. E perguntou ao retratista: —O senhor viu alguma vez a _Cora_ em D. Maria II? —Vi, sim, respondeu promptamente o photographo. E acrescentou:—Uma só vez, sabe Deus com que sacrificio! para vêr o panorama do Mississipi, que me tinham gabado muito,—por amor da arte! —Pois bem. Lembra-se como o Cesar de Lima fechava um acto?... —_O senhor já viu alguma vez a Providencia? Pois a Providencia sou eu!_ Parece-me que era isto. —Exactamente. É essa a phrase, observou Julio de Lemos. Em Lisboa a Providencia é o Cesar de Lima; em Setubal, sou eu. —O senhor! —Eu mesmo, _me adsum_. E tirou do bolso do frak todos os retratos que na vespera á noite havia podido encontrar sobre a mesa do _Hotel Escoveiro_, para que D. Enrique Saavedra os não visse. Mostrou-os ao photographo dizendo-lhe: —Vê isto? —Vejo. São os retratos da _senhorita Soledad_, como o photographo, no seu calão de circo, costumava chamar sempre á bella andaluza. Mas não comprehendo! —Pois não comprehende! extranhou o estudante. Vai comprehender. Hontem á noite, estando nós a ceiar no _Hotel Escoveiro_ e tendo os retratos de Soledad sobre a mesa, entrou inesperadamente D. Enrique Saavedra. —Oh diabo! exclamou o photographo. E elle soube que sou eu quem os tiro?! —Qual historia! Quando elle entrou, eu tive a idéa luminosa de apagar o candeeiro... —Então não foi luminosa, exclamou o photographo já tranquillo, e contente de si, por ter feito um dito gracioso. —É boa! exclamou o estudante, rindo estrepitosamente, e dando dois piparotes no estomago do photographo. Apanhou-a bem!... —É que d’estas coisas de luz, um photographo entende sempre. E riram de novo. —Ora bem, continuou Julio de Lemos. Eu tive a escura idéa de apagar o candeeiro, e de procurar em cima da mesa os retratos de Soledad. Durante a viagem das minhas mãos por sobre a toalha, introduzi uma d’ellas dentro de uma chicara de café, e estive para partir uma garrafa. Mas, felizmente, pude apanhar todos os retratos. São estes. O photographo começou a comprehender; sorria velhacamente. —Hoje, continuou o estudante, todos os hospedes do _Hotel Escoveiro_ irão a sua casa procurar retratos de Soledad, e o sr. venderá estes mesmos, exceptuando o meu, se quizer acceitar as condições que lhe vou propôr. O photographo ouvia attentamente, com uma curiosidade cheia de pontos de interrogação. —As condições são dar-me a commissão de vinte por cento em cada um d’esses retratos... Nos labios do photographo passou rapidamente um movimento de despeito. Litteralmente traduzida, essa crispação quereria dizer: Ah! maroto, que me comeste! Mas em voz alta: —Vá feito. —Espere lá,—continuou o estudante, que havia tres dias estava sem dinheiro—o meu amigo ainda não pensou na possibilidade de ir alguem a Lisboa mandar copiar qualquer d’estes retratos, de modo a poder-se reproduzir um _cliché_ por um preço muito inferior a 1$500 réis o cartão? —Sim... lá isso... mas a despeza do caminho de ferro?... e o incommodo?... e sobretudo... o ter que ausentar-se da senhorita Soledad, deixando o campo livre ao inimigo! Esta ultima advertencia do photographo tinha visivelmente por fim ferir a corda sensivel do coração do estudante, que se deu pressa em responder: —Ora o meu amigo excede na arte de não saber photographar o proprio Marcel das _Scenas da vida da bohemia_ (o livro predilecto do estudante) que tirava retratos aos granadeiros de Pariz com a similhança garantida por um anno. A imagem das suas photographias só pode ser garantida por quinze dias, o maximo. Portanto, d’aqui a oito dias, estes retratos estarão completamente apagados, o meu amigo terá novas encommendas, e eu continuarei a receber a commissão de vinte por cento, com direito a um retrato gratuito. O photographo transigiu, pactuou. O estudante entregou-lhe os retratos de Soledad, que n’esse mesmo dia foram vendidos aos seus admiradores—pela segunda vez. No dia seguinte, o photographo ia, com o producto d’esta receita inesperada, fazer uma patuscada a Azeitão, levando comsigo a mulher, a sogra, e os pequenos. O agiota de Lisboa tinha sido uma fabula inventada pelo desejo com que o photographo accordára de dar um rega-bofes a toda a familia. E o estudante habilitava-se a comprar ao feitor de uma quinta de Brancannes um bello ramo de flores com que corrêra a presentear Soledad, por isso que, _inopia pecuniae_, se havia deixado preterir n’este genero de galanteria idyllica. D. Estanislada estava inteiramente restabelecida. O cirurgião ajudante de caçadores 1 fôra felicissimo na prompta applicação de um copinho de genebra de Hollanda, que pôde quebrantar os impetos do peixe-espada no estomago da afflicta senhora. _Es usted un doctor completo!_ dizia ao outro dia D. Enrique Saavedra ao cirurgião, passeiando com elle na praia, e impingindo-lhe a centessima edição da historia oral dos acontecimentos de Hespanha. E como o doutor cahisse ingenuamente em dizer que andava fazendo estudos sobre a historia da poesia revolucionaria na peninsula, D. Enrique Saavedra começou a repetir-lhe, com uma facundia verdadeiramente hespanhola, varias quadras _callejeras_, como elle dizia, taes como estas: Ay qué risa, qué risa, qué risa Que Amadeo lo he visto en camisa! Ay salero, ay salero, ay salero, Que á Amadeo lo he visto yo en cuero! Si nos cumplen la palabra Zorrilla, Rivéro y Martos, Le pondrémes á Amadeo El passaporte en la mano. Entretanto, D. Estanislada, Soledad e o grupo dos admiradores da bella andaluza haviam-se encaminhado para o Passeio da praia de Troino. Era convidativo o local, e a grande serenidade do Sado punha no horisonte da paizagem uma vaga doçura inexplicavel. O sueco sentia-se bem deante do aspecto grandioso das aguas do rio, e do mar que se avistava ao longe. Era, em toda a sua pujança, n’esse momento, um homem do norte, habituado a vêr os grandes rios e os grandes lagos, sem se arripiar de frio, graças ao habito do clima septentrional e... ao kirsch. Como Soledad parasse ao pé do lago para lhe atirar uma pedrinha, que desappareceu descrevendo á superficie da agua ondulações concentricas, o sueco disse-lhe, na sua linguagem arrevesada, que se ella visse o lago Moelar, em Stockholmo, semeado de pequenas ilhas, ficaria verdadeiramente encantada, e baixo, ao ouvido, acrescentou: _Senhora poderr irr comiga, se querr casa mim._ Como fosse o sueco quem n’essa tarde parecia ter adiantado terreno, os outros iam despeitados, e alguns, n’um grupo, faziam troça e iam chasqueando das suas calças curtas, das suas grandes botas rugosas, do seu passo de pachiderme, e da sua _gaucherie_ amorosa. O conselheiro Antunes, fallando com D. Estanislada, aconselhava-lhe que para a outra vez se abstivesse do peixe-espada, que na sua opinião era muito reimoso. Chegados á beira do rio, Soledad sentou-se, poz os olhos na corrente plácida do Sado, e tirou da sua alma de andaluza um suspiro que mandou ao Guadalquivir. Explicou ao sueco que a cidade de Sevilha ficava á margem do Guadalquivir, um bello rio, o mais formoso de todo o mundo! exclamou ella n’uma arrojada hyperbole hespanhola. O sueco sentiu-se ferido na corda do patriotismo, e replicou: _Nó! nó!_ E procurou justificar a negativa citando os principaes rios da Scandinavia, enumerando o _Tornea_, o _Lulea_, o _Pitea_ e o _Umea_. E o estudante, troçando, acrescentou do lado com ruidoso applauso dos circumstantes, e com a rapidez de quem está declinando nomes latinos: E o _Gelea_, o _Gouvea_, o _Obrea_, e o _Lamprea_. O sueco fez-se encarnado como uma cereja, sem perceber ao certo senão que estavam rindo d’elle, e Soledad vibrou uma gargalhada sonora como um tinido de crystaes, que se houvessem encontrado na sua garganta. Era que o estudante de Alcacer estava verdadeiramente desesperado. N’esse mesmo dia em que havia ido comprar um _bouquet_ a uma quinta, a cuja porta um grande cão arremettêra contra elle ladrando encolerisado, n’esse mesmo dia em que com varia fortuna tivera a vantagem de só elle offerecer flores e a contrariedade das iras do cão, via-se preterido pelo sueco. O estudante procurou desesperadamente no seu espirito uma idéa salvadora, que pudesse restituir-lhe a importancia que visivelmente ia perdendo. Queria a todo o custo deslocar o sueco da bella posição em que se encontrava, e pretendeu despertar na alma de Soledad as tendencias devaneadoras que por vezes se caracterisavam n’uma intermittencia de romanticismo. Propoz um passeio ao oratorio de Mendoliva, um sitio poetico, na encosta da serra de S. Filippe, quasi á beira-mar. Com effeito, o espirito da bella andaluza exaltou-se promptamente. Ella não sabia o que era Mendoliva, nem qual fosse a belleza d’esse local. Mas o seu delicado instincto de mulher e de andaluza adivinhou que se tratava de uma tradição romantica, de uma lenda nacional, e abraçou o alvitre. O estudante delirou de alegria, julgou-se victorioso. D. Estanislada perguntou a que distancia ficaria o oratorio. Indicou-lhe a direcção o Vianninha, o rapaz de Setubal, aquelle por quem a Sequeira estava bebendo anti-hysterico todas as noites. O alferes Ruivo e o tenente Epaminondas affirmaram que o sitio era delicioso. Mas o conselheiro Antunes recordou a D. Estanislada o preceito da eschola de Salerno: _Post prandium sta, post cœnam ambula_, e aconselhou-lhe que ficasse, que elle lhe faria companhia, _com muito gosto e muita honra_—palavras suas—, _minha senhora_. D. Estanislada acceitou a advertencia—por causa do estomago e de outros orgãos. Partiu em direcção ao oratorio de Mendoliva o alegre rancho da bella andaluza e dos seus cavalleiros _servientes_. O caminho, á beira-mar, é em verdade delicioso. O sol, n’uma grande explosão de luz, lançava sobre o mar uma chuva de oiro. Manchas encarnadas, de um colorido á Rubens, punham no horisonte uns tons de purpura, que davam ao sol uma magestade olympica, como as cortinas de um throno asiatico. Chegaram com effeito ao local da antiga ermida de S. Braz, onde em outro tempo um soldado portuguez se elevou em extasis de asceta, havendo trocado a espada pelo habito. Soledad gostou muito, comprehendeu a vaga poesia que se respirava ali, e pediu ao estudante a lenda do sitio. Pobre estudante! Viu-se entalado, sem saber como havia de tirar-se d’aquelle mau passo. Concluiu por dizer que o sitio não tinha lenda. Foi um golpe de espada de Alexandre. O alferes Ruivo e o tenente Epaminondas foram da mesma opinião: que o sitio não tinha historia. O proprietario das Alcaçovas acrescentou com uma rudeza brutal que não podia ser assim: que _Mendoliva_ havia por força de dizer alguma coisa. O morgado de Reguengos acudiu em auxilio do patricio, pela honra do Alemtejo: que _Mendoliva_ havia de ter uma significação qualquer. Então o jornalista Aurelio Goes, que se havia conservado calado, com um sorriso de ironia nos labios, poz-se em evidencia: disse que o chronista Ruy de Pina contava que Mendo Gomes de Seabra fôra um cavalleiro do tempo de D. João I, que, mais tarde, já depois do desastre de Tanger, se apartára do mundo ermando ali, e que, passados annos, fundára o mosteiro de Alferrara. Julio de Lemos, desesperado, apopletico de colera, observou que o jornalista estava confundindo Mendo Gomes de Seabra com D. Nuno Alvares Pereira, que fôra quem depois de ter militado nos exercitos de D. João I resolvêra vestir o habito monastico, e que provavelmente o povo setubalense confundiu os dois individuos na mesma lenda. Aurelio Goes despeitou-se, e perguntou ao estudante se elle já havia feito exame de historia portugueza. O Lemos respondeu insolentemente: que sim, mas que talvez a tivesse desaprendido lendo os jornaes. O jornalista perguntou se se referia ao jornal de que elle era redactor. E o Lemos, querendo nivelar-se á altura de um Cid campeador perante a bella andaluza, respondeu que não podia referir-se a outro jornal, visto que o seu redactor confundia Mendo Gomes de Seabra com D. Nuno Alvares Pereira. Aurelio Goes ainda avançou para o estudante, mas o proprietario das Alcaçovas deitou-lhe a mão ao braço, como na vespera havia deitado as mãos ás guelas do sueco. Soledad acompanhou com os seus bellos olhos penetrantes todos os episodios d’este conflicto. Comprehendeu perfeitamente tudo o que se havia passado, e quiz dissipar a nuvem negra que subitamente se formára. Lembrou que o sitio era encantador, que convidava á poesia, e pediu ao estudante que recitasse uns versos. Julio de Lemos desculpou-se, que estava indisposto, que se não lembrava de versos nenhuns. Ella insistiu, com imperiosa meiguice. Que não, que não podia, tornou o estudante. Soledad redobrou de instancias. O estudante, com as faces rubras como papoulas e os olhos congestionados, teve que ceder e começou a recitar, com uma precipitação colerica: As flores d’alma que se alteiam bellas, Puras, singelas, orvalhadas, vivas, Têm mais aromas, e são mais formosas, Que as pobres rosas, n’um jardim captivas. Completamente fóra de si, fez uma longa pausa, procurando visivelmente lembrar-se da segunda quadra. Depois ia continuar com igual precipitação: Sol bemfazejo lhes aquece a chamma e, olhando n’este momento para Aurelio Goes, viu que elle sorrira. Sem mesmo perceber que se havia enganado, e dito uma tolice, o estudante exclamou: «Oh! é de mais!» Subitamente, Soledad levantou-se e disse com uma gravidade que ninguem podia decerto esperar: _Caballeros, hagan usteds favor de acompañarme_. Seguiram-n’a todos, n’um cortejo silencioso. Mas, poucos passos andados, Soledad desfechou uma gargalhada crystallina, e, voltando-se para D. Ramon Mendoza, declamou com ares mysteriosos, com uma graça verdadeiramente andaluza: ...á fé mia, Que estoy resuelto á mataros Y no alcanzara á libraros La misma virgen Maria. As gargalhadas eram estrondosas, resoantes; o estudante, tendo dado o braço ao alferes Ruivo, dizia-lhe a meia voz, cheio de colera: «O que elle não sabe é que tem de se bater comigo! Por força!» Sahiram-lhes ao encontro D. Estanislada e o conselheiro Antunes, aos quaes se haviam juntado D. Enrique Saavedra, e o cirurgião ajudante de caçadores 1. —É bonito? perguntou D. Estanislada á filha, em hespanhol, ainda a certa distancia. —Formosissimo! respondeu Soledad. —Sabes tu! disse D. Estanislada, temos aqui um insigne cosinheiro, e indicou o conselheiro Antunes. Iremos ámanhã comer uma grande caldeirada... aonde?... como se chama aquillo? e apontou para a outra margem do rio. —Troia, respondeu o conselheiro com a gravidade de um Páris de cincoenta annos. —Excellente! commentou o morgado de Reguengos. As laranjas, essas, ficam por minha conta. —Havemos de bater-nos, por força, tornou o estudante a dizer a meia voz ao alferes de caçadores. III N’essa noite, foi no _Club Setubalense_ que se improvisou a _tertulia_. Soledad e mais tres senhoras hespanholas constituiam todo o feminino da sala; mas por muitos que fossem os satellites, e por mais brilhante que palpitasse o lume de seus olhos castelhanos, Soledad, o bello astro da praia, a todos offuscaria com a graça picante dos seus sorrisos, dos seus olhares, e do seu desembaraço andaluz. Não havia, portanto, necessidade de mais senhoras ali. Em estando Soledad, ella só bastava a encher de torrentes de vida a sala e os corações. A irradiação da sua belleza era como a da lua, nas formosas noites de verão. No elemento masculino notava-se, porém, uma certa agitação n’essa noite. Os admiradores de Soledad entravam e sahiam frequentemente da sala, cheios de uma certa preoccupação mysteriosa. O proprio conselheiro Antunes desapparecêra. Algumas pessoas envenenavam este facto, fazendo notar que Dona Estanislada não estava presente. Mas bem podia ser que o conselheiro Antunes, entrando nas suas funcções de cosinheiro, corresse a cidade em todas as direcções, procedendo aos preparativos indispensaveis para a caldeirada do dia seguinte. Elle comprehendia perfeitamente que todos os conselheiros portuguezes ficariam compromettidos na sua respeitabilidade de classe, se o _pic-nic_ disparasse n’um enorme _fiasco_ culinario. De mais a mais, a sua reputação individual de Vatel amador, affirmada por muitas vezes nas patuscadas aristocraticas de Santarem, encontraria nas areias de Troia um verdadeiro Waterloo, uma deploravel ruina. Isto pelo que respeita ao conselheiro. Quanto aos outros, a causa da sua preoccupação era diversa. Sentia-se effectivamente que andava no ar um acontecimento extranho, extraordinario, alarmante. N’um gabinete interior conferenciava-se em tom discreto; entravam uns, sahiam outros, e o marcador do bilhar, que espreitava cheio de curiosidade por um pequeno buraco do tabique, chegou a suspeitar de que estivessem bebendo á socapa,—julgando-se até certo ponto desconsiderado por lhe não haverem distribuido o papel de Ganimedes do festim. O marcador era um tolo, um guloso, para não dizer um borracho. Ali, no gabinete, não se tratava de beber vinho; se havia sêde, era de sangue. O estudante de Alcacer queria sugar as veias do jornalista de Lisboa, escorropichar-lhe as arterias, mastigar-lhe o coração. Uma carnificina! O alferes Ruivo dirigia os preliminares do duello, e dizia facetamente que, _coisas d’esta natureza_, em que elle entrasse, haviam de acabar por força em sarrabulho. Que não era para brincadeiras, que tinha uma farda, que devia honral-a, e que estava n’essa firme convicção. Que o duello havia de ser de morte, a poucos passos de distancia, á pistola, pelo menos; por não estar em costume bater-se ninguem a canhão, porque seria esse o meio mais racional de dois sujeitos se metralharem. No botequim da praia contava-se, commentava-se o _escandalo_ d’aquelle dia. Que o Lemos e o Goes não só se haviam insultado de palavras, na presença de Soledad e por causa d’ella, mas que tinham mesmo chegado a vias de facto, arrancando os cabellos, e não sei se os olhos, um ao outro. Alguns curiosos foram ao lugar do conflicto para verificar se havia no chão nodoas de sangue, e algum olho perdido. Não encontraram nada. Acrescentava-se que o administrador do concelho já tinha tomado conhecimento do facto, que o poder judicial receberia participação, e todo este _escandalosinho_ era saboreado a pequenos goles, como um vinho generoso. Em Setubal, quando algum acontecimento extraordinario occorre, põem-n’o de escabeche para durar mais tempo. Sabem tratar muito bem do peixe e do escandalo de conserva. Depois, os commentarios saltavam. Uns velhos sacudiam o seu caruncho em phrases desdenhosas: «Que tolos! são uns asnos! Tudo isto por causa de uma hespanhola que os anda a comer!» E outros, mais philosophos: «Todas as mulheres são da mesma massa, tanto faz que sejam hespanholas como portuguezas.» E um bregeirote, do lado: «Se ella fosse de massa não se massavam elles tanto!...» «Aquillo é para lavar e durar!» commentava um capitão de navios, vermelho e grosso, já entrado na genebra de Hollanda, que bebia aos copinhos, de um só sorvo. No gabinete do _Club_ resolveram que era melhor o estudante apparecer na sala da dança, para _dissipar suspeitas_. Quando o marcador o apanhou na casa do bilhar, depois de haver sabido por um frequentador do botequim, que ali entrara a historia exagerada do conflicto na praia, chegou-se-lhe ao ouvido, e disse com os ares de superioridade de quem está de posse de um segredo: «Então o senhor tira a desforra, hein?» «Chut! respondeu Julio de Lemos. Eu cá sou assim, ha de ser duello de morte!» O marcador ficou entalado: «De morte?» perguntou. E como o estudante lhe voltasse as costas, saboreando a sua reputação de duellista, o marcador foi vêr ao livro dos _fiados_ a quanto montava a divida do estudante. E sommou: Cinco partidas de bilhar, dois charutos, um copo de vinho do Porto: total, 360 réis. O Lemos fez a sua entrada na sala, apparentando uma serenidade heroica, a serenidade fria de um Cassagnac; julgava-se circumdado de um resplendor glorioso. Mas Soledad parecia não o haver comprehendido, mostrava-se uma digna representante de um paiz de antigos brigões de capa e espada, e de modernos toureiros audaciosos. Não fez caso do heroe. Estava apertando a cravelha amorosa ao sueco, conseguindo extrahir d’elle, do _Stradivarius_ que todo o homem tem no coração, notas de uma melifluidade assombrosa nas raças do norte. Ella tinha-o embriagado com o _Kirsch-Wasser_ dos seus olhos. Estava tonto de amor o sueco, bebado de _salero_, e, no _grand’-chaine_ dos _Lanceiros_, as suas mãos enormes, duras e grossas, pareciam ter uma delicadesa de sensitiva, as contracções nervosas dos tentaculos de um caranguejo, ao colherem os dedos avelludados e finos de Soledad. Depois da dança, rendeu-se culto á poesia. O estudante, que estava sempre na vanguarda dos recitadores, menos do que nunca se fez rogar n’essa noite. Recitou versos de Alvares de Azevedo, o mais genial, o mais nacional dos poetas brazileiros, talvez. E de pé, tendo na voz todas as commoções ao mesmo passo epicas e lyricas do homem que vae expôr-se heroicamente á morte, estando psychologicamente mais vivo do que nunca, declamou: Se eu morresse ámanhã, viria ao menos Fechar meus olhos minha triste irmã: Minha mãe de saudades morreria, Se eu morresse ámanhã. Quanta gloria presinto em meu futuro! Que aurora de porvir e que manhã! Eu perdêra chorando essas corôas, Se eu morresse ámanhã. Que sol! que ceu azul! que doce n’alva Acorda a natureza mais louçã! Não me batêra tanto amor no peito, Se eu morresse ámanhã. Mas essa dôr da vida, que devora A ancia de gloria, o dolorido afan... A dôr no peito emmudecêra ao menos, Se eu morresse ámanhã... Na verdade o estudante de Alcacer difficilmente poderia ter escolhido outra poesia, que melhor traduzisse as grandes luctas intimas da sua alma. É certo que nos pormenores da composição não havia inteira identidade de circumstancias entre o recitador e o poeta. O estudante nunca tivera irmã nenhuma, e porisso estava bem longe de que a piedade fraterna tomasse sobre si o encargo de lhe fechar os olhos. E ainda que caisse ferido no campo da honra, de pistola em punho, sua mãe não morreria de saudade, pela simples rasão de já ter morrido, alguns annos antes, com as febres de Alcacer. Quanto ás _corôas_, que elle perderia morrendo, a dessimilhança era profunda. O pae, com quanto fosse um bom proprietario de marinhas, estava cançado com as prodigalidades do filho,—isto pelo que toca ás corôas de... dez tostões; quanto ás de loiro, colhidas nas lides de Minerva, as _raposas_ encarregavam-se de lh’as devorar annualmente. Mas, em tudo o mais, essa triste prophecia de Alvares de Azevedo parecia quadrar á situação do estudante. Soledad deu mediana importancia aos versos e ao recitador... N’essa noite parecia deliciada em conhecer como um homem forte do norte póde estontear de amor sob a influencia de uma mulher do sul. Quando o estudante sahiu da sala, jurando aos seus deuses matar o sueco, depois de ter matado o jornalista, o marcador chegou-se ao pé d’elle, e lembrou-lhe _aquella continha de dezoito vintens, visto que ha viver e morrer, e elle haver dito que o duello havia de ser de morte_... O estudante ficou vivamente contrariado, remexeu nas algibeiras, e poude, ao cabo de muitas pesquizas, encontrar 150 réis. —Aqui tem, disse elle ao marcador; e se eu morrer, mandem-me penhorar pelo resto no inferno. O cobrador que pergunte ao Cerbéro por Julio de Lemos. Cerbéro é um cão... —Lá isso é, ficou dizendo o marcador, e de 210! Corja de pulhas!... No gabinete as negociações haviam caminhado rapidamente durante a breve ausencia do estudante. Os _padrinhos_ conferenciaram, o alferes Ruivo declarou muitas vezes, piscando o olho para o lado, que o duello havia de ser de morte, que o seu committente queria matar ou morrer, que a offensa tinha sido grave, mas foi redigindo a seguinte acta, que já estava prompta quando o estudante entrou: «Nós abaixo assignados fomos encarregados pelo ex.ᵐᵒ sr. Julio de Lemos de procurar o ex.ᵐᵒ sr. Aurelio Goes, a fim de lhe pedirmos explicações sobre algumas phrases violentas que na tarde de hoje, e junto ao oratorio de Mendoliva, suburbio de Setubal, dirigira ao nosso digno e brioso committente. Immediatamente o ex.ᵐᵒ sr. Aurelio Goes encarregou os dois cavalheiros, que comnosco assignam, de nos procurarem para deliberarmos sobre o que á honra de ambos mais conviesse, fazendo-se reciprocas declarações de que tanto um como o outro estavam dispostos a sacrificar-se para satisfação da propria honra, caso se reconhecesse que havia sido offendida. Examinada por nós maduramente a causa do conflicto, e a maneira por que elle se deu, entendemos em nossa consciencia e dignidade que as phrases tidas por violentas, apenas continham allusões litterarias, que de nenhum modo podiam susceptibilisar (_sic_) os brios pessoaes d’aquelles dois cavalheiros, pelo que foi por nós quatro reconhecido que não havia motivo rasoavel para que esta pendencia proseguisse, devendo outrosim declararmos que os nossos committentes se comportaram de modo a affirmar louvavelmente o seu pundonor e a sua coragem, como pessoas que nobremente antepõem o respeito pela honra individual a todas e quaesquer conveniencias materiaes. Setubal, etc., etc. Pelo ex.ᵐᵒ sr. Julio de Lemos, _Fuão_ e _Fuão_. Pelo ex.ᵐᵒ sr. Aurelio Goes, _Fuão_ e _Fuão_. O alferes Ruivo achou prudente não levar mais longe a brincadeira do duello, receiando que o coronel de caçadores 1 tomasse a coisa a serio, se elles chegassem a ir ao campo. O estudante, ouvindo lêr a acta, conjunctamente com o jornalista, declarou que effectivamente lhe parecia que os factos estavam correctamente apreciados, mas que muito o contrariava não poder experimentar no campo da honra a sua coragem; por sua parte, o jornalista disse que os factos haviam sido fielmente interpretados, mas que lamentava que ainda d’aquella vez elle não podesse provar que pertencia ao numero dos jornalistas, que acceitam a responsabilidade das suas acções e das suas palavras em qualquer campo aonde sejam chamados. Resolveu-se mais que as pazes fossem solemnemente selladas com um abraço, e que uma copia authentica da acta apparecesse no proximo domingo nas columnas da _Gazeta Setubalense_, e na _Trombeta Ulyssiponense_, de que Aurelio Goes era redactor effectivo. O morgado de Reguengos e o proprietario das Alcaçovas riram a bandeiras despregadas quando ouviram lêr a acta, e declararam categoricamente que, se os duellistas houvessem tentado bater-se, teriam ido separal-os a murro e a ponta-pé. Havia tal energia alemtejana n’esta declaração dos dois, que toda a gente os acreditou, incluindo os padrinhos e os proprios duellistas. Julio de Lemos sentiu os seus nervos mais tranquillos, porque a verdade é que ninguem sabe aonde uma bala póde ir parar; mas por outro lado foi obrigado a reconhecer que lhe faltava o prestigio da heroicidade, que lhe tinha fugido das mãos um titulo altamente recommendavel,—a reputação de duellista. D. Enrique Saavedra entendeu que eram horas de pôr têrmo á _tertulia_, quando na egreja de S. Julião bateram as dez. Que sua mulher estava só em casa... e além d’isso o banho... que a maré era cedo: respondia elle ás instancias com que lhe pediam meia hora, mais meia horinha ao menos. Mas a verdade era que D. Enrique estava aborrecido por lhe faltar o cirurgião ajudante, para fallar com elle sobre a politica do Hespanha, e que, por causa do duello, não apanhára ninguem a quem podesse massar. Na praia, quando a familia Saavedra se dirigia para casa, acompanhada por todos aquelles que constituiam o seu sequito habitual, um vulto passava em direcção opposta, e, sendo reconhecido, chegára-se a D. Enrique e dissera-lhe a meia voz, com alguma atrapalhação: —Sabe _usted_ que ainda não pude até agora arranjar azeite bom para a caldeirada de amanha?! Com mau azeite não ha caldeirada que preste... IV Amanheceu glorioso o dia seguinte. Ás sete horas da manhã, já o conselheiro Antunes andava no velho mercado da praça do Sapal, comprando as melhores fructas que pôde encontrar. Tambem comprou algumas flôres para offerecer a D. Estanislada e a Soledad. Seguiam-n’o dois rapazitos com cêstas á cabeça. Do Sapal, onde não olhou a dinheiro, dirigiu-se para o mercado do peixe, onde comprou o melhor e o mais caro. A sorte favoreceu-o: os salmonetes eram a rôdos. A caldeirada devia ficar famosa. Foi no mercado do peixe que o estudante d’Alcacer lhe appareceu todo açodado. —Tão matutino, sr. Julio de Lemos! exclamou, ao vêl-o, o conselheiro. —Ha caso! respondeu o estudante. —Caso! repetiu com surpresa o conselheiro. Querem vêr que a D. Estanislada tornou a apanhar uma indigestão, e que já não vamos a Troia! Pois ha de perder-se tudo isto! E com um olhar desalentado, em que se liam poemas d’angustia, relanceou os olhos ás flores, ás fructas, ao peixe. Se podesse olhar para si mesmo, o conselheiro Antunes tel-o-ia feito involuntariamente, significando a magua que lhe causava o perder-se tambem elle proprio, o seu raro talento culinario, que desejava exhibir, n’esse dia, perante D. Estanislada, e os outros. —Qual! Nada d’isso e melhor que isso! Aquietou-se o semblante do conselheiro, que entretanto se havia lembrado de que se perderia tambem o excellente azeite, que finalmente podéra descobrir. Não era isso? Ainda bem! Salvava-se tudo, incluindo o azeite magnifico e o talento culinario. Julio de Lemos, rapidamente, explicou: —Chegaram hontem á tarde as _netas do Padre Eterno_! O conselheiro fez uma cara de espanto, de surpreza, e desconfiança: cara de quem não percebia nada. —Como! exclamou. As _netas do Padre Eterno_! Então vossa senhoria, sr. Julio de Lemos, propõe-se agora brincar com o Padre Eterno e comigo! E, de repente, reconquistou toda a plenitude do seu bello ar conselheiratico, muito emproado. —Pois vossa excellencia imagina que estou brincando! respondeu o estudante. As _netas do Padre Eterno_ são tres lindas meninas da Messejana, que já cá estiveram ha dois annos, e deixaram toda a gente encantada. —Mas o que têm essas tres lindas meninas com o Padre Eterno? perguntou auctoritariamente o conselheiro. —Têm... que são netas do avô. Nós pozémos-lhes a alcunha de netas do Padre Eterno, porque o avô, o Rodarte, é um velho de grandes barbas brancas, que faz lembrar as imagens do Padre Eterno. Não ha ninguem mais estimavel do que o bom velho, que morre por jogar o voltarete, e que mette as cartas pelos olhos dentro, porque é muito myope. Mas as netas, as netas, sr. conselheiro, são as tres graças, acredite! —Bem! Bom é que a praia se vá animando cada vez mais! Mas não percebo a razão por que o sr. Julio de Lemos classifica de _caso_ esse acontecimento, aliás vulgar! —É que eu encontrei-as agora. Estive-lhes a contar o que ia por cá, o que nos temos divertido com a familia de D. Enrique, e a caldeirada que hoje vamos fazer, graças ao talento culinario de vossa excellencia. —Muito obrigado pelo seu obsequio, disse o conselheiro, lisongeado nas suas prosapias de Vatel amador. —E, como ellas mostrassem pena de perder a caldeirada, julguei que não era decente deixar de convidal-as. Vinha, portanto, prevenir d’isto vossa excellencia, na sua qualidade de nosso amavel amphitryão, e pedir-lhe desculpa da minha ousadia, que aliás as circumstancias justificam. —É um acto de gentileza, que se deve ter sempre com as damas... Nada tenho que objectar. Apenas, não sei se a familia de D. Enrique deveria ter sido prevenida primeiro... —Qual! N’uma praia não ha dessas etiquetas. De mais a mais D. Estanislada e Soledad são muito sociaveis, gostam immenso de boa companhia, e a prova está em que apreciam sempre a presença de vossa excellencia... —Oh! sr. Julio de Lemos! Mil vezes obrigado... Bem! bem! Eu vou reforçar um pouco o contingente dos salmonetes, visto que os ha com abundancia no mercado, felizmente! Só peço a vossa senhoria que tenha a bondade de explicar a D. Estanislada o gentil passo que deu, de modo a não me poder ser imputada a iniciativa d’elle. —Perfeitamente. Mil vezes obrigado. Então a que horas é a partida? Preciso ir prevenir as Rodartes. —Ás duas em ponto, no caes do Livramento. —Bem! bem! Ás duas em ponto lá estaremos, e terá vossa excellencia occasião de conhecer as tres lindas netas... —Do Padre Eterno, atalhou, sorrindo, o conselheiro. E foi d’ali _reforçar_, como elle disse, _o contingente dos salmonetes_. O estudante andára com certa finura em todo este negocio. Quando viu as Rodartes, que eram realmente tres lindas mulheres, ficou contentissimo por se lhe deparar tão feliz achado. Lembrou-se logo de que ellas cahiam do ceu para disputar a Soledad o premio da belleza. D’este modo conseguir-se-ia abater, pela concorrencia, o orgulho da andaluza. E elle, namorando alguma das tres, a Hilda, principalmente, a quem já havia, dois annos antes, arrastado a aza, vingar-se-ia dos desdens com que Soledad acolhia por vezes, sempre caprichosa e indefinida, os seus galanteios. Inculcou-se ao Rodarte e ás netas como um dos promotores da caldeirada, tendo portanto auctoridade para fazer o convite, que, n’essa fé, foi acceito. Depois correu a procurar o conselheiro, mudando as guardas á fechadura: desculpando-se do que fizera, pois que o conselheiro era o amphitryão da caldeirada. E, tendo visto flôres dentro de um dos cestos, flôres que eram certamente destinadas a D. Estanislada e Soledad, não quiz ficar atraz em gentileza para com as Rodartes. Foi ao Sapal comprar dois ramos de flôres, que uma palmelôa lhe vendeu por quatro vintens. O seu desejo era comprar tres ramos, mas, para isso, não lhe chegava o dinheiro. Cortou o nó gordio, desfazendo em casa os dois ramos, e compondo tres, que sahiram mais geitosos do que estavam os dois. Olhando, contente da sua obra, para elles, teve Julio de Lemos esta observação sensatissima: —Para saber economia, não é preciso ser economista: basta não ter dinheiro. Depois foi avisar a familia Rodarte de que ás duas horas em ponto partiriam todos do caes do Livramento. Ficaram contentissimas as Rodartes com a boa estreia que a sua estação balnear ia ter. Orphãs de pai e mãe muito novas, era com o avô que tinham sido creadas. Baboso por ellas, o velho Rodarte fazia o que as netas queriam, não tinha vontade propria. Extremamente myope, como o estudante d’Alcacer dissera, ia para toda a parte comboyado pelo braço de alguma das netas, quasi sempre Salomé, que era a mais velha, e das tres a menos formosa. Tinha vinte e tres annos. Hilda e Maria Ignez eram gémeas e encantadoras. Vinte e um annos adoraveis. Mulheres fortes, de olhos negros, faces radiosas, braços _potelés_, cobertos de um frouxel que reluzia ao sol como uma pennugem de ouro. Salomé era menos forte e menos bella. Mas havia na sua physionomia uma graça peninsular, que não tinha inveja á formosura. E a sua conversação, os seus ditos de espirito, partiam da sua bocca graciosa e sã como settas que brilhavam mais do que feriam. Eram ricas, duplamente ricas, pelo pae e pela mãe. No districto de Beja não havia casa melhor do que a sua, cujas herdades e montados se espalhavam para o oriente até ao Chança e para o sul até Almodovar. O avô recommendava-lhes sempre que não tivessem pressa de casar, porque não poderiam encontrar noivos que as estimassem mais do que elle. E enterradas na Messejana, lonje das tentações do mundo, ellas pareciam, realmente, não ter pressa de casar. No tempo dos banhos costumavam ir para Sines, que era uma semsaboria pouco melhor que a Messejana. Um anno, para variar, conseguiram arrastar o avô até Setubal, onde fizeram sensação, e ficaram sendo conhecidas pelas _netas do Padre Eterno_. Mas o avô fatigara-se com a jornada, e no anno seguinte voltaram para Sines. Agora fôra elle que voluntariamente, conhecendo que as suas tres graças preferiam naturalmente Setubal a Sines, se offerecera de motu proprio ao sacrificio, com a sua patriarchal bonhomia de avô baboso. Julio de Lemos, que encontrára na Physica da Escola Polytechnica um barranco ainda não vencido, resignava-se, durante as ferias, do desgosto que no fim de todos os annos lectivos recebia em Lisboa. Namorando e perpetrando o seu verso, preparava-se para no anno seguinte investir novamente com a Physica. Fôra um dos mais dedicados satellytes das _Netas do Padre Eterno_, quando ellas pela primeira vez appareceram em Setubal. Versejára em honra de todas tres, mas não era um namorado que ninguem tomasse a serio. Todos os galanteios que as irmãs Rodartes inspiraram, e foram muitos, não podiam auctorisar-se com a esperança de casamento. Mas, em compensação, ellas haviam atravessado triumphantemente Setubal, durante toda uma epocha balnear, sob uma chuva de flores. Agora, que voltavam inesperadamente, encontravam ainda Julio de Lemos escravisado pela Physica da Escóla Polytechnica, mas disposto a divinisal-as mais uma vez, não só para honrar o passado, como para aligeirar o presente, e, sobretudo, para vingar-se da altivez castelhana de Soledad. Orientado por este complexo programma, não podendo disfarçar a alegria com que se propunha realisal-o, appareceu ás duas horas em ponto, no caes do Livramento, acompanhando as formosas _Netas do Padre Eterno_, á frente Hilda e Maria Ignez, elle a par das duas, mais atraz Salomé dando o braço ao avô myope, como Antigone a Œdipo. V Estava já no caes a bella Soledad com toda a sua côrte. O conselheiro Antunes dava ordens, fazia recommendações aos barqueiros: que não esquecessem isto, que não deixassem ficar em terra os cabazes com as loiças, e as celhas com o peixe. D. Enrique lia um jornal hespanhol, recebido n’essa manhã, e de momento a momento commentava a leitura monologando: _Qué broma!_ D. Estalisnada mostrava-se encantada com a solicitude cavalheirosa do conselheiro Antunes, e fallava tantas vezes no azeite, que o morgado de Reguengos disse para o proprietario das Alcaçovas: «N’isto do azeite anda marosca; é linguagem combinada.» Quando o grupo das Rodartes chegou, houve sensação no grupo de Soledad. Foi como se duas côrtes se chocassem. O morgado de Reguengos, o proprietario das Alcaçovas, os dois officiaes de caçadores 1 e o Vianninha já as conheciam. Correram a cumprimental-as, a dar-lhes as boas-vindas, a fallar ao avô. Julio de Lemos, muito expansivo, apresentou a familia Rodarte aos que pela primeira vez a viam. Dirigindo-se a Soledad, teve uma phrase tão amável como ironica: —Ficará eternamente na memoria do rio Sado este encontro da belleza de Portugal com a belleza de Hespanha. Uma explosão de riso saudou esta apresentação original. As tres Rodartes sorriram, mas coráram. Soledad sorriu, mas feriu-se. Percebeu que n’esse momento lhe vacillava na cabeça a corôa de rainha da belleza, até ahi indisputada. A apresentação ao conselheiro Antunes foi, por parte do estudante, muito respeitosa: —Apresento a vossas excellencias um dos mais illustres e respeitaveis cavalheiros que tenho tido a honra de conhecer: o abastado proprietario de Santarem, dr. Antonio José Antunes, do conselho de sua magestade fidelissima, e presidente da junta geral d’aquelle districto. A vossa excellencia, sr. conselheiro, apresento o abastado proprietario da Messejana, o sr. Araujo Rodarte, e suas encantadoras netas. Julio de Lemos, em attenção a ser o conselheiro o amphitryão da festa, carregou a mão nos elogios que lhe teceu, para de algum modo o indemnisar da despeza que elle fizera _reforçando um pouco o contingente dos salmonetes_. D. Enrique, na primeira occasião que teve, perguntou a Julio de Lemos se o velho Rodarte era bom conversador. Ficou contente de obter uma resposta affirmativa, porque encontrava mais uma victima para as suas estopadas sobre a politica hespanhola. E, para estreitar desde logo as relações com a sua victima, dirigiu-se a ella dizendo-lhe: —_És usted un imponente anciano, de mi mayor respeto._ _Imponente anciano!_ Esta só podia lembrar a um hespanhol! Mas as barbas brancas do velho Rodarte eram dignas da hespanholada. Embarcaram todos, não sem a hilaridade que o embarque de senhoras produz sempre. D. Estanislada precisou que o conselheiro Antunes, muito cavalheiresco, lhe désse a mão. Os barcos, largando do caes, aproáram a Troia. Soledad quiz que o sueco, cujo nome eu não citarei emquanto o não souber escrever correctamente, o que aliás não é facil, se sentasse a seu lado. Era a resposta ao cartel de desafio, que o estudante lhe trouxera com a presença das Rodartes. O seu raciocinio devia ter sido este: «Portugal quer esmagar-me? Pois bem! eu esmagarei Portugal.» E sobre o Sado, como na vespera, era a Suecia que triumphava. Chegados a Troia, tratou-se em primeiro logar de montar o arsenal culinario. O conselheiro Antunes quiz desde logo installar-se como Vatel amador. Muito methodico, elle mesmo dispunha os utensilios, procurava os tempêros, emquanto os barqueiros accendiam o lume. Dir-se-ia que elle desejava imprimir o cunho da sua individualidade não só á caldeirada, que ia cosinhar, mas ao trem da cosinha, que estava organisando com o maior esmero. Como, durante a travessia do Sado, o Vianninha e os officiaes de caçadores 1 fossem explicando que em Troia existira uma cidade romana, chamada Cetóbriga, de que se encontravam ainda ruinas e outros vestigios, taes como amphoras e medalhas, toda a caravana, com excepção de duas pessoas, quiz ir procurar as ruinas, especialmente as medalhas, pois que o Vianninha affirmava que se encontravam com facilidade, e que elle mesmo possuia uma de bronze do tempo de Trajano. As duas pessoas, que não acompanharam as outras, eram o conselheiro Antunes e D. Estanislada, que se offereceu para auxilial-o no mister de cosinheiro. D. Enrique achou isto muito natural, e o morgado de Reguengos e o proprietario das Alcaçovas disseram entre si, commentando: «_Azeite_ não falta; a caldeirada ha de ficar magnifica.» Soledad, fingindo que lhe custava a andar sobre a area, enfiou o braço no do sueco, pendurando-se d’elle com abandono. Continuava, portanto, a sustentar o seu plano de combate. Em Troia, como no Sado, era a Suecia que triumphava. Os outros perceberam a intenção de Soledad, e rodeavam, em despique, as tres Rodartes, acompanhando-as n’uma especie de cortejo triumphal e de certamen galante. O proprio hespanholito D. Ramon, julgando-se vencido pela Scandinavia, vingava a Iberia masculina arrastando a aza a Maria Ignez. O jornalista Aurelio Goes e o marialva do Chiado pareciam propender mais para Hilda. O proprietario das Alcaçovas e o morgado de Reguengos entabolaram conversação com Salomé sobre assumptos graves do Alemtejo: porcos e cortiça. Os officiaes de caçadores 1 e o Vianninha iam adiante dos grupos em exploração archeologica. Julio de Lemos, já despeitado pela concorrencia dos outros, especialmente de Aurelio Goes, que não respeitava os seus direitos de apresentante, e lhe estorvava a conquista de Hilda, principiava a lamentar-se de ter perdido a occasião do duello para lhe atravessar o coração com uma bala. «Quem o seu inimigo poupa, pensava elle, nas mãos lhe morre.» D. Enrique apossara-se do _imponente anciano_, levava-o a reboque pelo braço, e descrevia-lhe os horrores da insurreição cantonal, parando a cada momento, exclamando: —_Que barbaridad!... que atentado!_ O alferes Ruivo, o tenente Epaminondas e o Vianninha indicaram alguns vestigios da antiguidade romana de Cetóbriga, a que ninguem deu grande importancia. Como o morgado de Reguengos mettesse á bulha o Vianninha por causa da grande abundancia de moedas, que segundo elle, se encontravam em Troia, o Vianninha, auxiliado pelos dois militares, ainda quiz justificar-se, excavando no areal. Soledad, conversando com o sueco, cuja face irradiava como uma aurora polar, olhava desdenhosamente para tudo aquillo. Aurelio Goes, colhendo uma florinha que brotava da areia humida, offereceu-a a Hilda Rodarte. Julio de Lemos estava fulo; a sua sêde de vingança abrangia agora duas pessoas: Soledad e o redactor da _Trombeta Ullyssiponense_. Mastigava represalias... em sêcco. Não appareceu nenhuma moeda romana, apesar das affirmações categoricas do Vianninha, e do padre Vicente Salgado, um franciscano erudito, que, occupando-se do assumpto, havia chamado a Troia—_terreno fertilissimo d’estes achados_. Como o sol apertasse, o numeroso grupo, dividido em pelotões, retrocedeu, a fim de procurar o abrigo do toldo que os barqueiros já deviam ter armado, para sob elle ser servida a caldeirada. Com effeito, estava quasi prompto o improvisado pavilhão, feito de vélas de barco. O conselheiro Antunes e D. Estanislada, afogueados do rosto, debruçados sobre a caldeira, provavam pela mesma colhér o tempêro da caldeirada, e annunciavam que estava divina. Soledad, fingindo-se fatigada, sentou-se á sombra do toldo, deixando ficar a descoberto metade do sapato enfitado. O sueco, embasbacado, bebado de amor, contemplava-lhe o pé, respondendo muito abstracto ao que ella lhe dizia. Julio de Lemos começou a fazer troça do sueco, com os outros. Havia risinhos. Soledad percebia, e de vez em quando ella mesma, com uma audacia castelhana, olhava para a ponta do sapato, como a encaminhar para esse alvo, que aliás era preto, o olhar do sueco. Mas, de repente, notando que Aurelio Goes tivera a ousadia de sentar-se na areia perto de Hilda, perdeu a tramontana e começou a escancarar umas gargalhadas alvares. Resolveu logo embebedar-se para tirar a desforra. O conselheiro Antunes, apparecendo debaixo do pavilhão, annunciou que ia ser posta a toalha, porque a caldeirada estava prompta, e que por isso cada um devia tratar de occupar logar em volta do recinto destinado á toalha. Por uma evolução rapida, mas estrategica, Julio de Lemos sentou-se na areia entre Hilda e Soledad, ganhando uma excellente posição. O sueco poude ainda aninhar-se á direita de Soledad, e o Goes á esquerda de Hilda. Mas o estudante de Alcacer ficou ardendo entre dois fogos, tinha á direita a Hespanha e á esquerda a Messejana: ficou no meio da Peninsula. Quando D. Estanislada appareceu, notou-se que ella vinha um pouco mascarrada n’uma das faces. —É talvez do fumo da caldeira, explicou, muito solicito, o conselheiro Antunes. Os homens, com excepção de D. Enrique, trocavam entre si olhares intelligentes: o conselheiro Antunes pintava o bigode. VI A caldeirada estava deliciosa: até os anjos a poderiam comer. O conselheiro havia carregado a mão no tempêro: a pimenta fazia arder a bocca. Mas era bom, muito apetitoso, puxativo, como dizia Julio de Lemos, bebendo grandes tragos de uma boa pinga de Azeitão, por uma caneca branca, comprada, como toda a outra loiça, na Innocencia da Praia. A conversação animára-se, phrases cruzavam-se, havia allusões, referencias que esvoaçavam por sobre a cabeça dos convivas. Julio de Lemos dizia coisas para a direita e para a esquerda, a Soledad e a Hilda, quasi sem dar tempo a que ellas podessem responder a mais ninguem. O sueco embezerrou despeitado, não fallava, e o redactor da _Trombeta_, muito habituado a _lunchs_, comia como uma frieira, mettendo a colherada em todos os assumptos. Era um perfeito exemplar de jornalista. Soledad, sempre incomprehensivel, mudou da tactica. Desfazia-se em amabilidades com o estudante, ella mesma lhe enchia de vinho a caneca de loiça, e lhe suggeria a inspiração dos brindes. Hilda, menos petulante que a hespanhola, conservava-se modesta n’aquella atmosphera capitosa de vinho e pimenta. As irmãs, como ella, respondiam concertadamente ás perguntas e ás amabilidades que lhes dirigiam. O sueco, muito rubro, soprava como uma fóca, e Soledad parecia divertir-se com isso, gostar de o vêr subitamente despenhado do pedestal a que o tinha subido. D. Estanislada entrava pela caldeirada com o desembaraço de quem está habituado a indigestões. E D. Enrique, para não envergonhar a mulher, acompanhava-a no bom apetite com que repetia salmonete sobre salmonete. O conselheiro, como um artista que se sente galardoado, comia pouco, contentava-se de vêr comer os outros. Reconhecia-se lisongeado no apetite alheio, especialmente no de D. Estanislada, que era francamente glorioso para elle. O Rodarte, muito discreto, encarecia o talento culinario do conselheiro, dizia-lhe que nunca na sua vida tinha comido uma caldeirada que lhe soubesse melhor. Julio de Lemos, já meio tonto, aproveitou de uma vez a deixa do Rodarte, e, pondo-se de joelhos, caneca em punho, declamou: Eu saúdo o illustre conselheiro, Ultimo em nada, e em tudo o mais primeiro Aurelio Goes desfechou uma gargalhada, interrompendo o improviso. —Que é lá isso?! perguntou o estudante esgalgando-se, para o ver, por deante de Hilda. E o Rodarte, muito prudente, muito discreto, deitou agua na fervura: —Não é nada. Tudo aqui se passa em boa amisade. Queira continuar, sr. Lemos. —Acha mau talvez, o menino! Elle que os faça melhores, se é capaz, insistiu o estudante. —Então!... então! atalhou o Rodarte. Queira continuar o seu improviso. —Já lhe perdi o fio! Não sei... Ora esta!... Acho que era isto: Mas unico talvez na caldeirada: Que é comêl-a e morrer... Julio de Lemos engasgou-se. —Não diz mais nada?! exclamou o tenente Epaminondas completando o verso em que o estudante se pegára. Uma explosão de gargalhadas saudou este comico episodio, e o estudante, que não tinha espinha com o tenente, antes era seu amigo, riu tambem, aproveitando a tangente para fugir á difficuldade do verso. Então Aurelio Goes, pondo-se de pé, bateu as palmas, e recitou: Eu, n’esta agradavel festa, Tão grata e tão jovial, Brindo, honrando o bello sexo, Por Hespanha e Portugal. —São de cravo da Praça da Figueira! berrou o estudante. —Viva! viva! clamaram muitas vozes cobrindo com applausos a inconveniente apostrophe do estudante. E o velho Rodarte, apoiando-se no hombro de Salomé, levantou-se pausadamente. —Tambem eu quero fazer o meu brinde. Logo se estabeleceu um silencio respeitoso. —Ora, meus senhores, como eu, nas barbas, me pareço um pouco com S. Pedro, permittam-me que feche a porta dos brindes. Bebo em honra do illustre conselheiro, dignissimo presidente da junta geral do districto de Santarem. Beberam todos. E levantaram-se a pouco e pouco, alguns com difficuldade. O conselheiro foi abraçar o Rodarte, agradecer-lhe, e, emquanto se abraçavam, cochicharam ao ouvido. Os barqueiros trataram de recolher as loiças, e os cabazes. E o Rodarte, muito previdente, disse que, seria melhor que o barco fosse primeiro a Setubal levar as senhoras, e que voltasse depois. Que elle, pela sua idade avançada, desde já se considerava senhora; que o sr. conselheiro, que devia estar fatigado, iria tambem com as senhoras, bem como D. Enrique, para acompanhar a esposa e a filha. Era a combinação que tinham feito ao ouvido, suggerida pela prudencia do velho Rodarte. Os outros ficaram com cara de parvos, mas o Rodarte, chamando de parte o morgado de Reguengos e o proprietario das Alcaçovas, explicou-lhes: —Que aquillo era preciso por causa dos rapazes. Que desculpassem. E que lhes pedia o favor de olharem por elles. Um e outro concordaram: —Que era bem pensado. Que estivesse tranquillo. Largou de Troia o barco com as senhoras, D. Enrique, o Rodarte e o conselheiro. Os rapazes ficaram por longo tempo acenando com os lenços, dizendo adeus. Desembarcaram as damas no caes do Livramento, e o barco voltou a buscar os que tinham ficado. Entretanto cahia a noite, as trevas principiavam a descer sobre o Sado, a envolvel-o n’um veo que a pouco foi perdendo a transparencia. Apenas um ponto luminoso brilhava ao longe na areial de Troia. Deram oito horas, e o barco não tinha voltado ainda. No café _Esperança_, do Zé Lapido, esperava-se o regresso dos rapazes. Uns commentavam: —Que tal foi a bebedeira! Outros, mais timoratos, diziam: —Queira Deus que não acontecesse por lá alguma semsaboria! Deram nove horas, e o barco não voltava. Então alguns officiaes de caçadores resolveram ir a Troia ver o que tinha acontecido. Tomaram um barco, e largaram. A meio do rio, ouviram o ranger de remos, e perguntaram: —Quem vem lá? —Somos nós, respondeu a voz do proprietario das Alcaçovas. —Ha novidade a bordo? disseram os officiaes. —Nenhuma, respondeu o morgado de Reguengos. Mas não se ouvia nenhuma outra voz. —Ali houve coisa!... disseram entre si os officiaes. E perguntaram: —Vem ahi os nossos camaradas? —Vamos, respondeu o alferes Ruivo. —Vamos, respondeu o tenente Epaminondas. —Ali houve coisa, porque elles vem muito silenciosos!... continuavam a dizer entre si os officiaes que tinham ido procurar os outros. Os dois barcos chegaram quasi ao mesmo tempo ao caes do Livramento. Então poude verificar-se que effectivamente os da caldeirada vinham macambuzios, entrombados, e que o sueco, estatelado no fundo do barco, e occupando-o quasi todo, dormia profundamente, a ponto de terem que acordal-o berrando. E como elle grunhisse uns roncos cavernosos, sem comtudo se levantar, foi preciso que o proprietario das Alcaçovas, com o seu pulso de ferro, o filasse pelo gasnete, e o pozesse de pé. —Mas o que se passou? o que se passou? perguntavam cheios de curiosidade os que tinham ido buscal-os. —Vamos lá para o Zé Lapido tomar um copo de genebra, disse o das Alcaçovas, e conversaremos. Quando entraram no café, e logo que se sentaram, deram pela falta do sueco, que se tinha escapulido. Todos os conhecidos, que estavam no botequim, lhes fizeram circulo, sentando-se em torno da mesma mesa. O tenente Epaminondas contou miudamente as peripecias do _pic-nic_, incluindo a mascarra de D. Estanislada, historia que produziu grande hilaridade no auditorio. Depois poz em relevo a prudente astucia com que o _Padre Eterno_, pois que no café todos lhe chamavam assim, se safára com as netas e as hespanholas quando vira romper as hostilidades entre o estudante e o jornalista. Disse que, logo que o barco partiu, o sueco investira, muito bebado, contra o estudante, accusando-o de acintosamente ter ido sentar-se ao lado de Soledad para o prejudicar nas vantagens que, como preferido, havia conquistado nos ultimos dias. Que, por sua vez, o estudante, não menos bebado, começara a implicar com o Goes, accusando-o de o ter querido metter a ridiculo, prejudicando-lhe o improviso com uma gargalhada insolente. O sueco agarrava-se ao estudante, e o estudante ao jornalista. Fôra preciso que os outros interviessem apartando-os a murro, e contou o tenente que o proprietario das Alcaçovas conseguira abalar a columna vertebral e a colera do sueco com um valente pontapé applicado em cheio no sitio em que as costas mudam de nome. —E a Scandinavia resoou! observou humoristicamente o alferes Ruivo. Gargalhada geral. —Que no meio de toda esta balburdia o morgado de Reguengos lembrára jovialmente que, para de uma vez pôr termo a tão impertinentes conflictos, e definir a situação de todos, o melhor seria confiar á sorte a distribuição do papel amoroso de cada um. Esta lembrança produzira um excellente effeito, foi como que um punhado de areia atirado aos olhos de todos. Cegou-os. Todos imaginavam que seriam favorecidos pela fortuna e que, d’esse modo, ficariam livres de concorrentes perigosos e incommodos. Deram pois a sua palavra de que respeitariam fielmente os decretos da sorte. Trataram então de espertar a fogueira, que tinha servido para a caldeirada. E á luz d’ella fizeram, de cartas velhas e outros pedaços de papel, pequenas listas, em que escreveram a lapis os nomes de todos elles. Enroladas as listas, deitaram-n’as na copa de um chapeu. Depois inscreveram n’outras listas os nomes das quatro damas, mas, n’esta occasião, houve um protesto do proprietario das Alcaçovas, que reclamou a favor do recenseamento de D. Estanislada, como _premio de consolação_ ao que ficasse a ver navios. O jornalista observou que D. Estanislada já pertencia, pela mascarra, ao conselheiro Antunes. O morgado sustentou o seu protesto, auctoritariamente, dizendo que, desde o momento em que a sorte era chamada a decidir, desapparecia a principio dos _direitos adquiridos_. Por essa occasião o estudante observára: —Sim, senhor! Fica abolido o direito pautal do _azeite_. Todo o café _Esperança_ ria, a bandeiras despregadas, com a narração do tenente Epaminondas. Lançadas as cinco listas, e mais algumas em branco na copa de outro chapeu, procedeu-se ao sorteio, que deu o seguinte resultado: _Morgado de Reguengos—D. Hilda._ _Proprietario das Alcaçovas—D. Maria Ignez._ _D. Ramon Mendoza—Soledad._ _Vianninha—Salomé._ _O sueco—D. Estanislada._ Os que a sorte desfavorecera, especialmente o sueco, o estudante e o jornalista, romperam em protestos contra o acto eleitoral, distinguindo-se o sueco que, nem pelo diabo, queria resignar-se a acceitar D. Estanislada. E tanto berrava e barafustava, que o proprietario das Alcaçovas teve que atiral-o para o fundo do barco, onde elle escabujou ao principio e adormeceu depois. VII No dia seguinte, pela manhã, appareceu affixado nas esquinas de Setubal o seguinte pasquim: A roda que andou em Troia, Andou bem, quem o diria! Nem mesmo a da Santa Casa É tão boa loteria. O premio grande de Hespanha Ficou na Hespanha. Era justo. E o sueco, derreado, Inda assim, salvou-se... a custo! O Alemtejo, que a sopapo Tudo escaca e tudo arrasa, Não apanhando _a taluda_, Ficou bem, ficou em casa. Setubal, n’esta partilha, Tem motivos d’alegria, Porque a sorte, previdente, Deu-lhe _sal_ na loteria. Só Minerva e Guttemberg, Marte e a junta geral, Por não beberem _azeite_, Ficam olhando ao signal. Este pasquim attraiu a curiosidade, produziu risota, foi lido com vivo interesse. Como era natural, todos procuraram interpretar as allusões n’elle contidas, e assim aconteceu que não só o facto principal, o sorteio, se tornou ao dominio publico, mas tambem tiveram grande notoriedade todos os episodios que accidentaram alegremente o _pic-nic_ da vespera. De pergunta em pergunta todos ficaram sabendo o que se tinha passado, e entendendo cabalmente o pasquim, com excepção de uma só quadra. Não restou duvida a ninguem de que Minerva se referia ao estudante, Guttemberg ao jornalista, e Marte ao alferes e ao tenente de caçadores. Uma só passagem permaneceu obscura por muito tempo, o sentido da quarta quadra ficava em suspenso, pois que não podia atinar-se com a allusão ao _sal_ no ultimo verso. Que aquillo era com o Vianninha, percebia-se, visto ser elle o unico setubalense que tinha assistido a caldeirada. Mas o _sal_, sublinhado, era um problema, um enygma, um hieroglipho. Alguns curiosos roiam as unhas parados ás esquinas, matutando deante dos pasquins. Que diabo de _sal_ era aquelle? O que queria dizer aquillo? Alguem lembrou que o Castanha, mestre-escola, apezar de vesgo, via bem as charadas. Era um alho para as decifrar. Chamou-se o Castanha, que estava a dar aula, decifrando enygmas do _Almanach de Lembranças_, emquanto os pequenos se entretinham uns com os outros. Era como elle dava aula sempre. O Castanha veio quasi em triumpho até á primeira esquina,—essa esquina que devia, em breve, converter-se para elle n’um monumento de gloria... salvo o mictorio. Explicaram-lhe o caso, o que se tinha passado, e a duvida em que estavam quanto ao vocabulo _sal_. O Castanha enviezou o olhar strabico ao cartaz, deteve-se um momento a engulir em sêcco, até que de repente, com a sagacidade de um charadista que combina idéas, perguntou: —Elle como se chama ella? O Castanha tinha o costume de anteceder pelo pronome—elle—todas as phrases interrogativas. —Ella, quem? perguntaram-lhe. —A madama que sahiu ao Vianninha? —Salomé. E o Castanha, desfiando as syllabas, _Sa-lo-mé_, monologava: —Não pode ser isso! Mas, de subito, exclama: —É isso, é! —Então é ou não é? perguntaram. —Não vêem, disse elle triumphalmente, não vêem que o nome—Salomé—principia por _sal_?! —É verdade! exclamaram vozes. —É isso! applaudiram bôccas. E o Castanha, muito enchicharrado, muito vesgo na commoção nervosa do triumpho, apartava os grupos para passar, charadista glorioso. Durante todo esse dia o sueco, o estudante, o jornalista e os dois officiaes de caçadores estiveram recebendo bilhetes de visita, a _pesames_, com palavras de sentimento, expressões de condolencia, pelo desgosto que acabavam de soffrer. Foi uma _scie_ medonha, que partia do café _Esperança_, dizia-se, e dos outros officiaes de caçadores, rapazes alegres, que gostavam de divertir-se e não tinham muitas occasiões para isso. O sueco embatucou, deu sorte com a chalaça. Desappareceu de repente. Constou que tinha vindo para Cintra, a fim de evitar que a troça o perseguisse. Não se conheciam ainda outras consequencias d’aquella brincadeira fatal. Parecia que D. Enrique, o Rodarte e o conselheiro a ignoravam. Mas não aconteceu inteiramente assim. Dos tres, não tardou muito a mostrar-se desgostoso o conselheiro Antunes. Fallando com o estudante, extranhou, com palavras severas, que _se rifasse uma senhora casada_. Textual. Accrescentou que, se D. Enrique o soubesse, poderia haver _uma tragedia de sangue_. Tambem textual. Pela sua parte, apenas sentia que fosse elle proprio que tivesse proporcionado a occasião para um tão _grave desacerto_, inventando a caldeirada. Que o caso ja havia dado de si, porque o _respeitavel snr. sueco_, um cavalheiro digno de toda a estima, se havia auzentado, desgostoso. Julio de Lemos contestou que tudo aquillo não tinha passado de uma brincadeira inoffensiva, que em nada podia affectar a honra das cinco damas, todas ellas respeitabilissimas. Que o vocabulo—_rifa_—era violento, porque a rifa presuppunha immediata adjudicação do objecto rifado, e não se dava esse caso. Mas o conselheiro, procurando sustentar a sua opinião, descobriu um pouco as baterias. Deixou perceber que a expressão do pasquim—_junta geral_—o tinha maguado pessoalmente. E como o estudante se lembrasse de dizer que a _junta geral_ do pasquim não era a do districto de Santarem, mas a collectividade dos pretendentes amorosos das trez Rodartes e da hespanhola (velhacamente, o estudante ia pondo de parte D. Estanislada para lisongear o seu interlocutor) o conselheiro, muito formalisado, disse que não era pretendente á mão de nenhuma dama, que apenas se considerava um solteirão aposentado. Que se tivesse querido casar, o poderia ter feito ha muitos annos com formosas e abastadas senhoras de Santarem, de Almeirim e de Alpiarça. Que não só receiava que D. Enrique o viesse a saber, e se desgostasse, mas tambem que o _venerando Rodarte_, um modelo de cortezia e prudencia, se _chocasse_ com essa _brincadeira de mau gosto_, que envolvia o nome das suas tres netas. No dia seguinte, um sabbado, D. Enrique foi visto no Sapal, passeiando e lendo, peripateticamente, uma gazeta de Sevilha. Parecia preoccupado. O conselheiro foi fallar-lhe. D. Enrique disse-lhe que ia passar alguns dias a Lisboa. Teria vontade o conselheiro de perguntar-lhe se ia só ou acompanhado. Mas não se atreveu a tanto. E logo conjecturou que era um pretexto de D. Enrique para retirar-se de vez, sem alarde. Aqui está, pensou o conselheiro com os seus excellentissimos botões, o que aquelles diabos arranjaram com a brincadeira da _rifa_! Deixando D. Enrique, o conselheiro foi dizendo, principalmente aos implicados na patuscada de Troia, que principiavam a fazer-se sentir as consequencias d’aquelle _grave desacerto_; que D. Enrique ia á Lisboa ou, segundo elle suspeitava, para Lisboa, d’onde talvez não voltasse, desgostoso. A noticia correu rapidamente. Alguns logistas, que tinham rido com o pasquim, começaram a queixar-se de que por uma imprudencia alheia estivessem arriscados a perder freguezes importantes. O conselheiro tirou-se dos seus cuidados, e foi á estação vêr partir o comboyo para Lisboa. D. Henrique e Soledad embarcaram. D. Estanislada ficava, portanto, só, em Setubal, durante alguns dias. Oh felicidade! exclamou mentalmente o conselheiro. De tarde, na Praia, o conselheiro parou a conversar com alguns grupos. —Então, D. Enrique sempre se retira para Lisboa? —Creio que sim, respondia elle; supponho que parte ámanhã. O velhaco! O que elle não queria era que se soubesse que o hespanhol já tinha partido, e que D. Estanislada ficára. Houve logo quem aventasse a ideia de que uma commissão do setubalenses viesse a Lisboa, no caso de D. Enrique partir, pedir-lhe que não desse importancia a uma mera brincadeira, e que voltasse. O Rodarte, esse, parecia ignorar tudo o que se passava. Ninguem o informou de que tivessem apparecido pasquins; não ousou fazel-o ninguem. E elle, muito myope, não podia tel-os lido. Conversando com o morgado de Reguengos apenas dissera que os _pic-nics_ eram a mais arriscada de todas as distracções de uma praia. Que se felicitava por ter tido a boa ideia de deitar agua na fervura, fechando a serie dos brindes, que já estavam denunciando uma certa excitação dos convivas, quando julgou opportuno intervir. O proprietario das Alcaçovas tambem, n’essa tarde, acompanhava o grupo do _Padre Eterno_ e das netas, porque, tanto elle como o morgado, estavam resolvidos a fazer valer os direitos que a sorte lhes proporcionára. Poderiam, ambos elles, ter supplantado a murro e a pontapé todos os outros concorrentes. Mas fazel-o seria violento... especialmente para as victimas. Os dois, homens fortes, de musculo tuchado, possuiam o bom humor e a prudencia que os nevroticos desconhecem. A hespanhola impozera-se-lhes pela belleza, no primeiro momento. Mas depois appareceram as Rodartes, bellas mulheres, habituadas á vida do Alemtejo, ricas, bem educadas, e ambos elles, sem o terem communicado um ao outro, acharam preferivel jogar com tino, na banca do Amor, a aventurarem-se á conquista de uma hespanhola, que tinha o grande defeito de ser caprichosa e de saber quanto valia. A primeira confidencia que os dois tiveram entre si foi á volta de Troia, quando o de Reguengos explicou ao das Alcaçovas que propozera a loteria, porque a sorte nunca deixára de o beneficiar sempre que a tentava. —Eu estava certo, disse elle, de que me calhava a hespanhola ou a Hilda, que eu preferia á hespanhola. Em loterias tenho uma sorte brutal. —Pois eu, respondeu-lhe o das Alcaçovas, sou infelicissimo em todos os jogos d’azar. Agora explico a minha sorte por termos sido parceiros no jogo. E riram ambos, riram muito, tomando a brincadeira... a serio. O Vianninha tambem n’essa tarde andou no grupo das Rodartes, arrastando a aza a Salomé, que o não recebia bem nem mal. O estudante de Alcacer appareceu, mas sumiu-se logo que viu o morgado de Reguengos a passeiar ao lado de Hilda Rodarte. —Então aquella grande besta, exclamou elle, toma a coisa a serio! O jornalista, com os officiaes de caçadores, e outros, sentados fóra da porta do Lapido, bebiam gazosa e faziam a critica do grupo que ia passando. D. Ramon Mendoza appareceu no botequim, e os da mesa da gazosa perguntaram-lhe com desfructe: —Então o que é feito do premio grande _d’usted_? —Eu sei lá! Nunca mais tornei a ver Soledad! E, batendo as palmas, mandou vir gazosa. VIII Ao anoitecer, o conselheiro Antunes foi, muito disfarçado, bater á porta de D. Enrique. Respondeu-lhe, do patamar, D. Estanislada, que perfeitamente lhe conheceu a voz. —Que D. Enrique tinha sahido com Soledad, disse ella, mas que subisse, que lhe dava com isso muito prazer. Tudo parecia correr ás mil maravilhas para o ditoso conselheiro. Que D. Enrique e a filha haviam sahido, bem o sabia elle: mas a facilidade amavel com que D. Estanislada o recebia em sua propria casa, não estando o marido, era quasi promessa de felicidade... immediata. O conselheiro, bastante manhoso para dissimular a alegria que esta risonha situação lhe causava, disse, parado ainda ao fundo da escada, algumas palavras aconselhadas por apparencias de conveniencia e respeito. —Mas, minha senhora, não sei se deva entrar... —Que entrasse, que subisse, porque, de mais a mais, havia de gostar da companhia. Esta phrase—_gostar da companhia_—pareceu maliciosa ao conselheiro. E, a seu ver, a promessa de immediata felicidade accentuava-se n’essa phrase. Subiu, pois, sentindo palpitar vertiginosamente o coração, que lhe dava saltos dentro do peito. Mas, entrando na saleta, ficou tão admirado, como contrariado, vendo que D. Estanislada não estava só. Ó desillusão! ó desapontamento! D. Estanislada apresentou-lhe as suas visitas: a senhoria e a filha. A senhoria, a sr.ª Magdalena, era uma mulher de cincoenta annos, viuva, muito devota e temente a Deus. A filha, a menina Ricardina, tinha vinte e dois annos, e um palmo de cara que não era desengraçado. D. Estanislada alludia á menina Ricardina quando disse ao conselheiro que—havia de gostar da companhia. A mulher que se sente amada tem d’estes falsos assomos de modestia, para experimentar o valor da affeição que inspirou, qualquer que seja a sua idade. Diz que todas as outras são mais bellas, mais tentadoras do que ella, porque se sente lisonjeada de triumphar da concorrencia de todas as outras. D. Estanislada seguiu esta tactica. Elogiou muito ao conselheiro a belleza da menina Ricardina, que se envergonhava dos gabos, côrando. A mãe, a sr.ª Magdalena, rindo de satisfeita, repetia esta phrase: —É sãsinha, graças a Deus! O conselheiro, muito contrariado, procurava no seu espirito uma phrase com que, sem correr o risco de ser indiscreto, podesse dar a entender a D. Estanislada que, ao pé d’ella, o rosto de qualquer outra mulher lhe passava despercebido. Finalmente, pareceu-lhe que tinha achado a phrase precisa, e disse-a: —O rosto d’esta menina é realmente muito interessante, e eu felicito por isso a senhora sua mãe; porem não permittamos á sr.ª D. Estanislada que se esteja escondendo na sombra, qual timida violeta. D. Estanislada gostou de se vêr tratada por violeta. E, saboreando a amabilidade, como se estivesse chupando um rebuçado, contestou: —_Yo, pobrecita de mi, yo estoy hecha una vieja!_ —Pelo amor de Deus! exclamou o conselheiro levantando os braços quasi até á altura da cabeça. —Que não, acudiu a sr.ª Magdalena, que estava ainda muito fresca, muito bem disposta, que até parecia irmã mais velha da filha. E a menina Ricardina accrescentava que a sr.ª D. Estanislada não devia dizer a ninguem que era mãe da _señorita_ Soledad. Este tiroteio de lisonjas, de que D. Estanislada foi alvo, durou alguns minutos. O conselheiro, quando entre todos pareceu ficar decidido que D. Estanislada era qual _timida violeta_, sem que ella já ouzasse protestar, fingiu-se novamente admirado da ausencia de D. Enrique e de Soledad. —_Fueron á Lisboa_, respondeu D. Estanislada. —Mas demoram-se pouco? insistiu o conselheiro. —_Vuelven el lunes, no sé si por la mañana ó por la tarde._ —Ainda bem, pensou o conselheiro, e ainda mal! Ainda bem, porque D. Enrique ou não tinha lido o pasquim ou lhe não dava importancia: continuaria portanto a demorar-se em Setubal. Ainda mal, porque a ausencia era breve de mais para que elle conselheiro podesse encher a medida dos seus desejos. Fez menção de levantar-se para sahir. —Que não, que ficasse, insistiu D. Estanislada, que iam tomar chá, e que lhes désse o prazer da sua amavel companhia. —Que não desejava ser importuno... que ia dar uma volta. Mas D. Estanislada, com toda a sua intimativa de hespanhola, ordenou-lhe que ficasse, e o conselheiro Antunes ficou de muito bom grado. Foram para a casa de jantar e abancaram para tomar chá. D. Estanislada fez sentar o conselheiro á sua direita, e a sr.ª Magdalena á sua esquerda. A menina Ricardina ficou ao lado da mãe, posição estrategica que D. Estanislada lhe distribuiu... por cautela. Ella bem sabia quanto o conselheiro Antunes, apesar da sua grave encadernação de presidente da junta geral de Santarem, era lambareiro de mulheres. Emquanto tomaram chá, ao dialogo respeitoso de D. Estanislada e do conselheiro, sobre coisas frivolas, correspondia, debaixo da mesa, outro dialogo bem menos respeitoso: o dialogo dos pés. Certamente que este dialogo nos interessa muito mais do que o outro. Vamos pois escutal-o. _A bota do conselheiro, explorando terreno_:—Onde estás tu, adoravel pé de D. Estanislada? Pois que o teu senhor se acha ausente, pódes vir ao mirante do castello escutar a minha serenata de amor... _O sapato de cordovão de D. Estanislada_:—Eu fujo-te, menestrel audaz, para tornar mais intensa a febre dos teus desejos. Bem deves saber que toda eu sou a _timida violeta_ de que fallaste ha pouco. _A bota_:—A violeta é a flôr da sombra, e debaixo da meza tudo é sombra e mysterio. Estás, pois, no teu logar, violeta timida. Não me fujas, ó esquiva Galatéa, cujo adorado pé eu ando procurando ás escuras, como um cego d’amor. _O sapato_:—Tenho medo de que a sr.ª Magdalena e a menina Ricardina dêem tino do que se está passando no soalho. Para entalação bem bastou já aquella mascarra que o teu beijo de Troia me deixou na face... Não me persigas, que me tentas, seductor! _A bota_:—Eu sou discreto como um conselheiro, que me prézo de ser. Muitas vezes, na junta geral de Santarem, tenho tido necessidade de pisar o pé a um collega para o prevenir de qualquer maniversia politica, e a junta nunca deu por isso, tão bem eu sei pisar o proximo! Encantadora Estanislada! fica sabendo que a electricidade procura as extremidades: os meus pés estão, portanto, carregados da electricidade do meu coração. Chega-te, e verás. _O sapato, aproximando-se_:—Quem póde resistir á fascinação das tuas palavras, e á discrição dos teus processos?! Pois que tudo se vae passar na sombra, com a cautela de que tu sabes usar, como conselheiro e como amante, consentirei que o meu sapato caminhe para a tua bota, com o pejo, aliás, que fica bem a toda a mulher, e com a timidez que é propria de toda a violeta. _A bota, encontrando o bico do sapato, e arrastando-o ternamente_:—Vem, vem finalmente cahir nas doces talas do amor, adorado pé! Quero apertar-te com a ternura com que Romeu abraçava Julieta. Nas dôres physicas do amor, ha uma voluptuosidade que endoidece de deleite. Vem, ó pé feiticeiro! ó pé encantador! _O sapato_:—Eis-me aqui, como um escravo que não póde resistir, que não ouza luctar. Então, o pé esquerdo do conselheiro Antunes, tendo empolgado o pé direito de D. Estanislada, demora-se um momento como para certificar-se de tudo que se está passando em segredo. E, após esse momento de pausa, a bota do pé direito acode a comprimir ternamente, de accordo com o pé esquerdo, o sapato de D. Estanislada, que fica entalado entre as duas botas. Toda a electricidade acode pois ás extremidades de um e outro. D. Estanislada, com a perna direita torcida, offerece mais chá á sr.ª Magdalena, e o conselheiro Antunes, com ambas as pernas repuxadas para a esquerda, mette a colhér dentro da chicara, faz menção de não querer mais chá. Devia ter sido deliciosa toda essa secreta iberisação de duas botas portuguezas junto de um sapato andaluz; deliciosa, principalmente, se nenhum dos pés tinha calos. A conversação foi-se arrastando á custa da sr.ª Magdalena, que entrou no seu assumpto predilecto, os milagres do Senhor do Bomfim. D. Estanislada e o conselheiro apenas contribuiam com monossyllabos, interjeições, porque a electricidade, que acudia ás extremidades, os tinha n’uma vibração nervosa, que os entaramelava. A menina Ricardina, a quem um dos seus namorados havia pisado o pé, n’uma occasião em que jogára o loto em familia, desconfiou da marosca, e as suas suspeitas foram-se accentuando em convicção, porque lhe não passou despercebido que o corpo do conselheiro estava visivelmente esguelhado para a esquerda e o de D. Estanislada enviezado para a direita. Com essa subtil astucia que é propria da gente moça, a menina Ricardina imaginou tirar a prova real das suas suspeitas. Arrancando do dedo um annel de ouro, começou a brincar com elle sobre a mesa: fazia-o rodopiar, dançar, graças ao impulso combinado dos dedos indicadores. A folhas tantas, o impulso foi maior e o annel saltou ao chão. —Ai! o meu annel! exclamou ella, curvando-se rapidamente para apanhal-o. Pôde ainda, vêr, perfeitamente, a fuga precipitada, e algo ruidosa, dos tres pés cumplices. D. Estanislada fez-se rubra; o conselheiro fez-se branco. E a menina Ricardina, apanhando o annel, disse com o seu melhor ar de riso: —Não se incommodem; já aqui está. Muito obrigada. Aquelle inesperado incidente do annel desarranjou a agradavel união iberica dos tres pés. O conselheiro, levantando-se, disse que iam sendo horas da sr.ª D. Estanislada se recolher. A sr.ª Magdalena, ouvindo isto, lembrou-se de que ás seis horas da manhã tinha de ir cumprir uma promessa ao Senhor do Bomfim. Despediram-se todos, e o conselheiro, voltando-se no patamar da escada, exclamou: —Já me ia esquecendo, D. Estanislada! Encommendei o azeite. Mandaram-me dizer em telegramma que era expedido hoje mesmo ás onze horas. —_Muchas gracias_, respondeu ella encostando-se á porta da saleta. Quando batiam em S. Julião as onze horas da noite, um embuçado, cosendo-se muito com a sombra das paredes, dirigia-se mysteriosamente para casa de D. Enrique. Era o _azeite_: o conselheiro. Mas teve de fazer torcicollos porque reconheceu o sueco, que estava contemplando as janellas de D. Estanislada. Por sua vez, o sueco, mal que viu aproximar-se um vulto, deitou a fugir. O presidente da junta geral do districto de Santarem, lembrando-se da _rifa_, e, portanto, de que D. Estanislada havia sahido em premio ao sueco, teve uma forte commoção de ciume. —Pois então elle, pensou o conselheiro, tinha ido para Cintra e apparece mysteriosamente em Setubal ás onze horas da noite! E, como um Othello furioso, empurrou a porta de Desdémona e entrou. Por dentro dos vidros da sua janella, a menina Ricardina, muito matreira, tendo apanhado no ar a phrase do _azeite_, estava á côca, e vira tudo o que se passára. IX O conselheiro Antunes, subindo a escada, deixou-se guiar mansamente, na treva, pela mão da hespanhola. Parecia um borrego amoroso comboyado pela respectiva cordeira. Mas logo que se apanhou no quarto de D. Estanislada e a luz da lamparina lhe aclarou a situação, o borrego transformou-se em lobo cerval. Desdémona teve que haver-se com Othello. Ora o que ali se passou, em rapidos momentos, foi pouco mais ou menos a famosa fabula do lobo e do cordeiro. Othello accusou violentamente Desdémona: era o lobo que fallava. Não alludiu á _rifa_, mas affirmou saber de boa origem que o sueco disfarçava com a filha as suas pretensões á mãe. A hespanhola, entre lisonjeada e surprehendida, tomou o logar do cordeiro do apólogo, salvo o sexo. Procurou tranquillisar o conselheiro, dizendo-lhe que o sueco não a pretendia a ella, mas á filha, _que era mais nova_. O lobo pediu provas, visto que só com provas importantes poderia desfazer a impressão que lhe deixára a presença do sueco, n’aquella rua, ás onze horas da noite, sendo certo constar em toda a cidade que Soledad tinha ido para Lisboa com o pae. D. Estanislada pôde, felizmente, lembrar-se de uma prova. Era uma carta que n’aquella mesma tarde tinha chegado pelo correio, dirigida a Soledad Saavedra. A lettra do sobrescripto era esquisita, estrangeirada: naturalmente seria do sueco. —Pois bem! propozera D. Estanislada, abrir-se-ia a carta e, se effectivamente fosse do sueco, talvez a questão podesse ficar esclarecida. Foi pé-ante-pé buscar a carta, e abriu-a com denodo. Era effectivamente do sueco. Á luz da lamparina, muito curvados sobre uma cómmoda, lêram-na ambos. Custou-lhes a entrar com o texto, uma verdadeira torre de Babel, onde as linguas se confundiam e baralhavam: o sueco, o portuguez e o hespanhol andavam ali em cabriolas de amor de um coração polyglótta. Soletrando, entendendo aqui, não entendendo acolá, chegaram á conclusão de que o scandinavo alludia a um desgosto que tivera no _pic-nic_ de Troia, que o obrigára a retirar-se para o Barreiro, tendo aliás feito constar que ia para Cintra, afim de desorientar a perseguição dos trocistas. Mais uma vez declarava a Soledad o seu ardente amor e, para definir uma situação embaraçosa, pedia que lhe apparecesse á janella ás onze horas da noite. Esta carta providencial, que não chegou ao seu destino, esclareceu a situação, amansou as furias do lobo amoroso. Ao contrario do que acontece no apólogo, e n’isto é que a realidade se apartou da fabula, o lobo ficou vencido, e o cordeiro, salvo sempre o sexo, ficou vencedor. Na rua, emquanto o conselheiro e D. Estanislada decifravam a carta, o sueco, o qual por sua vez ficára ciumento vendo um vulto, mas não o reconhecendo, voltára ao sitio d’onde havia fugido e, ardendo em zelos, esperava que a janella de Soledad se abrisse. Estava elle ali parado, olhando para todos os lados, palpitante de anciedade e receoso da troça, quando sentiu abrir-se mansamente a porta de um _rez-de-chaussée_. Teve medo de alguma insidia, não porque fosse um fraco, mas porque era um estrangeiro esmagado pela chacota indigena. Ouviu um _psiu_, tres vezes repetido, um _psiu_ que não podia ser senão para elle, porque na rua não havia mais ninguem, e esteve quasi para fugir outra vez. Era uma mulher que o chamava, parecia, pelo menos, que era uma mulher, mas quem lhe podia affirmar que não fosse o Julio de Lemos ou o Aurelio Goes ou algum ladino official de caçadores disfarçado em mulher? Hesitava, e teria talvez fugido, se não se convencesse de que era effectivamente uma voz de mulher que, depois de o ter chamado, lhe estava dizendo cautelosamente: —Venha aqui, que lhe posso dar noticias interessantes. O sueco aproximou-se, e ficou encantado de se lhe deparar na janella uma rapariga de cerca de vinte annos, algo morena, mas sympathica. Os olhos eram vivos, porque brilhavam na treva. E, ao vêr diante de si uma realidade agradavel, o sueco encostou-se á janella e sentiu um brando cheiro a mangericão, que o seio da rapariga exhalava, e que a elle lhe soube tão bem como um copo de _Kirsch-Vasser_. —Faça favor de fallar baixo, disse ella, que está ali minha mãe a dormir. —Ó encantadorra menina! exclamou elle. —Ainda que eu mal pergunte, continuou ella, o sr. estrangeiro anda aqui por causa da mãe ou da filha? —Que dizerr menina? —Sim, porque eu tenho visto o sr. estrangeiro no grupo da hespanhola, mas não sei ao certo se anda arrastando a aza á _señorita_ Soledad ou a D. Estanislada... —Linda menina desfrructarr-me a mim? —Não, senhor! Pelo contrario. Desejo ser-lhe agradavel. Posso dar-lhe informações tanto a respeito da _señorita_ como da mãe. Se é por causa da filha, o sr. estrangeiro andava aqui hoje a perder o seu tempo... —Porque dizerr linda menina isso? —Porque Soledad foi esta tarde para Lisboa com o pae, e só volta depois d’amanhã. —Mas quem serr então uma pessoa homem que andava esprreitando inda bocadinho? —E o sr. estrangeiro não dirá nada do que lhe vou contar? —Oh! nó! —Era o conselheiro Antunes. —E onde estarr elle? —Lá dentro. —Aqui? —Credo! Lá dentro da casa de D. Enrique. —Mas estarr só? —Não, sr. Está fazendo companhia á D. Estanislada... O sr. desculpe... —Nó! D. Enrrique é que desculparrá, se quizerr. —É uma pouca vergonha como nunca se viu! Minha mãe tem alugado aquella casa a muitas familias hespanholas, mas ainda não vi gente tão levantada da cabeça como esta! Entre mãe e filha venha o diabo e escolha! —Mãe menina serr senhorria casa? —Sim, senhor. —Então menina terr visto tudo? —Tudo! Não, senhor. Tenho visto muita coisa. Ainda esta noite... —Que terr visto menina esta noite? —Eu e a minha mãe fomos visitar D. Estanislada por imaginarmos que, estando o marido e a filha em Lisboa, não teria quem lhe fizesse companhia. Estavamos lá quando entrou o conselheiro Antunes. Ó sr. estrangeiro, aquillo foi mesmo uma pouca vergonha! —Como serr? —Debaixo da mesa... —Como debaixo de mesa?! —Pisando os pés um ao outro, D. Estanislada e o conselheiro! Estiveram toda a santa noite n’aquelle debique. Depois sahimos todos, mas o conselheiro, á sahida, disse a D. Estanislada que ás onze horas vinha o azeite... —Oh! sim! o azeite! Serr uma combinação entrre ambos! —Tal qual. Mas eu, que não gosto que me façam o ninho atraz da orelha, fiquei aqui á espreita por dentro dos vidros. Vi chegar o sr. estrangeiro e pasmar-se para a casa de D. Enrique. Vi chegar depois o conselheiro Antunes. O sr. estrangeiro fugiu, e o conselheiro entrou. —Menina terr cerrteza que conselheirro estarr lá? —Sim, sr.! Como dois e dois serem quatro... —Pouca verrgonha! —Ó sr. estrangeiro! mãe e filha é tudo a mesma loiça! A filha, quando não anda pela rua com todos os namorados, está á janella a catrapiscar a um e a outro, a todos os que vão chegando! O sr. estrangeiro tambem tem feito bem bonitos papelinhos! —Serr porr brrincadeirra. E terr muitos namorrados? —Mais de um cento! Elle é o Lemos de Alcacer, elle é o tal das gazetas de Lisboa, elle é o hespanholito esgrouviado, elle é o tolo do Vianninha que tem a pobre da Sequeira a morrer por causa d’elle; elle são os officiaes de caçadores; elle são os morgados do Alemtejo; elle era o marialva que andou ahi um tempo. E elle é tambem o sr. estrangeiro... disse Ricardina sorrindo. —Eu serr brrincadeirra. —Olhe, da parte d’ella talvez fosse, porque quando o sr. voltava costas, a _señorita_ e a mãe desatavam a rir pelas casas dentro. —Pouca verrgonha! —Pois olhe que é a pura da verdade! —Muito obrrigado, linda menina. Eu poderr virr amanha á mesm’horra fallarr com menina aqui? —E para que quer o sr. estrangeiro fallar comigo? É porque está apaixonado pela _señorita_ e deseja saber noticias... —Nó! É por gostarr de menina. —O sr. estrangeiro está a caçoar com uma pobre rapariga!... —Caçoarr! Nó! Eu virr amanhã mesm’horra. Linda menina, fazerr favorr esperrar mim? E o sueco, apertando na sua manápula a mão de Ricardina, sentiu-se deliciosamente agitado por esse contacto, que era um triumpho amoroso cahido do céo. Por sua vez, Ricardina, que sahira vibrante de casa de D. Estanislada, sentia-se bem, feliz, por ter podido até certo ponto descarregar a electricidade que de lá trouxera. O sueco era um homem sadio, de boas côres, e devia ter dinheiro, porque estava ali como commissario de uma importante casa da Suecia, importadora de sal. De mais a mais Ricardina, como todas as mulheres, lisonjeava-se de ter arrancado um vassallo ao coração da _señorita_, que estava absorvendo todas as attenções de Setubal. O sueco, ruminando a sua boa fortuna, foi passear audaciosamente para a praia, como se já não temesse os ridiculos da troça. Dados alguns passos, encontrou o estudante de Alcacer, que, muito noctivago, recolhia do café _Esperança_. —Ó seu sueco! disse-lhe o Lemos. Então você não tinha ido para Cintra?! O sueco respondeu-lhe que effectivamente tinha estado em Cintra, por passeio, e não porque se houvesse importado com a historia do _pic-nic_; que se estava rindo da _señorita_, que era uma tola, e até de D. Estanislada, que era a amante do conselheiro Antunes. E, sem se referir a Ricardina, contou ao Lemos que Soledad e D. Enrique tinham ido para Lisboa e que o conselheiro estava áquella hora em casa de D. Enrique. —Está lá com certeza? perguntou o Lemos. O sueco affirmou positivamente que estava; que tinha entrado ás onze horas. —Olhe lá, disse o Lemos, venha comigo, vamos pregar uma _partida_ a essa marafona da D. Estanislada. E, mettendo o braço ao sueco, foi-o levando comsigo a reboque. Depois que passára a tempestade do ciume, D. Estanislada e o conselheiro reconciliaram-se n’um longo idillio de amor. Tinham adormecido nos braços um do outro, e D. Estanislada sonhava afflictivamente que D. Enrique, voltando de Lisboa, estava batendo á porta. Accordou sobresaltada, sentou-se na cama offegante, olhando para o conselheiro que dormia tranquillamente e assobiava por um dos cantos da bôcca. Agitada entre a impressão do sonho e da realidade, isto é, entre a imagem de D. Enrique e a pessoa do conselheiro, estava limpando o suor da testa, quando ouviu resoar tres pancadas na porta e uma voz roufenha dizer: —Eu sou D. Enrique! Eu sou D. Enrique! Agarrando-se trémula, convulsa ao conselheiro, accordou-o, e elle, despertando aturdido, ouviu tambem, distinctamente, a voz roufenha dizer: —Eu sou D. Enrique! Eu sou D. Enrique! Era o estudante d’Alcacer, que se tinha lembrado de pregar aos dois esta _partida_. X Tarde de domingo, lucida e serena como um crystal da Bohemia. O Sado dorme n’um azul tranquillo, n’um leito de saphira, que a menor aragem não agita, o que poucas vezes succede. O Campo do Bomfim immobilisa-se n’uma grande quietação bucolica, e os arvoredos circumjacentes recortam-se n’um fundo de stereoscópo longamente pittoresco... As Rodartes foram passeiar a Brancannes: Hilda e Maria Ignez, de braço dado; Salomé guiando, como sempre, o avô,—Antigone que vae conduzindo Œdipo. Habituadas á vida placida da Messejana, sentiam-se bem na solidão dos campos, mais convidativos ali do que na sua arida provincia do Alemtejo. O velho _Padre Eterno_ não queria outra felicidade que a de vêr-se rodeado pelo grupo encantador das suas tres Graças: onde ellas estivessem, estava o céo. Nenhum dos cavalheiros serventes tinha apparecido ainda, e não faziam falta a ninguem, nem mesmo ás tres damas, que elles n’aquella tarde pareciam ter esquecido. Salomé e o avô conversavam sobre negocios da administração da casa, porque aquella neta era o secretario particular do velho Rodarte: toda a correspondencia com os feitores e caseiros corria pela sua mão. Hilda e Maria Ignez fallavam de coisas frivolas, assumptos de Setubal, que lhes serviam para ir matando o tempo. —A andaluza foi com o pae a Lisboa, dizia Maria Ignez. —Como sabes tu isso? perguntou Hilda. —Porque m’o disse hoje o banheiro na praia. —Ah! por isso, replicou Hilda, ninguem ainda viu nenhum dos seus pagens! Ou foram tambem para Lisboa ou estão mettidos em casa a chorar de saudade... E riram ambas, sem despeito, apenas com a alegre ironia, que é uma feição caracteristica dos espiritos moços e despreoccupados. —O sueco é que desappareceu da circulação! —E o Lemos tambem! —Não. O Lemos estava outro dia sentado á porta do café quando nós passamos. —Parece que não está bem comnosco! —Porquê? —Eu sei lá! Deixal-o estar. —E o jornalista? O avô e Salomé haviam-se calado momentos antes. —O jornalista, disse o velho Rodarte, mandou-me hoje a sua _Trombeta_. —A da Fama, avôsinho? perguntou Maria Ignez. —Não, a d’elle, a _Trombeta Ullyssiponense_. —Por signal, accrescentou Salomé, que vem lá uns versos d’elle, que não são feios. —Como são? perguntou Hilda. Tu que tens boa memoria, dize lá como são. —Parece-me que sei apenas o principio. Intitulam-se _Noites ao norte_. Noite fria, noite branca, Noite da Russia polar, És como a imagem da morte, Ó longa noite do norte, Feita de neve e luar. —Dize lá o resto. —Não sei. Tive de escrever para a Messejana uma carta que o avôsinho queria, e puz logo o jornal de parte. —Esses versos fazem frio! disse rindo o avô. —Frio e mêdo! accrescentou Hilda. —Se elle faz d’esses versos á _señorita_, constipa-a, disse Maria Ignez. O avô e as duas outras meninas riram muito da phrase. —Coitados! continuou o Rodarte. Chega a ser comico esse cortejo da hespanhola! Tirados os nossos dois patricios, que são alegres, mas excellentes pessoas e proprietarios abastados, tudo o mais não vale um caracol. —E D. Ramon? perguntou Maria Ignez. —Quem sabe lá o que elle é! É um emigrado, que me não parece um forte sustentaculo da monarchia, nem um inimigo poderoso da republica. —E o Vianninha? perguntou Hilda. —O Vianninha é um pobre escripturario de fazenda, respondeu Araujo Rodarte, que anda a estudar o modo de não morrer de fome. —Não, avôsinho! replicou Hilda. Elle anda a estudar o meio de conquistar a _señorita_. —Está ella feliz com esse pretendente! —Pois assim pobre como é, disse Maria Ignez, está apaixonada por elle a Sequeira. Dizem até que tem deitado sangue pela bôcca. —Pobre rapariga! que tão mal empregou o seu coração! ponderou o Rodarte. E elle é um tolo, porque o pae da Sequeira tem alguma coisa de seu, possue duas marinhas em Alcacer, e é um homem que trabalha muito. De mais a mais, boa gente. E Maria Ignez interrompeu a conversação, exclamando: —Sabem quem vem acolá? São os nossos patricios. —Antes elles do que os outros, disse o avô. O morgado de Reguengos e o proprietario das Alcaçovas vinham effectivamente subindo para Brancannes, onde sabiam que iam encontrar as tres lindas patricias. A sua chegada trouxe maior animação ao dialogo. —Então que vae lá por esse mundo da praia? perguntou o velho Rodarte. —Algumas novidades ha. —Novidades! Quaes? —A andaluza foi com o pae para Lisboa, disse o morgado de Reguengos. —Os nossos sentimentos... replicou Hilda. O morgado fez-se purpurino. —Ó minha senhora! disse elle. Tanto eu como este meu companheiro estamos aqui a banhos e queremos divertir-nos. Olhamos para tudo isto como se estivessemos no theatro. A andaluza tem sido a peça que está em scena: assistimos ao espectaculo e divertimo-nos a nosso modo. —Assim é, confirmou o proprietario das Alcaçovas. —Pois que hão de elles fazer! ponderou Araujo Rodarte. E mais? —O conselheiro anda fazendo as suas despedidas. Já nos foi deixar bilhete. —Mas elle contava ainda demorar-se! observou Araujo Rodarte. —Lá estão commentando no Lapido a resolução do conselheiro. —Mas ainda ha mais novidades! lembrou o morgado de Reguengos. —Digam sempre. —O Lemos planeou agora um espectaculo de curiosos em favor do Asylo. Parece que querem representar uma comedia escripta pelo Goes. —Mas quem representa? perguntou Maria Ignez. —Elles esperam que v. ex.ᵃˢ entrem. —Nós! conclamaram as tres meninas. —Ellas! exclamou simultaneamente o avô. —Mas a mim consta-me por linhas travessas, disse o proprietario das Alcaçovas, que o pae do Lemos está furioso com a demora d’elle em Setubal, e que mais dia menos dia o virá buscar para o acompanhar a Lisboa, visto que se vae aproximando a época da abertura das aulas. —Pobre pae! observou o Rodarte. O rapaz está aqui está a tomar capêllo em Physica. —Tempo tem elle já para isso! —Pois essa idéa do espectaculo é mesmo d’uma cabeça desconcertada! —Outra novidade! exclamou o morgado de Reguengos. —Qual? —Appareceu o sueco! —Tinha-se perdido? perguntou rindo Araujo Rodarte. —Não, senhor. Tinha ido a Cintra sem dar cavaco á gente. Os dois alemtejanos foram a Brancannes com o proposito astucioso de evitar que as Rodartes tomassem parte no espectaculo planeado n’aquella manhã pelo estudante d’Alcacer. Sondariam sobre o assumpto o animo do velho Rodarte. Mas logo ficaram tranquillos vendo que tanto o avô como as netas pensavam do mesmo modo: ellas não entrariam na récita. O morgado de Reguengos e o proprietario das Alcaçovas continuaram a não dar importancia á concorrencia amorosa do estudante e dos outros, que _não tinham onde cahir mortos_. Mas o galanteio de ambos com as duas Rodartes ia-se accentuando com um caracter de seriedade, que abrangia já a ideia do casamento, se ellas os não repellissem. Queriam pois evitar, um e outro, que collaborassem n’um espectaculo de rapazes as duas senhoras, Hilda e Maria Ignez, admittida a possibilidade de que ellas lhes acceitassem a côrte. Não sabiam elles ao certo o numero de personagens femininos que a peça exigiria; mas preveniam a hypothese de uma annuencia ao convite do estudante. Combinado o espectaculo no café _Esperança_, e compromettido Aurelio Goes a escrever a peça, o estudante, o jornalista e o Vianninha foram em grupo ao encontro das Rodartes. Vinham ellas já descendo de Brancannes com o avô e os dois alemtejanos, quando os tres as avistaram. N’essa occasião o morgado de Reguengos colhia uma flôr e offerecia-a a Hilda. O estudante viu isto, e desfechou de longe uma gargalhada. —Sabem vocês, disse elle aos companheiros, o que aquelle pedaço de bruto lhe está dizendo decerto agora? —O que é? —Aposto que ha de ser isto: Aqui tem este raminho, Que da minha mão se offerece. Não é como eu queria, Nem como a senhora D. Hilda merece. E riram todos tres. —Parece-me que á bêsta nos viu rir? disse o estudante. —Tambem a mim me parece! respondeu o Vianninha, muito timido. —Pois com tamanha bêsta não quero eu brincadeiras. E o estudante foi o primeiro a desandar pelo mesmo caminho, sendo logo seguido pelos seus dois companheiros. XI O conselheiro Antunes e D. Estanislada ficaram inquietos com o que tinham ouvido. O seu segredo estava descoberto: o _azeite_ havia-se entornado, enodoando ambos. Não era D. Enrique que batera á porta, porque D. Enrique estava em Lisboa, mas devia ser uma pessoa que soubesse _tudo_. Quem seria essa pessoa? D. Estanislada propendia a crêr que fosse a senhoria. —Porquê? perguntou-lhe o conselheiro. —_Porque es beata, y las beatas lo saben todo: lo que Dios no les dice, lo saben ellas por el Diablo._ Era uma razão, mas o conselheiro não a acceitava sem repugnancia: —Nada! Foi um homem. Certamente o sueco, que andava por aqui. É verdade que elle não me viu entrar, porque fugiu. Mas suspeitou que eu houvesse entrado e, n’essa supposição, veio pregar-nos esta peça. —_Nada!_ teimava D. Estanislada. _La voz no era la del sueco!_ —Precisamos acautelar-nos, porque podem resultar de tudo isto consequencias muito desagradaveis. Eu sou um homem sério, e se não desejo comprometter uma dama, não desejo comprometter-me tambem a mim proprio. O melhor será eu recolher-me por alguns dias a Santarem, antes mesmo de D. Enrique voltar, porque d’este modo elle não poderá crêr, se lhe chegar aos ouvidos a denuncia, que eu desaproveitasse um só instante da sua ausencia. —_D. Enrique nada sabrá_, dizia a hespanhola, muito menos timida que o conselheiro. —Eu sei lá! Isto leva caminho de lhe chegar aos ouvidos. O seguro morreu de velho, e o melhor é acautelarmo-nos. Estanislada, minha rica Estanislada do meu coração, eu vou passar uns dias a Santarem, e voltarei depois. —_Que fatalidad!_ exclamava ella. O conselheiro não descansou senão quando se viu fóra da porta. D. Estanislada viera antes á janella para o certificar de que não estava ninguem na rua. —Nada! Não quero comprometter a minha reputação, a minha respeitabilidade, tudo! ia monologando o conselheiro. Amanhã faço constar que o governador civil de Santarem me chamou para um negocio urgente da politica do districto. Faço, pelo sim pelo não, as minhas despedidas, para não alimentar suspeitas, para mostrar que _parto_ mas não _fujo_, e por aqui me sirvo até mais vêr. E, apos uma pausa, muito sentencioso: —Não ha mulher nenhuma que valha a reputação de um homem. Effectivamente, no comboio de segunda-feira pela manhã o conselheiro partiu para Lisboa e de Lisboa para Santarem. Ao apear-se na estação da sua terra, o mesmo pensamento sentencioso acudiu ao espirito do conselheiro: —Nada! Não ha mulher nenhuma que valha a reputação de um homem! O estudante de Alcacer havia divulgado a _peça_ que pregára ao conselheiro e a D. Estanislada. Era já do dominio publico á hora em que o conselheiro andava fazendo as suas despedidas. Os dois alemtejanos sabiam-no perfeitamente quando se encontraram com as Rodartes, no domingo, em Brancannes, mas limitaram-se, por conveniencia devida ás damas, a dizer que no café _Esperança_ estavam discutindo os motivos da retirada do conselheiro. E era verdade. Em todo esse dia a hespanhola mãe foi ali tão discutida quanto a hespanhola filha o havia sido quando era a unica belleza dominadora de Setubal, isto é, antes da chegada das tres netas do _Padre Eterno_. D. Enrique regressou na segunda-feira de tarde com Soledad. —Foi usted a Lisboa? perguntavam-lhe os desfructadores. —_He ido á los toros!_ —Ah! Foi usted aos touros? E que tal? —_Una broma!_ E ficavam-se a rir, logo que elle voltava costas, da singular coincidencia de ter ido aos touros aquelle homem que, durante a sua ausencia, fôra, segundo a expressão picaresca do estudante, lidado pelo conselheiro. Mas D. Enrique vinha mais contente do que fôra, porque tivera occasião de fallar em Lisboa com outros emigrados, e a opinião d’elles era que o estado anarchico de Hespanha não podia continuar por muito tempo. O remedio viria de alguma parte, ou d’uma intervenção das potencias estrangeiras ou de uma reacção espontanea do paiz. Era a esperança providencial de todos os emigrados a prefigurar-lhes um desfecho mais rapido do que os factos em verdade promettiam. O estudante, o jornalista e o Vianninha resolveram, á volta de Brancannes, demorar o convite ás Rodartes, para entrarem na récita, até que estivesse escripta a comedia e se soubesse ao certo qual o numero dos personagens femininos. O jornalista metteu-se em casa a trabalhar de afogadilho na sua _peça_, de que elle proprio já fallava com orgulho, quando ás dez horas da noite apparecia no café do Lapido para tomar cognac, como uma celebridade noctivaga. Contava com uma verdadeira glorificação no theatro, esperava que o seu triumpho no palco de Setubal teria grande écco em Lisboa. Coroado como dramaturgo na patria de Bocage, para entrar no palco de _D. Maria II_ só lhe seria preciso... atravessar o Tejo. A sua reputação estava feita ou perto d’isso. Ao segundo dia de trabalho, annunciou que na sua comedia apenas entraria uma mulher. Esta noticia contrariou muito o estudante, mas Aurelio Goes respondeu-lhe que a espontaneidade do talento não se podia torcer como um arame, e que o que a sua cabeça lhe déra espontaneamente fôra uma comedia com um só personagem feminino. Então, alguns desfructadores, _habitués_ do Lapido, suggeriram a ideia de que, para não melindrar as damas, o melhor seria não convidar nenhuma, e encarregar-se o estudante de um _travesti_. Não repugnou a Julio de Lemos esta ideia, porque lhe daria no palco maior evidencia e, por isso mesmo, maior gloria. Acceitou. —Que nome tenho eu lá na peça? perguntava elle a Aurelio Goes. —És a baroneza de Piães. —Casada ou solteira? —Casada. —E distincta? —Certamente. Escriptas as primeiras scenas, foram-se logo ensaiando. O jornalista distribuiu os papeis; os ensaios faziam-se de dia, depois do almoço. Uma commissão encarregára-se de passar a casa: a coisa corria ás mil maravilhas. Eis o programma da festa, redigido pelo dramaturgo: UMA NOITE SINISTRA _Comedia em tres actos e em verso, original do festejado escriptor o ex.ᵐᵒ sr. Aurelio Goes_ DISTRIBUIÇÃO DOS PERSONAGENS _Baroneza de Piães_ Sr. Julio de Lemos _Barão de Piães_ Sr. J. Vianna _D. Mendo Espinote_ Sr. Aurelio Goes _D. Diogo Cucufate_ Sr. Tenente Epaminondas _D. Fafes Estorninho_ Sr. Tenente Rosalgar _D. Gualter Byscaia_ Sr. Alferes Ruivo _O escrivão de fazenda_ N. N. A acção passa-se na actualidade, em Braga. _Ensaiador_—Sr. Aurelio Goes. A _Gazeta Setubalense_ e a _Trombeta Ullyssiponense_ annunciaram, além e áquem do Tejo, o brilhante espectaculo que ia realisar-se em Setubal, punham no sette estrello o novel e talentoso author, Aurelio Goes, que, se os calculos não falhavam, viria a nivelar-se com Almeida Garrett, e elogiavam a vocação artistica dos distinctos amadores, que em seguida nomeavam. Ambas as noticias haviam sido escriptas pelo proprio Aurelio Goes. Tambem elle se lembrára de officiar ao ministerio das obras publicas reclamando, para a noite da récita, um comboio extraordinario a preços reduzidos, mas não obteve resposta. Escreveu a um amigo de Lisboa encarregando-o de encommendar uma coroa de louros, que era para elle, e de ir entender-se com o proprietario da _Trombeta_, para que lhe fizesse um adeantamento de dois mezes. A coroa foi logo encommendada, porque o amigo de Aurelio Goes tinha tanto juizo como elle. Mas o proprietario da _Trombeta_, que só d’ahi a dois dias poude ser encontrado, recusou-se formalmente a fazer o adeantamento pedido, chegando a dizer ao intermediario que o _sr. Aurelio_ só lhe mandava de Setubal noticias de interesse proprio; que estava muito desgostoso com elle, e que se dentro de quinze dias não regressasse a Lisboa, o despediria da redacção. Depois d’esta entrevista desoladora, o amigo de Aurelio Goes correu á loja onde tinha encommendado a coroa, para suspender a encommenda, mas, ó fatalidade! a coroa estava já feita, e exposta na _montre_ com este distico, que tinha tambem sido encommendado: _Ao notavel e talentoso dramaturgo Aurelio Goes, futuro émulo de Garrett_. Pobre emissario! Ficou entalado, responsavel pela despeza da coroa. Escreveu para Setubal a contar o que era passado, quanto aos louros e á brutalidade do proprietario da _Trombeta_. Aurelio Goes respondeu, na volta do correio, que ia arranjar dinheiro para a coroa, que não prescindiria dos louros por caso nenhum, e que fosse dizer ao «tyranno da _Trombeta_», expressão sua, que dentro de quinze dias estaria de regresso em Lisboa com uma carregação de gloria, que faria subir os fundos da _Trombeta_. E, para que tudo coubesse no praso fatal que lhe era marcado, resolveu-se que a récita se realisasse dentro de dez dias. Activaram-se os trabalhos, Aurelio Goes desenvolvera uma actividade assombrosa, retocava as ultimas scenas da comedia, assistia aos ensaios, e tratava de arranjar dinheiro para os louros. Julio de Lemos, muito contente com o seu papel de baroneza de Piães, em que obteria uma ovação, estava d’isso convencido, occupava-se, nas horas livres de ensaios, em preparar a sua _toilette_. Lembrou-se de D. Estanislada para lhe fornecer o guarda-roupa, mas lembrou-se obrigado pelas circumstancias, porque o morgado de Reguengos declarára categoricamente em alguma parte que, por seu conselho, as Rodartes não contribuiriam para a récita senão com o preço do seu camarote. E o estudante, quando soube isto, dissera: —Essa grande bêsta imagina talvez que terei de apparecer em scena como Eva no Paraizo Terreal! Pois engana-se redondamente. E foi pedir a D. Estanislada que lhe valesse n’aquella afflicção. Soledad tinha ido ao banho com o pae, mas D. Estanislada recebeu-o amavelmente, prometteu-lhe pôr á sua disposição o guarda-roupa de que precisasse. Julio de Lemos, muito captivado, agradeceu-lhe a amabilidade e, para lisonjeal-a na sua formosura, contou-lhe a scena que se seguira ao _pic-nic_ de Troia, disse-lhe que, no sorteio de damas a que se procedêra, ella tinha cahido em sorte ao sueco. D. Estanislada riu muito com essa brincadeira, e explicou então a si mesma os ciumes do conselheiro, e a presença do sueco, de noite, na sua rua. Esta revelação não cahiu em cesto rôto. Vencida a difficuldade da _toilette_ para o estudante, tudo estava prompto, e a noite da recita chegou finalmente. XII Subiu o panno. O palco representava uma sala, que fingia communicar com outras. Ouvia-se um _sol-e-dó_, com pretensões a orchestra de salão. Devia ser um baile. SCENA I D. MENDO e D. DIOGO (_entram ambos, conversando, pela porta do fundo. O sol-e-dó vae esmorecendo. Salienta-se á vista dos espectadores a casaca de D. Mendo, que é antiga e enorme._) D. MENDO Mas se conhecem? D. DIOGO Sim! sim! Agora, que estás no baile, Emancipa-te de mim. Passeia, namora, primo, Faze a côrte, dize graças, Pódes até, se quizeres, Tu, morgado de Boaças, Ser um rei entre as mulheres! D. MENDO Um rei com manto emprestado! Julgo ouvir, a cada passo, Dizer a voz de um palhaço: «Largue a casaca, morgado!» Que entre a fôrma e entre o fato Deve a união ser tamanha Como entre a casca e a lagosta, Entre o ouriço e a castanha. Mas eu com esta casaca Cheiro a D. Miguel I. Suppõe que eu sou a castanha: Ella é o ouriço... cacheiro. D. DIOGO Ora adeus! Em Braga serve... D. MENDO Essa ironia é cruel! Onde ella faria vista Seria em Penafiel, Que lá as casacas todas São ainda mais pesadas E têm as abas dobradas, Dizem... D. DIOGO Pensei que sabias! D. MENDO Não. Eu já lá estive uns dias, Mas nunca mudei de fato. Ora eu com esta casaca A que Bocage decerto Fez no seu tempo uma quadra, Devo par’cer um retrato D’estes da Feira da Ladra! E depois que desconcerto Entre a casaca e o chapeu! Percebem todos á legua Que trago o que não é meu. Um chapeu moderno, _claque_, Fôrro preto, lettra de ouro, Armado com boas molas, Dando ao abrir-se um estouro. (_E abriu a claque com estrondo._) A casaca... um monumento De remota fundação! Faz lembrar a sé de Braga Com abas e cabeção; A guerra de Troia em panno; Affonso Henriques cosido. Affonso Henriques decerto É que eu trago em mim vestido! D. DIOGO Pateta! Mais te valia Talvez deitar-te ao sol-posto Com as gallinhas! (_ironico._) D. MENDO Que ouvi?! Pôr as gallinhas, entendo, Mas pôr o sol, nunca vi! D. DIOGO Ahi vem a dona da casa! D. MENDO Agora, que vou ter publico, Sinto-me arder n’uma braza! SCENA II _Entra Julio de Lemos em travesti de mulher. A sua entrada em scena produz hilaridade no publico._ BARONEZA Ó morgado! que surpreza! Que prazer! quanto eu estimo! Beijo-lhe as mãos, D. Diogo, Pois que nos trouxe seu primo. D. MENDO Baroneza! Eu folgo muito... O meu peito rejubila... (_Inclina-se. Sóbe-lhe para a cabeça o cabeção da casaca._) (_á parte_) Não posso dár á cabeça, Que me não suba a mochilla! D. DIOGO (_apertando a mão á baroneza_) E tem que me agradecer, Porque o primo não queria Vir ao baile! BARONEZA Póde ser! D. DIOGO Só questão de _toilette_. Mas emfim... D. MENDO (_á parte_) Vim de casaca, E ainda cabiam mais sete! BARONEZA O barão, quando soubér, Ha de ficar encantado Co’a surpreza do morgado. Eu mesma lh’o vou dizer. E agora, morgado, goze, Que entre a fina flôr do Minho Não ha quem lhe leve a palma, Quem tenha mais gentil alma, Melhor sangue em pergaminho, Além do que nós sabemos... Pois por cá todos lhe dão Umas cem pipas de vinho E oitenta carros de pão. D. MENDO Ai! baroneza! Foi tempo!... Já não sou quem d’antes era. Sinto-me triste, sou mono. Matou-me o phylloxera! Deu nas vinhas... e no dono! BARONEZA Não se chore... pobresinho! Que não é occasião. Se quizer... compro-lhe o vinho, Seu primo... compra-lhe o pão. D. DIOGO Está dito, baroneza. Quer o meu braço? BARONEZA Pois não! Morgado, goze, namore, Que eu vou dizer ao barão. (_A baroneza e D. Diogo saem de braço dado por uma das portas lateraes._) SCENA III D. MENDO (_só_) Goze! Namore! Tem graça! Póde alguem ser tão audaz, Que vá mostrar-se n’um baile Assim, por deante e (_volta-se_) por traz! Vim de rastos, constrangido, Estou aqui compromettido! Não saio d’aqui, não saio. Fallar ás damas? Dançar? N’essa tolice não caio. Não me hão de lá apanhar! (_Sentando-se._) Chego a Braga d’esta vez Por uns dois dias ou trez. Trago um fato de viagem: Eis toda a minha bagagem. Entro em casa de meu primo. —Como vaes tu?—Que surpreza! Ó diabo! adivinhaste! Mas tu sabes que apanhaste Um baile da baroneza?! —Um baile?—Um baile!—E depois? —Um baile d’estes que valem, Dados em Braga, por dois. —Não vou.—Has de ir.—Mas não posso! —Não pódes! porque?—Por tudo! Ou melhor, talvez, por nada! Pensas que eu visto casaca P’ra fazer uma jornada?! Que é da casaca? Não tenho! Gosto de andar á ligeira, Cheio de sol e poeira, Assim mesmo,—como venho. —Mas, primo, talvez se arranje Algum meio... deixa vêr. —Só o capote de um conego Me póde agora valer! —Não rias! Que ideia! Espera! Se me não falha a memoria, A casaca do papá, Que Deus tenha em santa gloria, No guarda-roupa ainda está. —Santo Deus! quero lá isso! Ó primo! que reinação! Uma casaca, talvez, Com que o tio outr’ora fez De valido papa-fina Quando a Carlota Joaquina Burlou a Constituição! —Vae-se vêr. Tem paciencia... Vem a casaca. Medonha! Isto que eu trago vestido E em que me sinto mettido Como dentro d’uma fronha! —Primo, não vou.—Qual historia! Verás lá muitas assim. N’esta Braga, que é fiel, O tempo de D. Miguel Dura ainda, e não tem fim! Vaes á moda.—Á moda... antiga! —Talvez que alguma morgada, Camapheu como o seu broche, Se sinta lisonjeada D’esse aspecto _vieille-roche_. —E entre no meu coração, Por engano, e por seu pé, Julgando, por ser em Braga, Que vae ouvir missa á Sé! —Ora adeus! Calças, collete, Gravata, lenço, chapeu, O resto da _toilette_, Tudo isso, empresto-te eu. E zás, põe me na tortura, Despe-me, veste-me, entala-me, Puxa, repuxa, estrebucha, Desaperta, aperta, empala-me! Traz-me ajoujado, arrastado, Acho-me, sem saber como, Preso dentro de uma sacca! Vim a pé... n’esta casaca, E o primo veio a meu lado! SCENA IV (_D. Fafes Estorninho, D. Gualter Byscaia e o escrivão de fazenda entram pela porta do fundo. D. Mendo levantas-se vendo-os entrar._) D. FAFES e D. GUALTER (_simultaneamente_) Ó que surpreza! Um abraço! Que noite nem estreiada! (_abraçam-n’o de um e outro lado._) D. MENDO (_á parte_) Fica tão longe a casaca, Que não senti mesmo nada! (_Olhando para o escrivão de fazenda, que lhe abaixa a cabeça._) Ó D. Gualter, ó D. Fafes, Ser apresentado estimo Ao distincto cavalheiro, Que tendes por companheiro. Será elle nosso primo? D. GUALTER Não é. Mas outra valia Este senhor recommenda. Isto já de fidalguia!... D. FAFES É o escrivão de fazenda. (_apresentando D. Mendo_) Meu primo Mendo de Sousa Noronha Alvim e Lambaças... Aqui falta alguma cousa! Emfim: senhor de Boaças. D. MENDO Falta o Tinoco materno. De meu pae falta o Rolim. D. FAFES (_emendando_) Mendo de Sousa Noronha Alvim Tinoco Rolim, Senhor do Brejo e Boaças. D. MENDO Agora falta o Lambaças! D. FAFES (_rindo_) Nenhum de nossos avós Faz falta onde estamos nós! D. MENDO (_ao escrivão_) Muito emfim me lisonjea Conhecer este senhor. Faça de conta, de ideia Que me tem ao seu dispôr. Estendo-lhe a minha mão, Senhor... senhor escrivão De fazenda... propria ou alheia? D. GUALTER (_precipitado_) Não faças troça do homem. N’estes bons tempos felizes De liberdade e igualdade Nós andamos nas mãos d’elle P’ra que não nos tire a pelle Esticando-a nas matrizes. D. MENDO Então cá vocês não pagam? (_D. Fafes conversa entretanto com o escrivão de fazenda_) D. GUALTER Pagamos pouco. Bem vês Que ninguem faz em colheitas O que antigamente fez. D. MENDO E então recorrem ás peitas! N’esta altura da representação começou-se a ouvir barulho no palco. Não parecia que fosse rubrica da peça. D. Mendo, extranhando o barulho, dirigiu-se á porta do fundo, e gritou para dentro: Calem-se, seus burros! D. GUALTER (_levantando a voz para poder ser ouvido_) Finge a gente que o estima, Trata-o de Santo Antoninho, Mão por baixo, mão por cima. Se não ha nem pão nem vinho! D. MENDO (_descendo da porta do fundo, muito arreliado porque o barulho entre-scenas continua_) Mão por cima... é bom criterio. Mas mão por baixo... é mais serio! D. GUALTER (_explicando com o gesto correspondente_) Mão por cima e mão por baixo. Continua e augmenta o barulho entre-scenas. Sente-se fallar de rijo, altercar. Da platêa rompem alguns scius. D. MENDO Isso então tinha outro nome Quando não havia fome. Chamava-se: ser capacho! D. FAFES (_em voz alta, cada vez mais alta, cuidando poder dominar o barulho que vinha do fundo do palco_) Muito alegre este D. Mendo! D. GUALTER (_berrando para poder ser ouvido_) Parece rapaz, e é velho! D. FAFES (_gritando cada vez mais_) Tem uma casa soberba! D. MENDO (_com voz de estentor, para o escrivão de fazenda_) Tenho. Mas n’outro concelho. N’isto o barulho augmenta entre-scenas, sente-se cahir uma cadeira, e de repente, correndo de um lado para outro, atravessa o palco Julio de Lemos, em _travesti_ de baroneza de Piães e atraz d’elle, aos pontapés, um dos quaes ainda lhe raspou, um sujeito de cabellos grisalhos, baixo, atarracado, ardendo em colera. Uma grande parte do publico, composto de setubalenses, reconheceu o homem dos pontapés: era o pae do estudante de Alcacer. As familias banhistas, incluindo as Rodartes e Soledad, assustaram-se. Ouviram-se guinchos hystericos. Na platêa explodiram risadas. E ao charivari no palco correspondeu o charivari dos guinchos e das gargalhadas na platêa e nos camarotes. Os actores, D. Mendo, D. Fafes, D. Gualter e todos os mais, corriam de um lado para outro gritando, berrando, apparecendo e desapparecendo por entre os bastidores. O administrador do concelho sahiu precipitadamente do seu camarote. Ao cabo de cinco minutos de tumulto, o panno desceu. Na platêa continuavam as risadas, mas nos camarotes iam diminuindo os guinchos. Vozes explicavam da platêa para os camarotes: —Não é nada! É o pae do estudante que o veio buscar! —É o pae! é o pae! Não se afflijam, minhas senhoras. Alguns homens sahiam da platêa, corriam ao palco. D. Enrique berrava ao fundo do seu camarote: —_Que broma! que broma!_ Finalmente, ao cabo de um quarto de hora de verdadeira ingrezia, o panno subiu, e Aurelio Goes, ainda enfardelado na sua enorme casaca de D. Mendo, veio dizer á bôcca da scena: —Minhas senhoras e meus senhores: tendo desapparecido do palco o sr. Julio de Lemos, o espectaculo não póde continuar hoje. O proprietario das Alcaçovas, que tinha ido ao camarote das Rodartes, para lhes explicar o que tudo aquillo era, e tranquillisal-as, dizia: —Bem me constava a mim que o pae do Lemos estava muito quesilado com elle, e não tardaria a vir buscal-o. Rebentou hoje como uma bomba! XIII Imagine-se quanto deu que fallar este caso estupendamente comico! Pela manhã dizia-se na praia que o pae do estudante havia corrido atraz d’elle pela rua da Conceição, e que um popular, vendo uma mulher a fugir e um homem a gritar que a prendessem, deitara a mão á supposta mulher; que Julio de Lemos apanhára n’esse momento nova roda de pontapés, e que o pae, agarrando-lhe por um braço, o levára para a hospedaria, tendo embarcado ambos no comboio da manhã para Lisboa. Episodios altamente risiveis, boquejavam-se: soube-se então que o jornalista havia mandado vir de Lisboa, para si proprio, uma coroa de louros, a qual coroa de louros ficára no theatro pendurada de um prego. Fazia-se _calembour_ com a palavra _prego_, porque se soube logo tambem a quem o jornalista pedira emprestado o dinheiro para pagar a coroa. Accrescentava-se que o estudante se esquecêra, na atrapalhação em que ficára, de restituir a _toilette_ a D. Estanislada, mas averiguou-se depois que o pae de Julio de Lemos havia mandado entregar tudo. Aurelio Goes não apparecia, estava envergonhado e furioso: envergonhado pelo _fiasco_ e furioso por vêr perdida a occasião de trepar para o pedestal de Garrett. Á noite asseverou-se, e era verdade, que Aurelio Goes havia partido no comboio da tarde para Lisboa, á franceza, sem dizer adeus a ninguem, nem mesmo á pessoa que lhe havia emprestado o dinheiro para a coroa de louros. Só duas pessoas, não que ellas o dissessem a ninguem, haviam tirado algum proveito d’essa mallograda récita. A primeira era D. Estanislada que, graças ao estudante, ficára sabendo que, no sorteio de Troia, havia cahido em sorte ao sueco. A segunda era o sueco que, na noite da récita, tinha offerecido um camarote de segunda ordem á senhora Magdalena e á menina Ricardina. Pois que! A menina Ricardina soubera tecer a sua rede, e apanhou nas malhas o sueco. Foi com esse fim que ella o chamára para lhe fazer as confidencias que sabemos. Elle, encantado com tão boa fortuna, porque era essa a primeira portugueza que se lhe tornava accessivel, voltára na noite seguinte, e logo n’essa noite ficou estabelecido o galanteio. A menina Ricardina contou á mãe que o sueco lhe tinha dito que queria desposal-a, e a sr.ª Magdalena, depois da filha lhe prometter que _teria muito juizo_, prometteu ao Senhor do Bomfim um sueco de cêra, se o namoro viesse a disparar em casamento. Annunciada a récita, o sueco offereceu á namorada um camarote de segunda ordem, camarote de industria escolhido para dar pouco nas vistas: era de bôcca. E logo que a sr.ª Magdalena e a filha se sentaram no camarote offerecido, o sueco, a proposito de saber se ellas queriam alguma coisa, foi visital-as, e ficou. Sentou-se discretamente ao fundo do camarote, encantado com a mobilidade gracil com que Ricardina mexia a cabeça, olhando para um e outro lado como um passaro na gaiola. Ella estava delirante de alegria por se vêr no theatro, coisa que já lhe não acontecia havia dois annos, desde que um rapaz, que tinha ido a banhos, lhe offerecera duas cadeiras no barracão dos Dallots para ella assistir com a mãe á representação da _Mão do finado_. Mas vêr-se de camarote, n’um espectaculo concorrido pelas melhores familias da terra e de fóra, estonteava-a d’alegria e de orgulho. Quando principou a desencadear-se no palco a tempestade, que fez gorar o espectaculo, a menina Ricardina pôz-se de pé, como quasi toda a gente, e aproveitou a occasião para ir sentar-se, ao fundo do camarote, perto do sueco. A mãe ficou muito entretida a vêr o escandalo do palco, sem dar a menor attenção ao escandalo do camarote. O sueco e a menina Ricardina, de mãos entrelaçadas, muito ternos, já se não importavam senão comsigo mesmos, indifferentes ao tumulto que de repente se havia levantado. Entretanto D. Estanislada estranhava não vêr o sueco, porque, depois que o estudante lhe contára a historia do sorteio, ella havia architectado um romance de amor internacional. O sueco, na sua opinião, tomára a sério o sorteio, o sueco amava-a, e por isso o conselheiro. Antunes o tinha encontrado perto da casa de D. Enrique, com o que, como sabemos, ficára furioso. Havia, é verdade, uma carta do sueco para Soledad, carta que D. Estanislada e o conselheiro abriram e leram, mas essa carta bem podia ser um habil disfarce do sueco para prevenir a hypothese de qualquer escandalo futuro. Não fingira a principio o conselheiro, tambem habilmente, namorar Soledad para afastar suspeitas do seu galanteio com D. Estanislada? Pois muito bem! O sueco fazia o contrario, simulava namorar Soledad para se aproximar, sem dar nas vistas, do coração de D. Estanislada. A hespanhola mãe principiava a sentir-se amada pela segunda vez em Setubal. O sueco mal podia imaginal-o! Elle andava n’umas paschoas desde que possuia o coração da menina Ricardina. Já se não importava de Soledad, que seria mais bella, não o negava, mas não era tão accessivel, tão meiga, tão carinhosa para elle. O theatro, n’aquella noite da récita mallograda, foi-se esvaziando, os espectadores sahiam fazendo commentarios em voz alta, rindo, só a sr.ª Magdalena, a menina Ricardina e o sueco se deixaram ficar para ser os ultimos a sahir. Já começavam a apagar-se as luzes quando os tres desceram. E como a noite estivesse serena, posto não houvesse luar, o sueco convidou a sr.ª Magdalena a irem dar um pequeno passeio. Ella objectou que poderia ser isso reparado, mas a filha, vendo que a mãe não se entendia muito bem com a aravia do sueco, replicou que não havia luar e que até fazia bem dar um passeio n’uma noite de verão: que bem encalmada saira ella do theatro. Calma d’amor, principalmente, porque o sueco, de mãos enlaçadas com a menina Ricardina, fizera subir o thermometro. Foram caminhando até ao largo das Almas, e ahi metteram para o Campo do Bomfim, os dois adiante, a sr.ª Magdalena fiscalisando-os. Contornaram o campo, e a sr.ª Magdalena, quando passavam em direcção á capella do Senhor do Bomfim,, não se dispensou de parar para rezar de longe á milagrosa imagem da sua especial devoção. Foi n’essa occasião que o sueco roubára um beijo á menina Ricardina. Estou a imaginar o que algum dos mais ingenuos dos meus leitores dirá comsigo mesmo: «Ah! o primeiro beijo! que delicioso momento de felicidade, esse!» Perdão, leitor ingenuo! Não era o primeiro beijo que elle dava, mas o terceiro. Sim, o terceiro, um terceiro... franciscano, a julgar pela modestia com que passou dos labios do sueco para a face da menina Ricardina, como se passasse de uma cella para outra. Dir-se-ia que era um beijo de sandalias, porque passou sem fazer barulho. Quando recolheram a casa, a sr.ª Magdalena disse á menina Ricardina: —Não sei como tu te podes entender com o sueco! —Por quê, minha mãe? —Eu entendo muito pouco do que elle diz! —Pois eu entendo-o perfeitamente... Ó amor! ó lingua universal dos corações namorados! tu és a unica lingua que se póde aprender sem grammatica e sem diccionario! lingua de substantivos apenas, em que dois nomes proprios se juntam para formar o plural! Todos os acontecimentos que se tinham dado nos ultimos dias haviam contribuido para diminuir e empallidecer a côrte de admiradores que, antes da chegada das Rodartes, acompanhava por toda a parte a bella andaluza. Os dois alemtejanos, como dois corações patriotas, desertaram da côrte castelhana para a côrte portugueza, logo que o Alemtejo se viu soberanamente glorificado na pessoa das tres Graças da Messejana. O sueco havia-se retirado para Cintra, segundo constava, quando Soledad fôra para Lisboa com o pae. Estava certamente contrariado pela concorrencia que lhe faziam os outros pretendentes á mão da bella andaluza. Ella propria pensava isto. O conselheiro Antunes retirára-se para Santarem. Depois da noite fatal da récita, o estudante e o jornalista desappareceram, abandonaram o seu posto de cortezãos. Restavam apenas o hespanhol, o Vianninha e os officiaes de caçadores. Já não havia _tertulias_ possiveis, Soledad passava as noites sentada com a familia n’um banco da Praia, aturando ás vezes D. Ramon, outras vezes o Vianninha ou o tenente Epaminondas ou o alferes Ruivo, mas nada d’isso, que era pouco, podia contentar a sua alma de andaluza: a _tertulia_, a querida _tertulia_, que tanto lhe electrisava os nervos, fazia-lhe muita falta. Abrindo e fechando o _abanico_, aborrecia-se, chegava a bocejar. Tinha desesperos intimos, raivas surdas. E, quando passava pela casa das Rodartes, e via luz nas janellas, uma revoltada emulação fazia brilhar, n’um relampago, as pupillas negras dos seus olhos. —Ao menos as tres irmãs, as Rodartes, entretinham-se ás noites, ao passo que ella, rainha quasi desthronada, só tinha por futuro um banco da Praia e uma côrte cada vez mais reduzida. Uma vez, com manifesto mau humor, perguntára Soledad ao tenente Epaminondas, ironicamente, se aquillo que havia ás noites em casa das Rodartes eram _tertulias_. E o tenente, muito desdenhoso, respondera rindo: —Quaes _tertulias_! São os dois alemtejanos que estão a jogar o loto na côrte do _Padre Eterno_! Mas Soledad, raivosa, mordera o beiço. XIV D. Ramon Mendoza, que era o hespanhol mais insipido de que ha memoria, não conquistára vantagens amorosas junto de Soledad. Ella achava-o, como toda a gente, uma individualidade incolor, fugidia, d’estas que não deixam a ninguem uma impressão duradoira. Apesar de vêr muito dizimada a sua côrte galante, Soledad não dava maior attenção ao hespanholito. Nem o coração nem a razão a impelliam para elle. O coração recebia-o com indifferença; a razão dizia a Soledad que, depois de ter tido um tão variado cortejo, seria um desaire recorrer á _prata de casa_,—a um patricio insignificante. Sabendo que o sueco voltára a Setubal, lembrou-se de atiçar de novo a chamma do amor n’esse coração da Scandinavia, que tanta vez se lhe havia rendido. Mas por onde andava elle, que lhe não apparecia? Uma noite, tendo a familia Saavedra recolhido a casa, depois de passear na alameda da Praia, Soledad ficou por algum tempo á janella. A noite estava calmosa, a casa era abafada, tinha apenas duas janellas. D. Enrique deitára-se, fôra para a cama lêr os jornaes hespanhoes que n’esse dia o correio lhe trouxera. D. Estanislada andava, como sabemos, em reservada observação a respeito do sueco: se elle era um namorado timido, como suppunha, ella o alentaria com a sua audacia de abelha-mestra andaluza. Deitado o marido, D. Estanislada abriu a outra janella da sala, a pretexto de tomar ar. Cada uma, mãe e filha, occupava sua janella. E ambas tinham o mesmo pensamento: vêr se o sueco, protegido pela noite, passaria por ali. A menina Ricardina, por dentro da vidraça do seu _rez-de-chaussée_, esperava tambem o sueco, e sentia-se contrariada pela presença das hespanholas, que pareciam não ter somno n’aquella noite. A principio suppôz que mãe e filha estivessem apenas tomando o fresco, mas deram onze e meia no relogio de S. Julião, deu meia noite, e ellas não sahiam da janella. A meia noite era a hora marcada para a entrevista do sueco com a menina Ricardina. A sr.ª Magdalena dormia profundamente a essa hora. A filha levantava-se do leito, abria cautelosamente a janella, vinha esperar, no silencio da noite, o sueco. Mas n’aquella noite, vendo as hespanholas, ficára por dentro da vidraça, espreitando-as. Á meia noite em ponto—a pontualidade em tudo é uma caracteristica das raças do norte—o sueco assomou á esquina da rua, que julgava deserta a essa hora, segundo o costume. Viu porém gente nas duas janellas da casa de D. Enrique, e fechada a vidraça de Ricardina. Ficou por sua vez contrariado, perplexo, sem saber se havia de retroceder ou de avançar. Coseu-se com a sombra do muro, parou, indeciso. N’esse momento tres corações de mulher monologaram simultaneamente. O coração de Ricardina: —É elle! O coração de Soledad: —É elle! O coração de D. Estanislada: —É elle! O sueco observava de longe, via dois vultos de mulher nas janellas da casa de D. Enrique, sem comtudo poder distinguil-os. Mas um d’esses vultos havia de ser, certamente, o de Soledad, e então aviventou-se no coração do sueco o rescaldo da agradavel impressão, que a belleza d’essa mulher lhe havia causado. Ella era realmente formosa, tinha uma graça acirrante, uma graça meridional, que punha em vibração os nervos de todos os homens, especialmente os de um homem do norte. Mas Ricardina, sem ser tão bella, nem tão graciosa, sabia melhor talvez conquistar e deixar-se conquistar. As pequenas felicidades que Ricardina já lhe havia concedido, eram o prologo tentador de uma promessa, e não ha homem nenhum, seja do norte ou do sul, que se não sinta vibrante a dois passos de uma posse sem restricções. Estava, pois, o sueco ardendo em dois fogos, e muito longe de imaginar que um terceiro incendio o ameaçava de perto. Esse terceiro incendio era D. Estanislada. De repente, olhando do escuro para a casa de D. Enrique, viu mexer-se n’uma das janellas um lenço branco. Era o lenço de Soledad. D’ahi a momentos, na segunda janella, outro lenço branco passou cavillosamente pelas narinas de D. Estanislada. Elle viu tudo isto, e, sem poder reconhecer Soledad nem D. Estanislada, ficou cada vez mais desorientado. Lembrando-se de que Ricardina, comquanto tivesse a janella fechada, o devia estar esperando, olhou para o _rez-de-chaussée_, e viu uma ponta de lenço assomar por baixo da vidraça e logo desapparecer. Sem saber o que fizesse, deixou-se estar no escuro, esperando os acontecimentos. D’ahi a pouco, um lenço branco cahiu de uma das janellas de D. Enrique para a rua, e ouviu-se descer uma vidraça. Era Soledad que ia deitar-se e que, disfarçadamente, para que a mãe não désse por isso, tinha deixado cahir o lenço como de um balcão da idade média. D. Estanislada, a quem não era facil enganar, viu a manobra do lenço da filha e, mal ella voltara costas, fez o mesmo, com mais algum descaramento: agitou o lenço e deixou-o cahir á rua. Depois fechou com estrondo a janella. D. Enrique, que, tendo passado pela vista os jornaes, já dormitava, accordou ouvindo o barulho da vidraça; teve um estremecimento nervoso e regougou: —_Que broma!_ Voltando-se para o outro lado, tornou a pegar no somno. O sueco ainda esteve cerca de um quarto de hora alapardado no escuro, mas, vendo abrir-se a janella de Ricardina, sahiu da sombra, sem todavia perder de vista os dois lenços brancos, que estavam no chão. Quando elle se approximava do _rez-de-chaussé_, sentiu abrir-se cautelosamente a porta da sr.ª Magdalena. Um fremito de electricidade amorosa percorreu todo o seu corpo; n’aquella noite o amor triumpharia sem restricções, pensou elle. Mas Ricardina atravessou rapidamente a rua, com um passinho de passaro, apanhou os dois lenços que estavam no chão debaixo das janellas das hespanholas, e correu para casa. O sueco, sem saber a façanha gloriosa de Martim Moniz no castello de Lisboa, ia a imital-o por intuição, quiz atravessar-se na porta, para entrar, mas Ricardina empurrou-o com desabrimento, dizendo iracunda: —Não! nunca! E fechou a porta da rua. Depois fechou as portas da janella. E o sueco achou-se em plena rua, cada vez mais atarantado, sem perceber nada de tudo aquillo. Ricardina estava como uma bicha contra o sueco, contra as hespanholas, contra o enguiço d’aquella noite. Jurava vingar-se de tudo e de todos, e, tendo visto cahir os lenços, quizera adquiril-os como prova da leviandade de Soledad e de D. Estanislada. Percebera, com a sua aguda intuição maliciosa, a comedia representada pela mãe e pela filha, procurando enganarem-se uma á outra. A primeira ideia de Ricardina foi lançar mão de todos os meios que podessem libertal-a da visinhança das hespanholas: lembrou-se de mandar os lenços a D. Enrique, dentro de uma carta anonyma, em que lhe explicasse o que se tinha passado. Mas receando ir provocar uma tragedia domestica—como ella conhecia mal D. Enrique!—resolveu, por fim, enviar á filha o lenço da mãe, enviar á mãe o lenço da filha, descobrindo o plano de ambas, e ameaçando-as com uma denuncia. Assim fez. Chamou um rapasito que tinha andado com ella na escóla, e encarregou-o de escrever as duas cartas, e de sobrescriptal-as. A D. Estanislada dizia: «Ahi vae o lenço que a senhora sua filha atirou hontem ao sueco, pensando que usted não dava por isso. Tenha tento na bola, quando não eu aviso o seu homem, e espalho em toda a cidade este grande escandalo. O melhor é safar-se d’aqui quanto antes.» Para Soledad o texto era este: «A senhora sua mãe, logo que usted fechou hontem a janella, atirou ao sueco este lenço, que lhe mando. Veja usted que tem dentro das portas a sua primeira rival. Aconselho-a, se quizer evitar um grande escandalo, a que trate de sahir de Setubal». Ricardina esperou que D. Enrique sahisse de casa, para mandar entregar, pelo mesmo rapasito, as duas cartas, com os lenços dentro. O expediente surtiu effeito, porque n’essa noite não se abriram as janellas da casa de D. Enrique. O sueco, ao dar da meia noite, foi, muito timidamente, procurar uma reconciliação com Ricardina. Viu a janella fechada, mas, perdendo um pouco a timidez, aproximou-se da vidraça: Ricardina estava n’uma posição estudada, com o rosto apoiado na mão direita, olhando para o céo onde a lua passava entre nuvens. O sueco bateu com os dedos na vidraça, e Ricardina, que lhe seguia disfarçadamente os movimentos, fingiu despertar, sobresaltada, da sua apaixonada _réverie_. Encarando com o sueco, fez um movimento de desdem, e recahiu em simulada contemplação. Elle pôz as mãos como supplicando-lhe que levantas-se a vidraça. Ricardina, mostrando-se contrariada, abriu a janella e perguntou-lhe de repellão: —O que quer o sr. de mim? Ainda tem cara de me apparecer aqui?! O sueco desculpou-se: que sim, que tinha cara, porque tinha coração. Que a amava muito. Que na vespera não quizera aproximar-se para a não comprometter. Que não tinha culpa de que as hespanholas—e n’isto teve graça—se lembrassem de fazer d’elle lavadeira, dando-lhe lenços para lavar. Ricardina mostrou-se resentida, ciumenta, e não quiz dizer n’essa noite a sua ultima palavra de perdão. Era uma tactica habil, para subjugar o sueco, para o obrigar a reconquistar o terreno perdido. Por dentro dos vidros, ás escuras, Soledad e D. Estanislada tinham vindo, cada uma por sua vez, espreitar para a rua, na esperança de que o sueco voltasse. Ambas o viram: Soledad surprehendeu-o n’uma attitude comica, a implorar de mãos postas á menina Ricardina que levantasse a vidraça. Ficou indignada, não tanto pela attitude humilhante d’elle, como por ter a certeza de que lhe roubavam... _mais um_. D. Estanislada, a quem a filha não fallava desde pela manhã, deixou-a deitar para vir pé-ante-pé espreitar por dentro dos vidros. Reconheceu facilmente a corpolencia do sueco, dobrado sobre a janella de Ricardina. —Ai! pensou D. Estanislada, que elle namora a lambisgoia da filha da senhoria! Estou bem arranjada com maus visinhos de ao pé da porta! O melhor é tratar de pôr-me ao fresco, porque eu já fiquei desconfiada quando n’aquella noite, em que cá esteve o conselheiro, a tal menina Ricardina deixou cahir o annel debaixo da meza! E reflectindo um instante: —Ai! que foi ella que bateu e gritou á porta! No dia seguinte, á volta do banho, quiz o acaso que as duas hespanholas encontrassem o sueco. Elle ia para cumprimental-as, quando Soledad, que levava grande dianteira á mãe, lhe disse bruscamente: —_Picaro!_ Sem ter percebido bem o que Soledad dissera, mas reconhecendo em todo caso que ella quizera insultal-o, atordoado, indeciso, levou a mão ao chapeu quando passava junto de D. Estanislada. E ella, sem parar, disse-lhe altivamente: —_Infáme!_ XV Ás sete horas da manhã, Araujo Rodarte e as suas tres netas sahiram, como de costume, para o banho. Atravessaram o passeio da Praia de Troino, riscado havia tres annos. Os eucalyptos haviam crescido com a precocidade que caracterisa o desenvolvimento d’estas arvores, de modo que abrigavam uma legião de passaros, cuja chilreada era como que um doce concerto matutino. Sobre o lago, e nas seis extensas avenidas que do lago irradiam, algumas borboletas passavam, batendo, na palpitação da luz, as suas azas brancas. Um rapasito, que vinha de levar o almoço ao pae, empregado na Doca, havia poisado a cafeteira sobre a borda do lago, e, de joelhos, brincava mettendo as mãos na agua, agitando-a, para fazer turbilhonar os peixes vermelhos. As Rodartes e o avô sentaram-se alguns momentos em dois dos bancos que torneam o lago, porque o sol ia descobrindo, e era agradavel aos banhistas, na travessia de casa para o banho, descansar na frescura d’aquelle oasis. Depois cortaram na direcção da praia, a que faltava o pittoresco das praias do norte do paiz, onde os arruamentos das barracas alvejam garridamente. Em Setubal o systema seguido é o do wagon e o da prancha. Os banhistas despem-se e vestem-se nos compartimentos do wagon, e mergulham na agua agarrados á prancha. Os _mirones_ aproveitam a sombra escassa do wagon para sentar-se a gosar o espectaculo da praia. Salomé e o avô, que não tomavam banho, sentaram-se á sombra, emquanto Hilda e Maria Ignez foram fazer a sua _toilette_ balnear. O Sado estava tranquillo e diamantino. Alguns golfinhos davam saltos, ao largo, n’uma folia de _clowns_ aquaticos. Sobre a abertura da barra a luz cahia em jorros doirando o mar, e a torre do Outão, com os seus contornos duros, dava relevo á margem direita do Sado. A concorrencia de banhistas era, áquella hora, diminuta. Uma creança, nos braços do banheiro, gritava como possessa, e outra creança, de sete a oito annos, mettida dentro d’agua, ria de vêr chorar a outra, e chapinhava-a saracoteando-se no banho. Uma hespanhola gorda, agarrada á prancha, resfolegava como uma phoca. E um padre, de camisola de malha, fazia ensaios de natação inhabil, arrastando-se na ondulação da agua até ir esbarrar na areia. Araujo Rodarte e Salomé estiveram um momento calados, até que, de repente, disse elle á neta: —Admira não estarem cá hoje os nossos patricios! —Foram a Lisboa tratar de negocios, segundo disseram ás manas, respondeu Salomé. E o velho, com ar de alegre ironia, observou: —Como ellas andam bem informadas! Salomé sorriu-se. —Sempre quero vêr—disse o Rodarte após um momento de silencio—se aquellas duas senhoras—referia-se a Hilda e Maria Ignez—terão coragem para me fazer alguma traição!... —Alguma traição?! —Sim, se terão coragem para me deixar só comtigo na Messejana! —Não pense n’isso, avôsinho. —Dizes tu que não pense n’isso! Mas em que hei-de eu pensar senão em vocês! Que tenho eu que me prenda agora mais no mundo?! A velhice não me tornou ainda tão tolo, que não perceba o que é um namoro. Lá de que as tuas irmãs são requestadas pelos nossos patricios, já não posso eu duvidar. E não me revolta isso, mas entristece-me. Sempre vos tenho dito que não tenhaes pressa de casar, sobretudo de casar mal, porque estaes habituadas a viver bem; mas não posso levar a minha exigencia até ao ponto de vos querer para freiras. Que anda moiro na costa, é certo, e que os dois nossos patricios são pessoas estimaveis, e maridos convenientes, não é menos certo. Mas o que me entristece é o receio de vêr desfeito de um dia para o outro o nosso pequeno grupo de familia, indo a Hilda para Reguengos e a Maria Ignez para as Alcaçovas. Ficaremos nós, como dois solitarios, no casarão da Messejana. E tu, Salomé, e tu, que noticias me dás do teu coração?... —Nem o sinto! respondeu, sorrindo, Salomé. —Pareceu-me que o pateta do Vianninha pretendia fazer-te a côrte... —Sim... talvez. Perdia o tempo. —Já anda desilludido, porque apparece menos. Era um mau casamento, porque é sempre um mau casamento aquelle em que se conquista uma supposta felicidade á custa da infelicidade de outrem. O pateta tem feito soffrer a Sequeira, que se apaixonou por elle, e que podia empregar-se melhor. E o ratão do sueco! o que é feito d’elle? —Creio que andará arrastando a aza á _señorita_. Não o tenho visto. —Grande aza deve ser, se fôr proporcional ao hombro! Olha lá: o hespanholito? —D. Ramon? —Sim. —Deve andar com os seus patricios. Tambem o não tenho visto. —De toda essa _ala dos namorados_ que ahi appareceu tão galharda, apenas se salvaram talvez dois cavalleiros andantes. —Quaes, avôsinho? —Quaes! Os que combatem por tuas irmãs, e que m’as querem levar, cada um para sua terra differente... N’este momento Hilda e Maria Ignez, vestidas para o banho, sahiram do wagon. São raras as mulheres que conseguem triumphar de uma tão desgraçada _toilette_: blusa e calção de flanella. Mas principalmente Hilda, graças á sua correcta plastica, livrava-se do ridiculo da _toilette_. O relevo do seio, accentuado sem exagero, aformoseava-lhe o busto. Sentindo-as fallar, o avô gritou-lhes logo: —Não apanhem sol, meninas! —Já vamos, avôsinho, já vamos, responderam ellas quasi simultaneamente. E, dando as mãos uma á outra, saltaram da prancha ao mesmo tempo, fazendo agitar a agua, que salpicou a prancha e ainda o wagon. Rindo e mergulhando, o banho foi para ellas, como sempre, uma folia quasi infantil. Araujo Rodarte, ouvindo-as, ficou pensativo, calado. O seu espirito fixou-se n’um pensamento, que, momentos antes, havia revelado a Salomé: queriam roubar-lhe aquellas duas netas, e entristecia-o o lembrar-se que tinha de separar-se d’ellas. Estavam ainda as duas Rodartes no banho, quando chegaram á praia o alferes Ruivo e o tenente Rosalgar, que não deixavam nunca, todas as manhãs, de ir dár uma vista de olhos ás banhistas. Desde o mallogrado espectaculo da _Noite sinistra_, aquelles dois officiaes, bem como o tenente Epaminondas, ficaram sendo conhecidos no café _Esperança_ pelos nomes dos personagens que na peça lhes haviam sido distribuidos. Assim, por isso que as alcunhas se tinham já divulgado, podemos dizer que _D. Fafes Estorninho_ e _D. Gualter Byscaia_ estão sobre o wagon, conversando com Araujo Rodarte e Salomé, sem comtudo deixarem de dar attenção ao banho de Hilda e Maria Ignez. —Parece-me, disse aos dois Araujo Rodarte, que ainda não tinha tido o gosto de os vêr desde aquella noite.... —Aquella _Noite sinistra_! atalharam ambos os officiaes, fazendo allusão ao titulo da peça, e rindo ás gargalhadas. —Foi pena que tivessem tanto trabalho! —Tudo aquillo divertiu, respondeu o alferes Ruivo. Divertiu mais ainda, talvez, do que se se tivesse preenchido todo o espectaculo. E deixou recordações alegres para muito tempo! Sabem v. ex.ᵃˢ uma coisa? Desde a _Noite sinistra_ eu passei a ser conhecido por _D. Gualter Byscaia_, e aqui o tenente por _D. Fafes Estorninho_. —Tem graça! observou Araujo Rodarte. Os dois officiaes continuaram a rir, enviezando o olhar para Hilda e Maria Ignez, que sahiam do banho, subindo á prancha. —Mas, disse Salomé, ainda entrava tambem um collega de v. ex.ᵃˢ.... —Era o Epaminondas, minha senhora, respondeu o tenente Rosalgar. Esse é o _D. Diogo Cucufate_. Salomé e o avô riram. —E a comedia do Goes parecia ter algum merecimento. Foi pena que não chegasse ao fim! disse Araujo Rodarte. —Pena especialmente para o Lemos—observou o alferes Ruivo—que nunca foi egualado em tamanha desgraça por nenhum Talma amador! —Pobre rapaz... e pobre pae! reflexionou Araujo Rodarte. —Eu nunca vi apanhar tanto pontapé! atalhou o tenente Rosalgar. —E como o Julio, accrescentou o alferes, largou a fugir vestido de mulher, galgando dois a dois os degraus da escada até se vêr na rua! —O que lhe valeu foi não tropeçar no vestido! commentou o tenente. —A D. Estanislada esteve em risco, disse o alferes, de perder uma das melhores peças do seu guarda-roupa. —Não! Quem perdeu a peça foi o Goes. A peça e a gloria! Riram todos muito com esta observação do tenente Rosalgar. E d’ahi a momentos o alferes: —A gloria e... a coroa! —O que é isso da coroa? perguntou Araujo Rodarte. —Ah! Pois v. exc.ᵃˢ não sabem? O Goes tinha mandado vir de Lisboa uma coroa de louros para se coroar a si proprio! —Sim?! perguntou Salomé. —Sim, minha senhora, explicou o alferes. Ora o melhor da passagem é que foi o Marcolino, marcador do café _Esperança_, quem emprestou ao Goes o dinheiro para pagar a coroa, e parece que está resolvido a rifal-a para vêr se salva o emprestimo. —Isso tem muita graça! apostrophou Araujo Rodarte. Eu recebi lá em casa a importancia do meu camarote. Se soubesse que se rifava a coroa, tinha reservado essa quantia para me habilitar a ser coroado, perorou o velho rindo. —O administrador do concelho, de combinação com o presidente do conselho director do Asylo, resolveu, visto que o espectaculo não chegou a ultimar-se, mandar restituir aos espectadores a importancia das respectivas entradas. Mas o Marcolino fez justiça por suas proprias mãos: vendo a coroa dependurada no camarim do Goes, deitou-lhe a mão, para não perder tudo, e vae rifal-a. —Uma acção bonita, alvitrou o tenente Rosalgar, era comprar um bilhete da rifa em nome de Bocage, que tem mais direito á coroa do que o Goes. —Não! eu cá, se me sahir o premio, disse o alferes, faço presente da coroa á tia Felismina do hotel Escoveiro: ao menos, durante um semestre, não nos ha-de faltar louro na comida. —Pois o melhor de tudo, observou Araujo Rodarte, era mandar de presente a coroa ao rapaz, porque lhe póde servir para outra vez. —N’essa não cáe o Marcolino! D’ahi a pouco mais de dez minutos, Hilda e Maria Ignez sahiam do wagon. O Rodarte e as netas despediram-se dos dois officiaes. E o alferes Ruivo ficou dizendo ao tenente: —Ellas vinham do banho um appetite! —Ó filho, a Hilda é uma mulher de truz! e a outra não é nenhuma asneira tambem! XVI D. Estanislada principiou a pensar na conveniencia de sahir de Setubal. Desde o momento em que uma pessoa d’aquella terra possuia dois dos seus segredos amorosos, conhecia a historia das suas leviandades internacionaes, um pouco serodias, só restava á delinquente fazer ablativo de viagem, para evitar a atoada do ridiculo. D. Enrique incommodava-a menos que o ridiculo. Não era do marido que receava, mas das más linguas, que n’uma terra pequena ferem mais, porque mordem de perto. Indignava-a o preconceito social que impõe ao coração humano o dever de esfriar antes de morrer. Segundo as praxes estabelecidas, uma mulher de vinte annos póde ter vinte namoros. Acha-se isso muito natural, e diz-se d’essa mulher com um certo ar de desculpa: «É alegre». Mas se uma mulher de quarenta annos tiver dois namoros, toda a gente a censura, e a opinião publica não faz senão gritar por toda a parte: «É devassa». Ora a boa logica ensina que a mulher de quarenta annos tem menos tempo para viver do que a mulher de vinte. Rasão é esta para aproveitar o tempo, para se despedir da vida, que já não póde ser longa. A propria natureza intercallou o dia natural, que é um symbolo da existencia humana, entre dois crepusculos, o da manhã e o da tarde. Porque ha de pois ser negado ao coração o direito de ter dois momentos de brilho e de calor, dois crepusculos amorosos, que abram e fechem a existencia? D. Estanislada achava profundamente odiosa e absurda a fiscalisação que a sociedade exerce com a mulher casada. Se o marido não vê ou não quer vêr, para que ha de a bisbilhotice malevola emprestar-lhe os oculos da moralidade? D. Enrique não era um Othello, nunca o fôra. Se lhe dissessem alguma coisa em desabono da esposa, encolheria desdenhosamente os hombros, limitar-se-ia certamente a dizer: _Es una broma!_ Com que direito vinha a menina Ricardina substituir-se a D. Enrique para o effeito da moralidade?! Então D. Estanislada havia casado com D. Enrique, e era a menina Ricardina quem fiscalisava, sem procuração de D. Enrique, a fidelidade conjugal de D. Estanislada! De mais a mais, a menina Ricardina podia esperar que a mãe se deitasse, para vir á janella conversar com um homem, e a D. Estanislada não era permittido que, estando o marido a dormir, fizesse exactamente a mesma coisa?! Em conclusão: D. Estanislada achava o mundo mal organisado, e estava disposta, não a concertal-o, mas a illudil-o. Ora desde que a menina Ricardina, má visinha de ao pé da porta, sabia tudo, era impossivel illudil-a: convinha, portanto, ir tentar melhor fortuna n’outra região onde a illusão podesse florescer mais desafogada d’espiões. Pensando na resolução de todos estes problemas, que de perto a interessavam, e reconhecida a impossibilidade de regressar desde logo a Hespanha, cujo estado politico continuava a ser o mesmo, D. Estanislada lembrou-se, com certa saudade, do conselheiro Antunes. Elle amara-a, déra-lhe provas d’isso; só tinha o defeito de ser, como todos os portuguezes, na opinião de D. Estanislada, muito timido. Mas sendo timidos os portuguezes, sendo esse o seu natural, não havia encontral-os melhores. E, timidez por timidez, o conselheiro já estava experimentado, gostava d’ella. O mesmo foi lembrar-lhe o conselheiro e, como ideia associada, Santarem, onde elle vivia. Fez pois tenção de aconselhar o marido a sahir de Setubal, cidade insipida, que mais insipida ficaria ainda depois de encerrada a estação balnear. Não consultou, sobre este projecto, Soledad, que, como já n’outras occasiões tinha acontecido, andava amuada com a mãe. Tambem Soledad parecia rezar ás vezes pela cartilha da sociedade, e resentir-se de que a mãe não sacrificasse em sua honra os ultimos clarões da belleza que declinava. Não era porque Soledad amasse o sueco. Mas o seu brio de hespanhola revoltava-se contra a ideia de que todos pretendessem roubar-lhe admiradores, até sua propria mãe. Soledad olhava para o _abanico_, que com tanto _salero_ requebrava, e parecia-lhe que era como que uma espada partida na mão de um conquistador. Cuidava ouvir dizer-lhe o _abanico_: —Soledad, flôr da Andaluzia, tanto me tens incommodado, abrindo-me e fechando-me, fazendo-me bailar na tua mão nervosa, como n’um _bolero_ sem fim, e o que tens tu, bella Soledad, conseguido com isso? Os teus admiradores vão desertando uns após outros; tu, que a principio timbraste em mostrar-te altiva e incomprehensivel, porque te imaginavas inegualavel, tens visto fazer-se em roda de ti a solidão das realezas decahidas, a solidão da ilha de Santa Helena, onde se abateu o maior orgulho humano. As Rodartes foram mais felizes do que tu, e comtudo não dispõem dos teus recursos de hespanhola, do _salero_ e do _abanico_, dois irmãos gemeos, que fazemos estremecer os corações. Os leques de que ellas usam foram comprados alli na Praça do Bocage, na loja do Trindade, e são semsaborões como todos os leques portuguezes, ao passo que eu, apesar de haver uma republica hespanhola, continuo a ser o rei das Hespanhas,—a alma do Cid recortada sobre uma folha de papel. Até a Ricardina te roubou o sueco: és, pobre de ti! como o leão moribundo, a quem as Ricardinas injuriam. Desperta, altiva flôr da Andaluzia, readquire o teu orgulho de raça, volta as costas a este mundo prosaico, onde só parece haver sal nas marinhas, e vai procurar n’outra parte os triumphos, as homenagens a que a tua belleza te dá direito. Soledad ouviu o _abanico_ e deu-lhe credito, como todas as hespanholas. Por isso, quando D. Enrique, já meio convencido por D. Estanislada, fallou um dia em transferirem-se para Santarem, Soledad pareceu apoiar esse projecto, que lhe promettia uma vida mais alegre do que a de Setubal. O Marcolino, marcador do café _Esperança_, perguntou a D. Enrique se queria ficar com um bilhete para a rifa da coroa de louros. E o hespanhol, muito desdenhoso, respondeu-lhe que não, porque _se iba a marchar_. —Para Hespanha? insistiu o marcador. D. Enrique zangou-se: que para Hespanha só voltaria com a realeza dos Bourbons. E o Marcolino, que foi o primeiro republicano que pimpolhou em Setubal, respondeu-lhe mentalmente: —Tens que esperar!... Mas saber o Marcolino uma noticia era o mesmo que sabel-a todo o café _Esperança_, e, dentro de algumas horas, toda a cidade de Setubal, e, dentro d’alguns dias, as aldeias de Azeitão e a povoação de Palmella. —Que D. Enrique se _iba a marchar_, dizia-se, espalhava-se. No café _Esperança_ apertavam D. Ramon Mendoza, troçavam-n’o, perguntavam-lhe se elle não fazia valer os direitos que a sorte lhe concedera; que casta de hespanhol era elle, que deixava fugir, sem a ter ferido no coração, a sua bella patricia? E D. Ramon, muito indifferente, muito insôsso, pedia gazoza, e respondia sorrindo: —Que santos de casa não fazem milagres. Não tardou a chegar ao conhecimento da menina Ricardina a noticia de que a familia Saavedra ia retirar-se. Ricardina ficou contentissima, e a sr.ª Magdalena não o ficou menos, porque havia arrendado a casa por seis mezes a D. Enrique, e poderia alugal-a ainda outra vez, para aproveitar o resto da estação balnear. Ricardina, na esperança de que a noticia fosse verdadeira, achou que devia tratar o sueco de modo a desvial-o de Soledad, sem comtudo se alargar em concessões, que o satisfizessem. Assim foi que se mostrou menos crua para elle: abriu a janella, e permittiu-lhe que a beijasse nas mãos. —Só nas mãos, porque, dizia ella, não podia confiar n’elle. O sueco pretendeu mais uma vez justificar-se, e contou a Ricardina a scena que tivera com as hespanholas, que não só o não cumprimentaram, mas até o mimosearam com epithetos offensivos. —O sr. é que tem a culpa de tudo isso! disse-lhe Ricardina continuando a fingir-se ciumenta. —Eu! nó! respondeu elle com uma convicção muito guttural. —Pois quem! O sr. andava a acolytal-as a ambas, á mãe e á filha, e não queria levar com as galhetas na cara! O sueco percebeu pouco d’esta metaphora, que Ricardina aprendera nos habitos devotos, egrejeiros da mãe. E ella, muito tagarella, continuára moendo palavras: —Sabe o sr. o que deve fazer agora? —Nó saberr! —Vá para onde ellas forem. O que lhe importa o negocio do sal? Mais vale um gosto na vida que seis vintens na algibeira. —Nó! Nó! respondia o sueco com uma bonhomia babosa. Elle já estava habituado a que Ricardina o tratasse por tu, tratamento carinhoso, que nunca mais havia recebido desde que sahira da Scandinavia, e todo o seu ideal consistia agora em conseguir que ella voltasse a empregar esse terno vocativo. Mas Ricardina, muito arteira, obstinava-se em tratal-o por _senhor_, sem o repellir, é certo, mas sem o acarinhar como antes d’aquella fatal noite dos dois lenços. Um namorado meridional haveria, decerto, feito uma scena de ciumes, diria a Ricardina que, pois que ella assim o aconselhava, seguiria as Saavedras para onde quer que ellas fossem, mas um homem do norte, muito calmo, muito pacifico, não encontra no seu temperamento a facilidade de representar no amor o drama tempestuoso. Quando o sueco se despedia de Ricardina, beijando-lhe outra vez as mãos, ia resignado a esperar que o diluvio passasse e que o arco da alliança brilhasse sobre os ultimos destroços do diluvio. Depois, chegando ao _hotel Escoveiro_, dois copinhos de _Kirsch-wasser_ adormeciam-n’o n’uma serena esperança de que Ricardina voltaria a ser a mesma. E, por entre os fumos do _Kirsch_ e do cachimbo, pensava elle: —Que voltas que o mundo dá! Quem me havia de dizer a mim que estimaria ainda a ausencia de Soledad! E o cachimbo ia-se apagando, e o sueco adormecia tranquillamente... XVII Dentro de tres dias a familia Saavedra preparou as suas malas para sahir de Setubal. D. Enrique andou fazendo despedidas e partiu para Santarem primeiro que a mulher e a filha: ia alugar casa. Lá estava o conselheiro Antunes para n’esta e outras tarefas lhe servir de Cyreneu... A mãe de Soledad dizia a quem a queria ouvir que apenas levava saudades do peixe-espada. Soledad mostrava-se muito contente com a mudança de terra. No café _Esperança_ commentava-se esta subita retirada da familia Saavedra, e attribuia-se a duas causas principaes: a attracção que, de Santarem, o conselheiro Antunes exercia no coração de D. Estanislada, e a emulação de Soledad pela concorrencia das Rodartes no amor. A _blague_ não poupava D. Enrique, que, segundo se dizia, ia metter-se na boca do lobo: o lobo era, n’este caso, o conselheiro Antunes. Quanto ás Rodartes, a opinião publica elogiava-as pela modestia com que se apresentavam: se ellas tinham prejudicado o prestigio de Soledad, não era porque houvessem concorrido acintosamente para isso. Fôra uma serie de fatalidades imprevistas que apeiára Soledad do pedestal em que nos primeiros tempos se enthronisou. Todos os grandes imperios desabam, segundo a lei fatal da Historia: Soledad teve a mesma sorte dos grandes imperios. Era certo, já toda a gente o sabia, que o morgado de Reguengos e o proprietario das Alcaçovas estavam namorados de Hilda e Maria Ignez, mas não fôra porque ellas os disputassem encarniçadamente a Soledad, nem porque se salientassem em garridices espectaculosas. O _Padre Eterno_, como geralmente se chamava a Araujo Rodarte, era um velho sympathico, que a opinião publica respeitava, e mais ainda o respeitou, quando se tornou conhecido um facto em que o seu nome se achou envolvido. O Sequeira, negociante, fôra visitar o Rodarte e descrevera-lhe, com lagrimas nos olhos, o estado da filha, cuja vida perigava, porque a infeliz menina, apaixonada pelo Vianninha, passava dias encerrada no seu quarto, chorando, sem querer vêr ninguem. Commoveu-se o velho Rodarte da angustia de um pae, cujo coração a dôr dilacerava. —Mas, dissera Araujo Rodarte ao Sequeira, porque não procura ter uma conferencia com o Vianninha, a fim de que elle cabalmente se explique sobre as suas intenções? —Não posso, sr. Rodarte, respondera-lhe o Sequeira. Não posso. É superior ás minhas forças o ter que pedir a um homem que corresponda ao amor de minha filha, sobretudo quando esse homem se deveria julgar muito feliz em desposal-a. Araujo Rodarte ficou pensativo durante alguns momentos, e disse depois: —Tem rasão, sr. Sequeira. Mas eu acho que o Vianninha não é senão um doidivanas, que gosta de se divertir sem criterio. Succede isso a muitos moços. São raros até os que pensam de outro modo. —Depois que veiu para ahi essa maldita hespanhola foi que elle, suciando com o Lemos e com o tal jornalista de Lisboa, principiou a despresar a minha filha. —A hespanhola, sr. Sequeira, não tem culpa de ser bonita, nem de haver sido educada á maneira do seu paiz. Sabe v. s.ª perfeitamente que os costumes hespanhoes dão maior liberdade á mulher do que entre nós. Se uma menina portugueza andasse constantemente seguida por um cortejo de admiradores, seria isso reparado e censurado. Mas em Hespanha vive-se muito ao ar livre, na rua, e são admittidas liberdades que em grande parte resultam d’esse teor de vida. Olhe, eu, quando aqui cheguei, condescendi em ir a um _pic-nic_, porque julguei que seria essa uma festa tão pacata como as do meu Alemtejo. Quando lá me vi, arrependi-me muito de ter acceitado o convite, e arrependi-me, sobretudo, porque, além das minhas netas, apenas havia duas senhoras, a mulher e a filha de D. Enrique, cujos habitos de educação brigavam naturalmente com os de tres pobres meninas nadas e creadas, longe da sociedade, n’um canto do Alemtejo. Fiz logo tenção de me afastar o mais que podesse, não por falta de confiança em minhas netas, mas para evitar que ellas andassem nas bôccas do mundo. Este meu procedimento não foi ditado por orgulho ou por qualquer outro sentimento de altivez pessoal. Foi prudencia, foi experiencia do mundo... Mas vamos ao caso do Vianninha. Acho justas as rasões pelas quaes o sr. Sequeira não quer ter explicações com elle. Comtudo, se a isso me auctorisa, e se isso deseja, poderei eu tel-as. —Ó sr. Rodarte! grande favor me faria encarregando-se d’essa missão, procurando salvar minha filha de uma vida tormentosa, a que a morte porá termo em breve, certamente. Afogaram-se em lagrimas os olhos do Sequeira, e nos olhos de Araujo Rodarte tambem passaram lagrimas. Despediram-se os dois cordealmente. Araujo Rodarte, não querendo dar a saber a Salomé o motivo d’aquella entrevista que tivera com o Sequeira, mandou recado ao seu banheiro para que lhe fosse fallar. Não podendo escrever elle proprio, quiz evitar que Salomé tivesse de escrever ao Vianninha solicitando uma audiencia para o avô. Pelo banheiro mandou Araujo Rodarte dizer ao Vianninha que esperava dever-lhe o obsequio de lhe dispensar dois momentos de attenção. Logo que sahiu da repartição de fazenda, o Vianninha foi procurar Araujo Rodarte. Houve quem o visse entrar para lá, e envenenasse o facto, espalhando logo que o Vianninha requestava Salomé, a unica das tres irmãs cujo coração era considerado devoluto. Araujo Rodarte expoz com bondosa gravidade os motivos d’aquella entrevista, desculpando-se com a sua auctoridade de velho para intervir n’um assumpto que não lhe dizia directamente respeito. —Trata-se, explicou, da menina Sequeira. Conheço a familia d’essa pobre menina, cuja vida corre perigo, e cuja felicidade e salvação consistiria em poder ser esposa do sr. Vianna. Peço-lhe, pois, que me diga, por attenção para com a minha edade, quaes são as suas intenções a este respeito. O Vianninha ficou surprehendido com a interpellação: —As minhas intenções, sr. Rodarte! Eu digo a v. ex.ª o que posso dizer sobre o assumpto: Adelaide e eu fomos creados juntos, paredes meias, porque nossos paes eram visinhos. Viamo-nos a toda a hora, e habituámo-nos a ser amigos um do outro. Mas pensava eu que Adelaide apenas tinha por mim o sentimento que eu tinha por ella,—simples estima, nada mais. E tanto isto é verdade, da minha parte, que eu tive passageiros namoros com outras meninas. É certo, porém, que eu sabia que Adelaide se contrariava com isso. Amuava, deixava de me fallar, de me cumprimentar até. Mas eu ria-me, não fazia caso, e dizia-lhe adeus por brincadeira, sempre que a via á janella, embora ella me não correspondesse. Quando veiu a _señorita_,—refiro-me á filha de D. Enrique—eu, por ser amigo do Lemos e por me ter relacionado com o Goes, que andavam no grupo da familia Saavedra, associei-me a elles, passeiava com Soledad e com a mãe, e devo dizer francamente que me não era desagradavel a companhia. Soube então que Adelaide suspeitou de que eu namorasse Soledad, e que se tinha incommodado com isso, a ponto de se fechar no seu quarto, e não querer tomar alimentos. Uma vez, tendo pena d’ella, cheguei a rufar com os dedos na vidraça do seu quarto, chamando-a. Bastava-me para isso estender o braço por uma das janellas da minha casa. Adelaide devia calcular que era eu, mas não veiu á janella, não quiz responder. —Talvez não ouvisse, atalhou Araujo Rodarte. —Ouvia por força, porque estava fechada no seu quarto. —Resentida com o sr. Vianna, quiz mostrar o seu resentimento. —Pois foi isso talvez, mas eu nunca mais a vi. —E, se não sou indiscreto, o que lhe teria dito n’essa occasião o sr. Vianna, se ella abrisse a janella? —Eu? Eu ter-lhe-ia dito que se não amofinasse com tolices, que era seu amigo, que gostava apenas de me divertir, e que não queria que ella se ralasse com isso. —Ah! n’esse caso, o sr. Vianna, sem aliás tomar um compromisso com essa senhora, dava-lhe uma prova de amisade e de estima, que mostra que ella não deixou ainda de ser, no seu espirito, a dedicada companheira de infancia... —Pois decerto. Estimaria que ella se não tornasse infeliz por culpa do seu proprio genio. —Não diga genio, sr. Vianna. Chame-lhe antes coração. Ella ama, e soffre as torturas de um amor, que não julga correspondido. Triste cegueira a dos moços, que não se lembram um momento de que nada torna tão agradavel a existencia como um coração que nos seja sinceramente dedicado! Desculpe-me que lhe falle assim, em nome dos meus cabellos brancos, sr. Vianna. O coração de D. Adelaide Sequeira já está experimentado: tem sido firme e leal, apesar de não ser correspondido. Que maior e melhor felicidade poderia encontrar o sr. Vianna! —Eu reconheço tudo isso, sr. Rodarte, mas devo confessar que me vexa a ideia de que sou pobre e Adelaide é rica. Esse casamento seria mal visto por muitas pessoas, especialmente pelo pae de Adelaide... —O pae! atalhou Araujo Rodarte. O que um pae deseja sempre é a felicidade dos seus filhos. O pae de D. Adelaide Sequeira vê a filha doente, ameaçada de morte, e deseja certamente salval-a. Quanto á opinião publica, o que poderá ella dizer contra um casamento que o amor santifica? E se disser, deixal-a dizer, porque a opinião publica, quando não tem rasão, é combatida pelas consciencias honestas, e essas são os unicos juizes auctorisados. N’uma palavra, não repugna ao sr. Vianna sahir d’esta casa noivo de D. Adelaide Sequeira? —Mas subsistem ainda as minhas duvidas quanto á familia d’ella... —Não subsistem. O sr. Vianna tem o incommodo de voltar amanhã á mesma hora, e todas as suas duvidas deixarão de existir. No dia seguinte, quando o Vianninha voltou a casa de Araujo Rodarte, encontrou-se com o pae de Adelaide Sequeira: o casamento ficou ajustado n’esse dia. Constou isto, a maledicencia, que desconfiou da ida do Vianninha a casa das Rodartes, teve de confessar-se vencida, e a intervenção do _Padre Eterno_, n’esta negociação feliz, tornou-se sympathica á opinião publica, deu maior prestigio ao avô, e, reflexamente, ás netas. Quando fallavam ao velho Araujo Rodarte no proximo casamento da Sequeira, dizia elle: —Fiz-me agora S. Gonçalo d’Amarante,—com uma unica differença. —Qual? —Caso as novas, em vez das velhas, o que prova que não faço milagres. XVIII O namoro dos dois alemtejanos com as irmãs Rodartes não era um d’esses galanteios romanticos, que obriga a excessos de lyrismo. Se o fosse, dar-me-ia ensejo a descrever serenatas de mandolim, arroubos de Romeu debaixo da varanda de Julietta,—tudo em duplicado, os Romeus e as Juliettas, ficando apenas no singular a varanda, que era a mesma. Homens novos, posto já orçassem pelos trinta annos ambos elles, fortes, alegres, de physionomia agradavel e costumes chãos, o morgado de Reguengos e o proprietario das Alcaçovas estavam longe de poder ser dois pagens namorados, com todas as pieguices concomitantes á poesia do amor medieval. O temperamento, mais talvez do que a edade, e não pouco a educação, contribuiam para furtal-os ás cegueiras da exaltação amorosa. Não eram frios, nem o podiam ser, porque tinham bom sangue, como a maior parte dos alemtejanos, se exceptuarmos os que vivem nas regiões atormentadas pelas febres palustres. Mas eram serenos; homens em quem os musculos, saudavelmente desenvolvidos, subjugavam os nervos. Possuiam essa alegria moderada que provém da robustez, da constituição sadia. Não tinham por isso as phantasias melancolicas dos nevroticos, nem a irritabilidade azeda dos biliosos. Bom coração, bom estomago, bom figado: com estes predicados, e com as suas herdades, viviam felizes. Não pensavam em S. Carlos e muito menos em Pariz; mas nem S. Carlos nem Pariz lhes repugnavam... para uma vez. Entendiam menos de francez que de cortiça, mais de porcos que de tenores, mas não eram selvagens ao ponto de não querer jámais vêr a França, nem ouvir nunca uma opera. De manhã cedo montavam a cavallo, percorriam as suas herdades, davam instrucções aos feitores, e regressavam a casa com bom apetite e boa alegria. Raras vezes se queixavam de um incommodo. Dos dois, apenas o morgado de Reguengos tinha azias de quando em quando, mas uma colhér de bicarbonato de soda curava-o rapidamente. Uma hora depois estava habilitado a comer. A provincia do Alemtejo tem sido pouco explorada no romance, talvez porque os seus costumes são essencialmente pacatos, algo monotonos. O sangue arabe, que os alemtejanos herdaram, enrijeceu-lhes o organismo, deu-lhes a saude, mas, já modificado pela transmissão de gerações successivas, não referve em éstos como os que incendiavam as veias dos guerreiros d’Agar. Nos costumes, em que a dominação sarracena influiu poderosamente, uma serenidade, ás vezes monotona, como se nota nas danças e nas canções populares, accentua-se com evidencia. A falta de paisagem poderá explicar a falta de bucolismo no amor. Os rios pittorescos do Minho, orlados de salgueiros e matisados de insuas verdejantes, fazem poetas. No Alemtejo, a vegetação ganha em utilidade agricola o que perde em pittoresco de pintura. Mas ha excepções, como sempre acontece: Bernardim Ribeiro, o mavioso bucolico, nasceu ao que parece na villa do Torrão, que é Alemtejo arido. Todavia as excepções não invalidam a regra geral, antes a confirmam. Mas, em compensação, a vida da provincia transtagana é laboriosa, util e pratica. Os seus habitantes não téem esse aspecto atormentado, contrahido, que um francez habil me dizia notar na maior parte dos retratos portuguezes. Ora eu estou certamente condemnado a naufragar no tepôr do assumpto, o amor entre alemtejanos, que sabe a capilé morno. Mas copío a verdade, e não quero adulteral-a com mixordias de pura phantasia, como os taberneiros fazem ao vinho, e certos romancistas á verdade. O morgado de Reguengos e o proprietario das Alcaçovas amavam como quem eram. Em pleno galanteio vimol-os ir a Lisboa umas vezes por outras tratar negocios, receber as prestações da venda da cortiça, vender cevados aos salchicheiros da Baixa. E quando regressavam a Setubal, com o dinheiro a cantar nas algibeiras, sabia-lhes bem a suave familiaridade da casa das Rodartes, onde, antes de abancarem a jogar o loto com as netas, contavam ao avô, francamente, o resultado das suas transacções em Lisboa. E as duas meninas, que se foram affeiçoando lentamente a elles, porque encontraram dois homens cujo typo conheciam, pois que era o da sua provincia, as duas meninas ouviam-n’os fallar de cevados, entendiam-n’os. Horror! gritará a leitora alfacinha. Pois minha senhora, nada e creada na patria de Ulysses, perdoe V. Ex.ª o horror da verdade. Tanto a formosa Hilda, como Maria Ignez, como, principalmente, Salomé, que era o braço direito do avô, sabiam a cotação das cabeças suinas, e conheciam todos os processos da engorda dos cevados. Isto póde não ser poetico, mas é portuguez de boa lei, portuguez do Alemtejo, onde a azinheira produz a boléta, que é riqueza. Nem Hilda, que gostava de cantar, sabia trechos das operas de S. Carlos, nem das operetas da Trindade. A sua canção predilecta era a _Ceifeira_ de Palmeirim, poeta genuinamente nacional, que ha quarenta annos se vulgarisou tanto no norte como no sul do paiz. O rythmo da canção era dolente como o de toda a musica popular do Alemtejo, mas lá gostavam de ouvir Hilda soluçar, como um _Fado_, as trovas do poeta: Ha quem diga por inveja Que és feia por ser trigueira; Dizem as damas da côrte, Deixal-as dizer, ceifeira. As ceifeiras da Messejana, quando á noite voltavam dos campos, queimadas pelo sol, morriam por ouvil-a cantar a canção que tanto as lisonjeava, porque fallava d’ellas, e pediam-lhe que a repetisse. Araujo Rodarte intervinha com o seu bom humor patriarchal n’esses serões agricolas do Alemtejo, em que a neta, sentada nas escadas de pedra do palacete, cantava para ser ouvida pelas ceifeiras e pelos _Ratinhos_, que descançavam ao luar. O bom velho tinha sempre uma graça para dizer ás raparigas. Uma vez, por exemplo, tendo a neta acabado de cantar, disse elle: —Sabem vocês, rapazes e raparigas, de quem é esta poesia que a minha Hilda vos cantou agora? —Não sabemos, senhor. —Pois é de um poeta de Lisboa, que se chama Palmeirim. E não fez só poesias que as meninas cantem; tambem fez algumas que servem para os velhos cantar. Gargalhada unisona das ceifeiras e dos _Ratinhos_. —Não se riam vocês, que eu tambem vou cantar agora. —O sr. Rodarte! —Eu mesmo. E com uma voz, cuja rouquidão exagerou comicamente, começou: Vet’rano fiz as campanhas Da guerra peninsular. —Mais! mais! pediram muitas vozes. —Nem mais nem menos, respondeu Araujo Rodarte rindo. Um veterano não póde passar d’aqui. Nova e prolongada hilaridade dos _Ratinhos_ e das ceifeiras. Algumas vezes, em pleno sol, ouvia-se cantar nos campos, que a foice dos trabalhadores ia deixando reduzidos á seccura do restolho: Ha quem diga por inveja Que és feia por ser trigueira; Dizem as damas da côrte, Deixal-as dizer, ceifeira. —Olha os teus discipulos, dizia Araujo Rodarte a Hilda, como honram a professora! Ainda não houve _prima-donna_ de S. Carlos que fizesse escola como tu. Hilda e as irmãs ouviam fallar de S. Carlos como a gente ouve fallar de um paiz longinquo. O proprio Rodarte, que fallava de S. Carlos, conhecia-o pouco. Quando alguma vez viera da Messejana a Lisboa, aconteceu ir ouvir uma ou outra opera, sobretudo se a opera era do velho Bellini, que toda a gente d’esse tempo preconisava por ser, especialmente, o auctor da _Norma_. D’uma dessas raras vezes aconteceu-lhe até uma ratice, que Araujo Rodarte sempre contava rindo. Annunciava-se a _Norma_, e elle não resistiu ao cartaz. Mandou comprar a S. Carlos um bilhete da _geral_. Á noite dirigiu-se para o theatro, cuidando que ia ouvir o grande Bellini. Pois não ouviu ninguem! O theatro estava aberto, mas a platéa vazia. No salão havia grupos commentando um caso extraordinario. _Adalgiza_ fôra raptada pela famosa _Sociedade do delirio_. Dizia-se que o marquez de Niza, disfarçado em cocheiro, fizera voar os cavallos da carruagem em que _Adalgiza_ entrou, ao descer do _hotel_. O que é certo é que a cantora não chegou a S. Carlos, pelo menos n’aquella noite, e que fôra visto passar ao Campo Grande, n’uma batida doida, um _coupé_, ladeado por dois cavalleiros que o guardavam. Era a _Sociedade do delirio_, que praticára mais uma das suas proezas,—o rapto d’uma italiana, que talvez fosse sabina. Nenhum dos dois alemtejanos, o morgado de Reguengos e o proprietario das Alcaçovas, fez o que em amor se chama uma _declaração_. Esse doce e embaraçoso momento, em que o maior orador do mundo póde sentir-se entaramellado, momento de vibração nervosa e de exaltada sensibilidade, não o passaram elles. O namoro foi derivando suavemente n’uma intimidade agradavel, no trato familiar de todos os dias, e no _loto_ de todas as noites. As duas Rodartes sabiam-se amadas, não porque elles lh’o confessassem, mas porque as mulheres sabem mais, em materia de amor, pelo que adivinham que pelo que lhes dizem. Salomé contára ás irmãs as referencias que o avô, certa manhã na praia, fizera ao namoro dos alemtejanos, e o receio que mostrára de que elles o obrigassem a separar-se das duas netas. Estou certo, sem comtudo poder affirmal-o, que, ouvindo isto, Hilda e Maria Ignez tiveram ambas o mesmo pensamento: —Pois esteja o avôsinho socegado que, se nós casarmos, não o abandonaremos nunca. E tambem me quer parecer que Araujo Rodarte, muito intencionalmente, fallára n’esse assumpto a Salomé, para que ella fosse contar ás irmãs o que o avô lhe estivera dizendo e para que Hilda e Maria Ignez o dissessem aos dois alemtejanos, quando fosse occasião. XIX D. Enrique abandonou a casa de Setubal sem lhe mandar pôr escriptos. Que de Setubal não queria saber mais, dissera elle á sr.ª Magdalena quando lhe entregou a chave. A menina Ricardina e a sr.ª Magdalena ficaram satisfeitissimas, por muitas e variadas razões. Em primeiro logar, Ricardina havia contado á mãe que, n’aquella casa de pouca vergonha, tanto a hespanhola velha como a hespanhola nova, expressão sua, lhe disputavam o sueco, o qual parecia disposto, se podesse vencer-se aquella dupla contrariedade, a dar o nó do hymeneu. A sr.ª Magdalena, na esperança de vêr a filha bem casada, prometteu uma via-sacra ao Senhor do Bomfim se as duas hespanholas lhe deixassem em paz a filha e o sueco. O Senhor Jesus do Bomfim fizera-lhe a vontade, e a sr.ª Magdalena tratára logo de cumprir a promessa. Em segundo logar, a menina Ricardina gostava muito, quando a casa estava com escriptos, de atravessar a rua para ir mostral-a. Fôra n’uma d’essas sahidas que ella annos antes ouvira, á queima-roupa, a declaração de um rapaz banhista, que chegára primeiro que a familia para arrendar casa, e o qual, depois de estabelecidas relações de intimidade entre as senhorias e os inquilinos, gostava muito de pisar-lhe o pé debaixo da mesa do chá. Logo que D. Enrique entregou a chave, a menina Ricardina foi, por ordem da mãe, verificar o estado em que a familia Saavedra havia deixado ficar a casa. —Que porcaria! dizia mentalmente a menina Ricardina abrindo as janellas e olhando de relance para o pavimento e para os moveis. Pelo chão, por cima das mezas, havia bocados de papel, migalhas de pão, ganchos do cabello, e a um canto uma ruma de jornaes hespanhoes e um leque velho, rasgado, com as varetas quebradas e pendentes. Feito o primeiro exame _à vol d’oiseau_, Ricardina abriu as gavetas de alguns moveis, sem nada encontrar. Mas já lhe não aconteceu o mesmo quando passava revista á gaveta do lavatorio. Encontrou ahi um pequeno embrulho de papel, que lhe despertou a curiosidade. Desembrulhou o papel, e encontrou uma caixinha oblonga, de cartão verde. —O que será isto?! pensava Ricardina. Abriu, com muito interesse, e viu uma dentadura postiça, nova em folha. Largou a rir do achado, que estava longe de esperar. Passada a primeira surpreza, começou a reflectir: —Para qual dos tres seria isto? E, parada no meio da casa, com a caixinha de cartão deante dos olhos, continuou a pensar: —Não, de Soledad não é, porque os seus dentes eram muito mais pequenos. De D. Enrique tambem não é, porque tinha os dentes estragados pelo tabaco. Ah! já sei!...—e largou a rir ás gargalhadas.—Os dentes de D. Estanislada eram bonitos, brancos como o marfim, mas postiços. Agora é que eu sei que eram postiços! Ora a velha tonta! E não saber eu isto antes! Foi dentadura que comprou em Lisboa.—Ricardina ia lendo a inscripção da tampa da caixa—para a ter de sobreselente, talvez por ser mais barata ou melhor do que a que trazia. E continuou a rir, a rir. —Quando faria ella tenção de mudar de dentes! pensava Ricardina. Algum d’estes ha-de ser o do siso, que bem preciso lhe é! E, tendo posto a caixinha no mesmo sitio em que estava, foi contar á mãe a alegre historia do seu achado. —Que eram fraquezas da humanidade, disse a sr.ª Magdalena; que se não risse; que não offendesse o Senhor Jesus do Bomfim, que lhes havia feito o milagre. Ricardina respondeu que o Senhor do Bomfim não se podia offender de que ella risse dos dentes postiços de D. Estanislada; que uma coisa não tinha nada com a outra. A primeira pessoa a quem Ricardina contou a historia da dentadura foi o mesmo rapazito, que tinha levado as duas cartas com os dois lenços a casa de D. Enrique. Recommendou-lhe que fosse contar tudo ao Marcolino, marcador do bilhar no café _Esperança_, porque era esse o melhor meio de vulgarisar o caso em toda a cidade. O rapazito, a quem Ricardina dera um tostão, foi logo comprar amendoas e cigarros á loja do Passos, na Praça do Bocage, e depois ao café _Esperança_ contar a historia ao marcador. Á tarde, os _habitués_ do botequim commentavam o caso rindo, e ao anoitecer constava em toda a cidade que D. Estanislada, a _leôa velha_, como começavam a chamar-lhe, usava dentes postiços. D’ahi a quarenta e oito horas appareceu em Setubal, inesperadamente, D. Enrique Saavedra. Foi direito da estação do caminho de ferro a casa da sr.ª Magdalena. —Então o sr. D. Enrique outra vez por cá?! perguntou a beata. —Dizia que não queria mais nada da nossa terra! atalhou Ricardina. —_Que broma!_ exclamou D. Enrique. _Olvidé una joya que vengo à buscar._ —Uma joia! Credo, Senhor Jesus do Bomfim! que falso testemunho! exclamou a mãe de Ricardina. —Uma joia! Ora essa! Isso havemos nós de vêr! apostrophou arrogantemente Ricardina. —_Si, una joya de pequeño valor. Nó se aflijan ustedes._ —E em que sitio calculam que estava a joia? perguntou Ricardina, muito esperta. —_En el cajon del labatorio_, respondeu D. Enrique. —Pois se lá estava, lá ha de estar, disse triumphantemente Ricardina. Vamos já vêr. Foram. D. Enrique dirigiu-se logo á gaveta do lavatorio e, encontrando a caixa, exclamou: —_Aqui está la joya!_ —Não! disse Ricardina, que com difficuldade continha o riso. Veja _usted_ se a joia está como a deixaram. Faça favor de examinar. D. Enrique entreabriu a caixa mesmo dentro da gaveta, e, como Ricardina se approximasse, elle fechou de repente a caixa, e metteu-a na algibeira. —Está ou não está? É negocio muito sério! Deve vêr, para que a verdade fique bem esclarecida! —_Está todo como habia quedado_, respondeu D. Enrique. —Deve ser joia de muito valor, para _usted_ se sujeitar a vir a Setubal procural-a? perguntava, muito desfructadora, Ricardina. —_Una joya de familia, de mas estimacion que valor._ —Bem me queria parecer que era joia de familia!... Ora ainda bem que appareceu! E a quem pertence essa joia? É sua, sr. D. Enrique? —_Nó, és de mi mujer._ —Já estão em Santarem? —_Todavia nó. Hemos estado en Lisboa y vamos mañana para Santarem._ —Peço-lhe o favor, sr. D. Enrique, de dar muitas lembranças minhas ao sr. conselheiro, disse ironicamente Ricardina. —_Seran entregadas._ Quando D. Enrique foi almoçar ao _Escoveiro_, por isso que só de tarde podia regressar a Lisboa, sahiram-lhe ao encontro alguns conhecidos. —Com que, D. Enrique, outra vez em Setubal?! —_He venido buscar una joya de familia, que habia dejado quedar olvidada._ —E appareceu? —_Ah! perfectamente. Estaba en su sitio._ —Então já está em Santarem? —_Todavia nó. Solo partiremos mañana de Lisboa._ —E tenciona demorar-se muito em Santarem? —_Hasta vuelvan los Borbones._ —E as sr.ᵃˢ como passam? —_Magnificas!_ E cada um lhe ia dizendo por sua vez: —Então, em Santarem, dê visitas minhas ao conselheiro. Não se esqueça, D. Enrique. —_Jamás._ No comboyo da tarde D. Henrique regressou a Lisboa, levando na algibeira a joia de familia,—a dentadura de D. Estanislada. O caso deu que rir, em Setubal, durante muitos dias. A sr.ª Magdalena, logo de manhã cedo, continuava a fazer a via-sacra, que promettera ao Senhor Jesus do Bomfim. Ricardina aproveitava essa occasião para ir arejar a casa em que D. Enrique morára, e que ainda não estava arrendada. De uma d’essas vezes, seriam seis horas e meia, Ricardina estava á janella, parecendo que se deliciava em tomar o ar fresco da manhã. Demorava-se, olhando ao longo da rua. N’isto apparece o sueco, que parou debaixo da janella, e perguntou muito respeitosamente: —É parra alugarr esse casa? —É, sim, respondeu Ricardina. —Poderrei verr agórra? —Tenha a bondade de subir, respondeu Ricardina. O sueco, a julgar pelo tempo que se demorou, examinou com interesse todos os compartimentos da casa, que aliás não eram muitos. E gostou, porque n’essa mesma manhã procurou a sr.ª Magdalena, para lhe dizer que desejava ser seu inquilino. —Que tinha muita honra n’isso, respondeu affavelmente a mãe de Ricardina. Attendendo a que já ia adiantada a estação balnear, e a que o inquilino poderia vir a ser genro da senhoria, a sr.ª Magdalena levou-lhe mais quatro libras do que pediria a qualquer outro. O sueco alugou mobilia e installou-se immediatamente. Jantava no _Hotel Escoveiro_, mas almoçava em casa. Como não tinha criada, porque a menina Ricardina lhe prohibira que a tivesse, era ella propria quem ás oito horas da manhã lhe ia fazer o bife e o café do almoço. Quando ella sahia de casa, a sr.ª Magdalena recommendava-lhe sempre: —Juizinho, Ricardina! Vê lá tú! —Esteja socegada, minha mãe, eu não sou d’essas... XX No fim de setembro, o morgado de Reguengos e o proprietario das Alcaçovas estiveram jogando uma noite o loto em casa das Rodartes, como era costume. Nada se passou de extraordinario, que podesse manifestar a importante resolução que os dois alemtejanos haviam tomado. Repetiram-se as phrases do estylo: o velho Rodarte lamentou mais uma vez, ao sentar-se á mesa, que o proprietario das Alcaçovas não soubesse jogar o voltarete, seu jogo predilecto; fallou-se da Sequeira, que, alegre e feliz, estava tratando do enxoval para casar com o Vianninha; combinou-se a hora do banho, no dia seguinte, em conformidade com a maré. E das dez e meia para as onze os dois alemtejanos retiraram-se, foram deitar-se tranquillamente. No dia seguinte estiveram na praia, tomaram banho como de costume, esperaram que as Rodartes chegassem para fallar-lhes, e ás nove horas estavam sentados á mesa do almoço comendo com excellente apetite. Depois do meio dia sahiram ambos, foram procurar Araujo Rodarte, o que aliás não estava em costume. Foi o morgado de Reguengos quem primeiro usou da palavra, fallando em nome dos dois. —V. Ex.ª, disse elle ao dono da casa, ha-de certamente estranhar uma visita a hora que não está nos nossos habitos. Mas o motivo que aqui nos traz é de tal modo solemne, que exigia da nossa parte uma visita especial para o expôrmos. E como nós, os alemtejanos, somos homens que não estamos costumados a grandes discursos, entraremos já no assumpto, se V. Ex.ª assim o permittir. Araujo Rodarte comprehendeu logo do que se ia tratar, e o seu coração bateu apressadamente n’uma commoção que teve tanto ou quanto de dolorosa. —Estou ás ordens de V. Ex.ᵃˢ, respondeu elle. —V. Ex.ª, continuou o morgado de Reguengos, sabe muito bem quem nós somos, e os meios de fortuna que possuimos. N’estas circumstancias julgamos que directamente poderiamos apresentar-nos a pedir, eu a mão da sr.ª D. Hilda, o nosso patricio e meu amigo a mão da sr.ª D. Maria Ignez. Eis o assumpto especial da nossa visita. —Eu, accrescentou do lado o proprietario das Alcaçovas, louvo-me nas palavras que V. Ex.ª acaba de ouvir. —Pela minha parte, respondeu o avô das duas meninas, devo dizer a V. Ex.ᵃˢ que nada tenho que oppôr ao seu pedido. Custa-me, é certo, ter que separar-me d’estas creanças que com tanto amor eduquei depois que seus paes morreram, mas tambem é certo que nunca fiz tenção, porque o amor exclue o egoismo, de as conservar indefinidamente presas á minha ordem. Apenas sempre recommendei ás minhas netas que não tivessem pressa de casar, isto é, que o não fizessem irreflectidamente, porque lhes não faltavam commodidades, regalos e carinhos. Estou, porém, convencido de que V. Ex.ᵃˢ as saberão estimar, senão mais do que eu, porque seria impossivel, permittam-me esta vaidade, pelo menos tanto como eu. N’este momento arrazaram-se de lagrimas os olhos de Araujo Rodarte. Houve um momento de silencio. —Mas, continuou o velho enxugando as lagrimas, não basta n’esta grave materia o que eu digo. É preciso, primeiro que tudo, saber o que dizem as interessadas. V. Ex.ᵃˢ já de certo as tinham prevenido dos intuitos d’esta sua visita... Os dois alemtejanos responderam quasi ao mesmo tampo: —Não, sr. —Não? Ainda bem! exclamou Araujo Rodarte. Ainda bem, porque esse facto mostra ao meu coração que as minhas netas não teem segredos para mim. A reserva seria desculpavel por parte d’ellas, mas não deixaria de maguar-me, porque representava até certo ponto falta de confiança no seu velho e affectuoso avô. —Nós dois, disse o proprietario das Alcaçovas sorrindo, vamos agora saber pela primeira vez o que as duas netas de V. Ex.ª pensam a nosso respeito. —Pois eu vou chamal-as para que ellas o digam com a franqueza que o momento requer. Levantando-se da cadeira, Araujo Rodarte foi a meio do corredor, e chamou em voz alta: —Salomé! Salomé! —Meu avô! —Dize a tuas irmãs que venham aqui, e vem tu tambem. Voltando á sala, Araujo Rodarte disse aos dois patricios: —Não estranhem V. Ex.ᵃˢ que eu chame tambem minha neta Salomé. É o meu braço direito. Em minha casa todas as resoluções são tomadas em conselho de familia. Não desejo que este espirito de solidariedade se interrompa justamente no momento em que vae tomar-se uma resolução importante para nós todos. Não tardaram a apparecer as tres meninas. Se não fosse trazerem o rosto um pouco mais purpurino, dir-se-hia que Hilda e Maria Ignez não adivinhavam o que se ia tratar. Salomé, pelo contrario, estava mais pallida que de costume, parecia ser ella a noiva, pela commoção que denunciava. Feitos os cumprimentos, Araujo Rodarte disse voltando-se para Hilda e Maria Ignez: —Estes dois cavalheiros, nossos patricios e amigos, acabam de me expôr um assumpto que exige resposta vossa. Pela minha parte, apreciando-os como devo, porque ambos são pessoas que me merecem o melhor conceito, nada terei que oppôr á vossa vontade. Podeis e deveis fallar com franqueza, porque se trata do vosso futuro. O sr. morgado pede a tua mão, Hilda, e este cavalheiro a tua, Maria Ignez. Respondei agora ou quando quizerdes, e como quizerdes. As duas meninas ficaram por algum tempo silenciosas, cravando no avô os olhos embaciados de lagrimas. Araujo Rodarte procurava mostrar-se forte, para desopprimir o animo das netas. Os dois alemtejanos rastejavam o olhar no pavimento da casa. —Podeis e deveis fallar como entenderdes, disse Araujo Rodarte. —Eu, pela minha parte, respondeu Hilda mais purpurina ainda das faces do que havia entrado, porei apenas uma condição. —Qual? perguntou Araujo Rodarte. —Que ficaremos vivendo na Messejana em companhia do avô. Resplandeceu de jubilo a physionomia do velho ao ouvir estas palavras. —E eu acceito, respondeu com firmeza o morgado. Não quero que o sr. Rodarte tenha motivo algum para desgostar-se com o meu casamento. —Bem! bem! exclamou o velho Rodarte radiante de alegria. V. Ex.ª, disse elle risonho ao morgado, já está despachado. Vamos agora ouvir a minha Ignez. Falla tu, menina. —Eu, meu avôsinho, digo que a mana Hilda fallou por ella e por mim. Dou a mesma resposta com a mesma condição. —Pois eu, respondeu o proprietario das Alcaçovas, não tenho a accrescentar uma virgula ao que disse o morgado. O que elle disse é o que eu digo tambem. Araujo Rodarte, sorrindo e chorando ao mesmo tempo, levantou-se da cadeira e apostrophou erguendo as mãos e os olhos: —Estamos todos despenados, felizmente! Obrigado, meu Deus! As tres netas correram a abraçar-se no avô, que effusivamente as beijava no cabello. Os dois alemtejanos, respeitosos, com os olhos no chão, assistiam de pé a esta encantadora scena de ternura patriarchal. Dois dias depois, Araujo Rodarte, muito satisfeito, nadando em felicidade, dizia familiarmente ao morgado de Reguengos: —Ora vamos lá. Os velhos são muito curiosos. Como foi que isto começou? —Ora! respondeu o morgado. Começou por uma brincadeira! —Como? —Na Troia, depois do _pic-nic_, nós dois, p’ra nos rirmos com a rapaziada, que estava levada da bréca por ciume uns dos outros, lembramo-nos de tirar á sorte os nomes das damas que cada um havia de namorar. —Tem graça! commentou Araujo Rodarte. —Nós dois, não, disse o proprietario das Alcaçovas. Foste tu, morgado. Porque elle, sr. Rodarte, lá mesmo se gabou de ter muita sorte a todos os jogos. —Bem se vê, observou o velho, bem se vê pelo dinheiro que nos tem apanhado ao loto! Que fará ao voltarete! Mas mesmo assim não desisto. Ó morgado, logo que estivermos na Messejana, havemos de ensinar o voltarete a seu cunhado. —Dito. —Mas então, continuou interrogando o velho, a minha Hilda coube em sorte ao morgado. —E a mim a sr.ª D. Ignez, atalhou o proprietario das Alcaçovas. —E o agouro sahiu certo! Tem graça! tem graça! Parece romance! E, diga-me, a andaluza não entrou tambem na loteria? —Entrou. Sahiu ao D. Ramon. —Ahi é que me parece que o agouro falhou. Mas quem sabe? O futuro a Deus pertence. Mas o hespanholito ainda ahi está, pois não está? —Sim, sr. —Não o tenho visto! —Elle não sae do café _Esperança_, onde bebe gazozas umas sobre outras. Não parece disposto a morrer de saudades pela _señorita_. —Não é homem de grandes fogos! disse Araujo Rodarte. —Tanto se lhe dá como se lhe deu, observou o proprietario das Alcaçovas. Nem parece hespanhol! Á força de tomar gazoza, já a tem nas veias. Riram todos muito com esta observação, que era exacta. O que não passou pela cabeça de Araujo Rodarte, nem os dois alemtejanos ousaram dizer-lhe, é que D. Estanislada tambem havia entrado no sorteio. —Mas a minha Salomé? a minha Salomé a quem coube em sorte? —Ao Vianninha. —Pobre Salomé! disse Araujo Rodarte, rindo. Essa fica sem noivo. Vejam lá os srs.! Lembrei-me primeiro da hespanhola que da minha Salomé! Como é o meu braço direito, não me lembro nunca de que ella póde casar um dia! Nem quero lembrar! Não se soube logo no café _Esperança_ que as duas Rodartes iam casar. Os dois alemtejanos não eram pessoas que divulgassem a sua felicidade. Mas quando se soube, o alferes Ruivo, sempre alegre, propôz que se abrisse uma garrafa de vinho do Porto, para saudar mais uma vez a victoria de Portugal sobre a Hespanha. —Meus senhores, disse elle de copo em punho, vamos ter um novo 1640, sem revolução e sem Miguel de Vasconcellos. A Hespanha entrou arrogante em Setubal, escravisou os corações portuguezes, tratou-os como vencidos, opprimiu-os. Mas o sentimento da independencia da patria póde mais que o jugo da belleza. A Hespanha foi derrotada, o leão de Castella teve de retirar sobre Santarem, protegido pela Junta Geral d’aquelle districto, que merece se lance na acta um voto de censura em nome da patria offendida. (_Hilaridade geral._) Ficou triumphante a belleza de Portugal, sem precisar para isso recorrer á _tertulia_, ao _abanico_, nem aos dentes postiços da mamã. (_Alguns dos «habitués» do café Esperança choravam de riso_). Peço-lhes pois que, em nome da alma nacional, e em homenagem á provincia a que Setubal pertence geographicamente, repitam com sincero enthusiasmo as palavras que eu vou dizer. E fez uma longa pausa. —Então? —Venham de lá as taes palavras! —Vem ou não vem? O alferes, circumvagando o olhar pelo auditorio, esvazia o copo e recita com emphase: Que mais querem de nós? apoz tamanha galhardia d’algoz, ébrios de gloria, apagaram acaso a luz da Historia? não lêem seus feitos?... Que nos quer a Hespanha?... Quer insultar a lapide funerea que pesa sobre vós, heroes de _Ourique_!... Estremecei de horror, filhos de Henrique!... Repercuti meu canto, éccos da Iberia! FIM _Post scriptum._—Pude finalmente conseguir escrever o nome do sueco. Chamava-se Andreas Setterquist. A menina Ricardina, muito carinhosa, chamava-lhe familiarmente o seu _Settequiz_. E o malicioso alferes Ruivo dizia que, a contar por alto, devia effectivamente ser o setimo. ERRATA Pag. 129: Linha 10.ª, onde se lê—«terão coragem para me fazerem alguma traição», deve lêr-se—«terão coragem para me fazer alguma traição». Linha 18.ª, onde se lê—«A velhice que me tornou ainda tão tolo», deve lêr-se—«A velhice não me tornou ainda tão tolo, etc.» End of Project Gutenberg's As Netas do Padre Eterno, by Alberto Pimentel *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK AS NETAS DO PADRE ETERNO *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. 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