The Project Gutenberg eBook of O Guarany: romance brazileiro, Vol. 2 (of 2)

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Title: O Guarany: romance brazileiro, Vol. 2 (of 2)

Author: José Martiniano de Alencar

Release date: March 28, 2022 [eBook #67725]
Most recently updated: October 18, 2024

Language: Portuguese

Original publication: Brazil: B. L. Garnier

Credits: Laura Natal Rodrigues and Kristen Carmean (Images generously made available by Hathi Trust Digital Library.)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O GUARANY: ROMANCE BRAZILEIRO, VOL. 2 (OF 2) ***


J. DE ALENCAR


O
GUARANY

ROMANCE BRAZILEIRO


QUINTA EDIÇÃO


TOMO SEGUNDO


RIO DE JANEIRO

B.-L. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
71, RUA DO OUVIDOR, 71
PARIS.—E. MELLIER, 17, RUA SÉGUIER.


Ficão reservados os direitos de propriedade.


1883


INDICE

TERCEIRA PARTE
OS AYMORÉS

QUARTA PARTE
A CATASTROPHE


TERCEIRA PARTE
OS AYMORÉS


I
A PARTIDA

Na segunda-feira, erão seis horas da manhã, quando D. Antonio de Mariz chamou seu filho.

O velho fidalgo velara uma boa parte da noite; ou escrevendo ou reflectindo sobre os perigos que ameaçavão sua familia.

Pery lhe havia contado todas as particularidades de seu encontro com os Aymorés; e o cavalheiro, que conhecia a ferocidade e espirito vingativo dessa raça selvagem, esperava a cada momento ser atacado.

Por isso, de acordo com Alvaro, D. Diogo, com seu escudeiro Ayres Gomes, tinha tomado todas as medidas de precaução que as circumstancias e sua longa experiencia lhe aconselhavão.

Quando seu filho entrou, o velho fidalgo acabava de sellar duas cartas que escrevêra na vespera.

—Meu filho, disse elle com uma ligeira emoção, reflecti essa noite sobre o que nos pode acontecer, e assentei que deves partir hoje mesmo para S. Sebastião.

—Não é possivel, senhor!... Afastais-me de vós justamente quando correis um perigo?

—Sim! É justamente quando um grande perigo nos ameaça, que eu, chefe da casa, entendo ser do meu dever salvar o representante do meu nome e meu herdeiro legitimo, o protector de minha familia orphã.

—Confio em Deos, meu pai, que vossos receios serão infundados; mas se elle nos quizesse submetter a tal provança, o unico lugar que compete a vosso filho e herdeiro de vosso nome é nesta casa ameaçada, ao vosso lado, para defender-vos e partilhar a vossa sorte, qualquer que ella seja.

D. Antonio apertou seu filho ao peito.

—Eu te reconheço; tu és meu filho; é o meu sangue juvenil que gyra em tuas veias, e o meu coração de moço que falla pelos teus labios. Deixa porém que os cincoenta annos de experiencia que desde então passárão sobre minha cabeça encanecida te ensinem o que vai da mocidade á velhice, o que vai do ardente cavalheiro ao pai de uma familia.

—Eu vos escuto, senhor; mas pelo amor que vos consagro poupai-me a dôr e a vergonha de deixar-vos no momento em que mais precisais de um servidor fiel e dedicado.

O fidalgo proseguio já calmo:

—Não é uma espada, D. Diogo, que nos dará a victoria, fosse ella valente e forte como a vossa: entre quarenta combatentes que vão se medir talvez contra centenas e centenas de inimigos, um de mais ou de menos não importa ao resultado.

—Que assim seja, respondeu o cavalheiro com energia; reclamo o meu posto de honra, e a minha parte do perigo; não vos ajudarei a vencer, porém morrerei junto dos meus.

—E é por esse nobre mas esteril orgulho que quereis sacrificar o unico meio de salvação que talvez nos reste, se, como temo, as minhas previsões se realisarem?

—Que dizeis, senhor?

—Qualquer que seja a força e o numero de inimigos, conto que o valor portuguez e a posição desta casa me ajudarão a resistir-lhes por algum tempo, por vinte dias, mesmo por um mez; mas por fim teremos de succumbir.

—Então?... exclamou D. Diogo pallido.

—Então, se meu filho D. Diogo, em vez de ficar nesta casa por uma obstinação imprudente, tiver ido ao Rio de Janeiro, e pedido o auxilio que fidalgos portuguezes não lhe recusarão de certo, poderá voar em socorro de seu pai, e chegar com tempo para defender sua familia. Então verá que esta gloria de ser o salvador de sua casa vale bem a honra de um perigo inutil.

D. Diogo deitou o joelho em terra, e beijou com ternura a mão do fidalgo:

—Perdão, meu pai, por não vos ter comprehendido. Eu devia adivinhar que D. Antonio de Mariz não pode querer para o filho senão o que é digno do pai.

—Vamos, D. Diogo, não ha tempo a perder. Lembrai-vos que uma hora, um minuto de tardança talvez tenha de ser contado anciosamente por aquelles que vão esperar-vos.

—Parto neste instante, disse o cavalheiro dirigindo-se á porta.

—Tomai; esta carta é para Martim de Sá, governador desta capitania; esta outra é para meu cunhado e vosso tio Crispim Tenreiro, valente fidalgo que vos poupará o trabalho de procurardes defensores para vossa familia. Ide despedir-vos de vossa mãi e vossas irmãs: eu farei tudo preparar para a partida.

O fidalgo, reprimindo a sua emoção, sahio do gabinete onde se passava esta scena, e foi ter com Alvaro que o procurava.

—Alvaro, escolhei quatro homens que acompanhem D. Diogo ao Rio de Janeiro.

—D. Diogo parte?... perguntou o moço admirado.

—Sim, depois vos direi as razões. Por agora dai-vos pressa em que tudo esteja prompto dentro de uma hora.

Alvaro dirigio-se immediatamente ao fundo da casa onde habitavão os aventureiros.

Havia ahi grande agitação: uns fallavão em tom de queixa, outros murmuravão apenas palavras entrecortadas; e alguns finalmente rião e motejavão do descontentamento de seus companheiros.

Ayres Gomes com todo o seu arreganho militar passeava no meio do terreiro, a mão no punho da espada, a cabeça alta e o bigode retorcido. Quando o escudeiro passava, a voz dos aventureiros descia dous tons; mas á medida que elle se afastava, cada um dava livre desabafo ao seu máo humor.

Entre os mais inquietos et turbulentos distinguião-se tres grupos presididos por personagens de nosso conhecimento: Loredano, Ruy Soeiro e Bento Simões.

A causa desse descontentamento quasi geral era a seguinte:

Por volta de seis horas da manhã, Ruy, em virtude do emprazamento da vespera, dirigio-se o primeiro á escada para ganhar o matto.

Chegando ao fim da esplanada admirou-se de ver ahi Vasco Alphonso e Martim Vaz de vigia, o que era extraordinario; pois só á noite se usava de uma tal precaução, e esta cessava apenas amanhecia.

Ainda mais admirado porém ficou quando os dous aventureiros, cruzando as espadas, proferirão quasi ao mesmo tempo estas palavras:

—Não se passa.

—E por que razão?

—É a ordem, respondeu Martim Vaz.

Ruy empallideceu, e voltou apressadamente; a primeira idéa que lhe acudio foi que os tinhão denunciado, e cuidou em prevenir a Loredano.

Ayres Gomes porém embargou-lhe o passo, e dirigio-se com elle para o terreiro: ahi o digno escudeiro desempenando o corpo, e levando a mão á bocca em fórma de busina, gritou:

Olá! Á frente toda a banda!

Os aventureiros chegárão-se formando um circulo ao redor de Ayres Gomes; Ruy já tinha tido occasião de lançar uma palavra ao ouvido do italiano; e ambos, um pouco pallidos mas resolutos, esperavão o desfecho daquella scena.

—O Sr. D. Antonio de Mariz, disse o escudeiro, por meu intermedio vos faz saber a sua vontade, e manda que ninguem se afaste um passo da casa sem sua ordem. Quem o contrario fizer pereça morte natural.

Um silencio morno acolheu a enunciação desta ordem; Loredano trocou uma vista rapida com os seus dous complices.

—Estais entendidos? disse Ayres Gomes.

—O que nem eu, nem meus companheiros entendemos é a razão disto, retrucou o italiano avançando um passo.

—Sim; a razão? exclamou em coro a maioria dos aventureiros.

—As ordens cumprem-se, e não se discutem, respondeu o escudeiro com uma certa solemnidade.

—Comtudo nós... ia dizendo Loredano.

—Toca a debandar! gritou Ayres Gomes. Aquelle que não estiver contente, que o diga ao Sr. D. Antonio de Mariz.

E o escudeiro com uma fleugma imperturbavel rompeu o circulo, e começou a passear pelo terreiro olhando de travez os aventureiros, e rindo á sorrelfa do seu desapontamento.

Quasi todos estavão contrariados; sem fallar dos conspiradores que se havião emprazado para concertarem seu plano de campanha, os outros, cujo divertimento era caçar e bater os mattos, não recebião a ordem com prazer. Apenas alguns de genio mais bonachão e jovial tinhão tomado a cousa á boa parte, e zombavão da contrariedade que soffrião seus companheiros.

Quando Alvaro se aproximou todos os olhos se voltárão para elle, esperando a explicação do que se passava.

—Sr. cavalheiro, disse Ayres Gomes, acabo de transmittir a ordem para que ninguem arrede pé da casa.

—Bem, respondeu o moço, e continuou dirigindo-se aos aventureiros: Assim é preciso, meus amigos, estamos ameaçados de um ataque dos selvagens, e toda a prudencia é pouca nestas occasiões. Não é só a nossa vida que temos a defender, e essa pouco vale para cada um de nós; é sim a pessoa daquelle que confia em nosso zelo e coragem, e mais ainda o socego de uma familia honrada que todos prezamos.

As nobres palavras do cavalheiro, e a affabilidade do gesto que suavisava a firmeza de sua voz, serenárão completamente os animos; todos os descontentes mostrárão-se satisfeitos.

Apenas Loredano estava desesperado por ser obrigado a retardar a combinação do seu plano; pois era arriscado tenta-lo em casa, onde o menor gesto o podia trahir.

Alvaro trocou poucas palavras com Ayres Gomes, e voltou-se para os aventureiros:

—D. Antonio de Mariz precisa de quatro homens dedicados para acompanharem seu filho D. Diogo á cidade de S. Sebastião. É uma missão perigosa; quatro homens nestes desertos marchão de perigo em perigo. Quem de vós se offerece para desempenha-la?

Vinte homens se adiantárão; o cavalheiro escolheu tres entres elles.

—Vós sereis o quarto, Loredano.

O italiano, que se tinha escondido entre os seus companheiros, ficou como fulminado por estas palavras; sahir naquella occasião da casa era perder para sempre a sua mais ardente esperança; durante a ausencia tudo podia se descobrir.

—Peza-me ser obrigado a negar-me ao serviço que exigis de mim; mas sinto-me doente, e sem forças para uma viagem.

O cavalheiro sorrio.

—Não ha enfermidade que prive um homem de cumprir o seu dever; sobretudo quando é um homem valente e leal como vós, Loredano.

Depois abaixou a voz para não ser ouvido pelos outros aventureiros:

—Se não partis, sereis arcabuzado em uma hora. Esqueceis que tenho a vossa vida em minha mão, e vos faço esmola mandando-vos sahir desta casa?

O italiano comprehendeu que não tinha remedio senão partir; bastava que o moço o accusasse de ter atirado sobre elle, bastava a palavra de Alvaro para fazê-lo condemnar pelo chefe e pelos seus proprios companheiros.

—Aviai-vos, disse o cavalheiro aos quatro aventureiros escolhidos por elle; partis em meia hora.

Alvaro retirou-se.

Loredano ficou um momento abatido pela fatalidade que pesava sobre elle; mas a pouco a pouco foi recobrando a calma, animando-se; por fim sorrio. Para que sorrisse era necessario que alguma inspiração infernal tivesse subido do centro da terra a essa intelligencia votada ao crime.

Fez um aceno a Ruy Soeiro, e os dous encaminhárão-se para um cubiculo que o italiano occupava no fim da esplanada. Ahi conversárão algum tempo, rapidamente e em voz baixa.

Forão interrompidos por Ayres Gomes, que bateu com a espada na porta:

—Eh! lá! Loredano. A cavallo, homem; e boa viagem.

O italiano abrio a porta, e ia sahir; mas voltou-se para dizer a Ruy Soeiro:

—Olhai os homens da guarda; é o principal.

—Ide tranquillo.

Alguns minutos depois, D. Diogo, com o coração cerrado e as lagrimas nos olhos, apertava nos braços sua mãi querida, Cecilia que elle adorava, e Isabel que já amava tambem como irmã.

Depois desprendendo-se com um esforço, encaminhou-se apressadamente para a escada e desceu ao valle; ahi recebeu a benção de seu pai e abraçando a Alvaro saltou na sella do cavallo, que Ayres Gomes tinha pela redea.

A pequena cavalgata partio; com pouco sumia-se na volta do caminho.


II
PREPARATIVOS

Ao tempo que D. Antonio de Mariz e seu filho conversavão no gabinete, Pery examinava as suas armas, carregava as pistolas que sua senhora lhe havia dado na vespera, e sahia da cabana.

A physionomia do selvagem tinha uma expressão de energia e ardimento, que revelava resolução violenta, talvez desesperada.

O que ia fazer, nem elle mesmo sabia. Certo de que o italiano e seus companheiros se reunirião naquella manhã, contava antes que a reunião se effectuasse ter mudado inteiramente a face das cousas.

Só tinha uma vida como dissera; mas essa com a sua agilidade e a sua força e coragem valia por muitas; tranquillo sobre o futuro pela promessa de Alvaro, não lhe importava o numero dos inimigos: podia morrer mas esperava deixar pouco ou talvez nada que fazer ao cavalheiro.

Sahindo de sua cabana, Pery entrou no jardim: Cecilia estava sentada n'um tapete de pelles sobre a relva, e amimava ao seio a sua rolinha predilecta, offerecendo os labios de carmim ás caricias que a ave lhe fazia com o bico delicado.

A menina estava pensativa; doce melancolia desvanecia a vivacidade natural de seu semblante.

—Tu estás agastada com Pery, senhora?

—Não, respondeu a menina fitando nelle os grandes olhos azues. Não quizeste fazer o que eu pedi; tua senhora ficou triste.

Ella dizia a verdade com a ingénua franqueza da innocencia. Na vespera, quando se tinha recolhido enfadada pela recusa de Pery, ficara contrariada.

Educada no fervor religioso de sua mãi, embora sem os prejuizos que a razão de D. Antonio corrigira no espirito de sua filha, Cecilia tinha a fé christã em toda a pureza e santidade. Por isso se affligia com a idéa de que Pery, a quem votava uma amizade profunda, não salvasse a sua alma, e não conhecesse o Deus bom e compassivo a quem ella dirigia suas preces.

Conhecia que a razão por que sua mãi e os outros desprezavão o indio era o seu gentilismo; e a menina no seu reconhecimento queria elevar o amigo e torna-lo digno da estima de todos.

Eis a razão por que ficara triste; era gratidão por Pery, que defendera sua vida de tantos perigos, e a quem ella queria retribuir salvando a sua alma.

Nesta disposição de espirito, seus olhos cahirão sobre a guitarra hespanhola que estava em cima da commoda e veio-lhe vontade de cantar. É cousa singular como a melancolia inspira! Seja por uma necessidade de expansão, seja porque a musica e a poesia suavisem a dôr, toda a creatura triste acha no canto um supremo consolo.

A menina tirou ligeiros preludios do instrumento emquanto repassava na memoria as letras de alguns soláos e cantigas que sua mãi lhe havia ensinado. A que lhe acudio mais naturalmente foi a chacara que ouvimos; havia nessa composição uns longes, um quer que seja que ella não sabia explicar, mas ia com seus pensamentos.

Quando acabou de cantar levantou-se, apanhou a flôr de Pery que tinha atirado ao chão, deitou-a nos cabellos, e fazendo a sua oração da noite, adormeceu tranquillamente. O ultimo pensamento que roçou a sua fronte alva foi um voto de gratidão pelo amigo que lhe salvára a vida naquella manhã. Depois um sorriso adejou sobre seu rosto gracioso, como se a alma durante o somno dos olhos viesse brincar nos labios entreabertos.

O indio, ouvindo as palavras que acabava de proferir Cecilia, sentio que pela primeira vez tinha causado uma mágoa real á sua senhora.

—Tu não entendestes Pery, senhora; Pery te pedio que o deixasses na vida em que nasceu, porque precisa desta vida para servir-te.

—Como?... Não te entendo!

—Pery, selvagem, é o primeiro dos seus; só tem uma lei, uma religião, é sua senhora; Pery, christão, será o ultimo dos teus; será um escravo, e não poderá defender-te.

—Um escravo!... Não! serás um amigo. Eu te juro! exclamou a menina com vivacidade.

O indio sorrio:

—Se Pery fosse christão, e um homem quizesse te offender, elle não poderia mata-lo, porque o teu Deus manda que um homem não mate outro. Pery selvagem não respeita ninguem; quem offende sua senhora é seu inimigo, e morre!

Cecilia, pallida de emoção, olhou o indio, admirada não tanto da sublime dedicação, como do raciocinio; ella ignorava a conversa que o indio tivera na vespera com o cavalheiro.

—Pery te desobedeceu por ti sómente; quando já não correres perigo, elle virá ajoelhar a teus pés, e beijar a cruz que tu lhe déste. Não fique zangada!

—Meu Deus!... murmurou Cecilia pondo os olhos no céo. É possivel que uma dedicação tamanha não seja inspirada por vossa santa religião!...

A alegria serena e doce de sua alma irradiava na physionomia encantadora:

—Eu sabia que tu não me negarias o que te pedi; assim não exijo mais; espero. Lembra-te sómente que no dia em que tu fôres christão, tua senhora te estimará ainda mais.

—Não ficas triste?

—Não; agora estou satisfeita, contente, muito contente!

—Pery quer pedir-te uma cousa.

—Dize, o que é?

—Pery quer que tu risques um papel para elle.

—Riscar um papel?...

—Como este que teu pai deo hoje a Pery.

—Ah! queres que eu escreva?

—Sim.

—O que?

—Pery vai dizer.

—Espera.

Ligeira e graciosa, a menina correu á banquinha, e tomando uma folha de papel e uma pena, fez signal a Pery que se aproximasse.

Não devia ella satisfazer os desejos do indio, como este satisfazia ás suas menores fantasias?

—Vamos: falla, que eu escrevo.

—Pery a Alvaro, disse o indio.

—É uma carta ao Sr. Alvaro? perguntou a menina corando.

—Sim: é para elle.

—Que vais tu dizer-lhe?

—Escreve.

A menina traçou a primeira linha, e depois, por pedido de Pery, o nome de Loredano e dos seus dous complices.

—Agora, disse o indio, fecha.

Cecilia sellou a carta.

—Entrega á tarde; antes não.

—Mas que quer isto dizer? perguntou Cecilia sem comprehender.

—Elle te dirá.

—Não que eu...

A menina balbuciou corando estas palavras: ia dizer que não fallaria ao cavalheiro e arrependeu-se; não queria revelar a Pery o que se tinha passado. Sabia que se o indio suspeitasse a scena da vespera, odiaria Isabel e Alvaro, só por lhe terem causado um pezar involuntario.

Emquanto Cecilia confusa procurava disfarçar o enleio, Pery fitava nella o seu olhar brilhante; mal pensava a menina que aquelle olhar era o adeos extremo que o indio lhe dizia.

Mas para isto fora preciso que adivinhasse o plano desesperado que elle havia concebido de exterminar naquelle dia todos os inimigos da casa.

D. Diogo entrou neste momento no quarto de sua irmã: vinha despedir-se della.

Quanto a Pery, deixando Cecilia dirigio-se á escada, e achou as mesmas vigias, que depois embargárão a passagem de Ruy Soeiro.

—Não se passa, disserão os aventureiros cruzando as espadas.

O indio levantou os hombros desdenhosamente; e antes que as sentinellas voltassem a si da sorpreza, tinha mergulhado sob as espadas, e descido a escada. Então ganhou a matta, examinou de novo as suas armas e esperou; já estava cansado quando viu passar a pequena calvagata.

Pery não comprehendeu o que succedia; mas conheceu que o seu plano tinha abortado.

Foi ter com Alvaro.

O cavalheiro explicou-lhe como se aproveitára da ida de D. Diogo ao Rio de Janeiro para expulsar o italiano sem rumor e sem escandalo. Então o indio por sua vez contou ao moço o que tinha ouvido na touça de cardos; o projecto que formára de matar os tres aventureiros naquelle manhã; e finalmente a carta que lhe escrevêra por intermedio de Cecilia, para, no caso de succumbir elle, saber o cavalheiro quem erão os inimigos.

Alvaro duvidava ainda acreditar em tanta perfidia do italiano.

—Agora, concluio Pery, é preciso que os dous tambem saião; se ficarem, o outro póde voltar.

—Não se animará! disse o cavalheiro.

—Pery não se engana! Manda sahir os dous.

—Fica descansado. Fallarei com D. Antonio de Mariz.

O resto do dia passou tranquillamente; mas a tristeza tinha entrado nesta casa ainda na vespera tão alegre e feliz; a partida de D. Diogo, o temor vago que produz o perigo quando se aproxima, e o receio de um ataque dos selvagens, preoccupavão os moradores do Paquequer.

Os aventureiros dirigidos por D. Antonio, executavão trabalhos de defesa tornando ainda mais inaccessivel o rochedo em que estava situada a casa.

Uns construião palissadas em roda da esplanada; outros arrastavão para a frente da casa uma colubrina que o fidalgo por excesso de cautela mandára vir de S. Sebastião havia dous annos. Toda a casa emfim apresentava um aspecto martial, que indicava a vespera de um combate; D. Antonio preparava-se para receber dignamente o inimigo.

Apenas em toda esta casa uma pessoa se conservava alheia ao que se passava; era Isabel, que só pensava no seu amor.

Depois de sua confissão, arrancada violentamente ao seu coração por uma força irresistivel, por um impulso que ella não sabia explicar, a pobre menina quando se vira só, no seu quarto, á noite, quasi morreu de vergonha.

Lembrava-se de suas palavras, e perguntava a si mesma como tivera a coragem de dizer aquillo, que antes nem mesmo os seus olhos se animavão a exprimir silenciosamente. Parecia-lhe que era impossivel tornar a ver Alvaro sem que cada um dos olhares do moço queimasse suas faces e a obrigasse a esconder o rosto de pejo.

Entretanto nem por isso seu amor era menos ardente; ao contrario agora é que a paixão, por muito tempo reprimida, se exacerbava com as lutas e contrariedades.

As poucas palavras doces que o moço lhe dirigira, a pressão das mãos, e o aperto rapido sobre o coração de Alvaro n'um momento de hallucinação, passavão e repassavão na sua memoria a lodo o momento.

Seu espirito, como uma borboleta em torno da flor, esvoaçava constantemente em torno das reminiscencias ainda vivas, como para libar todo o mel que encerravão aquellas sensações, as primeiras de seu infeliz amor.

Nesse mesmo dia de segunda-feira, á tarde, Alvaro encontrou-se um momento com Isabel na esplanada.

Ambos ficárão mudos, e corárão. Alvaro ia retirar-se.

—Sr. Alvaro... balbuciou a moça tremula.

—Que quereis de mim, D. Isabel? perguntou o moço perturbado.

—Esqueci-me restituir-vos hontem o que não me pertence.

—É ainda este malfadada bracelete?

—Sim, respondeu a moça docemente, é este malfadado bracelete: Cecilia teima que é elle vosso.

—Se meu é, vos peço que o aceiteis.

—Não, Sr. Alvaro, não tenho direito.

—Uma irmã não tem direito de aceitar a prenda que lhe offerece seu irmão?

—Tendes razão, respondeu a moça suspirando, eu o guardarei como lembrança vossa; não será adorno para mim, senão reliquia.

O moço não respondeu; retirou-se para cortar a conversa.

Desde a vespera Alvaro não podia eximir-se á impressão poderosa que causara nelle a paixão de Isabel; era preciso que não fosse homem para não se sentir profundamente commovido pelo amor ardente de uma mulher bella, e pelas palavras de fogo que corrião dos labios de Isabel impregnadas de perfume e sentimento.

Mas a razão direita do cavalheiro recalcava essa impressão no fundo do coração; elle não se pertencia; tinha aceitado o legado de D. Antonio de Mariz e jurado dar a sua mão a Cecilia.

Embora não esperasse mais realisar o seu sonho dourado, entendia que estava rigorosamente obrigado a sujeitar-se á vontade do fidalgo, a proteger sua filha, a dedicar-lhe sua existência. Quando Cecilia o repellisse abertamente, e D. Antonio o desobrigasse de sua promessa, então seu coração seria livre, se não estivesse morto pelo desengano.

O unico facto notavel que se deu nesse dia foi a chegada de seis aventureiros das vizinhanças, que prevenidos por D. Diogo vinhão offerecer seus serviços a D. Antonio.

Chegarão ao lusco-fusco; á frente delles vinha o nosso conhecido mestre Nunes, que um anno antes dera hospitalidade no seu pouso a frei Angelo di Lucca.


III
VERME E FLOR

Erão onze horas da noite.

O silencio reinava na habitação e seus arredores, tudo estava tranquillo e sereno. Algumas estrellas brilhavão no céo; os sopros escassos da viração susurravão na folhagem.

Os dous homens de vigia, apoiados ao arcabuz e reclinados sobre o alcantil, sondavão a sombra espessa que se estendia pela aba do rochedo.

O vulto magestoso de D. Antonio de Mariz passou lentamente pela esplanada, e desappareceu no canto da casa. O fidalgo fazia a sua ronda nocturna, como um general na vespera de uma batalha.

Passados alguns momentos ouvio-se cantar uma coruja no valle, junto da escada de pedra; uma das vigias abaixou-se, e tomando dous pequenos seixos deixou-os cahir um depois do outro.

O som fraco que produzio a quedadas pedras sobre o arvoredo da varzea foi quasi imperceptivel; seria difficil distingui-lo do rumor do vento nas folhas.

Um instante depois um vulto subio ligeiramente a escada, e reunio-se aos dous homens que fazião a guarda nocturna:

—Tudo está preparado?

—Só esperamos por vós.

—Vamos! não ha tempo a perder.

Trocadas estas palavras rapidamente entre o que chegava e uma das vigias, os tres encaminhárão-se com todas as precauções para a alpendrada em que habitava a banda dos aventureiros.

Ahi, como no resto da casa, tudo estava calmo e tranquillo; apenas via-se luzir na soleira da porta do aposento de Ayres Gomes a claridade de uma luz.

Um dos tres chegou-se á entrada do alpendre, e esgueirando-se pela parede perdeu-se na escuridão que havia no interior.

Os outros dous se dirigirão ao fim da casa, e ahi occultos pela sombra e pelo angulo que formava um largo pilar do edificio, começárão um dialogo breve e rapido.

—Quantos são? perguntou o homem que chegára.

—Vinte ao todo.

—Restão-nos?

—Dezenoze.

—Bem. A senha?

—Prata.

—E o fogo?

—Prompto.

—Aonde?

—Nos quatro cantos.

—Quantos sobrão?

—Dous apenas.

—Seremos nós.

—Precisais de mim?

—Sim.

Houve uma pequena pausa, em que um dos aventureiros parecia reflectir profundamente emquanto o outro esperava; por fim o primeiro ergueu a cabeça:

—Ruy, vós me sois dedicado?

—Dei-vos a prova.

—Preciso de um amigo fiel.

—Contai comigo.

—Obrigado.

O desconhecido apertou a mão de seu companheiro.

—Sabeis que amo uma mulher?

—Vós m'o dissestes.

—Sabeis que é mais por essa mulher do que por esse thesouro fabuloso que concebi este plano horrivel?

—Não; não o sabia.

—Pois é a verdade; pouco me importa a riqueza; sêde meu amigo; servi-me lealmente, e tereis a maior parte do meu thesouro.

—Fallai; que quereis que eu faça?

—Um juramento; mas um juramento sagrado, terrivel.

—Qual dizei!

—Hoje esta mulher me pertencerá; entretanto se por qualquer acaso eu vier a morrer, quero que...

O desconhecido hesitou:

—Quero que nenhum homem possa ama-la, que nenhum homem possa gozar a felicidade suprema que ella pode dar.

—Mas como?

—Matando-a!

Ruy sentio um calafrio.

—Matando-a, para que a mesma cova receba nossos dous corpos; não sei porque, mas parece-me que ainda cadaver, o contacto desta mulher deve ser para mim um gozo immenso.

—Loredano!... exclamou seu companheiro horrorisado.

—Sois meu amigo e sereis meu herdeiro! disse o italiano agarrando-lhe convulsivamente no braço. É a minha condição; se recusais, outro aceitará o thesouro que rejetais!

O aventureiro estava em luta com dous sentimentos oppostos; mas a ambição violenta, cega, esvairada, abafou o grito fraco da consciencia.

—Jurais? perguntou Loredano.

—Juro!... respondeu Ruy com a voz estrangulada.

—Avante então!

Loredano abrio a porta do seu cubiculo, e voltou algum tempo depois trazendo uma taboa longa e estreita que collocou sobre o despenhadeiro como uma especie de ponte suspensa.

—Ides segurar esta taboa, Ruy. Entrego em vossas mãos a minha vida, e nisto dou-vos a maior prova de confiança. Basta que deixeis esta prancha mover-se para que eu me precipite sobre os rochedos.

O italiano achava-se então no mesmo lugar que na noite da chegada, algumas braças distante da janella de Cecilia, onde não podia chegar por causa do angulo que formava o rochedo e o edificio.

A taboa foi collocada na direcção da janella; a primeira vez tinha-lhe bastado o seu punhal; agora porém necessitava de um apoio seguro, e do livre movimento de seus braços. Ruy collocou-se sobre a ponta da taboa, e segurando-se a um frechai do alpendre manteve immovel sobre o precipicio essa ponte pensil em que o italiano ia arriscar-se.

Quanto a este, sem hesitar, tirou as suas armas para ficar mais leve, descalçou-se, segurou a longa faca entre os dentes, e pôz o pé sobre a prancha.

—Esperar-me-heis do outro lado, disse o italiano.

—Sim, respondeu Ruy com a voz tremula.

A razão por que a voz de Ruy tremia, era um pensamento diabolico que começava a fermentar no seu espirito. Lembrou-lhe que tinha na mão Loredano e o seu segredo; que para vêr-se livre de um e senhor do outro, bastava afastar o pé e deixar a taboa inclinar sobre o abysmo.

Entretanto hesitava; não que o remorso anticipado lhe exprobasse o crime que ia commetter; já tinha-se afundado muito no vicio e na depravação para recuar. Mas o italiano exercia sobre seus complices tal prestigio e influencia tão poderosa, que Ruy não podia mesmo nesse momento esquivar-se a elles.

Loredano estava suspenso sobre o abysmo pela sua mão; podia salva-lo ou precipital-o no despenhadeiro; e comtudo dessa posição ainda elle impunha respeito ao aventureiro.

Ruy tinha medo: não comprehendia o motivo desse terror irresistivel; mas o sentia como uma obsessão e um pesadelo.

No emtanto a imagem da riqueza esplendida, brilhante, radiando galas e luzimentos, passava diante de seus olhos e o deslumbrava; um pouco de coragem, e seria o unico senhor do thesouro fabuloso, de cujo segredo era o italiano depositario.

Mas coragem é o que lhe faltava; por duas ou tres vezes o aventureiro teve um impeto de suspender-se ao frechai, e deixar a taboa rolar no abysmo; não passou de um desejo.

Venceu a final a tentação.

Teve um momento de desvario: os joelhos acurvárão-se; a taboa soffreu uma oscillação tão forte, que Ruy admirou-se como o italiano se tinha podido suster.

Então o medo desappareceu; foi substituido por uma especie de raiva e frenesi que se apoderou do aventureiro; o primeiro esforço lhe dera a ousadia, como a vista do sangue excita a féra.

Um segundo abalo mais forte agitou a taboa, que oscillou á borda do rochedo; porém não se ouvio o baque de um corpo; não se ouvio mais que o choque da madeira sobre a pedra. Ruy, desesperado, ia soltar a prancha, quando chegou-lhe ao ouvido, abafada e sumida, a voz do italiano, que apenas se percebia no silencio profundo da noite.

—Estais cansado, Ruy?... Podeis tirar a taboa: não preciso mais della.

O aventureiro ficou espavorido; decididamente esse homem era um espirito infernal que plainava sobre o abysmo, e escarnecia do perigo; um ente superiora quem a morte não podia tocar.

Elle ignorava que Loredano, com a sua previdencia ordinaria, quando entrara no seu cubiculo para tirar a prancha, tivera o cuidado de passar por um caibro do alpendre, que era de telhavan, a ponta de uma longa corda que cahio sobre a parte de fóra da parede uma braça distante da janella de Cecilia.

Assim, apenas deo o primeiro passo sobre a ponte improvisada, o italiano mio se descuidou de estender o braço e agarrar a ponta da corda, que logo atou á cintura: então se o apoio lhe faltasse ficaria suspenso no ar, e, embora com mais difficuldade, realisaria o seu intento.

Foi por isso que os dous abalos produzidos pelo seu complice não tiverão o resultado que elle esperava; logo de primeiro, Loredano adivinhou o que se passava n'alma de Ruy, mas não querendo dar-lhe a perceber que conhecia a sua traição, servio-se de um meio indirecto para dizer-lhe que estava em segurança, e que era inutil a tentativa de precipita-lo.

A taboa não fez mais um só movimento; conservou-se immovel como se estivera solidamente pregada ao rochedo.

Loredano adiantou-se, tocou a janella da moça, e com a ponta da faca conseguio levantar a aldraba; as gelosias abrindo-se afastárão as cortinas de cassa que vendavão o asylo do pudor e da innocencia.

Cecilia dormia envolta nas alvas roupas de seu leito; sua cabecinha loura apparecia entra as rendas finissimas sobre as quaes se desenrolavão os lindos anneis dourados de seus cabellos. O doce amortecimento de um somno calmo e sereno vendava seu rosto gracioso, como a sombra esvaecida que desmaia o semblante das virgens de Murillo; seu sorriso era apenas enlevo.

O talho de sua anagoa abrindo-se deixava entrever um collo de linhas puras, mais alvo do que a cambraia; e com a ondulação que a respiração branda imprimia ao seu peito, desenhavão-se sob a lençaria diaphana os seios mimosos.

Tudo isto resaltava como um quadro d'entre as ondas de uma colcha de damasco azul que nas suas largas dobras moldava sobre a alvura transparente do linho os contornos harmoniosos e puros.

Havia porém nessa belleza adormecida uma expressão indefinivel, um quer que seja de tão casto e innocente, que envolvia essa menina no seu somno tranquillo e parecia afugentar della um pensamento profano.

Chegando-se á beira daquelle leito, um homem ajoelharia antes como ao pé de uma santa, do que se animaria a tocar na ponta dessas roupagens brancas que protegião a innocencia.

Loredano aproximou-se tremendo, pallido e offegante; toda a força de sua vigorosa organisação, toda a sua vontade poderosa e irresistivel, estava ahi vencida, subjugada, diante de uma menina adormecida. O que sentio quando seu olhar ardente cahio sobre o leito, é difficil dizer, é talvez mesmo difficil de comprehender. Foi a um tempo suprema ventura e horrivel supplicio.

A paixão brutal o devorava escaldando-lhe o sangue nas veias e fazendo saltar-lhe o coração; entretanto o aspecto dessa menina que não tinha para sua defesa senão a sua castidade, o encadeava.

Sentia que o fogo queimava-lhe o seio; sentia que seus labios tinhão sêde de prazer; e a mão gelada e inerte não se podia erguer, e o corpo estava paralysado: apenas o olhar scintillava, e as narinas dilatadas aspiravão as emanações voluptuosas de que estava impregnada a sua atmosphera.

E a menina sorria no seu placido somno, enleiando-se talvez n'algum sonho gracioso, n'algum dos sonhos azues que Deus esparge como folhas de rosas sobre o leito das virgens.

Era o anjo em face do demonio; era a mulher em face da serpente; a virtude em face do vicio.

O italiano fez um esforço supremo, e passando a mão pelos olhos como para arrancar uma visão importuna, encaminhou-se a um bofete e acendeu uma vela de cera côr de rosa.

O aposento, até então esclarecido apenas por uma lamparina collocada sobre uma cantoneira, illuminou-se; e a imagem graciosa de Cecilia appareceu cercada de uma aureola.

Sentindo a impressão da luz sobre os olhos, a menina fez um movimento, e voltando um pouco o rosto para o lado opposto continuou o somno, que nem fôra interrompido.

Loredano passou entre o leito e a parede, e pôde então admira-la em toda a sua belleza; não se lembrava de nada mais, esquecêra o mundo e seu thesouro: nem pensava no rapto que ia praticar.

A rolinha que dormia sobre a commoda no seu ninho de algodão ergueu-se e agitou as azas; o italiano, despertado por este rumor, conheceu que já era tarde e que não tinha tempo a perder.


IV
NA TREVA

Alguns esclarecimentos são necessarios aos acontecimentos que acabavão de passar.

Quando Loredano viu-se obrigado pela ameaça de Alvaro a partir para o Rio de Janeiro, ficou succumbido; mas, depois de alguns momentos, um sorriso diabolico tinha enrugado os seus labios.

Este sorriso era uma idéa infame que luzira no seu espirito como a flamma desses fogos perdidos que brilhão no seio das trevas em noites de grande calma.

O italiano lembrou-se que no momento em que todos o suppunhão em viagem, podia preparar a execução do seu plano que elle realisaria naquella mesma noite.

Na conversa que tivera com Ruy Soeiro transmittio-lhe as suas instrucções, breves, simples e concisas; consistião em livrarem-se dos homens que podião pôr embaraços á sua empreza.

Para isso os seus complices recebêrão ordem de quando se recolhessem para dormir, collocarem-se ao lado de cada um dos homens da banda fieis a D. Antonio de Mariz.

Naquelle tempo e naquelles lugares não era possivel que os aventureiros tivessem cada um o seu cubiculo, poucos gozavão desse privilegio, e assim mesmo erão obrigados a partilhar o seu aposento com um companheiro: os outros dormião na vasta alpendrada que occupava quasi toda essa parte do edificio.

Ruy Soeiro tinha, conforme ás instrucções de Loredano, arranjado as cousas de tal modo que naquelle momento cada um dos aventureiros dedicados a D. Antonio de Mariz tinha a seu lado um homem que parecia adormecido, e que só esperava ouvir pronunciara senha convencionada para enterrar o seu punhal na garganta do seu companheiro.

Ao mesmo tempo havia pelos cantos da casa grandes molhos de palha secca collocados junto das portas ou mettidos pela beirada do telhado, e que só esperavão uma faisca para atear o incendio em todo o edificio.

Ruy Soeiro, com uma sagacidade e uma prudencia dignas de seu chefe, dispuzera tudo isto; parte durante o dia, e parte nas horas mortas da noite em que tudo estava recolhido.

Não se esqueceu da recommendação especial de Loredano, e offereceu-se voluntariamente a Ayres Gomes para fazer a guarda nocturna com um dos seus companheiros, visto recear-se ataque de inimigo; o digno escudeiro, que o conhecia como um dos mais valentes da banda, cahio no laço e aceitou o offerecimento.

Senhor do campo, o aventureiro pôde então acabar livremente os seus preparativos, e para mais segurança arranjou traça de ver-se livre do escudeiro, que podia de um momento para outro vir incommoda-lo.

Ayres Gomes em companhia de seu velho amigo mestre Nunes esvasiava uma botelha de vinho de Valverde que elles bebião lentamente, trago a trago, para assim disfarçarem a módica porção do liquido destinado a humedecer as guelas de dous formidaveis bebedores.

Mestre Nunes applicou voluptuosamente os labios á borda do cangirão, tomou uma vez de vinho, e dando um ligeiro estalinho com a lingua no céo da bocca, repimpou-se na tripeça em que estava sentado, cruzando as mãos sobre o seu ventre proeminente com uma beatitude celeste.

—Ora estou desde que cheguei para perguntar-vos uma cousa, amigo Ayres; e sempre a passar-me.—Não a deixeis passar agora, Nunes. Aqui me tendes para responder-vos.

—Dizei-me cá, quem é um tal que acompanhava D. Diogo, e a quem dais um diabo de nome que não é portuguez?

—Ah! Quereis fallar de Loredano? Um tunante?

—Conheceis este homem, Ayres?

—Por Deus! se elle é dos nossos!

—Quando pergunto se o conheceis, quero dizer se sabeis donde veio, quem era e o que fazia?

—Á fé que não! Appareceu-nos aqui um dia a pedir hospitalidade; e depois como sahisse um homem, ficou em lugar delle.

—E quando isto, se vos lembra?

—Esperai! Estou com os meus cincoenta e nove...

O escudeiro contou pelos dedos consultando o seu calendario, que era a sua idade.

—Foi por este tempo, ha um anno; principios de março.

—Estais bem certo? exclamou mestre Nunes.

—Certissimo: é conta que não engana. Mas que tendes?

Com effeito mestre Nunes se erguêra espantado.

—Nada! Não é possivel!

—Não acreditais?

—É outra cousa, Ayres! É um sacrilegio! uma obra de Satan! uma simonia horrenda!

—Que dizeis, homem, explicai-vos lá de uma vez.

Mestre Nunes conseguio restabelecer-se da sua perturbação, e contou ao escudeiro as suas desconfianças a respeito de Frei Angelo di Lucca e da sua morte, que nunca fôra possivel explicar: notou-lhe a coincidencia do desapparecimento do carmelita com o apparecimento do aventureiro, e o facto de serem da mesma nação.

—Depois, concluio Nunes, aquella voz, aquelle olhar!... Quando o vi hoje estremeci, e recuei espavorido julgando que o frade tinha sahido debaixo da terra.

Ayres Gomes levantou-se furioso, e saltando sobre o seu catre, agarrou o espadão que tinha á cabeceira.

—Que ides fazer? gritou mestre Nunes.

—Mata-lo, e desta vez ás direitas; que não torne. Esqueceis que vai longe?

—É verdade! murmurou o escudeiro rangendo os dentes de raiva.

Ouvio-se um ligeiro rumor na porta; os dous amigos o attribuîrão ao vento e não se voltárão sentados em face um do outro, continuárão em voz baixa a sua conversa interrompida pela brusca revelação de Nunes.

Entretanto fóra passavão-se cousas que devião excitar a attenção do digno escudeiro. O rumor que ouvira fôra produzido pela volta que Ruy dera á chave, fechando a porta.

O aventureiro tinha ouvido todo a conversa; a principio aterrado, cobrou animo, e lembrou-se que em todo o caso era bom estar senhor do segredo do italiano para qualquer emergencia futura. Confiado nessa excellente idéa, Ruy metteu a chave no peito do gibão, e foi reunir-se a seu companheiro que estava de vigia junto da escada.

Esperava por Loredano, que devia entrar na casa alta noite, para dirigir toda essa trama que havia urdido com uma intelligencia superior.

O italiano tinha facilmente illudido a D. Diogo de Mariz; sabia que o ardente cavalheiro ia de rota batida, e que não se demoraria em caminho por motivo algum.

A tres leguas do Paquequer, inventou um pretexto de ter-se quebrado a cilha de sua cavalgadura, e parou para arranja-la; emquanto D. Diogo e seus companheiros pensavão que os seguia de perto, elle tinha voltado sobre os passos, e escondido nas vizinhanças esperava que a noite se adiantasse.

Quando percebeu que tudo estava em silencio aproximou-se; trocou o signal convencionado, que era o canto da coruja; e introduzio-se furtivamente na habitação.

O mais já vimos. Sabendo que tudo estava preparado e prompto ao primeiro signal, Loredano deo começo á execução de seu projecto, e conseguio penetrar no quarto de Cecilia.

Tomar a menina nos braços, rapta-la, atravessar a esplanada, chegar á porta da alpendrada, e pronunciar a senha convencionada, era cousa que elle contava realisar n'um momento.

Quando Cecilia, arrancada de seu leito, lançasse um grito que elle não podesse abafar, isto pouco lhe importava; antes que alguem despertasse teria chegado ao outro lado, e então a uma palavra sua o fogo e o ferro virião em seu soccorro.

Ruy lançaria a chamma á palha preparada para este fim; e a faca de cada um dos seus complices se enterraria na gorja dos homens adormecidos.

Depois no meio desse horror e confusão, os vinte demonios acabarião a sua obra, e fugirião como os máos espiritos das lendas antigas, quando a primeira luz da alvorada terminava o sabbat infernal.

Ião ao Rio de Janeiro; ahi, ligados todos por um mesmo laço do crime, por um mesmo perigo e uma só ambição, Loredano contava ter nelles agentes fieis e dedicados para levar ao cabo a sua empreza.

Emquanto a traição solapava assim o socego, a felicidade, a vida e a honra desta familia, todos dormião tranquillos e descuidados; nem um presentimento os vinha advertir da desgraça que os ameaçava.

Loredano, graças á sua agilidade e á sua força, tinha conseguido chegar até ao leito da menina, sem que o menor rumor trahisse a sua presença, sem que na habitação alguem tivesse podido perceber o que se passava.

Certo pois do bom resultado, o italiano advertido pela innocente avezinha, que não sabia o mal que fazia, cuidou em consummar a sua obra. Abrio a commoda de Cecilia, tirou roupas de sedas e linho e fez de tudo isto um embrulho tão pequeno quanto era possivel; depois envolveu-o em uma das pelles que servião de tapete, e collocou n'uma cadeira, a geito de o poder apanhar com facilidade.

Era cousa original o pensamento deste homem. Ao passo que commettia um crime, tinha a lembrança delicada de querer suavisar a desgraça da menina fazendo que nada lhe faltasse na viagem incommoda que tinha de fazer.

Quando tudo estava preparado abrio a portinha que dava para o jardim, e estudou o caminho que tinha de seguir. Era preciso; porque apenas tomasse Cecilia nos braços devia partir e chegar d'uma só corrida direita, rapida e cega.

A porta ficava n'um canto do aposento, defronte do vão que havia entre o leito e a parede; collocado neste lugar, não tinha senão um movimento a fazer, agarrar a menina e lançar-se fóra do aposento.

Na occasião em que elle se aproximava ouvio-se um gemido, quasi um suspiro, abafado e cheio de angustia.

Os cabellos irriçárão-se sobre a fronte do italiano; gotas de suor frio e gelado sulcárão as suas faces pallidas e contrahidas.

A pouco e pouco foi sahindo do estupor que o paralysára, e volvendo lentamente ao redor de si uns esgares d'olhos allucinados.

Nada! Nem um insecto parecia acordado na solidão profunda da noite em que tudo dormia excepto o crime, o verdadeiro duende da terra, o máo genio das crenças de nossos pais.

Tudo estava em socego; até o vento parecia se ter abrigado no calice das flôres e adormecido neste berço perfumado, como n'um regaço de amante.

O italiano restabeleceu-se do violento abalo que soffrêra, deo um passo, e inclinou-se sobre o leito.

Cecilia sonhava neste momento.

Seu rosto esclareceu-se com uma expressão de alegria angelica; sua mãozinha, que repousava aninhada entre os seios, moveu-se com a indolencia e a molteza do somno, e recahio sobre a face.

A pequena cruz de esmalte que tinha ao collo e que estava agora presa entre os dedos da mão roçou-lhe os labios; e uma musica celeste escapou-se, como se Deus tivesse vibrado uma das cordas de sua harpa àolis.

Foi a principio um sorriso que adejou-lhe nos labios; depois o sorriso colheu as azas e formou um beijo por fim o beijo entreabrio-se como uma flôr e exhalou um suspiro perfumado.

—Pery!

O collo arfou docemente, e a mão descahindo foi de novo aninhar-se entre o talho da sua anagoa de cambraia.

O italiano ergueu-se pallido.

Não se animava a tocar naquelle corpo tão casto, tão puro; não podia fitar aquella physionomia radiante de innocencia e de candura.

Mas o tempo urgia.

Fez um esforço supremo sobre si mesmo; firmou o joelho na bordado leito, fechou os olhos, estendeu as mãos.


V
DEOS DISPÕE

O braço de Loredano estendeu-se sobre o leito; porém a mão que se adiantava e ia tocar o corpo de Cecilia estacou no meio do movimento, e subitamente impellida foi bater de encontro á parede.

Uma setta, que não se podia saber d'onde vinha, atravessara o espaço com a rapidez de um raio, e antes que se ouvisse o sibillo forte e agudo pregára a mão do italiano no muro do aposento.

O aventureiro vacillou, e abateu-se por detrás da cama; era tempo, porque uma segunda setta, despedida com a mesma força e a mesma rapidez, cravava-se no lugar onde ha pouco se projectava a sombra de sua cabeça.

Passou-se então ao redor da innocente menina adormecida na isenção de sua alma pura uma scena horrivel, porém silenciosa.

Loredano nos transes da dôr por que passava comprehendêra o que succedia; tinha adivinhado naquella setta que o ferira a mão de Pery; e sem ver, sentia o indio aproximar-se terrivel de odio, de vingança, de colera e desespero pela offensa que acabava de soffrer sua senhora.

Então o reprobo teve medo; erguendo-se sobre os joelhos arrancou convulsivamente com os dentes a setta que pregava sua mão á parede, e precipitou-se para o jardim, cego, louco e delirante.

Nesse mesmo instante, dous segundos talvez depois que a ultima flecha cahira no aposento, a folhagem do oleo que ficava fronteiro á janella de Cecilia agitou-se e um vulto embalançando-se sobre o abysmo, suspenso por um fragil galho da arvore, veio cahir sobre o peitoril.

Ahi agarrando-se á hombreira saltou dentro do aposento com uma agilidade extraordinaria; a luz dando em cheio sobre elle desenhou o seu corpo flexivel e as suas fórmas esbeltas.

Era Pery.

O indio avançou-se para o leito, e vendo sua senhora salva respirou; com effeito a menina, a meio despertada pelo rumor da fugida de Loredano, voltára-se do outro lado e continuára o somno forte e reparador como é sempre o somno da juventude e da innocencia.

Pery quiz seguir o italiano e mata-lo, como já tinha feito aos seus dous complices; mas resolveu não deixar a menina exposta a um novo insulto, como o que acabava de soffrer, e tratou antes de velar sobre sua segurança e socego.

O primeiro cuidado do indio foi apagar a vela, depois fechando os olhos aproximou-se do leito e com uma delicadeza extrema puxou a colcha de damasco azul até ao collo da menina.

Parecia-lhe uma profanação que seus olhos admirassem as graças e os encantos que o pudor de Cecilia trazia sempre vendados; pensava que o homem que uma vez tivesse visto tanta belleza, nunca mais devia ver a luz do dia.

Depois desse primeiro desvelo, o indio restabeleceu a ordem no aposento; deitou a roupa na commoda, fechou a gelosia e as abas da janella, lavou as nodoas de sangue que ficárão impressas na parede e no soalho; e tudo isto com tanta solicitude, tão subtilmente, que não perturbou o somno da menina.

Quando acabou o seu trabalho, aproximou-se de novo do leito, e á luz frouxa da lamparina contemplou as feições mimosas e encantadoras de Cecilia.

Estava tão alegre, tão satisfeito de ter chegado a tempo de salva-la de uma offensa e talvez de um crime; era tão feliz de vê-la tranquilla e risonha sem ter soffrido o menor susto, o mais leve abalo, que sentio a necessidade de exprimir-lhe por algum modo a sua ventura.

Nisto seus olhos abaixando-se descobrirão sobre o tapete da cama dous pantufos mimosos forrados de setim e tão pequeninos que parecião feitos para os pés de uma criança; ajoelhou e beijou-os com respeito, como se forão reliquia sagrada.

Erão então perto de quatro horas; pouco tardava para amanhecer; as estrellas já ião se apagando a uma e uma; e a noite começava a perder o silencio profundo da natureza quando dorme.

O indio fechou por fóra a porta do quarto que dava para o jardim, e mettendo a chave na cintura, sentou-se na soleira como o cão fiel que guarda a casa de seu senhor, resolvido a não deixar ninguem aproximar-se.

Ahi reflectio sobre o que acabava de passar; e accusava-se a si mesmo de ter deixado o italiano penetrar no aposento de sua senhora; Pery, porém calumniava-se, porque só a Providencia podia ter feito nesta noite mais do que elle; porque tudo quanto era possivel á intelligencia, á coragem, á sagacidade e á força do homem, o indio havia realisado.

Depois da partida de Loredano, e da conversa que teve com Alvaro, certo de que sua senhora já não corria perigo, e de que os dous complices do italiano ião ser expulsos como elle, o indio não pensando mais senão no ataque dos Aymorés partio immediatamente.

O seu pensamento era ver se descobrisse pelas vizinhanças do Paquequer indicios da passagem de alguma tribu da grande raça guarany a que elle pertencia; seria um amigo e um alliado para D. Antonio de Mariz.

O odio inveterado que havia entre as tribus da grande raça e a nação degenerada dos Aymorés, justificava a esperança de Pery; mas infelizmente, tendo percorrido todo o dia a floresta, não encontrou o menor vestigio do que procurava.

O fidalgo estava pois reduzido ás suas proprias forças; mas embora fossem estas pequenas, o indio não desanimou; tinha consciencia de si; e sabia que na ultima extremidade a sua dedicação por Cecilia lhe inspiraria meios de salvar a ella e a tudo que ella amava.

Voltou á casa já noite fechada: foi ter com Alvaro; perguntou-lhe o que era feito dos dous aventureiros; o cavalheiro disse-lhe que D. Antonio de Mariz recusára crer na accusação.

De facto, o fidalgo leal, habituado ao respeito e á fidelidade de seus homens, não admittia que se concebesse uma suspeita sem provas; entretanto, como a palavra de Pery tinha para elle toda a valia, ficára de ouvir de sua bocca a narração do que presenciára, para conhecer o peso que devia dar a semelhante accusação.

Pery retirou-se inquieto e arrependido de não ter persistido no seu primeiro projecto; emquanto estes dous homens que elle já suppunha expulsos estivessem ali, sabia que um perigo pairava sobre a casa.

Assim resolveu não dormir; tomou o seu arco e sentou-se na porta de sua cabana; apezar de possuir a clavina que lhe dera D. Antonio, o arco era a arma favorita de Pery; não demandava tempo para carregar; não fazia o menor estrepito; lançava quasi instantaneamente dous, tres tiros: e sua flecha era tão terrivel e tão certeira como a bala.

Passado muito tempo o indio ouvio cantar uma coruja do lado da escada; esse canto causou-lhe estranheza por duas razões: a primeira, porque era mais sonoro do que é o cacarejar daquella ave agoureira; a segunda, porque em vez de partir do cimo de uma arvore sahia do chão.

Esta reflexão o fez levantar; desconfiou da coruja que tinha habitos differentes de suas companheiras; quiz conhecer a razão desta singularidade.

Viu do outro lado da esplanada tres vultos que atravessavão ligeiramente; isto augmentou a sua desconfiança; os homens de vigia erão ordinariamente dous e não tres.

Seguio-os de longe; mas quando chegou ao pateo, não viu senão um dos homens que entrava na alpendrada; os outros tinhão desapparecido.

Pery procurou-os por toda parte e não os viu; estavão occultos pelo pilar que se elevava na ponta do rochedo, e não lhe era possivel descobri-los.

Suppondo que tivessem tambem entrado no alpendre, o indio agachou-se e penetrou no interior; de repente a sua mão tocou uma lamina fria que conheceu immediatamente ser a folha de um punhal.

—És tu, Ruy? perguntou uma voz sumida.

Pery emmudeceu; mas de chofre aquelle nome de Ruy lembrou-lhe Loredano e o seu projecto; percebeu que se tramava alguma cousa: e tomou um partido.

—Sim! respondeu com a voz quasi imperceptivel.

—Já é hora?

—Não.

—Todos dormem.

Emquanto trocavão essas duas perguntas, a mão de Pery correndo pela lamina de aço tinha conhecido que outra mão segurava o cabo do punhal.

O indio sahio do alpendre, e dirigio-se ao quarto de Ayres Gomes; a porta estava fechada, e junto della tinhão collocado um grande montão de palha.

Tudo isto denunciava um plano prestes a realisar-se; Pery comprehendia, e tinha medo de já não ser tempo para destruir a obra dos inimigos.

Que fazia aquelle homem deitado que fingia dormir, e que tinha o punhal desembainhado na mão como se estivesse prompto a ferir? Que significava aquella pergunta da hora e aquelle aviso de que todos dormião? Que queria dizer a palha encostada á porta do escudeiro?

Não restava duvida; havia ali homens que esperavão um signal para matarem seus companheiros adormecidos, e deitarem fogo á casa; tudo estava perdido se o plano não fosse immediatamente destruido.

Cumpria acordar os que dormião, preveni-los do perigo que corrião, ou ao menos prepara-los para se defenderem e escaparem de uma morte certa e inevitavel.

O indio agarrou convulsamente a cabeça com as duas mãos como se quizesse arrancar á força de seu espirito agitado e em desordem um pensamento salvador. Seu largo peito dilatou-se; uma idéa feliz luzira de repente na confusão de tantos pensamentos encontrados que fermentavão no cerebro, e reanimára sua coragem e força.

Era uma idéa original.

Pery lembrára-se que o alpendre estava cheio de grandes talhas e vasos enormes contendo agua potavel, vinhos fermentados, licores selvagens de que os aventureiros fazião sempre uma ampla provisão.

Correu de novo ao saguão, e encontrando a primeira talha tirou a torneira; o liquido começou a derramar-se pelo chão; ia passar á segunda quando a voz, que já lhe tinha fallado, soou de novo, baixa mas ameaçadora.

—Quem vai lá?...

Pery comprehendeu que a sua idéa ia ficar sem effeito, e talvez não servisse senão de apresar o que elle queria evitar.

Não hesitou pois; e quando o aventureiro que fallava erguia-se, sentio duas tenazes vivas que cahião sobre o seu pescoço e o estrangulavão como uma golilha de ferro, antes que podesse soltar um grito.

O indio deitou o corpo hirto sobre o chão sem fazer o menor rumor, e consumou a sua obra; todas as talhas do alpendre esvasiavão-se a pouco e pouco e inundavão o chão.

Dentro de um segundo a frialdade acordaria todos os homens adormecidos, e os obrigaria a sahir do alpendre; era o que Pery esperava.

Livre do maior perigo, o indio rodeou a casa para ver se tudo estava em socego; e teve então occasião de notar que por todo o edificio tinhão Aposto feixes da palha para atear um incendio.

Pery inutilisando estes preparativos, chegou ao canto da casa que ficava defronte de sua cabana; parecia procurar alguem. Ahi ouvio a respiração offegante de um homem cosido com a parede junto do jardim de Cecilia.

O indio tirou a sua faca; a noite estava tão escura que era impossivel descobrir a menor sombra, o menor vulto entre as trevas.

Mas elle conheceu Ruy Soeiro.

Pery tinha o ouvido subtil e delicado, e o faro do selvagem que dispensa a vista; o som da respiração servia-lhe de alvo; escutou um momento, ergueu o braço, e a faca enterrando-se na bocca da victima cortou-lhe a garganta.

Nem um gemido escapou da massa inerte que se estorceu um momento e quedou de encontro ao muro.

Pery apanhou o arco que encostára á parede, e voltando-se para lançar um olhar sobre o quarto de Cecilia, estremeceu.

Acabava de ver pela soleira da porta o reflexo vivo de uma luz; e logo depois sobre a folhagem do oleo um clarão que indicava estar a janella aberta.

Ergueu os braços com um desespero e uma angustia inexprimivel; estava a dous passos de sua senhora e entretanto um muro e uma porta o separavão delia, que talvez áquella hora corria um perigo imminente.

Que ia fazer? Precipitar-se de encontro a essa porta quebra-la, espedaça-la? Mas podia aquella luz não significar cousa alguma, e a janella ter sido aberta por Cecilia.

Este ultimo pensamento tranquillisou-o, tanto mais quando nada revelava a existencia de um perigo, quando tudo estiva em socego no jardim e no quarto da menina.

Lançou-se para a cabana, e segurando-se ás folhas da palmeira galgou o ramo do oleo, e aproximou-se para ver porque sua senhora estava acordada áquella hora.

O espectaculo que se apresentou diante de seus olhos fez correr-lhe um calafrio pelo corpo; a gelosia aberta deixou-lhe ver a menina adormecida, e o italiano que tendo aberto a porta do jardim dirigia-se ao leito.

Um grito de desespero e de agonia ia romper-lhe do seio; mas o indio mordendo os labios com força reprimio a voz, que se escapou apenas n'um som rouco e plangente. Então prendendo-se á arvore com as pernas, o indio estendeu-se ao longo do galho e esticou a corda do arco.

O coração batia-lhe violentamente; e por um momento o seu braço tremeu só com a idéa de que a sua flecha tinha de passar perto de Cecilia.

Quando porém a mão do italiano se adiantou e ia tocar o corpo da menina, não pensou, não viu mais nada senão esses dedos prestes a mancharem com o seu contacto o corpo de sua senhora, não se lembrou senão dessa horrivel profanação.

A flecha partio rapida, prompta, e veloz como o seu pensamento; a mão do italiano estava pregada ao muro.

Foi só então que Pery reflectio que teria sido mais acertado ferir essa mão na fonte da vida que a animava; fulminar o corpo a que pertencia esse braço: a segunda setta partio sobre a primeira, e o italiano teria deixado de existir se a dôr não o obrigára a curvar-se.


VI
REVOLTA

Quando Pery acabou de reflectir sobre o que passara ergueu-se, abrio de novo a porta, fechou-a por dentro, e seguio pelo corredor que ia do quarto de Cecilia ao interior da casa.

Estava tranquillo sobre o futuro; sabia que Bento Simões e Ruy Soeiro não o incommodarião mais, que o italiano não lhe podia escapar, e que áquella hora todos os aventureiros devião estar acordados; mas julgou prudente prevenir D. Antonio de Mariz do que occorria.

A este tempo Loredano já tinha chegado á alpendrada, onde o esperava uma nova e terrivel sorpreza, uma ultima decepção.

Lançando-se do quarto de Cecilia, sua intenção era ganhar o fundo da casa, pronunciar a senha convencionada, e senhor do campo voltar com seus complices, raptar a menina, e vingar-se de Pery.

Mal sabia porém que o indio tinha destruido toda a sua machinação; chegando ao pateo viu o alpendre illuminado por fachos, e todos os aventureiros de pé cercando um objecto que não pôde distinguir.

Aproximou-se e descobrio o corpo de seu complice Bento Simões, que jazia no chão alagado do pavimento: o aventureiro tinha os olhos saltados das orbitas, a lingua sahida da bocca, o pescoço cheio de contusões; todos os signaes emfim de uma estrangulação violenta.

De livido que estava o italiano tornou-se verde; procurou com os olhos a Ruy Soeiro e não o viu; decididamente o castigo da Providencia cahia sobre as suas cabeças, conheceu que estava irremediavelmente perdido, e que só a audacia e o desespero o podião salvar.

A extremidade em que se achava inspirou-lhe uma idéa digna delle: ia tirar partido para seus fins daquelle mesmo facto que parecia destrui-los; ia fazer do castigo uma arma de vingança.

Os aventureiros espantados sem comprehenderem o que vião, olhavão-se e murmura vão em voz baixa fazendo supposições sobre a morte do seu companheiro. Uns despertados de sobresalto pela agua que corria das talhas, outros que não dormião apenas admirados, se havião erguido, e no meio de um côro de imprecações e blasphemias acendêrão fachos para ver a causa daquella inundação.

Foi então que descobrirão o corpo de Bento Simões, e ficárão ainda mais surprendidos; os complices temendo que aquillo não fosse um começo de punição, os outros indignados pelo assassinato de seu companheiro.

Loredano percebeu o que passava no espirito dos aventureiros:

—Não sabeis o que significa isto? disse elle.

—Oh! não! explicai-nos! exclamarão os aventureiros.

—Isto significa, continuou o italiano, que ha nesta casa uma vibora, uma serpente que nós alimentamos no nosso seio, e que nos morderá a todos com o seu dente envenenado.

—Como?... Que quereis dizer?... Fallai!...

—Olhai, disse o frade apontando para o cadaver e mostrando a sua mão ferida; eis a primeira victima, e a segunda que escapou por um milagre; a terceira... Quem sabe o que é feito de Ruy Soeiro?

—É verdade!... Onde está Ruy? disse Martim Vaz.

—Talvez morto tambem!

—Depois delle virá outro e outro até que sejamos exterminados um por um; até que todos os christãos tenhão sido sacrificados.

—Mas por quem?... Dizei o nome do vil assassino! É preciso um exemplo! O nome!...

—E não adivinhais? respondeu o italiano. Não adivinhais quem nesta casa póde desejar a morte dos brancos, e a destruição da nossa religião? Quem senão o herege, o gentio, o selvagem traidor e infame?

—Pery?... exclamarão os aventureiros.

—Sim, esse indio que conta assassinar-nos a todos para saciar a sua vingança!

—Não ha de ser assim como dizeis, eu vos juro, Loredano! exclamou Vasco Affonso.

—Bofé! gritou outro, deixai isto por minha conta. Não vos dê cuidado!

—E não passa desta noite. O corpo de Bento Simões pede justiça.

—E justiça será feita.

—Neste mesmo instante.

—Sim; agora mesmo. Eia! Segui-me.

Loredano ouvia estas exclamações rapidas que denunciavão como a exacerbação ia lavrando com intensidade; quando porém os aventureiros quizerão lançar-se em procura do indio, elle os conteve com um gesto.

Não lhe convinha isto; a morte de Pery era cousa accidental para elle; o seu fim principal era outro, e esperava consegui-lo facilmente.

—O que ides fazer? perguntou imperativamente aos seus companheiros.

Os aventureiros ficárão pasmados com semelhante pergunta.

—Ides mata-lo?...

—Mas de certo!

—E não sabeis que não podereis fazê-lo? Que elle é protegido, amado, estimado por aquelles que pouco se importão se morremos ou vivemos?

—Seja embora protegido, quando é criminoso...

—Como vos illudis! Quem o julgará criminoso? Vós? Pois bem; outros o julgarão innocente e o defenderão; e não tereis remedio senão curvar a cabeça e calar-vos.

—Oh! isso é de mais!

—Julgais que somos alimarias que se podem matar impunemente! retrucou Martim Vaz.

—Sois peiores que alimarias; sois escravos!

—Por São Braz, tendes razão, Loredano.

—Vereis morrer vossos companheiros assassinados infamemente, e não podereis vinga-los; e sereis obrigados a tragar até as vossas queixas, porque o assassino é sagrado! Sim, não o podereis tocar, repita.

—Pois bem; eu vo-lo mostrarei!

—E eu! gritou toda a banda.

—Qual é vossa tenção? perguntou o italiano.

—A nossa tenção é pedirmos a D. Antonio de Mariz que nos entregue o assassino de Bento.

—Justo! E se elle recusar, estamos desligados do nosso juramento e faremos justiça pelas nossas mãos.

—Procedeis como homens de brio e pundonor: liguemo-nos todos e vereis que obteremos reparação; mas para isto é preciso firmeza e vontade. Não percamos tempo. Quem de vós se incumbe de ir como parlamentario a D. Antonio?

Um aventureiro dos mais audazes e turbulentos da banda offereceu-se: chamava-se João Feio.

—Serei eu!

—Sabeis o que lhe deveis dizer?

—Oh! ficai descansado. Ouvirá boas!

—Ides já?

—Neste instante.

Uma voz calma, sonora e de grave entonação, uma voz que fez estremecer todos os aventureiros, soou na entrada do alpendre:

—Não é preciso irdes, pois que vim. Aqui me tendes.

D. Antonio de Mariz, calmo e impassivel, adiantou-se até o meio do grupo, e cruzando os braços sobre o peito, volveu lentamente pelos aventureiros o seu olhar severo.

O fidalgo não tinha uma só arma; e entretanto o aspecto de sua physionomia veneravel, a firmeza de sua voz e a altivez de seu gesto nobre bastárão para fazer curvar a cabeça de todos esses homens que ameaçavão.

Advertido por Pery dos acontecimentos que tinhão tido lugar naquelle noite, D. Antonio de Mariz ia sahir, quando apparecérão Alvaro e Ayres Gomes.

O escudeiro, que depois de sua conversa com mestre Nunes tinha adormecido, fôra despertado de repente pelas imprecações e gritos que soltavão os aventureiros quando a agua começou a invadir as esteiras em que esta vão deitados.

Admirado desse rumor extraordinario, Ayres bateu o fuzil, acendeu a vela, e dirigio-se para a porta para conhecer o que pertubava o seu somno: a porta, como sabemos, estava fechada e sem chave.

O escudeiro esfregou os olhos para certificar-se do que via, e acordando Nunes, perguntou-lhe quem tomara aquella medida de precaução: seu amigo ignorava como elle.

Nesse momento ouvia-se a voz do italiano que excitava os aventureiros á revolta; Ayres Gomes percebeu então do que se tratava.

Agarrou mestre Nunes, encostou-o á parede como se fosse uma escada, e sem dizer palavra trepou do catre sobre os seus hombros, e levantando as telhas com a cabeça enfiou por entre as ripas dos caibros.

Apenas ganhou o telhado, o escudeiro pensou no que devia fazer; e assentou que o verdadeiro era dar parte a Alvaro e ao fidalgo, a quem cabia tomar as providencias que o caso pedia.

D. Antonio de Mariz sem se pertubar ouvio a narração do escudeiro, como tinha ouvido a do indio.

—Bem, meus amigos! sei o que me cumpre fazer. Nada de rumor; não perturbemos o socego da casa; estou certo que isto passará. Esperai-me aqui.

—Não posso deixar que vos arrisqueis só, disse Alvaro dando um passo para segui-lo.

—Ficai; vós e esses dous amigos dedicados velareis sobre minha mulher, Cecilia e Isabel. Nas circumstancias em que nos achamos, assim é preciso.

—Consenti ao menos que um de nós vos acompanhe?

—Não, basta a minha presença; emquanto que aqui todo o vosso valor e fidelidade não bastão para o thesouro que confio á vossa guarda.

O fidalgo tomou o seu chapéo, e poucos momentos depois apparecia imprevistamente no meio dos aventureiros, que tremulos, cabisbaixos, corridos de vergonha, não ousavão proferir uma palavra.

—Aqui me tendes! repetio o cavalheiro. Dizei o que quereis de D. Antonio de Mariz, e dizei-o claro e breve. Se fôr de justiça, sereis satisfeitos; se fôr uma falta, tereis a punição que merecerdes.

Nem um dos aventureiros ousou levantar os olhos; todos emmudecêrão.

—Calais-vos?... Passa-se então aqui alguma cousa que não vos atreveis a revelar? Acaso ver-me-hei obrigado a castigar severamente um primeiro exemplo de revolta e desobediencia? Fallai? Quero saber o nome dos culpados!

O mesmo silencio respondeu ás palavras firmes e graves do velho fidalgo.

Loredano hesitava desde o principio desta scena; não tinha a coragem necessaria para apresentar-se em face de D. Antonio; mas tambem sentia que se elle deixasse as cousas marcharem pela maneira por que ião, estava infallivelmente perdido.

Adiantou-se:

—Não ha aqui culpados, Sr. D. Antonio de Mariz, disse o italiano animando-se progressivamente; ha homens que são tratados como cães; que são sacrificados a um capricho vosso, e que estão resolvidos a reivindicarem os seus fóros de homens e de christãos!

—Sim! gritárão os aventureiros reanimando-se. Queremos que se respeite a nossa vida!

—Não somos escravos!

—Obedecemos, mas não nos captivamos.

—Valemos mais que um herege!

—Temos arriscado a nossa existência para defender-vos!

D. Antonio ouvio impassivel todas estas exclamações que ião subindo gradualmente ao tom da ameaça.

—Silencio, vilões! Esqueceis que D. Antonio de Mariz ainda tem bastante força para arrancar a lingua que o pretendesse insultar! Miseraveis, que lembrais o dever como um beneficio! Arriscastes a vossa vida para defender-me?... E qual era vossa obrigação, homens que vendeis o vosso braço e sangue ao que melhor paga. Sim'! Sois menos que escravos, menos que cães, menos que féras! Sois traidores infames e refeces!... Mereceis mais do que a morte; mereceis o desprezo.

Os aventureiros, cuja raiva fermentava surdamente, não se contiverão mais; das palavras de ameaça passárão ao gesto.

—Amigos! gritou Loredano aproveitando habilmente o ensejo. Deixareis que vos insultem atrozmente, que vos cuspão o desprezo na cara? E por que motivo!...

—Não! Nunca! vociferarão os aventureiros furiosos.

Desembainhando as adagas estreitarão o circulo ao redor de D. Antonio de Mariz; era uma confusão de gritos, injurias, ameaças, que corria por todas as boccas, emquanto os braços suspensos hesitavão ainda em lançar o golpe.

D. Antonio de Mariz, sereno, magestoso, calmo, olhava todas essas physionomias decompostas com um sorriso de escarneo; e sempre altivo e sobranceiro, parecia sob os punhaes que o ameaçavão, não a victima que ia ser immolada, mas o senhor que mandava.


VII
OS SELVAGENS

Os aventureiros com o punhal erguido ameaçavão; mas não se animavão a romper o estreito circulo que os separava de D. Antonio de Mariz.

O respeito, essa força moral tão poderosa, dominava ainda a alma daquelles homens cegos pela cólera e pela exaltação; todos esperavão que o primeiro ferisse; e nem um tinha a coragem de ser o primeiro.

Loredano conheceu que era necessario um exemplo; o desespero de sua posição, as paixões ardentes que tumultuavão em seu coração, derão-lhe o delirio que suppre o valor nas circumstancias extremas.

O aventureiro apertou convulsivamente o cabo de sua faca, e fechando os olhos e dando um passo ás cegas, ergueu a mão para desfechar o golpe.

O fidalgo com um gesto nobre afastou o seio do gibão, e descobrio o peito; nem um tremor imperceptivel agitou os musculos de seu rosto; sua fronte alta conservou a mesma serenidade; o seu olhar limpido e brilhante não se turvou.

Tal era a influencia magnetica que exercia essa coragem nobre e altiva, que o braço do italiano tremeu, e a ponta do ferro tocando a vestia do fidalgo paralysou os dedos hirtos do assassino.

D. Antonio sorrio com desdem; e abaixando a sua mão fechada sobre o alto da cabeça de Loredano, abateu-o a suas plantas como uma massa bruta e inerte: então erguendo a ponta do pé á fronte do italiano, o estendeu de costas sobre o pavimento.

O baque do corpo no chão echoou no meio de um silencio profundo; todos os aventureiros, mudos e estaticos, parecião querer sumir-se pelo seio da terra.

—Abaixai as armas, miseraveis! O ferro que ha de ferir o peito de D. Antonio de Mariz não será manchado pela mão cobarde e traiçoeira de vis assassinos! Deus reserva uma morte justa e gloriosa áquelles que vivêrão uma vida honrada!

Os aventureiros aturdidos embainhárão machinalmente os punhaes; aquella palavra sonora, calma e firme tinha um accento tão imperativo, uma tal força de vontade, que era impossivel resistir.

—O castigo que vos espera ha de ser rigoroso; não deveis contar com a clemencia nem com o perdão: quatro d'entre vós á sorte soffrerão a pena de homizio; os outros farão o officio dos executores da alta justiça. Bem vêdes que tanto a pena como o officio são dignos de vós!

O fidalgo pronunciou estas palavras com um soberano desprezo, e encarou os aventureiros como para ver se d'entre elles partia alguma reclamação, algum murmurio de desobediencia; mas todos esses homens, ha pouco furiosos, estavão agora humildes, e cabisbaixos.

—Dentro de uma hora, continuou o cavalheiro apontando para o corpo de Loredano, este homem será justiçado á frente da banda; para elle não ha julgamento; eu o condemno como pai, como chefe, como um homem que mata o cão ingrato que o morde. É ignobil de mais para que o toque com as minhas armas; entrego-o ao baraço e ao cutelo.

Com a mesma impassibilidade e o mesmo socego que conservava desde o momento em que apparecêra imprevistamente, o velho fidalgo atravessou por entre os aventureiros immoveis e respeitosos, e caminhou para a sahida.

Ahi voltou-se; e levando a mão ao chapéo descobrio a sua bella cabeça encanecida, que destacava sobre o fundo negro da noite e no meio do clarão avermelhado das tochas com um vigor de colorido admiravel.

—Se algum de vós der o menor signal de desobediencia; se uma das minhas ordens não fôr cumprida prompta e fielmente; eu, D. Antonio de Mariz, vos juro por Deus e pela minha honra, que desta casa não sahirá um homem vivo. Sois trinta; mas a vossa vida, de todos vós, tenho-a na minha mão; basta-me um movimento para exterminar-vos, e livrar a terra de trinta assassinos.

No momento em que o fidalgo ia retirar-se appareceu Alvaro pallido de emoção, mas brilhante de coragem e indignação.

—Quem se animou aqui a erguer a voz para D. Antonio de Mariz? exclamou o moço.

O velho fidalgo sorrindo com orgulho pôz a mão no braço do cavalheiro.

—Não vos occupeis disto, Alvaro; sois bastante nobre para vingar uma affronta desta natureza, e eu bastante superior para não ser offendido por ella.

—Mas, senhor, cumpre que se dê um exemplo!

—O exemplo vai ser dado, e como cumpre. Aqui não ha senão culpados e executores da pena. O lugar não vos compete. Vinde!

O moço não resistio, e acompanhou D. Antonio de Mariz, que se dirigio lentamente á sala, onde achou Ayres Gomes.

Quanto a Pery, voltára ao jardim de Cecilia, decidido a defender sua senhora contra o mundo inteiro.

O dia vinha rompendo.

O fidalgo chamou Ayres Gomes e entrou com elle no seu gabinete de armas, onde tiverão uma longa conferencia de meia hora.

O que ahi se passou ficou um segredo entre Deus e estes dous homens; apenas Alvaro notou, quando a porta do gabinete se abrio, que D. Antonio estava pensativo, e o escudeiro livido como um morto.

Neste momento ouvio-se um pequeno rumor na entrada da sala; quatro aventureiros parados, immoveis, esperavão uma ordem do fidalgo para se aproximarem.

D. Antonio fez-lhes um signal; e elles vierão ajoelhar-se a seus pés; as lagrimas rolavão por essas faces queimadas pelo sol; e a palavra tremia balbuciando nesses labios pallidos que ha instantes vomitavão ameaças:

—Que significa isto? perguntou o cavalheiro com severidade.

Um dos aventureiros respondeu:

—Vimo-nos entregar em vossas mãos, preferimos appellar para o vosso coração do que recorrer ás armas para escaparmos á punição de nossa falta.

—E vossos companheiros? replicou o fidalgo.

—Deus lhes perdoe, senhor, a enormidade do crime que vão commetter. Depois que vos retirastes tudo mudou; preparão-se para atacar-vos!

—Que venhão, disse D. Antonio, eu os receberei. Mas vós porque não os acompanhais? Não sabeis que D. Antonio de Mariz perdoa uma falta, mas nunca uma desobediencia?

—Embora, disse o aventureiro que fallava em nome de seus camaradas; aceitaremos de bom grado o castigo que nos impozerdes. Mandai, que obedeceremos. Somos quatro contra vinte e tantos; dai-nos essa punição de morrer defendendo-vos, de reparar pela nossa morte um momento de hallucinação!... É a graça que vos pedimos!

D. Antonio olhou admirado os homens que estavão ajoelhados a seus pés; e reconheceu nelles os restos dos seus antigos companheiros de armas no tempo em que o velho fidalgo combatia os inimigos de Portugal.

Sentio-se commovido; sua alma grande, inabalavel no meio do perigo, orgulhosa em face da ameaça, deixava-se facilmente dominar pelos sentimentos nobres e generosos.

Essa prova de fidelidade que davão aquelles quatro homens na occasião da revolta geral dos seus companheiros; a acção que acabavão de praticar, e o sacrificio com que desejavão expiar a sua falta, elevou-os no espirito do fidalgo.

—Erguei-vos. Reconheço-vos!... Já não seis os traidores que ha pouco reprehendi; sois os bravos companheiros que pelejastes a meu lado; o que fazeis agora esquece o que fizestes ha uma hora. Sim!... Mereceis que morramos juntos, combatendo ainda uma vez na mesma fileira. D. Antonio de Mariz vos perdoa. Podeis levantar a cabeça e trazê-la alta!

Os aventureiros erguêrão-se radiantes do perdão que o nobre fidalgo tinha lançado sobre suas cabeças; todos elles estavão promptos a dar sua vida para salvarem o seu chefe.

O que tinha occorrido depois da sahida de D. Antonio do alpendre, seria longo de descrever.

Loredano tornando a si da vertigem que lhe causara o atordoamente e a violencia da queda, soube da ordem que havia a seu respeito. Não era preciso tanto para que o audaz aventureiro recorresse á sua eloquencia afim de excitar de novo a revolta.

Pintou a posição de todos como desesperada, attribuio o seu castigo e as desgraças que ião succeder ao fanatismo que havia por Pery; esgotou emfim os recursos de sua intelligencia.

D. Antonio não estava mais ahi para conter com a sua presença a colera que ia fermentando, a excitação que começava a lavrar, a principio surdamente, as queixas e os murmurios que a final fizerão côro.

Um incidente veio atear a chamma que lastrava; Pery, apenas começou a romper o dia, via a alguma distancia do jardim o cadaver do Ruy Soeiro; e temendo que sua senhora acordando não presenciasse este triste espectaculo, tomou o corpo, e atravessando a esplanada, veio atira-lo no meio do pateo.

Os aventureiros empallidecêrão, e ficárão estupefactos; depois rompeu a indignação feroz, raivosa, delirante; estavão como possessos de furor e vingança. Não houve mais hesitação; a revolta pronunciou-se; apenas o pequeno grupo de quatro homens que desde a sabida de D. Antonio se conservava em distancia, não tomou parte na insubordinação.

Ao contrario quando virão que seus companheiros com Loredano á frente se preparavão para atacar o fidalgo, forão, como vimos, offerecer-se voluntariamente ao castigo, e reunir-se ao seu chefe para partilharem a sua sorte.

Pouco tardou que João Feio não se apresentasse como parlamentario da parte dos revoltosos; o fidalgo não o deixou fallar.

—Dize a teus companheiros, rebelde, que D. Antonio de Mariz manda e não discute condições: que elles estão condemnados; e verão se sei ou não cumprir o meu juramento.

O fidalgo tratou então de dispôr os seus meios de defeza; apenas podia contar com quatorze combatentes; elle, Alvaro, Pery, Ayres Gomes, mestre Nunes com os seus companheiros, e os quatro homens que se havião conservado fieis; os inimigos erão em numero de vinte e tantos.

Toda a sua familia já então despertada recebeu a triste sorpreza de tantos acontecimentos passados durante aquella noite fatal: D. Lauriana, Cecilia e Isabel recolhêrão-se ao oratorio, e rezavão emquanto se preparava tudo para uma resistencia desesperada.

Os aventureiros commandados por Loredano arregimentárão-se, e marchárão para a casa dispostos a dar um assalto terrivel; o seu furor redobrava tanto mais, quanto o remorso no fundo da consciencia começava a mostrar-lhes toda a hediondez de sua acção.

No momento em que dobra vão o canto ouvio-se um som rouco que se prolongou pelo espaço, como o echo surdo de um trovão em distancia.

Pery estremeceu, e lançando-se para a beira da esplanada estendeu os olhos pelo campo que costeava a floresta. Quasi ao mesmo tempo um dos aventureiros que estava ao lado de Loredano cahio traspassado por uma flecha.

—Os Aymorés!...

Apenas soltou Pery esta exclamação, uma linha movediça, longo arco de côres vivas e brilhantes, agitou-se ao longe na planicie, irradiando á luz do sol nascente.

Homens quasi nús, de estatura gigantesca e aspecto feroz, coberto de pelles de animaes e pennas amarellas e escarlates, armados de grossas clavas e arcos enormes, avançavão soltando gritos medonhos.

A inubia retroava; o som dos instrumentos de guerra misturado com os brados e alaridos formavão um concerto horrivel, harmonia sinistra que revelava os instinctos dessa horda selvagem reduzida á brutalidade das féras.

—Os Aymorés!... repetirão os aventureiros empallidecendo.


VIII
DESANIMO

Dous dias passárão depois da chegada dos Aymorés; a posição de D. Antonio de Mariz e de sua familia era desesperada.

Os selvagens tinhão atacado a casa com uma força extraordinaria; diante delles a india terrivel de odio os excitava á vingança.

As settas escurecendo o ar abatião-se como uma nuvem sobre a esplanada, e crivavão as portas e as paredes do edificio.

Á vista do perigo imminente que corrião todos, os aventureiros revoltados retirárão-se e tratárão de defender-se do ataque dos selvagens.

Houve como que um armisticio entre os rebeldes e o fidalgo; sem se reunirem, os aventureiros conhecerão que devião combater o inimigo commum, embora depois levassem ao cabo a sua revolta.

D. Antonio de Mariz, encastellado na parte da casa que habitava, rodeado de sua familia e de seus amigos fieis, resolvêra defender até á ultima extremidade esses penhores confiados ao seu amor de esposo e de pai.

Se a Providencia não permittisse que um milagre os viesse salvar, morrerião todos; mas elle contava ser o ultimo, afim de velar que mesmo sobre os seus despojos não atirassem um insulto.

Era o seu dever de pai, e o seu dever de chefe, como o capitão que é o ultimo a abandonar o seu navio, elle seria o ultimo a abandonar a vida, depois de ter assegurado ás cinzas dos seus o respeito que se deve aos mortos.

Bem mudada estava essa casa que vimos tão alegre e tão animada! Parte do edificio que tocava com o fundo onde habitavão os aventureiros tinha sido abandonada por prudencia; D. Antonio concentrara sua familia no interior da habitação para evitar algum accidente.

Cecilia deixara o seu quartinho tão lindo e tão mimoso, e nelle estabelecêra Pery o seu quartel-general e o seu centro de operações; porque, é preciso dizer, o indio não partilhava o desanimo geral, e tinha uma confiança inabalavel nos seus recursos.

Serião dez horas da noite: a lampada de prata suspensa no tecto da grande sala illuminava uma scena triste e silenciosa.

Todas as janellas e portas estavão fechadas; de vez em quando ouvia-se o estrepito que fazia uma setta cravando-se na madeira, ou enfiando-se por entre as telhas.

Nas duas extremidades da sala e na frente tinhão-se praticado no alto da parede algumas setteiras, junta das quaes os aventureiros fazião a noite uma sentinella constante, afim de prevenir uma sorpreza.

D. Antonio de Mariz, sentado n'uma cadeira de espaldar, sob o docel, repousava um instante; o dia fôra rude; os indios tinhão investido por differentes vezes a escada de pedra da esplanada; e o fidalgo com o pequeno numero de combatentes de que dispunha e com o auxilio da colubrina conseguira repelli-los.

A sua clavina carregada descansava de encontro ao espaldar da cadeira; e as suas pistolas estavão collocadas em cima de um bufete ao alcance do braço.

Sua bella cabeça encanecida pendida ao seio resaltava sobre o velludo preto de seu gibão, coberto por uma rede finissima de malhas d'aço que lhe guarnecia o peito.

Parecia adormecido, mas de vez em quando erguia os olhos e corria o vasto aposento, contemplando com uma melancolia extrema a scena que se desenhava no fundo meio esclarecido da sala.

Depois voltava á mesma posição, e continuava suas dolorosas reflexões; o fidalgo conservava toda a firmeza e coragem, mas interiormente tinha perdido a esperança.

Do lado opposto Cecilia recostada em um sofá parecia desfallecida; seu rosto perdera a habitual vivacidade: seu corpo ligeiro e gracioso, alquebrado por tantas emoções, prostrava-se com indolencia sobre uma colcha de damasco. A mãozinha cahia immovel como uma flôr a que tivessem quebrado a haste delicada; e os labios descorados agitavão-se ás vezes murmurando uma prece.

De joelhos á beira do sofá, Pery não tirava os olhos de sua senhora; dir-se-hia que aquella respiração branda que fazia ondular os seios da menina, e que se exhalava de sua bocca entreaberta, era o sopro que alimentava a vida do indio.

Desde o momento da revolta não deixou mais Cecilia; segui-a como uma sombra; sua dedicação, já tão admiravel, tinha tocado o sublime com a imminencia do perigo. Durante estes dous dias elle havia feito cousas incriveis, verdadeiras loucuras de heroismo e abnegação.

Succedia que um selvagem aproximando-se da casa soltava um grito que vinha causar um ligeiro susto á menina?

Pery lançava-se como um raio, e antes que tivessem tempo de contê-lo, passava entre uma nuvem de flechas, chegava á beira da esplanada, e com um tiro de sua clavina abatia o Aymoré que assustára sua senhora, antes que elle tivesse tempo de soltar um segundo grito.

Cecilia, afflicta e doente, recusava tomar o alimento que sua mãi ou sua prima lhe trazião?

Pery correndo mil perigos, arriscando-se a despedaçar-se nas pontas dos rochedos e a ser crivado pelas flechas dos selvagens, ganhava a floresta, e d'ahi a uma hora voltava trazendo um fructo delicado, um favo de mel envolto de flôres, uma caça exquisita, que sua senhora tocava com os labios para assim pagar ao menos tanto amor e tanta dedicação.

As loucuras do indio chegárão a ponto que Cecilia foi obrigada a prohibir-lhe que sahisse de junto della, e a guarda-lo á vista com receio de que não se fizesse matar a todo o momento.

Além da amizade que lhe tinha, um quer que seja, uma esperança vaga lhe dizia que na posição extrema em que se achavão, se alguma salvação podia haver para sua familia, seria á coragem, á intelligencia e á sublime abnegação de Pery que a deverião.

Se elle morresse, quem velaria sobre ella com a solicitude e o ardente zelo que tinha ao mesmo tempo o carinho de uma mãi, a protecção de um pai, a meiguice de um irmão? Quem seria seu anjo da guarda para livra-la de um pezar, e ao mesmo tempo seu escravo para satisfazer o seu menor desejo?

Não; Cecilia não podia de modo algum admittir nem a possibilidade de que seu amigo viesse a morrer; por isso mandou, pedio, e até supplicou-lhe que não sahisse de junto della; queria por sua vez ser para Pery o bom anjo de Deus, o seu genio protector.

Do mesmo lado em que estava Cecilia, mais n'um outro canto da sala, via-se Isabel sentada de encontro á hombreira da janella; enfiava um olhar ardente, cheio de anciedade e de susto por uma pequena fresta, que ella entreabrira a furto.

O raio de luz que filtrava por esta aberta da janella servia de mira aos indios, que fazião chover settas sobre settas naquella direcção: mas Isabel, alheia de si, nem se importava com o perigo que corria.

Ella olhava Alvaro, que no alto da escada com a maior parte dos aventureiros fieis fazia a guarda nocturna; o moço passeava pela esplanada ao abrigo de uma ligeira palissada. Cada setta que passava por sua cabeça, cada movimento que fazia, causavão em Isabel uma afflicção immensa; sentia não poder estar junto delle para ampara-lo, e receber a morte que lhe fosse destinada.

D. Lauriana, sentada em um dos degráos do oratorio, rezava: a boa senhora era uma das pessoas que mais coragem e mais calma mostravão no transe horrivel em que se achava a familia; animada pela sua fé religiosa e pelo sangue nobre que gyrava nas suas veias, ella se tinha conservado digna de seu marido.

Fazia tudo quanto era possivel; pensava os feridos, encorajava as meninas, auxiliava os preparativos de defeza, e ainda em cima dirigia sua casa como se nada se passasse.

Ayres Gomes encostado á porta do gabinete, com os braços cruzados, e immovel, dormia; o escudeiro guardava o posto que lhe fôra confiado pelo fidalgo. Desde a conferencia que os dous tinhão tido, Ayres se postára naquelle lugar, donde não sabia senão quando D. Antonio vinha sentar-se na cadeira que havia junto da porta.

Dormia de pé; porém mal um passo, por mais subtil que fosse, soava no pavimento, acordava sobresaltado, com a pistola em punho, e a mão sobre o fecho da porta.

D. Antonio de Mariz levantou-se, e passando á cinta as suas pistolas e tomando a sua clavina, dirigio-se ao sofá onde repousava sua filha, e beijou-a na fronte; fez o mesmo a Isabel, abraçou sua mulher e sahio. O fidalgo ia render a Alvaro, que fazia o seu quarto desde o anoitecer; poucos momentos depois de sua sahida, a porta abrio-se de novo, e o cavalheiro entrou.

Alvaro trajava um gibão de lã forrado de escarlate; quando elle appareceu no vão da porta, Isabel soltou um grito fraco, e correu para elle.

—Estais ferido? perguntou a moça com anciedade, e tomando-lhe as mãos.

—Não; respondeu o moço admirado.

—Ah!... exclamou Isabel respirando.

Tinha-se illudido; o rasgão que uma flecha fizera sobre o hombro mostrando o forro escarlate do gibão, tinha de repente lhe parecido uma ferida.

Alvaro procurou desprender suas mãos das mãos de Isabel; mas a moça supplicando-o com o olhar, e arrastando-o docemente, levou-o até o lugar onde estava ha pouco, e obrigou o cavalleiro a sentar-se junto della.

Muitos acontecimentos se tinhão passado entre elles nestes dous dias; ha circumstancias em que os sentimentos marchão com uma rapidez extraordinaria, e devorão mezes e annos n'um só minuto.

Reunidos nesta sala pela necessidade extrema do perigo, vendo-se a cada momento, trocando ora uma palavra, ora um olhar, sentindo-se emfim perto um do outro, esses dous corações, se não se amavão, comprehendião-se ao menos.

Alvaro fugia e evitava Isabel; tinha medo desse amor ardente que o envolvia n'um olhar, dessa paixão profunda e resignada que se curvava a seus pés sorrindo melancolicamente, sentia-se fraco para resistir, e entretanto o seu dever mandava que resistisse.

Elle amava, ou cuidava amar ainda a Cecilia; promettêra a seu pai ser seu marido; e na situação em que se achavão, aquella promessa era mais do que um juramento, era uma necessidade imperiosa, uma fatalidade que se devia cumprir.

Como podia elle pois alimentar uma esperança de Isabel? Não seria infame, indigno, aceitar o amor que ella lhe offerecêra supplicando? Não era seu dever destruir naquelle coração esse sentimento impossivel?

Alvaro pensava assim, e evitava todas as occasiões de estar só com a moça, porque conhecia a impressão vehemente, a attracção poderosa que exercia essa belleza fascinadora quando a paixão, animando-a, cercava-a de um brilho deslumbrante.

Dizia a si mesmo que não amava, que nunca amaria Isabel! entretanto sabia que se elle a visse outra vez como no momento em que lhe confessara seu amor, cahiria de joelhos a seus pés, e esqueceria o dever, a honra, tudo por ella.

A luta era terrivel; mas a alma nobre do cavalheiro não cedia, e combatia heroicamente: podia ser vencida, mas depois de ter feito o que fosse possivel ao homem para conservar-se fiel á sua promessa.

O que tornava a luta ainda mais violenta era que Isabel não o perseguia com o seu amor; depois daquella primeira hallucinação concentrava-se, e resignada amava sem esperança de nunca ser amada.


IX
ESPERANÇA

Sentando-se junto da moça, Alvaro sentio a sua coragem vacillar.

—Que me quereis, Isabel? perguntou elle com a voz um pouco tremula.

A menina não respondeu; estava embebida a contemplar o moço; saciava-se de olha-lo, de senti-lo junto de si, depois de ter soffrido a angustia de ver a morte roçando a sua cabeça, e ameaçando a sua vida.

É preciso amar para comprehender essa voluptuosidade do olhar que se repousa sobre o objecto amado, que não se cansa de ver aquillo que está impresso na imaginação, mas que tem sempre um novo encanto.

—Deixai-me olhar-vos! respondeu Isabel supplicando. Quem sabe! Talvez seja pela ultima vez!

—Porque essas idéas tristes? disse Alvaro com brandura. A esperança ainda não está de todo perdida.

—Que importa?... exclamou a moça. Ainda ha pouco vos vi de longe que passeáveis sobre a esplanada, e a cada momento me parecia que uma setta vos tocava, vos feria e...

—Como!... Tivestes a imprudencia de abrir a janella?...

O moço voltou-se, e estremeceu vendo a janella entreaberta, crivada da parte exterior pelas settas dos selvagens.

—Meu Deus!... exclamou elle, porque expondes assim a vossa vida, Isabel?...

—Que vale a minha vida, para que a conserve? disse a moça animando-se. Tem ella algum prazer, alguma ventura, que me prenda? De que serviria a existencia se não fosse para satisfazer um impulso de nossa alma? A minha felicidade é acompanhar-vos com os olhos e com o pensamento. Se esta felicidade me deve custar a vida, embora!...

—Não falleis assim, Isabel, que me partis a alma.

—E como quereis que falle? Mentir-vos é impossivel; depois daquelle dia, em que trahi o meu segredo, de escravo que elle era, tornou-se senhor, senhor despotico e absoluto. Sei que vos faço soffrer...

—Nunca disse semelhante cousa!

—Sois bastante generoso para dizê-lo, mas sentis. Eu conheço, eu leio nos vossos menores movimentos. Vós me estimais talvez como irmão, mas fugis de mim, e tendes receio que Cecilia pense que me amais; não é verdade?

—Não, exclamou Alvaro insensivelmente; tenho receio, tendo medo... mas é de amar-vos!

Isabel sentio uma commoção tão violenta, ouvindo as palavras rapidas do moço, que ficou como extatica sem fazer um movimento; as palpitações fortes do seu coração a suffocavão.

Alvaro não estava menos commovido; subjugado por aquelle amor ardente, impressionado pela abnegação da menina que expunha sua vida só para acompanha-lo de longe com um olhar e protegê-lo com a sua solicitude, tinha deixado escapar o segredo da luta que se passava em sua alma.

Mas apenas pronunciara aquellas palavras imprudentes, conseguio dominar-se, e tornando-se frio e reservado, fallou a Isabel em um tom grave.

—Sabeis que amo Cecilia; mas ignorais que prometti a seu pai ser seu marido. Emquanto elle por sua livre vontade não me desligar de minha promessa, estou obrigado a cumpri-la. Quanto ao meu amor, este me pertence, e só a morte me pode desligar delle. No dia em que eu amasse outra mulher, que não ella, me condemnaria a mim mesmo como um homem desleal.

O moço voltou-se para Isabel com um triste sorriso:

—E comprehendeis o que faz um homem desleal que tem ainda a consciencia precisa para se julgar a si?

Os olhos da moça brilhárão com um fogo sinistro:

—Oh! comprehendo!... É o mesmo que faz a mulher que ama sem esperança, e cujo amor é um insulto ou um soffrimento para aquelle a quem ama!

—Isabel!... exclamou Alvaro estremecendo.

—Tendes razão! Só a morte póde desligar de um primeiro e santo amor aos corações como os nossos!

—Deixai-vos dessas idéas, Isabel! Crede-me; uma unica razão póde justificar semelhante loucura.

—Qual? perguntou Isabel.

—A deshonra.

—Ha ainda outra, respondeu a moça com exaltação; outra menos egoista, mas tão nobre como esta; a felicidade daquelles que se ama.

—Não vos comprehendo.

—Quando se sabe que se pôde ser uma causa de desgraça para aquelles que se estima, melhor é desatar o unico laço que nos prende á vida do que vê-lo despedaçar-se. Não dizieis que tendes medo de amar-me? Pois bem, agora sou eu que tenho medo de ser amada.

Alvaro não soube o que responder: estava n'uma terrivel agitação: conhecia Isabel, e sabia que força tinhão aquellas palavras ardentes que soltavão os labios da moça.

—Isabel! disse elle tomando-lhe as mãos. Se me tendes alguma affeição, não me recuseis a graça que vou pedir-vos. Repelli esses pensamentos! Eu vos supplico!

A moça sorrio-se melancolicamente:

—Vós me supplicais?... Me pedis que conserve esta vida que recusastes!... Não é ella vossa? Aceitai-a; e já não tereis que supplicar!

O olhar ardente de Isabel fascinava; Alvaro não se pôde mais conter; ergueu-se; e reclinando-se ao ouvido da moça balbuciou:

—Aceito!...

Emquanto Isabel, pallida de emoção e felicidade, duvidava ainda da voz que resoava no seu ouvido, o moço tinha sahido da sala.

Durante que Alvaro e Isabel conversavão á meia voz, Pery continuava a contemplar sua senhora.

O indio estava pensativo: e via-se que uma idéa o preoccupava, e absorvia toda a sua attenção.

Por fim levantou-se, e lançando um ultimo olhar repassado de tristeza a Cecilia, encaminhou-se lentamente para a porta da sala.

A menina fez um ligeiro movimento e levantou a cabeça:

—Pery!...

Elle estremeceu, e voltando foi de novo ajoelhar-se junto do sofá.

—Tu me promette não deixar tua senhora! disse Cecilia com uma doce exprobação.

—Pery quer te salvar.

—Como?

—Tu saberás. Deixa Pery fazer o que tem no pensamento.

—Mas não correrás nem um perigo?

—Porque perguntas isto, senhora? disse o indio timidamente.

—Porque?... exclamou Cecilia levantando-se com vivacidade. Porque se para nos salvar é preciso que tu morras, eu rejeito o teu sacrificio, rejeito-o em meu nome e no de meu pai.

—Socega, senhora; Pery não teme o inimigo; sabe o modo de vencê-lo.

A menina abanou a cabeça com ar incredulo.

—Elles são tantos!...

O indio sorrio com orgulho.

—Sejão mil; Pery vencerá a todos; aos indios e aos brancos.

Elle pronunciou estas palavras com a expressão de naturalidade e ao mesmo tempo de firmeza que dá a consciencia da força e do poder.

Comtudo Cecilia não podia acreditar o que ouvia; parecia-lhe inconcebivel que um homem só, embora tivesse a dedicação e o heroismo do indio, podesse vencer não só os aventureiros revoltados, como os duzentos guerreiros Aymorés que assaltavão a casa.

Mas ella não contava com os recursos immensos de que dispunha essa intelligencia vigorosa, que tinha ao seu serviço um braço forte, um corpo agil, e uma destreza admiravel; não sabia que o pensamento é a arma mais poderosa que Deus deo ao homem, e que com ella se abatem os inimigos, se quebra o ferro, se doma o fogo, e se vence por essa força irresistivel e providencial que manda ao espirito dominar a materia.

—Não te illudas; vais fazer um sacrificio inutil. Não é possivel que um homem só vença tantos inimigos ainda mesmo que este homem seja Pery.

—Tu verás! respondeu o indio com segurança.

—E quem te dará força para lutar contra um poder tão grande?...

—Quem?... Tu senhora, tu só, respondeu o indio fitando nella o seu olhar brilhante.

Cecilia sorrio, como devem sorrir os anjos.

—Vai, disse ella, vai salvar-nos. Mas lembra-te que se tu morreres, Cecilia não aceitará a vida que lhe deres.

Pery ergueu-se.

—O sol que se levantar amanhã será o ultimo para todos os teus inimigos; Ceci poderá sorrir como dantes, e ficar alegre e contente.

A voz do indio tornou-se tremula; sentindo que não podia vencer a emoção atravessou rapidamente a sala e sahio.

Chegando á esplanada Pery olhou as estrellas que começavão a apagar-se, e viu que o dia pouco tardaria a raiar: não tinha tempo a perder.

Qual era o projecto que havia concebido, e que lhe dava uma certeza e uma convicção profunda a respeito do seu resultado? Que meio ousado tinha ella para contar com a destruição dos inimigos, e salvação de sua senhora?

Fôra difficil adivinhar; Pery guardava no fundo do coração esse segredo impenetravel, e nem a si mesmo o dizia com receio de trahir-se, e de annullar o effeito, que esperava com uma confiança inabalavel.

Tinha todos os inimigos na sua mão; e bastava-lhe um pouco de prudencia para fulmina-los a todos como a colera celeste, como o fogo de raio.

Pery dirigio-se ao jardim e entrou no quarto de Cecilia, então abandonado por sua senhora, por causa da proximidade em que ficava do fundo da casa occupado pelos aventureiros revoltados.

O quarto estava ás escuras: mas a tenue claridade que entrava pela janella bastava ao indio para distinguir os objectos perfeitamente; a perfeição dos sentidos é um dom que os selvagens possuem no mais alto gráo.

Elle tomou suas armas uma a uma, beijou as pistolas que Cecilia lhe havia dado e deitou-as no chão no meio do aposento, tirou os seus ornatos de pennas, sua faxa de guerreiro, a pluma brilhante do seu cocar e lançou-os como um tropheo sobre as suas armas.

Depois agarrou o seu grande arco de guerra, apertou-o ao seio e curvando-o de encontro ao joelho quebrou-o em duas metades, que forão juntar-se ás armas e aos ornatos.

Por algum tempo Pery contemplou com um sentimento de dôr profunda esses despojos de sua vida selvagem; esses emblemas de sua dedicação sublime por Cecilia, e de seu heroismo admiravel.

Em luta com essa emoção poderosa, insensivelmente murmurou na sua lingua algumas destas palavras que a alma manda aos labios nos momentos supremos:

—Arma de Pery, companheira e amiga, adeus! Teu senhor te abandona e te deixa: comtigo elle venceria; comtigo ninguem poderia vencê-lo. E elle quer ser vencido...

O indio levou a mão ao coração:

—Sim!... Pery, filho de Ararê, primeiro de sua tribu, forte entre os fortes, guerreiro goytacaz, nunca vencido, vai succumbir na guerra. A arma de Pery não pode ver seu senhor pedir a vida ao inimigo; o arco de Ararê, já quebrado, não salvará o filho.

Sua cabeça altiva e sobranceira emquanto pronunciava estas palavras cahio-lhe sobre o seio; por fim venceu a sua emoção, e cingindo nos seus braços esse tropheo de suas armas e de suas insignias de guerra, estreitou-as ao peito em um ultimo abraço de despedida.

Um aroma agreste das plantas que começavão a se abrir com a aproximação do dia, avisou-lhe que a noite estava a acabar.

Quebrou a axorca de fructos que trazia na perna sobre a artelho, como todos os selvagens: este ornato era feito de pequenos cocos ligados por um fio, e tingidos de amarello.

Pery tomou dous destes fructos, e partio-os com a faca, sem comtudo separar as cascas; fechando-os então na sua mão, levantou o braço como fazendo um desafio ou uma ameaça terrivel e lançou-se fora do aposento.


X
A BRECHA

Quando Pery entrou no quarto de Cecilia, Loredano passeava do outro lado da esplanada, em frente do alpendre.

O italiano reflectia sobre os acontecimentos que havião passado nos ultimos dias, sobre as vicissitudes que corrêra a sua vida e a sua fortuna.

Por differentes vezes tinha posto o pé sobre o tumulo; tinha tocado a sua ultima hora; e a morte fugira delle, e o respeitára. Tambem por differentes vezes havia encarado a felicidade, o poder, a fortuna; e tudo se esvaecêra como um sonho.

Quando á frente dos aventureiros revoltados ia atacar a D. Antonio de Mariz que não lhe podia resistir, os Aymorés tinhão apparecido de repente e mudado a face das cousas.

A necessidade da defeza contra o inimigo commum trouxe uma suspensão de hostilidades; acima da ambição estava o instincto da vida e da conservação. A luta de interesses e de odios cedeu á grande luta das raças inimigas.

Por isso no primeiro ataque dos selvagens, todos por um movimento espontaneo tratárão de repellir o inimigo, e de salvar a casa da ruina que a ameaçava. Depois separárão-se de novo, e sempre observando-se, sempre promptos a defenderem-se um do outro, os dous grupos continuárão a repellir os indios com a maior coragem.

No meio disto porém Loredano, que se constituîra o chefe da revolta, não abandonava o seu projecto de apoderar-se de Cecilia, e vingar-se de D. Antonio de Mariz e de Alvaro.

Seu espirito tenaz trabalhava incessantemente procurando o meio de chegar áquelle resultado; atacar abertamente o fidalgo era uma loucura que não podia commetter. A menor luta que houvesse entre elles, entregava-os todos aos selvagens, que excitados pela vingança e pelos seus instinctos sanguinarios e ferozes, atacavão o edificio sem repouso e sem descanso.

A unica barreira que continha os Aymorés era a posição inexpugnavel da casa, assentada sobre um rochedo, apenas accessivel por um ponto, pela escada de pedra que descrevêmos no primeiro capitulo desta historia.

Esta escada era defendida por D. Antonio de Mariz e pelos seus homens; a ponte de madeira tinha sido destruida; mas apezar disto os selvagens a substituirião facilmente se não fosse a resistencia desesperada que o fidalgo oppunha aos seus ataques.

Desde o momento pois que, impellido pelo seu amor, D. Antonio corresse em defeza de sua familia, e abandonasse a escada, os duzentos guerreiros Aymorés se precipitarião sobre a casa, e não havia coragem que lhes podesse resistir.

O italiano, que comprehendia isto, estava bem longe de tentar o menor ataque a peito descoberto; a prudencia o aconselhava então como o tinha aconselhado no dia do primeiro assalto.

O que elle procurava era um meio de, sem estrepito, sem luta, imprevistamente, fazer morrer D. Antonio de Mariz, Pery, Alvaro, e Ayres Gomes; feito isto os outros se reunirião a elle pela necessidade da defeza, e pelo instincto da conservação.

Tornar-se-hia então senhor da casa; ou repellia os indios, salvava Cecilia, se realisava todos os seus sonhos de amor e de felicidade; ou morria tendo ao menos esgotado até ao meio a taça do prazer que seus labios nem sequer havião tocado.

Era impossivel que esse espirito satanico, fixando-se em uma idéa durante tres dias, não tivesse conseguido achar um meio para a consummação desse novo crime que planejara.

Não só o tinha achado, mas já havia começado a pô-lo em pratica; tudo o protegia, até mesmo o inimigo que o deixava em repouso, atacando unicamente o lado da casa protegido por D. Antonio de Mariz.

Passeava pois embalando-se de novo nas suas esperanças, quando Martim Vaz, sahindo do alpendre, chegou-se a elle.

—Uma com que não contávamos!... disse o aventureiro.

—O que? perguntou o italiano com vivacidade.

—Uma porta fechada.

—Abre-se!

—Não com essa facilidade.

—Veremos.

—Está pregada por dentro.

—Terão presentido?...

—Foi a idéa que já tive.

Loredano fez um gesto de desespero.

—Vem!

Os dous encaminhárão-se para o alpendre, onde dormião os aventureiros armados, promptos ao menor signal de ataque.

O italiano acordou João Feio, e por precaução mandou-o fazer a guarda na esplanada, apezar de não haver receio que os selvagens atacassem do seu lado.

O aventureiro, ainda tonto do somno, ergueu-se e sahio.

Loredano e seu companheiro caminhárão para uma sala interior que servia de cozinha e despensa a esta parte da casa. Quando ião entrar, a luz que o aventureiro levava na mão para esclarecer o caminho, apagou-se de repente.

—Sois um desasado! disse Loredano contrariado.

—E tenho eu culpa! Quexai-vos do vento.

—Bom! não gasteis o tempo em palavras! Tirai fogo!

O aventureiro voltou a procurar o seu fuzil.

Loredano ficou em pé na porta á espera que o seu companheiro voltasse; e pareceu-lhe ouvir perto delle a respiração de um homem. Applicou o ouvido para certificar-se; e por segurança tirou o seu punhal e collocou-se no centro da porta, para impedir a sahida de quem quer que fosse.

Não ouvio mais nada; porém sentio de repente um corpo frio e gelado que tocou-lhe a fronte; o italiano recuou, e brandindo a sua faca deu um golpe ás escuras.

Pareceu-lhe que tinha tocado alguma cousa; entretanto tudo conservou-se no mais profundo silencio.

O aventureiro voltou trazendo a luz.

—É singular, disse elle; o vento póde apagar uma candeia, mas não lhe tira o pavio.

—O vento, dizeis. Acaso o vento tem sangue?

—Que quereis dizer?

—Que o vento que apagou a vela é o mesmo que deixou o seu signal neste ferro.

E Loredano mostrou ao aventureiro a sua faca, cuja ponta estava tinta de sangue ainda liquido.

—Ha aqui então um inimigo?...

—De certo; os amigos não precisão occultar-se.

Nisto ouvirão um rumor no telhado, e um morcego passou agitando lentamente as grandes azas: estava ferido.

—Eis o inimigo!... exclamou Martim rindo-se.

—É verdade, respondeu Loredano no mesmo tom; confesso que já tive medo de um morcego.

Tranquillos a respeito do incidente que os havia demorado, os dous entrárão na cozinha, e d'ahi por uma brecha estreita praticada na parede penetrárão no interior da casa ha pouco habitada por D. Antonio de Mariz e sua familia.

Atravessárão parte do edificio e chegárão a uma varanda que tocava de um lado com o quarto de Cecilia e do outro com o oratorio e o gabinete d'armas do fidalgo.

Ahi o aventureiro parou; e mostrando a Loredano a porta adufada de jacarandá, que dava entrada para o gabinete, disse-lhe:

—Não é com duas razões que a deitaremos dentro!

Loredano aproximou-se e reconheceu que a solidez e fortaleza da porta não lhe permittia a menor violencia: todo o seu plano estava destruido.

Contava durante a noite se introduzir furtivamente na sala, e assassinar a D. Antonio de Mariz, Ayres Gomes e Alvaro antes que elles podessem ser soccorridos por seus companheiros; consummado o crime, estava senhor da casa.

Como remover o obstaculo que lhe apparecia? A menor violencia contra a porta despertaria a attenção de D. Antonio de Mariz, e inutilisaria todo o seu projecto.

Emquanto reflectia nisto, os seus olhos cahirão sobre uma estreita fresta que havia no alto da parede do oratorio, e que servia mais para dar ar do que luz.

Por esta abertura o italiano conheceu que aquella parte da parede era singela, e feita de um só tijolo; com effeito o oratorio tinha sido outr'ora um corredor largo que ia da varanda á sala, e que fôra separado por uma ligeira divisão.

Loredano medio a parede de alto a baixo, e acenou ao seu companheiro.

—É por aqui que havemos de entrar, disse elle apontando para a parede.

—Como? A menos de não ser um mosquito para passar por aquella fresta!

—Esta parede assenta sobre uma viga; tirada ella, está aberto o caminho!

—Entendo.

—Antes que possão tornar a si do susto, teremos acabado.

O aventureiro quebrou com a ponta da faca o reboco da parede, e descobrio a viga que lhe servia de alicerce.

—Então?

—Não ha duvida. Daqui a duas horas dou-vos isto prompto.

Martim Vaz, depois da morte de Ruy Soeiro e Bento Simões, tinha-se tornado o braço direito de Loredano, era o unico a quem o italiano confiára o seu segredo, occulto para os outros em quem receava ainda a influencia de D. Antonio de Mariz.

O italiano deixou o aventureiro no seu trabalho, e voltou pelo mesmo caminho; chegando á cozinha, sentio-se suffocado por uma fumaça espessa que enchia todo o alpendre. Os aventureiros acordados de repente blasphemavão contra o autor de semelhante lembrança.

Quando Loredano no meio delles procurava indagar a causa do que succedia, João Feio appareceu na entrada do alpendre.

Havia na sua physionomia uma expressão terrivel de colera e ao mesmo tempo de espanto; de um salto aproximou-se do italiano, e chegando-lhe a bocca ao ouvido, disse:

—Renegado e sacrilego, dou-te uma hora para ires entregar-te a D. Antonio de Mariz, e obter delle o nosso perdão, e o teu castigo. Se o não fizeres dentro desse tempo, é comigo que te has de avir.

O italiano fez um movimento de raiva; mas conteve-se:

—Amigo, o sereno transtornou-vos o juizo; ide deitar-vos. Boa noite, ou antes bom dia.

A alvorada despontava no horizonte.


XI
O FRADE

Sahindo do quarto de Cecilia, Pery tomára pelo corredor que communicava com o interior do edificio.

O indio, á cuja perspicacia nada escapava do que se passava no interior da casa, por mais insignificante que fosse, havia percebido o plano de Loredano desde a primeira pancada dada para a abertura da brecha.

Na vespera o som do ferro na parede tinha ido despertar a sua attenção na sala onde elle repousava um momento, deitado aos pés do leito de sua senhora; seu ouvido fino e delicado auscultára o seio da terra. Levantou-se de salto, e atravessando todo o edificio chegou, guiado pelas pancadas, ao lugar onde Loredano e o aventureiro começavão a abrir uma fenda no muro.

Em vez de atemorisar-se com esta nova audacia do italiano, o indio sorrio-se; a brecha que praticava seria a sua perdição, porque ia dar facil passagem a elle Pery.

Contentou-se pois em examinar todas as portas que communicavão com a sala e prega-las por dentro; seria um novo obstaculo que demoraria os aventureiros, e lhe daria tempo de sobra para extermina-los.

Foi por isso que do quarto de Cecilia, cuja porta fechou sobre si, caminhou direito á brecha e por ella penetrou na despensa dos aventureiros.

Era uma sala bastante espaçosa, onde havia uma mesa, algumas talhas e uma grande quartola de vinho; o indio mesmo ás escuras chegou-se a cada um desses vasos; e por alguns instantes ouvio-se o fraco vascolejar do liquido que elles continhão.

Então Pery viu uma luz que se aproximava; era Loredano e o seu companheiro.

A vista do italiano lhe gelou o sangue no coração. Tal odio votava a esse homem abjecto e vil, que teve medo de si, medo de o matar. Isso fôra agora uma imprudencia; pois inutilisaria todo o seu plano.

Muita vez depois da noite em que Loredano penetrára na alcova de Cecilia, Pery tivera impetos de ir vingar a injuria feita á sua senhora no sangue do italiano, para quem pensava que uma morte não era bastante punição.

Mas lembrava-se que não se pertencia; que precisava da vida para consummar sua obra salvando Cecilia de tantos inimigos que a cercavão. E recalcava a vingança no fundo do coração.

Fez o mesmo então: cosido com a parede conseguio apagar a vela. Ia sahir, quando sentira que o italiano tomava a porta.

Hesitou.

Podia lançar-se sobre Loredano e subjuga-lo; mas isto produziria uma luta, e denunciaria a sua presença; era preciso que fugisse sem que restasse um só vestigio de sua passagem: a mais leve suspeita faria abortar o seu plano.

Teve uma idéa feliz, ergueu a mão molhada e tocou o rosto do italiano; emquanto este recuava para atirar a punhalada ás escuras, o indio resvalou entre elle e a porta.

A faca de Loredano tinha-lhe ferido o braço esquerdo; não soltou porém nem um gemido, não fez um movimento que o trahisse; ganhou o fundo do alpendre antes que o aventureiro voltasse com a luz.

Mas Pery não estava contente; o seu sangue ia denuncia-lo; não lhe convinha de modo algum que o italiano suspeitasse que elle ali tinha estado.

Os morcegos que esvoaçavão espantados pelo tecto do alpendre lembrárão-lhe um excellente expediente; agarrou o primeiro que lhe passou ao alçance do braço, e abrindo-lhe uma cesura com a faca, soltou-o.

Elle sabia que o vampiro procuraria a luz, e iria esvoaçar em torno dos dous aventureiros; contava que as gotas de sangue que cahião de sua aza ferida os enganaria; a realidade correspondeu ás suas previsões.

Apenas Loredano desappareceu, Pery continuou a execução do seu plano; chegou-se a um canto do alpendre onde havia um resto de fogo encoberto pela cinza, e atirou sobre elle alguma roupa dos aventureiros que ahi estava a enxugar.

Este incidente, por insignificante que pareça, entrava nos planos de Pery; a roupa queimando-se devia encher a casa de fumaça, acordar os aventureiros e excitar-lhes a sêde. Era justamente o que desejava o indio.

Satisfeito do resultado que obtivera, Pery atravessou a esplanada: ahi porém foi obrigado a recuar, surprehendido do que via.

Um homem do lado de D. Antonio de Mariz e um aventureiro revoltado conversavão através da estacada que dividia esses dous campos inimigos; havia realmente motivo para que o indio se admirasse.

Não só isso era contra a ordem expressa de D. Antonio de Mariz, que prohibira qualquer relação entre seus homens e os revoltados, como contrariava o plano de Loredano, que temia ainda o respeito e o habito de obediencia que os aventureiros tinhão para com o fidalgo.

O que se tinha passado antes explicava esse acontecimento extraordinario.

O aventureiro a quem Loredano mandára rondar a esplanada, emquanto elle entrava, tinha começado o seu gyro de uma ponta á outra do pateo.

Sempre que chegava junto da estacada, notava que do outro lado um homem se aproximava como elle, voltava, e se alongava pela beira da esplanada; adivinhou facilmente que era tambem uma sentinella.

João Feio era um franco o jovial companheiro, e não podia supportar o tedio de um passeio alta noite, no meio de um somno interrompido, sem uma pinga para beber, sem um camarada para conversar, sem uma distracção emfim.

Para maior desprazer, uma das vezes que se aproximava da estacada, sentio uma baforada de tabaco, e viu que o seu companheiro de guarda fumava.

Levou a mão ao bolso das bragas, e achou algumas folhas de fumo, mas não trazia o seu caximbo; ficou desesperado, e decidio dirigir-se ao outro.

—Olá, amigo! Tambem fazeis a vossa guarda?

O homem voltou-se, e continuou o seu caminho sem dar resposta.

No segundo gyro o aventureiro atirou segunda isca.

—Felizmente o dia não tarda a raiar; não vos parece?

O mesmo silencio que a primeira vez: o aventureiro comtudo não desanimou, e na terceira volta retrucou:

—Somos inimigos, camarada; mas isto não impede a um homem cortez de responder quando outro lhe falla.

Desta vez o silencioso sentinella voltou-se de todo:

—Antes da cortezia está a nossa santa religião, que manda a todo christão não fallar a um herege, a um reprobo, a um phariseo.

—Que é lá isto? Fallais serio, ou quereis fazer-me enraivar por nonadas?

—Fallo-vos serio, como se estivesse diante do nosso Santo Redemptor confessando as minhas culpas.

—Pois então, digo-vos que mentis! Porque tão bom podeis ser, porém melhor crente que eu não o é outrem.

—Tendes a lingua um pouco longa, amigo. Mas Belzebuth vos fará as contas, que não eu: perderia minha alma se tocasse o corpo de endemoniados!

—Por S. João Baptista, meu patrão, não me façais saltar esta estacada para perguntar-vos a razão por que tratais em ar de mofa a devoção dos mais. Chamai-nos rebeldes, mas hereges não.

—E como quereis então que chame os companheiros de um frade sacrilego, maldito, que abjurou dos seus votos, e atirou o seu habito ás ortigas?

—Um frade! Dissestes vós?

—Sim, um frade. Não o sabeis?

—O que? De que frade fallais vós?

—Do italiano, bofé!

—Elle!...

O homem, que não era outro senão o nosso antigo conhecido mestre Nunes, contou então, exagerando com o fervor de seus sentimentos religiosos, aquillo que sabia da historia de Loredano.

O aventureiro horrorisado, tremendo de raiva, não deixou mestre Nunes acabar a sua historia e lançou-se para o alpendre, onde viu-se a ameaça que fez ao italiano.

Quando elles se separárão, Pery saltou por cima da estacada, e dirigio-se para o quarto que ha pouco tinha deixado.

O dia vinha então rompendo; os primeiros raios do sol illuminavão já o campo dos Aymorés, assentado sobre a varzea á margem do rio. Os selvagens irritados olhavão de longe a casa, fazendo gestos de raiva por não poderem vencer a barreira de pedra que defendia o inimigo.

Pery olhou um momento aquelles homens de estatura gigantesca, de aspecto horrivel, aquelles duzentos guerreiros de força prodigiosa, ferozes como tigres.

O indio murmurou:

—Hoje cahirão todos como a arvore da floresta, para não se erguerem mais.

Sentou-se no vão da janella, e encostando a cabeça sobre a curva do braço, começou a reflectir.

A obra gigantesca que emprehendêra, obra que parecia exceder todo o poder do homem, estava prestes a realisar-se: já tinha levado ao cabo metade della, faltava a conclusão, a parte a mais difficil e a mais delicada.

Antes de lançar-se, Pery queria prever tudo; fixar bem no seu espirito as menores circumstancias; traçar a sua linha invariavel, afim de marchar firme, direito, infallivel ao alvo a que visada; afim de que a menor hesitação não pozesse em risco o effeito do seu plano.

Seu espirito percorreu em alguns segundos um mundo de pensamentos; guiado pelo seu instincto maravilhoso e pelo seu nobre coração, formulou n'um rapido instante um grande e terrivel drama, do qual devia ser o heróe; drama sublime de heroismo e dedicação, que para elle era apenas o cumprimento de um dever e a satisfação de um desejo.

As almas grandes têm esse privilegio; suas acções, que nos outros inspirão a admiração, se anihilão em face dessa nobreza innata do coração superior, para o qual tudo é natural e possivel.

Quando Pery ergueu a cabeça estava radiante de felicidade e orgulho; felicidade por salvar sua senhora; orgulho pela consciencia de que elle só bastava para fazer o que cincoenta homens não farião; o que o proprio pai, o amante, não conseguirão nunca.

Não duvidava mais do resultado: via nos acontecimentos futuros como no espaço que se estendia diante delle, e no qual nem um objecto escapava ao seu olhar limpido; tanto quanto é possível ao homem, elle tinha a certeza e a convicção de que Cecilia estava salva.

Cobrio o peito e as costas com uma pelle de cobra que ligou estreitamente ao corpo; vestio por cima o seu saiote de algodão; experimentou os musculos dos braços e das pernas; e sentindo-se forte, agil e flexivel, sahio inerme.


XII
DESOBEDIENCIA

Alvaro, recostado da parte de fora a uma das janellas da casa, pensava em Isabel.

Sua alma lutava ainda, mas já sem força, contra o amor ardente e profundo que o dominava; procurava illudir-se, mas a sua razão não o permittia.

Conhecia que amava Isabel, e que a amava como nunca tinha amado Cecilia; a affeição calma e serena de outr'ora fôra substituida pela paixão abrasadora.

Seu nobre coração revoltava-se contra essa verdade; mas a vontade era impotente contra o amor; não podia mais arranca-lo do seu seio; não o desejava mesmo.

Alvaro soffria; o que dissera na vespera a Isabel era realmente o que sentia; não se exagerára; no dia em que deixasse de amar Cecilia e fosse infiel á promessa feita a D. Antonio, se condemnaria como um homem sem honra e sem lealdade.

Consolava-o a idéa de que a situação em que se achavão não podia durar muito; pouco tardava que exhaustos, enfraquecidos, succumbissem á força dos inimigos que os atacavão.

Então nos momentos extremos, á bordado tumulo, quando a morte o tivesse já desligado da terra, poderia com o ultimo suspiro balbuciar a primeira palavra do seu amor! poderia confessar a Isabel que a amava.

Até então lutaria.

Nisto Pery chegou-se e tocou-lhe no hombro:

—Pery parte.

—Para onde?

—Para longe.

—Que vais fazer?

O indio hesitou:

—Procurar soccorro.

Alvaro sorrio-se com incredulidade.

—Tu duvidas?

—De ti não; mas do soccorro.

—Escuta; se Pery não voltar, tu farás enterrar as suas armas.

—Podes ir tranquillo? eu te prometto.

—Outra cousa.

—O que é?

O indio hesitou de novo:

—Se tu vires a cabeça de Pery desligada do corpo, enterra-a com as suas armas.

—Porque este pedido? A que vem semelhante lembrança?

—Pery vai passar pelo meio dos selvagens, e pode morrer. Tu és guerreiro; e sabes que a vida é como a palmeira: murcha quando tudo reverdece.

—Tens razão. Farei tudo quanto pedes; mas espero ver-te ainda.

O indio sorrio.

—Ama a senhora, disse elle estendendo a mão ao moço.

O seu adeus era uma ultima prece pela felicidade de Cecilia.

Pery entrou na sala onde se achava reunida a familia.

Todos dormião; só D. Antonio de Mariz velava sempre, apezar da velhice; sua vontade poderosa cobrava novas forças, e reanimava o corpo gasto pelos annos. Não lhe restava senão uma esperança; a de morrer rodeado dos entes que amava, cercado de sua familia, como um fidalgo portuguez devia morrer; com honra e coragem.

O indio atravessou a sala, e collocando-se junto do sofa em que Cecilia adormecida repousava, contemplou-a um instante com um sentimento de profunda melancolia.

Dir-se-hia que nesse olhar ardente fazia uma ultima e solemne despedida; que partindo-se, o escravo fiel e dedicado queria deixar a sua alma enleiada naquella imagem, que representava a sua divindade na terra.

Que sublime linguagem não fallavão aquelles olhos intelligentes, animados por um brilhante reflexo de amor e de fidelidade? Que epopéa de sentimento e de abnegação não havia naquella muda e respeitosa contemplação?

Por fim Pery fez um esforço supremo, e a custo conseguio quebrar o encanto que o prendia, e o conservava immovel, como uma estatua, diante da linda menina adormecida. Reclinou sobre o sofá, e beijou respeitosamente a fimbria do vestido de Cecilia; quando ergueu-se, uma lagrima triste e silenciosa que deslisava pela sua face cahio sobre a mão da menina.

Cecilia, sentindo aquella gota ardente, entreabrio os olhos; mas Pery não viu este movimento, porque já se tinha voltado e aproximava-se de D. Antonio de Mariz.

O fidalgo, sentado na sua poltrona, recebeu-o com um sorriso pungente:

—Tu soffres? perguntou o indio.

—Por elles, por ella especialmente, por minha Cecilia.

—Por ti não? disse Pery com intenção.

— Por mim? Daria a minha vida para salva-la: e morreria feliz!

—Ainda que ella te pedisse que vivesse?

—Embora me supplicasse de joelhos.

O indio sentio-se alliviado como de um remorso.

—Pery te pede uma cousa?

—Falla!

—Pery quer beijar a tua mão.

D. Antonio de Mariz tirou o seu guante, e sem comprehender a razão do pedido do indio, estendeu-lhe a mão.

—Tu dirás a Cecilia que Pery partio; que foi longe; não deves contar-lhe a verdade: ella soffrerá. Adeus; Pery sente te deixar; mas é preciso.

Emquanto o indio proferia estas palavras em voz baixa e inclinado ao ouvido do fidalgo, este surprehendido procurava ligar-lhes um sentido que lhe parecia vago e confuso:

—Que pretendes tu fazer Pery? perguntou D. Antonio.

—O mesmo que tu querias fazer para salvar a senhora.

—Morrer!... exclamou o fidalgo.

—Pery levou o dedo aos labios recommendando silencio; mas era tarde; um grito partido do canto da sala fê-lo estremecer.

Voltando-se viu Cecilia, que ao ouvir a ultima palavra de seu pai quizera correr para elle, e cahira de joelhos, sem forças para dar um passo. A menina com as mãos estendidas e supplicantes parecia pedir a seu pai que evitasse aquelle sacrificio heroico, e salvasse a Pery de uma morte voluntaria.

O fidalgo a comprehendeu:

—Não, Pery; eu, D. Antonio de Mariz, não consentirei nunca em semelhante cousa. Se a morte de alguem podesse trazer a salvação de minha Cecilia e de minha familia, era a mim que competia o sacrificio. E por Deus e pela minha honra o juro, que a ninguem o cederia; quem quizesse roubar-me esse direito me faria um insulto cruel.

Pery volvia os olhos de sua senhora afflicta e supplicante para o fidalgo severo erigido no cumprimento de seu dever; temia aquellas duas opposições differentes, mas que tinhão ambas um grande poder sobre a sua alma.

Podia o escravo resistir a uma supplica de sua senhora, e causar-lhe uma mágoa, quando toda a sua vida fôra destinada a fazê-la alegre e feliz? Podia o amigo offender a D. Antonio de Mariz, a quem respeitava, praticando uma acção que o fidalgo considerava como uma injuria feita á sua honra?

Pery teve um momento de hallucinação, em que pareceu-lhe que o coração lhe estacava no peito, a vida lhe fugia, e a cabeça se despedaçava com a pressão violenta das idéas que tumultuavão no cerebro.

No rapido instante que durou a vertigem, elle viu gyrarem rapidamente em torno de si as figuras sinistras dos Aymorés, que ameaçavão a vida preciosa daquelles a quem mais amava no mundo. Vio Cecilia supplicando, não a elle, mas ao inimigo feroz e sanguinario, prestes a mancha-la com as mãos impuras; viu a bella e nobre cabeça do velho fidalgo rojar mutilada com os alvos cabellos tintos de sangue.

O indio horrorisado com estas imagens lugubres que lhe desenhava a sua imaginação em delirio, apertou a cabeça entre as mãos, com para arranca-la daquella febre.

—Pery balbuciava Cecilia; tua senhora te pede!...

—Morreremos todos juntos, amigo, quando chegar o momento, dizia D. Antonio de Mariz.

Pery levantou a cabeça, e lançou sobre a menina e o fidalgo um olhar hallucinado:

—Não!... exclamou elle.

Cecilia ergueu-se com um movimento instantaneo, de pé e pallida, soberba de cólera e indignação, a gentil e graciosa menina de outr'ora se tinha de repente transformado n'uma rainha imperiosa.

Sua bella fronte alva resplandecia com um assomo de orgulho; seus olhos azues tinhão desses reflexos fulvos que illuminão as nuvens no meio da tormenta; seus labios tremulos e ligeiramente arqueados parecião reter a palavra para deixa-la cahir com toda a força.

Atirando a cabecinha loura sobre o hombre esquerdo commum gesto de energia, ella estendeu a mão para Pery:

—Prohibo-te que saias desta casa

O indio julgou que ia enlouquecer; quiz lançar-se aos pés de sua senhora, mas recuou anhelante, oppresso e suffocado. Um canto; ou antes uma celeuma dos selvagens soava ao longe.

Pery deo um passo para a porta; D. Antonio o reteve:

—Tua senhora, disse o fidalgo friamente, acaba de te dar uma ordem; tu a cumprirás. Tranquillisa-te, minha filha; Pery é meu prisioneiro.

Ouvindo esta palavra que destruia todas as suas esperanças, que o impossibilitava de salvar sua senhora, o indio retrahindo-se deo um salto, e cahio no meio da sala.

—Pery é livre!... gritou elle fora de si; Pery não obedece a ninguem mais; fará o que lhe manda o coração!

Emquanto D. Antonio de Mariz e Cecilia, admirados desse primeiro acto de desobediencia, olhavão espantados o indio de pé no meio do vasto aposento, elle lançou-se a um cabide de armas, e empunhando um pesado montante, como se fôra uma ligeira espada, correu á janella e saltou.

—Perdoa a Pery, senhora!

Cecilia soltou um grito, e precipitou-se para a janella.

Não viu mais Pery.

Alvaro e os aventureiros, de pé sobre a esplanada, tinhão os olhos fitos sobre a arvore que se elevava a um lado da casa, na encosta opposta, e cuja folhagem ainda se agitava.

Longe descortinava-se o campo dos Aymorés; a brisa que passava trazia o rumor confuso das vozes e gritos dos selvagens.


XIII
COMBATE

Erão seis horas da manhã.

O sol elevando-se no horizonte derramava cascatas de ouro sobre o verde brilhante das vastas florestas.

O tempo estava soberbo; o céo azul, esmaltado de pequenas nuvens brancas que se achamalotavão como as dobras de uma lençaria.

Os Aymorés, grupados em torno de alguns troncos já meio reduzidos á cinza, fazião preparativos para dar um ataque decisivo.

O instincto selvagem suppria a industria do homem civilisado; a primeira das artes foi incontestavelmente a arte da guerra,—a arte da defeza e da vingança, os dous mais fortes estímulos do coração humano.

Nesse momento os Aymorés preparavão settas inflammaveis para incendiar a casa de D. Antonio de Mariz; não podendo vencer o inimigo pelas armas, contavão destrui-lo pelo fogo.

A maneira por que arranjavão esses terriveis projectis que lembravão os pelouros e bombardas dos povos civilisados era muito simples; envolvião a ponta da flecha com frocos de algodão embebido na resinada almecegueira.

Essas settas assim inflammadas, despedidas dos seus arcos voavão pelos ares e ião cravar-se nas vigas e portas das casas; o fogo que o vento incitava, lambia a madeira, estendia a sua lingua vermelha, e lastrava pelo edificio.

Emquanto se occupavão com esse trabalho, um prazer feroz animava todas essas physionomias sinistras, nas quaes a braveza, a ignorancia e os instinctos carniceiros tinhão quasi de todo apagado o cunho da raça humana.

Os cabellos arruivados cahião-lhes sobre a fronte e occultavão inteiramente a parte mais nobre do rosto, creada por Deos para a séde da intelligencia, e para o throno d'onde o pensamento deve reinar sobre a materia.

Os labios decompostos, arregaçados por uma contracção dos musculos faciaes, tinhão perdido a expressão suave e doce que imprimem o sorriso e a palavra; de labios de homem se havião transformado em mandibulas de féra, affeitas ao grito e ao bramido.

Os dentes agudos como as presas do jaguar, já não tinhão o esmalte que a natureza lhes dera; armas ao mesmo tempo que instrumentos da alimentação, o sangue os tingira da côr amarellenta que têm os dentes dos animaes carniceiros.

As grandes unhas negras e retorcidas que crescião nos dedos, a pelle aspera e callosa fazião de suas mãos antes garras temiveis, do que a parte destinada a servir ao homem e dar ao aspecto a nobreza do gesto.

Grandes pelles de animaes cobrião o corpo agigantado desses filhos das brenhas, que a não ser o porte erecto se julgaria alguma raça de quadrumanos indigena no novo mundo.

Alguns se ornavão de pennas, e collares de ossos; outros completamente nús tinhão o corpo untado de oleo por causa dos insectos.

Entre todos distinguia-se um velho que parecia ser o chefe da tribu. Sua alta estatura, direita apezar da idade avançada, dominava a cabeça dos seus companheiros sentados ou grupados em torno do fogo.

Não trabalhava; presidia apenas aos trabalhos dos selvagens, e de vez em quando lançava um olhar de ameaça para a casa que se elevava ao longe sobre o rochedo inexpugnavel.

Ao lado delle, uma bella india na flôr da idade, queimava sobre uma pedra côva algumas folhas de tabaco cuja fumaça se elevava em grossas espiraes e cingia a cabeça do velho de uma especie de bruma ou nevoa.

Elle aspirava esse aroma embriagador que fazia dilatar o seu vasto peito, e dava á sua physionomia terrivel um quer que seja de sensual, que se poderia chamar a voluptuosidade dos seus instinctos de cannibal. Envolta pelo fumo espesso que se ennovelava em torno delia, aquella figura fantastica parecia algum idolo selvagem, divindade creada pelo fanatismo desses povos ignorantes e barbaros.

De repente a pequena india que soprava o brasido queimando as folhas de pityma estremeceu levantou a cabeça e fitou os olhos no velho, como para interrogar a sua physionomia.

Vendo-o calmo e impassivel, a menina debruçou-se sobre o hombro do selvagem, e tocando-lhe de leve na cabeça, disse-lhe uma palavra ao ouvido. Elle voltou-se tranquillamente, e um riso sardonico mostrou os seus dentes; sem responder obrigou a india a sentar-se de novo, e a voltar á sua occupação.

Pouco tempo havia passado depois deste pequeno incidente, quando a menina tornou a estremecer, tinha ouvido perto o mesmo rumor que já ouvira ao longe. Ao passo que ella espantada procurava confirmar-se, um dos selvagens sentados em roda do fogo a trabalhar fez o mesmo movimento que a india, e levantou a cabeça.

Como se um fio electrico se communicasse entre esses homens e imprimisse a todos successivamente o mesmo movimento, um após outro interrompeu o seu trabalho de chofre, e inclinando o ouvido poz-se á escuta.

A menina não escutava só; collocando-se longe do fumo e de encontro á brisa que soprava, de vez em quando aspirava o ar com a finura de olfacto com que os cães farejão a caça.

Tudo isto passou rapidamente, sem que os actores desta scena tivessem nem sequer o tempo de trocar uma observação e dizer o seu pensamento.

De repente a india soltou um grito; todos voltárão-se para ella e a virão tremula, offegante, apoiando-se com uma mão sobre o hombro do velho cacique, e a outra estendida na direcção da floresta que passava a duas braças servindo de fundo a esse quadro.

O velho ergueu-se então sempre com a mesma calma feroz e sinistra; e empunhando a sua pesada tagapema, que parecia uma clava de cyclope, fê-la gyrar sobre a sua cabeça como um junco; depois fincando-a no chão e apoiando-se sobre ella, esperou.

Os outros selvagens armados de arcos e tacapes, especie de longas espadas de páo que cortavão como ferro, collocárão-se a par do velho, e promptos para o ataque, esperavão como elle. As mulheres misturárão-se com os guerreiros: as crianças e meninos, defendidos pela barreira que oppunhão os combatentes conservárão-se no centro do campo.

Todos com os olhos fitos, os sentidos applicados, contavão ver o inimigo apparecer a cada momento e se prepara vão para cahir sobre elle com a audacia e o impeto de ataque que distinguia a raça dos Aymorés.

Um segundo se passou nesta expectativa inquieta.

O estalido que a principio tinhão ouvido cessou completamente; e os selvagens cobrando-se do susto, voltárão aos seus trabalhos, convencidos de que tinhão sido illudidos por algum vago rumor da floresta.

Mas o inimigo cahio no meio delles, subitamente, sem que podessem saber se tinha surgido do seia da terra, ou se tinha descido das nuvens.

Era Pery.

Altivo, nobre, radiante da coragem invencivel e do sublime heroismo de que já dera tantos exemplos, o indio se apresentava só em face de duzentos inimigos fortes e sequiosos de vingança.

Cahindo do alto dc uma arvore sobre elles, tinha abatido dous; e volvendo o seu montante como um raio em torno de sua cabeça, abrio um circulo no meio dos selvagens.

Então encostou-se a uma lasca de pedra que descansava sobre uma ondulação do terreno, e preparou-se para o combate monstruoso de um só homem contra duzentos.

A posição em que se achava o favorecia, se isto é possivel á vista de uma tal disparidade de numero; apenas dous inimigos podião ataca-lo de frente.

Passado o primeiro espanto, os selvagens bramindo atirárão-se todos como uma só mola, como uma tromba do oceano, contra o indio que ousava ataca-los a peito descoberto.

Houve uma confusão, um turbilhão horrivel de homens que se repellião, tombavão e se estorcião; de cabeças que se levantavão e outras que desapparecião; de braços e dorsos que se agitavão e se contrahião, como se tudo isto fosse partes de um só corpo, membros de algum monstro desconhecido debatendo-se em convulsões.

No meio desse cahos via-se brilhar aos raios do sol com reflexos rapidos e luzentes a lamina do montante de Pery, que passava e repassava com a velocidade do relampago quando percorre as nuvens e atravessa o espaço.

Um côro de gritos, imprecações e gemidos roucos e abafados, confundindo-se com o choque das armas, se elevava desse pandemonio, e ia perder-se ao longe nos rumores da cascata.

Houve uma calma aterradora; os selvagens immoveis de espanto e de raiva suspendêrão o ataque; os corpos dos mortos fazião uma barreira entre elles e o inimigo.

Pery abaixou o seu montante e esperou; seu braço direito fatigado desse enorme esforço não podia mais servir-lhe, e cahia inerte; passou a arma para a mão esquerda.

Era tempo.

O velho cacique dos Aymorés se avançava para elle, sopesando a sua immensa clava crivada de escamas de peixe e dentes de féra; alavanca terrivel que o seu braço possante fazia jogar com a ligeireza da flecha.

Os olhos de Pery brilhárão; endireitando o seu talhe, fitou no selvagem esse olhar seguro e certeiro, que não o enganava nunca.

O velho aproximando-se levantou a sua clava e imprimindo-lhe o movimento de rotação, ia descarrega-la sobre Pery e abatê-lo; não havia espada nem montante que podesse resistir áquelle choque.

O que passou-se então foi tão rapido, que não é possivel descrevê-lo; quando o braço do velho volvendo a clava ia atira-la, o montante de Pery lampejou no ar e decepou o punho do selvagem; mão e clava forão rojar pelo chão.

O velho selvagem soltou um bramido, que repercutio ao longe pelos échos da floresta, e levantando ao céo o seu punho decepado atirou as gotas de sangue que vertião sobre os Aymorés, como conjurando-os á vingança.

Os guerreiros lançárão-se para vingar o seu chefe; mas um novo espectaculo se apresentava aos seus olhos.

Pery vencedor do cacique, volveu um olhar em torno delle, e vendo o estrago que tinha feito, os cadaveres dos Aymorés amontoados uns sobre os outros, fincou a ponta do montante no chão e quebrou a lamina. Tomou depois os dous fragmentos, e atirou-os ao rio.

Então passou-se nelle uma luta silenciosa, mas terrivel para quem podesse comprehendê-la. Tinha quebrado a sua espada, porque não queria mais combater; e decidira que era tempo de supplicar a vida ao inimigo.

Mas quando chegou o momento de realisar essa supplica conheceu que exigia de si mesmo uma cousa sobrehumana, uma cousa superior ás suas forças.

Elle, Pery, o guerreiro invencivel, elle o selvagem livre, o senhor das florestas, o rei dessa terra virgem, o chefe da mais valente nação dos Guaranys, supplicar a vida ao inimigo! Era impossivel.

Tres vezes quiz ajoelhar, e tres vezes as curvas de suas pernas distendendo-se como duas molas de aço o obrigárão a erguer-se.

Finalmente a lembrança de Cecilia foi mais forte do que a sua vontade.

Ajoelhou.


XIV
O PRISIONEIRO

Quando os selvagens se precipitavão sobre o inimigo, que já não se defendia e se confessava vencido, o velho cacique adiantou-se; e deixando cahir a mão sobre o hombro de Pery, fez um movimento energico com o braço direito decepado.

Este movimento exprimia que Pery era seu prisioneiro, que lhe pertencia como o primeiro que tinha posto a mão sobre elle, como o seu vencedor; e que todos devião respeitar o seu direito de propriedade, o seu direito da guerra.

Os selvagens abaixárão as armas, e não derão um passo; esse povo barbaro tinha seus costumes e suas leis; e uma dellas era esse direito exclusivo do vencedor sobre o seu prisioneiro de guerra, essa conquista do fraco pelo forte.

Tinhão em tanta conta a gloria de trazerem um captivo de combate e sacrifica-lo no meio das festas e ceremonias que costumavão celebrar, que nenhum selvagem matava o inimigo que se rendia; fazia-o prisioneiro.

Quanto a Pery, vendo o gesto do cacique e o effeito que produzia, a sua physionomia expandio-se; a humildade tingida, a posição supplicante que por um esforço supremo conseguira tomar, desappareceu immediatamente.

Ergueu-se; e com um soberbo desdem estendeu os punhos aos selvagens que por mandado do velho se dispunhão a ligar-lhe os braços; parecia antes um rei que dava uma ordem aos seus vassallos, do que um captivo que se sujeitava aos vencedores; tal era a altivez do seu porte, e o desprezo com que encarava o inimigo.

Os Aymorés, depois de ligarem os punhos do prisioneiro, o conduzirão a alguma distancia a sombra de uma arvore, e ahi o prendêrão com uma corda de algodão matizada de varias côres, a que os Guaranys chamavão mussurana.

Depois, ao passo que as mulheres enterravão os mortos, reunirão-se em conselho, presididos pelo velho cacique, a quem todos ouvião com respeito, e respondião cada um por sua vez.

Durante o tempo que os guerreiros fallavão, a pequena india escolhia os melhores fructos, as bebidas mais bem preparadas, e offerecia ao prisioneiro, a quem estava encarregada de servir.

Pery, sentado sobre a raiz da arvore e apoiado contra o tronco, não percebia o que se passava em torno delle; tinha os olhos fitos na esplanada da casa que se elevava a alguma distancia.

Via o vulto de D. Antonio de Mariz que assomava por cima da palissada; e suspensa ao seu braço, reclinada sobre o abysmo, Cecilia, sua linda senhora, que lhe fazia de longe um gesto de desespero; ao lado Alvaro e a familia.

Tudo que elle havia amado neste mundo ali estava diante de seus olhos; sentia um prazer intenso por ver ainda uma vez esses objectos de sua dedicação extrema, de seu amor profundo.

Adivinhava e comprehendia o que sentia então o coração de seus bons amigos; sabia que soffrião vendo-o prisioneiro, proximo a morrer, sem terem o poder e a força para salva-lo das mãos do inimigo.

Consolava-o porém essa esperança que estava prestes a realisar-se; esse gozo ineffavel de salvar sua senhora, e de deixa-la feliz no seio de sua familia, protegida pelo amor de Alvaro.

Emquanto Pery, preoccupado por essas idéas, enlevava-se ainda uma vez em contemplar mesmo de longe a figura de Cecilia, a india de pé de fronte delle olhava-o com um sentimento de prazer misturado de surpreza e curiosidade.

Comparava suas fórmas esbeltas e delicadas com o corpo selvagem de seus companheiros; a expressão intelligente de sua physionomia com o aspecto embrutecido dos Aymorés; para ella Pery era um homem superior e excitava-lhe profunda admiração.

Foi só quando Cecilia e D. Antonio de Mariz desapparecêrão da esplanada, que Pery, lançando ao redor um olhar para ver se a sua morte ainda se demoraria muito, descobrio a india perto delle.

Voltou o rosto e continuou a pensar em sua senhora, e a rever a sua imagem; debalde a menina selvagem, lhe apresentava um lindo fructo, um alimento, um vinho saboroso; elle não lhe dava attenção.

A india tornou-se triste por causa dessa obstinação com que o prisioneiro recusava o que lhe offerecia; e achegando-se levantou a cabeça pensativa de Pery.

Havia nos olhos da menina tanto fogo, tanta lubricidade no seu sorriso; as ondulações morbidas do seu corpo trahião tantos desejos e tanta voluptuosidade, que o prisioneiro comprehendeu immediatamente qual era a missão dessa enviada da morte, dessa esposa do tumulo, destinada a embellezar os ultimos momentos da vida!

O indio voltou o rosto com desdem; recusava as flôres como tinha recusado os fructos; repellia a embriaguez do prazer como havia repellido a embriaguez do vinho.

A menina enlaçou-o com os braços, murmurando palavras entrecortadas de uma lingua desconhecida, da lingua dos Aymorés, que Pery não entendia; era talvez uma supplica, ou um consolo com que procurava mitigar a dôr do vencido.

Mal sabia que o indio ia morrer feliz e esperava o supplicio como a realisação de um sonho doce, como a satisfação de um desejo querido e por muito tempo afagado com amor.

Mas podia ella, pobre selvagem, presentir e mesmo comprehender semelhante cousa? O que sabia era que Pery ia ser morto; que ella devia suavisar-lhe a ultima hora; e cumpria esse dever com um certo contentamento.

Pery sentindo os braços da menina cingirem seu collo, repellio-a vivamente para longe de si; e voltando procurou ver por entre as folhas se descobria os preparativos que os Aymorés fazião para o sacrificio.

Tardava-lhe o momento supremo em que devia ser immolado á colera e á vingança dos inimigos; sua altivez revoltava-se contra essa humilhação do captiveiro.

A india continuava a olha-lo tristemente, e sem comprehender porque a repellia; ella era linda e desejada por todos os jovens guerreiros de sua tribu; seu pai, o velho cacique, tinha-a destinado para o mais valente prisioneiro, ou para o mais forte dos vencedores.

Depois de conservar-se muito tempo nesta posição, a menina adiantou-se de novo, tomou um vaso cheio de cauim, e apresentou-o a Pery sorrindo e quasi supplicante.

Ao gesto de recusa que fez o indio, ella deitou o vaso no rio, e escolhendo sobre as folhas um cardo vermelho e doce como um favo de mel, estendeu a mão e tocou com o fructo a bocca do prisioneiro.

Pery engeitou o fructo como tinha engeitado o vinho, e a virgem selvagem atirando-o por sua vez ao rio, aproximou-se e offereceu ao prisioneiro seus labios encarnados, ligeiramente destendidos como para receberem o beijo que pedião.

O indio fechou os olhos, e pensou em sua senhora. Elevando-se até Cecilia, seu pensamento desprendia-se do involucro terrestre, e adejava n'uma atmosphera pura e isenta da fascinação dos sentidos que escravisa o homem.

Comtudo Pery sentia o halito ardente da menina que lhe requeimava as faces: entreabrio os olhos, e viu-a na mesma posição, esperando uma caricia, um afago daquelle a quem a sua tribu mandára que amasse, e a quem ella já amava espontaneamente.

Na vida selvagem, tão proxima da natureza, onde a conveniencia e os costumes não reprimem os movimentos do coração, o sentimento é uma flor que nasce como a flor do campo, e cresce em algumas horas com uma gota de orvalho e um raio de sol.

Nos tempos de civilisação, ao contrario, o sentimento torna-se planta exotica; e só vinga e floresce nas estufas, isto é, nos corações onde o sangue é vigoroso, e o fogo da paixão ardente e intenso.

Vendo Pery no meio do combate, só contra toda a sua tribu, a india o admirara: contemplando-o depois quando prisioneiro, o achára mais bello do que todos os guerreiros.

Seu pai a destinára para esposa do inimigo que ia ser sacrificado; e portanto ella que começára por admira-lo acabava por deseja-lo, por ama-lo algumas horas apenas depois que o tinha visto.

Mas Pery, frio e indifferente, não se commovia, nem aceitava essa affeição passageira e ephemera que tinha começado com o dia e devia acabar com elle, sua idéa fixa, a lembrança de seus amigos, o protegia contra a tentação.

Voltando as costas, levantou os olhos ao céo para evitar o rosto da selvagem que acompanhava a sua vista, como certas flôres acompanhão a rotação apparente do sol.

Entre a folhagem das arvores passava-se uma das scenas graciosas e singelas, que a cada momento no campo se offerecem á attenção daquelles que estudão a natureza nas suas pequenas creaturas.

Um casal de corrixos, que tinha feito o seu ninho n'um ramo, sentindo a habitação do homem e o fogo em baixo da arvore, mudava a sua pequena casa de palha e algodão.

Um desfazia com o bico o ninho, e o outro conduzia a palha para longe, para o lugar onde ião novamente fabrica-lo; quando acabárão este trabalho, acariciárão-se, e batendo as azas forão esconder o seu amor n'algum lindo retiro.

Pery se divertia em ver esse innocente idyllio, quando a india levantando-se de repente soltou um pequeno grito de alegria e de prazer, e sorrindo mostrou ao prisioneiro os dous passarinhos que voavão um a par do outre sobre o cupola da floresta.

Emquanto elle procurava comprehender o que queria dizer este aceno, a virgem desappareceu, e voltou quasi immediatamente trazendo um instrumento de pedra que cortava como faca e um arco de guerra.

Aproximou-se do indio, soltou-lhe os laços que lhe ligavão os punhos, e partio a mussurana que o prendia á arvore. Executou isto com uma extrema rapidez; e entregando a Pery o arco e as flechas, estendeu a mão na direcção da floresta, mostrando-lhe o espaço que se abria diante delles.

Seus olhos e o seu gesto fallavão melhor do que a sua linguagem inculta, e exprimião claramente o seu pensamento:

—Tu és livre. Partamos!


FIM DA TERCEIRA PARTE.


QUARTA PARTE
A CATASTROPHE


I
ARREPENDIMENTO

Quando Loredano afastou-se de João Feio que o acabava de ameaçar, chamou quatro companheiros em quem mais confiava, e retirou-se com elles para a despensa.

Fechou a porta afim de interceptar a communicação com os aventureiros, e poder tranquillamente tratar o negocio que tinha em mente.

Nesse curto instante havia feito uma modificação no seu plano da vespera; as palavras de ameaça ha pouco proferidas lhe revelárão que o descontentamento começava a lavrar. Ora, o italiano não era homem que recuasse diante de um obstaculo, e deixasse roubarem-lhe a esperança, que nutria desde tanto tempo.

Resolveu trazer as cousas rapidamente e executar naquelle mesmo dia o seu intento: seis homens fortes e destemidos bastavão para levar ao cabo a empreza que projectára.

Tendo fechado a porta, guiou os quatro aventureiros á sala que tocava com o oratorio, e onde Martim Vaz continuava a sua obra de demolição, minando a parede que os separava da familia.

—Amigos, disse o italiano, estamos n'uma posição desesperada; não temos força para resistir aos selvagens, e mais dia menos dia havemos de succumbir.

Os aventureiros abaixarão a cabeça e não respondêrão; sabião que aquella era a triste verdade.

—A morte que nos espera é horrivel; serviremos de pasto a esses barbaros que se alimentão de carne humana; nossos corpos sem sepultura cevarão os instinctos ferozes dessa horda de cannibaes!...

A expressão do horror se pintou na physionomia daquelles homens, que sentirão um calafrio percorrer-lhes os membros e penetrar até á medulla dos ossos.

Loredano demorou um instante o seu olhar perspicaz sobre esses rostos decompostos:

—Tenho porém um meio de salvar-vos.

—Qual? perguntárão todos á uma voz.

—Esperai. Posso salvar-vos; mas isto não quer dizer que esteja disposto a fazê-lo.

—Por que razão?

—Por que... Porque todo o serviço tem o seu preço.

—Que exigis então? disse Martim Vaz.

—Exijo que me acompanheis, que me obedeçais cegamente, succeda o que succeder.

—Podeis ficar descansado, disse um dos aventureiros; eu respondo pelos meus companheiros.

—Sim! exclamarão os outros.

—Bem! Sabeis o que vamos fazer, já, neste momento?

—Não; mas vós nos direis.

—Escutai! Vamos acabar de demolir esta parede e atira-la dentro; entrar nessa sala, matar tudo quanto encontrarmos, menos uma pessoa.

—E essa pessoa...

—É a filha de D. Antonio de Mariz, Cecilia. Se algum de vós deseja a outra, póde toma-la; eu vol-a dou.

—E depois disto feito?

—Tomamos conta da casa; reunimos os nossos companheiros, e atacamos os Aymorés.

—Mas isto não nos salvará, retrucou um dos aventureiros; ha pouco dissestes que não temos força para resistir-lhes.

—De certo! acudio Loredano; não lhes resistiremos, mas nos salvaremos.

—Como! disserão os aventureiros desconfiados.

O italiano sorrio.

—Quando disse que atacaremos o inimigo, não fallei claro: queria dizer que os outros o atacarão.

—Não vos entendo ainda; fallai mais claro.

—Ahi vai pois. Dividiremos os nossos homens em duas bandas; nós e mais alguns pertenceremos a uma que ficará sob a minha obediencia.

—Até aqui vamos bem.

—Isto feito, uma das bandas sahirá da casa para fazer uma sortida emquanto os outros atacarão os selvagens do alto do rochedo; é um estratagema já velho e que deveis conhecer; metter o inimigo entre dous fogos.

—Adiante; continuai.

—Como a expedição de sahir é a mais perigosa e arriscada, tomo-a sobre mim; vós me acompanhais e marchamos. Sómente em lugar de marchar sobre o inimigo, marchamos sobre o mais proximo povoado.

—Oh! exclamarão os aventureiros.

—Sob pretexto de que os selvagens podem cortar-nos a entrada da casa por alguns dias, levamos provisão de viveres. Caminhamos sem parar, sem olhar atrás; e prometto-vos que nos salvaremos.

—Uma traição! gritou um dos aventureiros. Entregarmos nossos companheiros nas mãos dos inimigos!

—Que quereis? A morte de uns é necessaria para a vida dos outros; este mundo é assim: não seremos nós que o havemos de emendar; andemos com elle.

—Nunca! Não faremos isto! É uma vilania!

—Bom, respondeu Loredano friamente, fazei o que vos aprouver. Ficai; quando vos arrependerdes será tarde.

—Mas, ouvi...

—Não; não conteis já comigo. Julgei que fallava a homens a quem valesse salvar a vida; vejo que me enganei. Adeus.

—Se não fôra uma traição...

—Que fallais em traição!... replicou o italiano com arrogancia. Dizei-me, credes vós que algum escapará d'aqui na posição em que nos achamos? Morreremos todos. Pois se assim é, mais vale que se salvem alguns.

Os aventureiros parecêrão abalados por este argumento.

—Elles mesmos, continuou Loredano, a menos de serem egoistas, não terão o direito de se queixarem; e morrerão com a satisfação de que sua morte foi util aos seus companheiros, e não esteril como deve ser se ficarmos todos de braços cruzados.

—Vá feito; tendes razões a que não se resiste. Contai comnosco, acudio um aventureiro.

—Comtudo levarei sempre um remorso, disse outro.

—Faremos dizer uma missa por sua alma.

—Bem lembrado! respondeu o italiano.

Os aventureiros forão ajudar o seu companheiro na demolição surda da parede, e Loredano ficou só retirado a um canto.

Por algum tempo acompanhou com a vista o trabalho dos cinco homens; depois tirou um largo cinto de escamas de aço que apertava o seu gibão.

Da parte interior desse cinto havia uma estreita abertura pela qual elle sacou um pergaminho dobrado ao comprido, era o famoso roteiro das minas de prata.

Revendo esse papel, todo o seu passado debuxou-se na sua memoria, não para deixar-lhe o remorso, mas para exita-lo a proseguir em busca desse thesouro que lhe pertencia, e do qual não podia gozar.

Foi tirado da sua distracção por um dos aventureiros, que se achegára para elle desapercebido, e depois de olhar por muito tempo o papel, dirigio-lhe a palavra:

—Não podemos derrubar a parede.

—Porque? perguntou Loredano erguendo-se. Está segura?

—Não é isso, basta um empurrão; mas o oratorio?

—Que tem o oratorio?

—Que tem? Os santos, as sagradas imagens bentas não são cousa que se atire ao chão! Se tão damnada tentação nos tomasse, pediríamos a Deus que nos livrasse della.

Loredano desesperado dessa nova resistencia, cuja força elle conhecia, passeava pela sala de uma ponta á outra.

—Estupidos! murmurava elle. Basta um fragmento de madeira e um pouco de argila para fazê-los recuar! E dizem que são homens! Animaes sem intelligencia, que nem sequer têm o instincto da conservação!...

Alguns momentos decorrêrão: os aventureiros parados esperavão a resolução do seu chefe.

—Tendes medo de tocar nos santos, disse Loredano avançando para elles; pois bem, serei eu que deitarei a parede abaixo. Continuai, e avisai-me quando for tempo.

Emquanto isto se passava, o resto dos aventureiros que ficara no alpendre ouvia a narração de João Feio, que lhes communicava as revelações de mestre Nunes.

Quando elles souberão que Loredano era um frade que abjurára dos seus votos, erguêrão-se furiosos, e quizerão procura-lo e espedaça-lo.

—Que ides fazer? gritou o aventureiro. Não é assim que elle deve acabar; a sua morte ha de ser uma punição, uma terrivel punição. Deixai-me arranjar isto.

—Para que mais demora? respondeu Vasco Affonso.

—Prometto-vos que não haverá demora; hoje mesmo será condemnado; amanhã receberá o castigo de seus crimes.

E porque não hoje?

—Deixemos-lhe o tempo de arrepender-se; é preciso que antes de morrer sinta remorso do que praticou.

Os aventureiros decidirão por fim seguir esse conselho, e esperárão que Loredano apparecesse para se apoderarem delle, e o condemnarem summariamente.

Passou-se um bom espaço de tempo, e nada do italiano sahir; era quasi meio-dia.

Os aventureiros estavão desesperados de sêde; a sua provisão de agua e de vinho, já bastante diminuida depois do sitio dos selvagens, achava-se na despensa, cuja porta Loredano fechara por dentro.

Felizmente descobrirão no quarto do italiano algumas garrafas de vinho, que bebêrão no meio de risadas e chacotas, fazendo brindes ao frade que ião dentro em pouco condemnar á pena de morte.

No meio da hilaridade algumas palavras revelavão o arrependimento que começava a se apoderar delles; fallavão de ir pedir perdão ao fidalgo, de se reunir de novo a elle, e ajuda-lo a bater o inimigo.

Se não fosse a vergonha da má acção que tinhão praticado, correrião a lançar-se ao joelhos de D. Antonio de Mariz immediatamente; mas resolvêrão fazê-lo quando o principal autor da revolta tivesse recebido o castigo do seu crime.

Seria esse o seu primeiro titulo ao perdão que ião supplicar; seria mais a prova da sinceridade do seu arrependimento.


II
O SACRIFICIO

Pery comprehendêra o gesto da india; não fez porém o menor movimento para segui-la.

Fitou nella o seu olhar brilhante e sorrio.

Por sua vez a menina tambem comprehendeu a expressão daquelle sorriso e a resolução firme e inabalavel que se lia na fronte serena do prisioneiro.

Insistio por algum tempo, mas debalde. Pery tinha atirado para longe o arco e as flechas, e recostando-se ao tronco da arvore, conservava-se calmo e impassivel.

De repente o indio estremeceu.

Cecilia apparecêra no alto da esplanada, e lhe acenára; sua mãozinha alva e delicada agitando-se no ar parecia dizer-lhe que esperasse; Pery julgou mesmo ver no rostinho gentil de sua senhora, apezar da distancia, brilhar um raio de felicidade.

Quando com os olhos fitos naquella graciosa visão elle esforçava-se por adivinhar a causa de tão subita alegria, a india soltou um segundo grito selvagem, um grito terrivel.

Tinha pela direcção do olhar do prisioneiro visto Cecilia sobre a esplanada; tinha percebido o gesto da menina, e comprehendêra vagamente a razão por que Pery recusára a liberdade e o seu amor. Precipitou-se sobre o arco que estava atirado ao chão; mas apezar da rapidez desse movimento, quando ella estendia a mão, já Pery tinha posto o pé sobre a arma.

A selvagem, com os olhos ardentes, os labios entreabertos, tremula de ciume e de vingança, levantou sobre o peito do indio a faca de pedra com que lhe cortara os laços ha pouco; mas a arma cahio-lhe da mão, e vacillando apoiou-se no seio que ameaçára.

Pery tomou-a nos braços, deitou-a sobre a relva, e sentou-se de novo junto ao tronco da arvore, tranquillo a respeito de Cecilia, que desapparecêra da esplanada e estava fora de perigo.

Era a hora em que a sombra das montanhas sobe ás encostas, e o jacaré deitado sobre a arêa se aquece aos raios do sol.

O ar estrugio com os sons roucos da inubia e do maracá; ao mesmo tempo um canto selvagem, o canto guerreiro dos Aymorés, misturou-se com a harmonia sinistra daquelles instrumentos ásperos e retumbantes.

A india deitada junto da arvore sobresaltou-se; e erguendo-se rapidamente, acenou ao prisioneiro mostrando-lhe a floresta e supplicando-lhe que fugisse. Pery sorrio como da primeira vez; tornando a mão da menina a fez sentar perto delle, e tirou do pescoço a cruz de ouro que Cecilia lhe havia dado.

Então começou entre elle e a selvagem uma conversa por acenos de que seria difficil dar uma idéa.

Pery dizia á menina que lhe dava aquella cruz como uma lembrança, mas que só depois que elle morresse é que devia tira-la do pescoço. A selvagem entendeu ou julgou entender o que Pery procurava exprimir symbolicamente, e beijou-lhe as mãos em signal de reconhecimento.

O prisioneiro obrigou-a a atar de novo os laços que o ligavão, e que ella no seu generoso impulso de dar-lhe a liberdade havia desfeito.

Nesse momento quatro guerreiros Aymorés dirigirão-se á arvore em que se achava Pery; e segurando as pontas da corda o conduzirão ao campo, onde tudo estava já preparado para o sacrificio.

O indio ergueu-se e caminhou com o passo firme e a fronte alta diante dos quatro inimigos, que não percebêrão o olhar rapido que nessa occasião elle lançou ás pontas da sua tunica de algodão, torcidas em dous nós pequenos.

O campo cortado em ellipse no meio das arvores estava cercado por cento e tantos guerreiros armados em guerra e cobertos de ornatos de pennas.

No fundo as velhas pintadas de listras negras e amarellas, de aspecto horrido, preparavão um grande brasido, lavavão a lage que devia servir de mesa, e afiavão as suas facas de ossos e lascas de pedra.

As moças grupadas de um lado guardavão os vasos cheios de vinho e bebidas fermentadas, que offerecião aos guerreiros quando estes passavão diante dellas entoando o canto de guerra dos Aymorés.

A menina que fôra incumbida de servir ao prisioneiro, e o acompanhára ao lugar do sacrificio, conservava-se a alguma distancia, e olhava tristemente todo esses preparativos; pela primeira vez seu instincto natural parecia relevar-lhe a atrocidade desse costume tradicional de seus pais, a que ella tantas vezes assistira com prazer.

Agora que ia representar como heroina no drama terrivel, e como esposa do prisioneiro devia acompanha-lo até o momento supremo, insultando-lhe a dôr e a desgraça, o seu coração confrangia-se; porque realmente amava Pery, tanto quanto amar era possivel a uma natureza como a sua.

Chegados ao campo, os selvagens que conduzião o prisioneiro passárão as pontas da corda ao tronco de duas arvores, e esticando o laço o ohrigárão a ficar immovel no meio do terreiro. Os guerreiros desfilárão em roda entoando o canto da vingança; as inubias retroárão de novo; os gritos confundirão-se com o som dos maracás, e tudo isto formou um concerto horrivel.

Á medida que se animavão, a cadencia apressava-se, de modo que a marcha triumphal dos guerreiros se tornava uma dansa macabria, uma corrida veloz, uma valsa fantastica, em que todos esses vultos horrendos, cobertos de pennas que brilhavão á luz do sol, passavão como espiritos satanicos envoltos na chamma eterna.

A cada volta que fazia esse sabbat, um dos guerreiros destacava-se do circulo, e adiantando-se para o prisioneiro o desafiava ao combate, e conjurava-o a que désse provas de sua coragem, de sua força e de seu valor.

Pery, sereno e altivo, recebia com um soberbo desdem a ameaça e o insulto, e sentia um certo orgulho pensando que no meio de todos aquelles guerreiros fortes e armados, elle, o prisioneiro, o inimigo que ia ser sacrificado, era o verdadeiro, o unico vencedor.

Talvez pareça isto incomprehensivel; mas o facto é que Pery o pensava, e que só o segredo que elle guardava no fundo de sua alma podia explicar a razão desse pensamento e a tranquillidade com que esperava o supplicio.

A dansa continuava no meio dos cantos, dos alaridos e das constantes libações, quando de repente tudo emmudeceo, e o mais profundo silencio reinou no campo dos Aymorés.

Todos os olhos se voltárão para uma cortina de folhas que occultava uma especie de cabana selvagem, construida a um lado do campo em face do prisioneiro.

Os guerreiros se afastárão, as folhas se abrirão, e entre aquellas franjas de verdura assomou o vulto gigantesco do velho cacique. Duas pelles de tapir ligadas sobre os hombros cobrião seu corpo como uma tunica; um grande cocar de pennas escarlates ondeava sobre a sua cabeça, e realçava-lhe a grande estatura.

Tinha o rosto pintado de uma cor esverdeada e oleosa, e o pescoço cingido de uma colleira feita com as pennas brilhantes do tucano; no meio desse aspecto horrendo os seus olhos brilhavão como dous fogos vulcanicos no seio das trevas. Trazia na mão esquerda a tagapema coberta de plumas resplandecentes, e amarrada ao punho direito uma especie de busina formada de um osso enorme da canella de algum inimigo morto em combate.

Chegando á entrada do campo o velho selvagem levou á bocca o seu instrumento barbaro, e tirou delle um som estrondoso; os Aymorés saudárão com gritos de alegria e de enthusiasmo o apparecimento do vencedor.

Ao cacique cabia a honra de ser o algoz da victima, o matador do prisioneiro; seu braço devia consummar a grande obra da vingança, esse sentimento que constituia para aquelles povos fanaticos a verdadeira gloria.

Apenas cessárão as acclamações com que foi acolhida a entrada do vencedor, um dos guerreiros que o acompanhavão adiantou-se e fincou na extrema do campo uma estaca destinada a receber a cabeça do inimigo, logo que ella fosse decepada do corpo.

Ao mesmo tempo a joven india que servia de esposa ao prisioneiro, tirou o tacape que pendia do hombro de seu pai, e caminhando para Pery desligou-lhe os braços e offereceu-lhe a arma, fitando nelle um olhar triste, ardente e cheio de amarga exprobação.

Nesse olhar dizia-lhe que se tivesse aceitado o amor que lhe offerecêra, e com o amor a vida e a liberdade, ella não seria obrigada pelo costume tradicional de sua nação a escarnecer assim da sua morte.

Com effeito esse offerecimento que os selvagens fazião ao prisioneiro de uma arma para se defender, era uma ironia cruel; ligado pelo laço que o prendia, immovel pela tensão da corda, de que lhe servia vibrar o tacape no ar, se não podia attingir os inimigos?

Pery aceitou a arma que a menina lhe trazia; calcando-a aos pés cruzou os braços e esperou o cacique, que avançava lentamente, terrivel e ameaçador.

Chegado em face do prisioneiro, a physionomia do velho esclareceu-se com um sorriso feroz, reflexo dessa embriaguez do sangue, que dilata as narinas do jaguar prestes a saltar sobre a presa.

—Sou teu matador! disse em guarany.

Pery não se admirou ouvindo a sua bella lingua adulterada pelos sons roucos e guturaes que sahião dos labios do selvagem.

—Pery não te teme!

—És Goytacaz?

—Sou teu inimigo!

—Defende-te!

O indio sorrio:

—Tu não mereces.

Os olhos do velho fuzilárão de raiva: a mão cerrou o punho da tagapema; mas elle reprimio logo o assomo da colera.

A esposa do prsioneiro atravessou o campo e offereceu ao vencedor um grande vaso de barro vidrado cheio de vinho de ananaz ainda espumante.

O selvagem virou de um trago a bebida aromatica, e endireitando o seu alto talhe, lançou ao prisioneiro um olhar soberbo:

—Guerreiro Goytacaz, tu és forte e valente; tua nação é temida na guerra. A nação Aymoré é forte entre as mais fortes, valente entre as mais valentes. Tu vais morrer.

O côro dos selvagens respondeu a essa especie de canto guerreiro, que preludiava o tremendo sacrificio.

O velho continou:

—Guerreiro Goytacaz, tu és prisioneiro; tua cabeça pertence ao guerreiro Aymoré; teu corpo aos filhos de sua tribu; tuas entranhas servirão ao banquete da vingança. Tu vais morrer.

Os gritos dos selvagens respondêrão de novo: e o canto se prolongou por muito tempo lembrando os feitos gloriosos da nação Aymoré, e as acções de valor de seu chefe.

Emquanto o velho fallava, Pery o escutava com a mesma calma e impassibilidade; nem um dos musculos do seu rosto trahia a menor emoção; seu olhar limpido e sereno ora fitava-se no rosto do cacique, ora volvia-se pelo campo examinando os preparativos do sacrificio.

Apenas quem o observasse veria que de braços cruzados como estava, uma das mãos desfazia imperceptivelmente um dos nós que havião na ponta de seu saio de algodão.

Quando o velho acabou de fallar encarou o prisioneiro, e recuando dous passos elevou lentamente a pesada clava que empunhava na mão esquerda. Os Aymorés anciosos esperavão; as velhas com as suas navalhas de pedra estremecião de impaciencia; as jovens indias sorrião, emquanto a noiva do prisioneiro voltava o rosto para não ver o espectaculo horrivel que ia apresentar-se.

Nesse momento Pery levando as duas mãos aos olhos cobrio o rosto, e curvando a cabeça ficou algum tempo nessa posição, sem fazer um movimento que revelasse a menor perturbação.

O velho sorrio.

—Tens medo!

Ouvindo estas palavras, Pery ergueu a cabeça com ar senhoril. Uma expressão de jubilo e serenidade irradiava no seu rosto, dir-se-hia o extasi dos martyres da religião que na ultima hora, através do tumulo, entrevêm a felicidade suprema.

A alma nobre do indio prestes a deixar a terra parecia exhalar já do seu involucro; e pousando nos seus labios, nos seus olhos, na sua fronte, esperava o momento de lançar-se no espaço para ir se abrigar no seio do Creador.

Erguendo a cabeça, fitou os olhos no céo, com se a morte que ia cahir sobre elle fosse uma visão encantadora que descesse das nuvens sorrindo-lhe. Era que nesse ultimo sonho da existência via a linda imagem de Cecilia, feliz, alegre e contente; via sua senhora salva.

—Fere!... disse Pery ao velho cacique.

Os instrumentos retumbarão de novo; os gritos e os cantos se confundirão com aquelles sons roucos, e rebóarão pela floresta como o trovão rolando pelas nuvens.

A tagapema coberta de plumas gyrou no ar scintillando aos raios de sol que ferião as côres brillantes.

No meio desse turbilhão ouvio-se um estrondo, uma ancia de agonisante e o baque de um corpo: tudo isto confusamente, sem que no primeiro instante se podesse perceber o que havia passado.


III
SORTIDA

O estrondo que se ouvio, fôra causado por um tiro que partio d'entre as arvores.

O velho Aymoré vacillou; seu braço que vibrava o tacape com uma força herculea, cahio inerte; o corpo abateu-se como o ipê da floresta cortado pelo raio.

A morte tinha sido quasi instantanea; apenas um estertor de agonia resoou no seu peito largo e ainda ha pouco vigoroso: cahira já cadaver.

Emquanto os selvagens permanecião estaticos diante do que se passava, Alvaro com a espada na mão e a clavina ainda fumegante precipitava-se no meio do campo. De dous talhos rapidos cortou os laços de Pery, e com as evoluções de sua espada conteve os selvagens, que voltando a si cahião sobre elle bramindo de furor.

Immediatamente ouvio-se uma descarga de arcabuzes; dez homens destemidos tendo á sua frente Ayres Gomes saltárão por sua vez com a arma em punho, e começárão a talhar de alto a baixo a grandes golpes de espada.

Não parecião homens, e sim dez demonios, dez machinas de guerra vomitando a morte de todos os lados; emquanto a sua mão direita imprima á lamina da espada mil voltas, que erão outros tantos golpes terriveis, a esquerda jogava a adaga com destreza e segurança admiravel.

O escudeiro e seus homens tinhão feito um semi-circulo em roda de Alvaro e de Pery, e apresentavão uma barreira de ferro e fogo ás ondas de inimigos que bramião, recuavão, e lançavão-se de novo quebrando-se de encontro a esse dique.

No curto instante que mediou entre a morte do cacique e o ataque dos aventureiros, Pery de braços cruzados olhava impassivel para tudo o que se passava em torno d'elle. Comprehendia então o gesto que sua senhora ha pouco lhe fizera do alto da esplanada, e o raio de esperança e de alegria que elle julgára ver brilhar no seu semblante.

Com effeito no primeiro momento de afflicção Cecilia se lançára para ver o indio, chama-lo ainda, e supplicar-lhe mesmo que não expozesse a sua vida inutilmente.

Não tendo mais visto Pery, a menina sentio um desespero cruel; voltou-se para seu pai, e com as faces orvalhadas de lagrimas, com o seio anhelante, com a voz cheia de angustia, pedio-lhe que salvasse Pery.

D. Antonio de Mariz, antes que sua filha lhe fizesse esse pedido, já tinha-se lembrado de chamar os seus companheiros fieis, e seguido por elles correr contra o inimigo, e livrar o indio da morte certa e inevitavel que procurava.

Mas o fidalgo era um homem de uma lealdade e de uma generosidade a toda a prova; sabia que aquella empreza era de um risco immenso, e não queria obrigar os seus companheiros a partilhar um sacrificio que elle só faria de bom grado á amizade que votava a Pery.

Os aventureiros que se havião dedicado com tanta constancia á salvação de sua familia, não tinhão as mesmas razões para se arriscarem por causa de um homem que não pertencia á sua religião, e que não tinha com elles o menor laço de communidade.

D. Antonio de Mariz perplexo, irresoluto entre a amizade e o seu escrupulo generoso, não soube o que responder a sua filha; procurou consola-la, afflicto por não poder satisfazer immediatamente a sua vontade.

Alvaro, que contemplava esta scena pungente a alguma distancia, no meio dos aventureiros fieis e dedicados que tinha sob suas ordens, tomou repentinamente uma resolução.

Seu coração partia-se vendo Cecilia soffrer; e embora amasse Isabel, a sua alma nobre sentia ainda pela mulher a quem votára os seus primeiros sonhos, uma affeição pura, respeitosa, uma especie de culto.

Era uma cousa singular na vida dessa menina; todas as paixões, todos os sentimentos que a envolvião soffrião a influencia de sua innocencia, e ião a pouco e pouco depurando-se e tomando um quer que seja de ideal, um cunho de adoração.

O mesmo amor ardente e sensual de Loredano, quando se tinha visto em face della, adormecida na sua casta isenção, emmudecêra e hesitara um momento se devia manchar a santidade do seu pudor.

Alvaro trocou com os aventureiros algumas palavras; e dirigio-se para o grupo que formavão D. Antonio de Mariz e sua filha.

—Consolai-vos, D. Cecilia; disse o moço, e esperai!

A menina fitou nelle os seus olhos azues cheios de reconhecimento; aquella palavra era ao menos uma esperança.

—Que contais fazer! perguntou D. Antonio ao cavalheiro.

—Tirar Pery das mãos do inimigo!

—Vós!... exclamou Cecilia.

—Sim, D. Cecilia, disse o moço; aquelles homens dedicados vendo a vossa afflicção sentirão-se commovidos e desejão poupar-vos uma justa mágoa.

Alvaro attribuia a generosa iniciativa aos seus companheiros, quando elles não tinhão feito senão aceita-la com enthusiasmo.

Quanto a D. Antonio de Mariz, sentira uma intima satisfação ouvindo as palavras do moço: seus escrupulos cessavão desde que seus homens espontaneamente se offerecião para realisar aquella difficil empreza.

—Cedereis-me uma parte dos nossos homens; quatro ou cinco me bastão; continuou o moço dirigindo-se ao fidalgo; ficareis com o resto para defender-vos no caso de algum ataque imprevisto.

—Não; respondeu D. Antonio; levai-os todos, já que se prestão a essa tão nobre acção, que não me animava a exigir de sua coragem. Para defender a minha filha, basto eu, apezar de velho.

—Desculpai-me, Sr. D. Antonio, replicou Alvaro; mas é uma imprudencia a que me opponho; pensai que a dous passos de vós existem homens perdidos, que nada respeitão, e que espião o momento de fazer-vos mal.

—Sabeis se prezo e estimo esse thesouro cuja guarda me foi confiada por Deus. Julgais que haja neste mundo alguma cousa que me faça expo-lo a um novo perigo? Acreditai-me: D. Antonio de Mariz, só, defenderá sua familia, emquanto vós salvareis um bom e nobre amigo.

—Confiais demasiado em vossas forças!...

—Confio em Deus, e no poder que elle collocou em minha mão: poder terrivel, quando chegar o momento fulminará todos os nossos inimigos com a rapidez do raio.

A voz do velho fidalgo pronunciando estas palavras tinha-se revestido de uma solemnidade imponente; o seu rosto illuminou-se com uma expressão de heroismo e de magestade que realçou a belleza severa do seu busto veneravel.

Alvaro olhou com uma admiração respeitosa o velho cavalheiro emquanto Cecilia, pallida e palpitante das emoções que sentira, esperava com anciedade a decisão que ião tomar.

O moço não insistio e sujeitou-se á vontade de D. Antonio de Mariz;

—Obedeço-vos; iremos todos e voltaremos mais promptos.

O fidalgo apertou-lhe a mão:

—Salvai-o!

—Oh! sim, exclamou Cecilia, salvai-o, Sr. Alvaro.

—Juro-vos, D. Cecilia, que só a vontade do céo fará que eu não cumpra a vossa ordem.

A menina não achou uma palavra para agradecer essa generosa promessa; toda a sua alma partio-se n'um sorriso divino.

Alvaro inclinou-se diante della; foi juntar-se aos aventureiros, e deo-lhes ordem de se prepararem para partir. Quando o moço entrou na sala então deserta para tomar a suas armas, Isabel, que já sabia do seu projecto, correu a elle pallida e assustada.

—Ides bater-vos? disse ella coma voz tremula.

Em que isto vos admira? Não nos batemos todos os dias com o inimigo!

—De longe!... Defendidos pela posição! Mas agora é differente!

—Não vos assusteis. Isabel! Daqui a uma hora estarei de volta.

O moço passou a clavina á tiracollo e quiz sahir.

Isabel tomou-lhe as mãos com um movimento arrebatado; seus olhos scintillavão com um fogo estranho; suas faces estavão incendiadas de vivo rubor.

O moço procurou tirar as mãos daquella pressão ardente e apaixonada:

—Isabel, disse elle com uma doce exprobação; quereis que falte á minha palavra, que recue diante de um perigo?

—Não! Nunca eu vos pediria semelhante cousa! Era preciso que não vos conhecesse, e que não... vos amasse!...

—Mas então dexai-me partir.

—Tenho uma graça a supplicar-vos?

—De mim?... Neste momento?

—Sim! Neste momento!... Apezar do que me dizieis ha pouco, apezar do vosso heroismo, sei que caminhais a uma morte certa, inevitavel.

A voz de Isabel tornou-se balbuciante:

—Quem sabe... se nos veremos mais neste mundo?!

—Isabel!... disse o moço querendo fugir para evitar a commoção que se apoderava delle.

—Promettestes fazer-me a graça que vos pedi.

—Qual?

—Antes de partir, antes de me dizer adeus para sempre...

A moça fitou no cavalheiro um olhar que fascinava.

—Fallai!... fallai!...

—Antes de nos separarmos, eu vos supplico, deixai-me uma lembrança vossa!... Mas uma lembrança que fique dentro de minha alma!

E a menina cahio de joelhos aos pés de Alvaro, occultando seu rosto que o pudor revoltado em luta com a paixão cobria de um brillante carmim.

Alvaro ergueu-a confusa e vergonhosa do que tinha feito, e chegando os seus labios ao ouvido proferio, ou antes murmurou uma phrase.

O semblante de Isabel expandio-se; uma aureola de ventura cingio a sua fronte; seu seio dilatou-se, e respirou com a embriaguez do coração feliz.

—Eu te amo!

Era a phrase que Alvaro deixára cahir na sua alma, e que a enchia toda como um effluvio celeste, como um canto divino que resoava nos seus ouvidos e fazia palpitar todas as suas fibras.

Quando ella sahio desse extasi, o moço tinha sahido da sala, e unia-se aos seus companheiros promptos a marchar.

Foi nessa occasião que Cecilia, chegando imprudentemente á palissada, fez a Pery un aceno que lhe dizia esperasse.

A pequena columna partio commandada por Alvaro e por Ayres Gomes, que depois de tres dias não deixava o seu posto dentro do gabinete do fidalgo.

Quando os bravos combatentes desapparecêrão na floresta, D. Antonio de Mariz recolheu-se com sua familia para a sala, e sentando-se na sua poltrona esperou tranquillamente. Não mostrava o menor temor de ser atacado pelos aventureiros revoltados, que estavão a alguns passos de distancia apenas, e que não deixarião de aproveitar um ensejo tão favoravel.

D. Antonio tinha a este respeito uma completa segurança; tendo fechada as portas e examinado a escorva de suas pistolas, recommendou silencio, afim de que nem um rumor lhe escapasse.

Vigilante e attento, o fidalgo reflectia ao mesmo tempo sobre o facto que se acabava de passar, e que o tinha profundamente impressionado.

Conhecia Pery e não podia comprehender como o indio, sempre tão intelligente e tão perspicaz, se deixára levar por uma louca esperança a ponte de ir elle só atacar os selvagens.

A extrema dedicação do indio por sua senhora, o desespero da posição em que se achavão, podia explicar essa hallucinação, se o fidalgo não soubesse quanto Pery tinha a calma, a força e o sangue-frio que tornão o homem superior a todos os perigos. O resultado de suas reflexões foi que havia no procedimento de Pery alguma cousa que não estava clara e que devia explicar-se mais tarde.

Ao passo que elle se entregava a esses pensamentos, Alvaro tinha feito uma volta, e favorecido pela festa dos selvagens se aproximara sem ser percebido.

Quando avistou Pery a algumas braças de distancia, o velho cacique levantava a tagapema sobre a sua cabeça.

O moço levou a clavina ao rosto; e a bala sibilando foi atravessar o craneo do selvagem.


IV
REVELAÇÃO

Apenas Alvaro, com a chegada dos seus companheiros, viu-se livre dos inimigos que o atacavão, voltou a Pery, que assistia immovel a toda esta scena.

—Vinde! disse o moço com autoridade.

—Não! respondeu o indio friamente.

—Tua senhora te chama!

Pery abaixou a cabeça com uma profunda tristeza.

—Dize á senhora que Pery deve morrer; que vai morrer por ella. E tu parte, porque senão seria tarde.

Alvaro olhou a physionomia intelligente do indio para ver se descobria nella algum signal de perturbação de espirito: porque o moço não comprehendia, nem podia comprehender a causa desta obstinação insensata.

O rosto de Pery, calmo e sereno, não lhe deixou ver senão uma resolução firme, inabalavel, tanto mais profundo quando se mostrava sob uma apparencia de socego e tranquillidade.

—Assim, tu não obedece á tua senhora?

Pery custou a arrancar a palavra dos labios.

—A ninguem.

Quando pronunciava esta palavra, um grito fraco soou ao lado delle; voltando-se viu a india que lhe havião destinado por esposa cahindo atravessada por uma flecha.

O tiro fôra destinado a Pery por um dos selvagens, e a menina lançando-se para cobrir o corpo daquelle que amára uma hora recebêra a setta no peito.

Seus olhos negros, desmaiados pelas sombras da morte, volvêrão a Pery um ultimo olhar; e cerrando tornárão a abrir-se, já sem vida e sem brilho. Pery sentio um movimento de piedade e sympathia vendo essa victima de sua dedicação, que como elle sacrificava sem hesitar a sua existencia para salvar aquelle a quem amava.

Alvaro nem se apercebeu do que acabava de passar; lançando um olhar para seus homens que batião-se valentemente com os Aymorés fez um aceno a Ayres Gomes.

—Escuta, Pery; tu sabes se costumo cumprir a minha palavra. Jurei a Cecilia levar-te; e ou tu me acompanhas, ou morreremos todos neste lugar.

—Faze o que quizeres! Pery não sahira d'aqui.

—Vês estes homens?... são os unicos defensores que restão á tua senhora; se todos elles morrem, bem sabes que é impossivel que ella se salve.

Pery estremeceu. Ficou um momento pensativo; depois, sem dar tempo a que o seguissem, lançou-se entre as arvores.

D. Antonio de Mariz e sua familia, tendo ouvido os tiros dos arcabuzes, esperavão com anciedade o resultado da expedição.

Dez minutos havião decorrido na maior impaciencia, quando sentirão tocar na porta, e ouvirão a voz de Pery; Cecilia correu, e o indio ajoelhou-se a seus pés pedindo-lhe perdão.

O fidalgo, livre do pezar de perder um amigo, assumira a sua costumada severidade, como sempre que se tratava de uma falta grave.

—Commetteste uma grande imprudencia, disse elle ao indio; fizeste soffrer teus amigos; expozeste a vida daquelles que te amão; não precisas de outra punição além desta.

—Pery ia salvar-te!

—Entregando-te nas mãos do inimigo?

—Sim!

—Fazendo-te matar por elles?

—Matar e...

—Mas qual era o resultado dessa loucura?

O indio calou-se.

—É preciso explicar-te, para que não julguemos que o amigo intelligente e dedicado de outr'ora tornou-se um louco e um rebelde.

A palavra era dura; e o tom em que foi dita ainda aggravava mais a reprehenção severa que ella encerrava.

Pery sentio um lagrima humedecer-lhe as palpebras:

—Obrigas Perry a dizer tudo!

—Deves fazê-lo, se desejas rehabilitar-te na estima que te votava, e que sinto perder.

—Pery vai fallar.

Alvaro entrava nesse momento tendo deixado no alto da esplanada os seus companheiros já livres de perigo, e quites por algumas feridas que não erão felizmente muito graves.

Cecilia apertou as mãos do moço com reconhecimento; Isabel enviou-lhe n'um olhar toda a sua alma.

As pessoas presentes se grupárão ao redor da poltrona de D. Antonio, em face do qual Pery de pé com a cabeça baixa, confuso e envergonhado como um criminoso, ia justificar-se.

Dir-se-hia que confessava uma acção indigna e vil: ninguem adivinhava que sublime heroismo, que concepção gigantesca havia nesse acto, que todos condemnavão como uma loucura.

Elle começou:

«Quando Ararê deitou o seu corpo sobre a terra para não tornar a erguê-lo, chamou Pery e disse:

«Filho de Ararê, teu pai vai morrer; lembra-te que tua carne é a minha carne; que teu sangue é meu sangue. Teu corpo não deve servir ao banquete do inimigo.

«Ararê disse, e tirou suas contas de fructos que deo a seu filho; estavão cheias de veneno; tinhão nellas a morte.

«Quando Pery fosse prisioneiro, bastava quebrar um fructo, e ria do vencedor que não se animaria a tocar no seu corpo.

«Pery viu que a senhora soffria e olhou as suas contas; teve uma idéa; a herança de Ararê podia salvar a todos.

«Se tu deixasses fazer o que queria, quando a noite viesse não acharia um inimigo vivo; os brancos e os indios não te offenderião mais.»

Toda a familia ouvia esta narração com uma surpreza extraordinaria; comprehendião delia que havia em tudo isto uma arma terrivel,—o veneno; mas não podião saber os meios de que o indio se servira ou pretendia servir-se para usar desse agente de destruição.

—Acaba! disse D. Antonio; por que modo contavas então destruir o inimigo?

—Pery envenenou a agua que os brancos bebem, e o seu corpo, que devia servir ao banquete dos Aymorés!

Um grito de horror acolheu essas palavras ditas pelo indio em um tom simples e natural.

O plano que Pery combinára para salvar seus amigos acabava de revelar-se em toda a sua abnegação sublime, e com o cortejo de scenas terriveis e monstruosas que devião acompanhar a sua realisação.

Confiado nesse veneno que os indios conhecião com o nome de curarê, e cuja fabricação era um segredo de algumas tribus, Pery com a sua intelligencia e dedicação descobrira um meio de vencer elle só aos inimigos, apezar do seu numero e da sua força.

Sabia a violencia e o effeito prompto daquella arma que seu pai lhe confiára na hora da morte; sabia que bastava uma pequena parcella desse pó subtil para destruir em algumas horas a organisação a mais forte e a mais robusta. O indio resolveu pois usar desse poder que na sua mão heroica ia tornar-se um instrumento de salvação, e o agente de um sacrificio tremendo feito á amizade.

Dous fructos bastárão; um servio para envenenar a agua e as bebidas dos aventureiros revoltados; o outro acompanhou-o até o momento do supplicio, em que passou de suas mãos aos seus labios.

Quando o cacique vendo-o cobrir o rosto perguntou-lhe se tinha medo, Pery acabava de envenenar o seu corpo, que devia d'ahi a algumas horas ser um germen de morte para todos esses guerreiros bravos e fortes.

O que porém dava a esse plano um cunho de grandeza e de admiração, não era sómente o heroismo do sacrificio; era a belleza horrivel da concepção, era o pensamento superior que ligára tantos acontecimentos, que os submettêra á sua vontade, fazendo-os succeder-se naturalmente e caminhar para um desfecho necessario e infallivel.

Porque, é preciso notar, a menos de um facto extraordinario, desses que a previdencia humana não pode prevenir, Pery quando sahio da casa tinha a certeza de que as cousas se passarião como de facto se passárão.

Atacando os Aymorés a sua intenção era excita-los á vingança; precisava mostrar-se forte, valente, destemido, para merecer que os selvagens o tratassem como um inimigo digno de seu odio. Com a sua destreza e com a precaução que tomára tornando o seu corpo impenetravel, contava evitara morte antes de poder realisar o seu projecto; quando mesmo cahisse ferido, tinha tempo de passar o veneno aos labios.

A sua previsão porém não o illudio; tendo conseguido o que desejava, tendo excitado a raiva dos Aymorés, quebrou a sua arma, e supplicou a vida ao inimigo; foi de todo o sacrificio o que mais lhe custou.

Mas assim era preciso; a vida de Cecilia o exigia; a morte que o havia respeitado até então podia surprendê-lo; e Pery queria ser feito prisioneiro, como foi, e contava ser.

O costume dos selvagens, de não matar na guerra o inimigo e de captiva-lo para servir ao festim da vingança, era para Pery uma garantia e uma condição favoravel á execução do seu projecto.

Quanto á peripecia final, que a intervenção de Alvaro obstára; não fôra esse incidente imprevisto, que seria igualmente infallivel.

Segundo as leis tradicionaes do povo barbaro, toda a tribu devia tomar parte no festim, as mulheres moças tocavão apenas na carne do prisioneiro; mas os guerreiros a saboreavão como um manjar delicado, adubado pelo prazer da vingança: e as velhas com a gula feroz das harpias que se cevão no sangue de suas victimas.

Pery contava pois com toda a segurança que dentro de algumas horas o corpo envenenado da victima levaria a morte ás entranhas do seus algozes, e que elle só destruiria toda uma tribu, grande, forte, poderosa, apenas com auxilio dessa arma silenciosa.

Póde-se agora comprehender qual tinha sido o seu desespero vendo esse plano inutilisado; depois de ter desobedecido á sua senhora, depois de haver tudo realisado, quando só faltava o desfecho, quando o golpe que ia salvar a todos cahia, mudar-se de repente a face das cousas, e ver destruida a sua obra, filha de tanta meditação!

Ainda assim quiz resistir, quiz ficar, esperando que os Aymorés continuarião o sacrificio; mas conheceu que a resolução de Alvaro era inabalavel como a sua; que ia ser causa da morte de todos os defensores fieis de D. Antonio, sem ter já a certeza de sua salvação.

No primeiro momento que succedeu á confissão de Pery, todos os actores dessa scena, pallidos, tomados de espanto e de terror, com os olhos cravados no indio, duvidavão ainda do que tinhão ouvido; o espirito horrorisado não formulava uma idéa; os labios tremulos não achavão uma palavra.

D. Antonio foi o primeiro que recobrou a calma; no meio da admiração que lhe causava aquella acção heroica, e das emoções produzidas por essa idéa ao mesmo tempo sublime e horrivel, uma circumstancia o tinha sobretudo impressionado.

Os aventureiros ião ser victimas do envenenamento; e por maior que fosse o gráo de baixeza e aviltamento a que tinhão descido esses homens pela sua traição, a nobreza do fidalgo não podia soffrer semelhante homicidio.

Elle os puniria a todos com a morte ou com o desprezo, essa outra morte moral; mas o castigo na sua opinião elevava a morte á altura de um exemplo; emquanto que a vingança a fazia descer ao nivel do assassinato.

—Vai, Ayres Gomes, gritou D. Antonio ao seu escudeiro; corre e previne a esses desgraçados, se ainda é tempo!


V
O PAIOL

Cecilia ouvindo a voz de seu pai estremeceu como se acordasse de um sonho.

Atravessou o aposento com passo vacillante, e chegando-se a Pery, fitou nelle os seus lindos olhos azues com uma expressão indefinivel.

Havia nesse olhar ao mesmo tempo a admiração immensa que lhe causava a acção heroica do indio; a dôr profunda que sentia pela sua perda; e uma exprobação por não ter elle ouvido as suas supplicas.

O indio nem se animava a levantar os olhos para sua senhora; não tendo realisado o sen desejo, considerava agora tudo quanto fizera como uma loucura.

Sentia-se criminoso, e de toda a sua acção heroica e sublime para os outros, só lhe restava o pezar de ter offendido Cecilia, e de lhe haver causado inutilmente um degosto.

—Pery, disse a menina com desespero, porque não fizeste o que tua senhora te pedia?...

O indio não sabia o que responder; temia ter perdido a affeição de Cecilia, e essa idéa martyrisava os últimos momentos que lhe restavão a viver.

—Cecilia não te disse, continuou a menina soluçando, que ella não aceitaria a salvação com o sacrificio de tua vida?

—Pery já te pedio que perdoasses! mnrmurou o indio

—Oh! Se tu soubesses o que fizeste hoje soffrer á tua senhora!... Mas ella te perdôa.

—Ah!... exclamou Pery, cuja physionomia illuminou-se.

—Sim!... Cecilia te perdôa tudo que soffreu, e tudo que vai soffrer! Mas será por pouco tempo...

A menina dizia essas palavras com um triste sorriso de sublime resignação; conhecia que não havia mais esperança de salvação, e esta idéa quasi a consolava.

Não pôde acabar porém; a palavra ficou-lhe presa aos labios, tremula, consulva: seus olhos se fixavão em Pery com um sentimento de terror e de espanto.

A physionomia do indio se tinha decomposto; seus traços nobres alterados por contracções violentas, o rosto encovado, os labios roxos, os dentes que se entrechocavão, os cabellos erriçados da vão-lhe um aspecto medonho.

—O veneno!... gritárão os espectadores dessa scena horrorisados.

Cecilia fez um esforço extraordinario; e lançando-se para o indio, procurou reanima-lo.

—Pery!... Pery... balbuciava a menina aquecendo nas suas as mãos geladas de seu amigo.

—Pery vai-te deixar para sempre, senhora.

—Não!... Não!... exclamou a menina fora de si.

Não quero que tu nos deixes!... Oh! tu és máo muito máo!... Se estimasses tua senhora, não a abandonarias assim!...

As lagrimas orvalhavão as faces da menina, que no seu desespero não sabia o que dizia. Erão palavras entrecortadas, sem sentido; mas que revelavão a sua augustia.

—Tu queres que Pery viva, senhora? disse o indio com a voz commovida.

—Sim!... respondeu a menina supplicante. Quero que tu vivas!

—Pery viverá!

O indio fez um esforço supremo, e restituindo um pouco de elasticidade aos seus membros entorpecidos, dirigio-se á porta e desappareceu.

Todas as pessoas presentes o acompanharão com os olhos e o virão descer á varzea e ganhar a floresta correndo.

A ultima palavra que elle proferira tinha um momento restituido a esperança a D. Antonio de Mariz; mas quasi logo a duvida apoderou-se do seu espirito; julgou que o indio se illudia.

Cecilia porém tinha mais do que uma esperança; tinha quasi uma certeza de que Pery não se enganára; a promessa de seu amigo lhe inspirava uma confiança profunda. Nunca Pery lhe havia dito uma cousa que se não realisasse; o que parecia impossivel aos outros, tornava-se facil para a sua vontade firme e inabalavel, para o poder sobrehumano de que a força e a intelligencia o revestia.

Quando D. Antonio de Mariz e sua familia se recolhêrão tristemente impressionados, Alvaro de pé na porta do gabinete fez um gesto de espanto ao fidalgo, e apontou-lhe para o oratorio.

A parede do fundo, prestes a tombar, oscillava sobre a sua base como uma arvore balançada pelo vento.

D. Antonio sorrio, e ordenando a sua familia que entrasse no gabinete, tirou a pistola da cinta, armou-a e esperou na porta ao lado de Alvaro.

No mesmo instante ouvio-se um grande estrondo, e no meio da nuvem espessa de pó que se elevou desse montão de ruinas seis homens precipitárão-se na sala.

Loredano foi o primeiro; apenas tocou o chão, ergueu-se com extraordinaria rapidez, e seguido pelos seus companheiros caminhou direito ao gabinete onde se achava recolhida a familia.

Recuárão porém lividos e tremulos; horrorisados diante da cena muda e terrivel que se apresentava aos seus olhos espantados.

No meio do aposento via-se um desses grandes vasos de barros vidrados, feitos pelos indios, e que continha pelo menos uma arroba de polvora. De uma aberta que havia nesse vaso corria um largo trilho que ia perder-se no fundo do paiol, onde se achavão enterradas todas as munições de guerra do fidalgo.

Duas pistolas, a de D. Antonio de Mariz e a de Alvaro, esperavão um movimento dos aventureiros para lançarem a primeira faisca ao volcão. D. Lauriana, Cecilia e Isabel de joelhos, oravão julgando a cada momento ver confundirem-se no turbilhão todos os espectadores dessa scena.

Era esta a arma terrivel de que fallára ha pouco D. Antonio, quando dizia a Alvaro que Deus lhe havia confiado o poder de fulminar todos os seus inimigos. O moço comprehendeu então a razão por que o fidalgo o tinha obrigado a partir com todos os homens para salvar Pery, julgando-se bastante forte para defender elle só, a sua familia.

Quanto aos aventureiros, lembrárão-se do juramento solemne de D. Antonio de Mariz; o fidalgo os tinha todos fechados na sua mão, e bastava apertar essa mão para esmaga-los como um terrão de argila. Lançando um olhar esvairado em torno de si os seis criminosos quizerão fugir, mas não tiverão animo de dar um passo, e ficárão como pregados ao solo.

Ouvio-se então um rumor de vozes da parte de fora, e Ayres Gomes seguido pelos aventureiros apresentou-se á porta da sala.

Loredano conheceu que desta vez estava irremediavelmente perdido, e assentou de vender caro a sua vida; mas a desgraça pesava sobre elle. Dous dos seus companheiros cahirão a seus pés estorcendo-se em convulsões horriveis, e soltando gritos que mettião dó e compaixão.

A principio ninguem comprehendeu a causa dessa morte subita e violenta; mas a lembrança do veneno de Pery acudio logo á memoria de alguns e explicou tudo.

Os aventureiros que chegavão guiados por Ayres Gomes apoderárão-se de Loredano, e forão ajoelhar-se confusos e envergonhados aos pés de D. Antonio de Mariz, pedindo-lhe o perdão de sua falta.

O fidalgo tinha assistido a todos esses acontecimentos que se succedião tão rapidamente, sem deixar a sua primeira posição; dir-se-hia que sobre essas paixões humanas que se debatião a seus pés elle plainava como um genio, prestes a vibrar o raio celeste.

—A vossa falta é daquellas que não se perdoão, disse D. Antonio; mas estamos nesse momento extremo em que Deus manda esquecer todas as offensas. Levantai-vos e preparemo-nos todos para morrer como christãos.

Os aventureiros erguêrão-se, e arrastando Loredano para fóra da sala, retirárão-se para o alpendre, com a consciencia alliviada de um grande peso.

A familia pôde então, depois de tantas emoções, gozar um pouco de socego e repouso; apezar da posição desesperada em que se achavão, a reunião dos aventureiros revoltados tinha trazido um fraco vislumbre de esperança.

Só D. Antonio de Mariz não se illudia, e desde aquella manhã tinha conhecido que, quando os Aymorés não o vencessem pelas armas, o vencerião pela fome. Todos os viveres estavão consumidos, e só uma sortida vigorosa podia salvar a familia desse martyrio que a ameaçava, martyrio muito mais cruel do que uma morte violenta.

O fidalgo resolveu esgotar os ultimos recursos antes de confessar-se vencido; queria morrer com a consciencia tranquilla de ter cumprido o seu dever, e de haver feito o que fosse humanamente possivel. Chamou Alvaro e entreteve-se com o moço durante algum tempo em voz baixa; concertavão um meio de realisar essa idéa de que dependia toda a esperança de salvação.

Ao mesmo tempo que isto se passava, os aventureiros reunidos em conselho, julgavão a Frei Angelo di Lucca, e o condemnavão por um voto unanime.

Proferida a sentença, apresentárão-se diversas opiniões sobre o supplicio que devia ser infligido ao culpado; cada um lembrava o genero de morte mais cruel; porém a opinião geral adoptou a fogueira como o castigo consagrado pela inquisição para punir os hereges.

Fincárão no meio do terreiro um alto poste, e o cercárão com uma grande pilha de madeira e outros combustiveis; depois sobre essa pyra ligárão o frade, que soffria todos os insultos e todas as injurias sem proferir uma palavra.

Uma especie de atonia apoderára do italiano desde o momento em que os aventureiros o havião arrastado da sala de D. Antonio de Mariz; elle tinha a consciencia do seu crime, e a certeza de sua condemnação.

Entretanto na occasião em que o atavão á fogueira, um incidente espertou de repente a sensibilidade desse homem embrutecido pela idéa da morte, e pela convicção de que não podia escapar a ella.

Um dos aventureiros, um dos cinco complices da ultima conspiração, chegou-se a Loredano, e tirando-lhe a cinta que prendia o seu gibão, mostrou-a aos seus companheiros. O italiano vendo-se separado do seu thesouro sentio uma dôr muito mais forte do que a que ia soffrer na fogueira; para elle não havia supplicio, não havia martyrio que igualasse a este.

O que o consolava na sua ultima hora era a idéa de que esse segredo que possuia, e do qual não podéra utilisar-se, ia morrer com elle, e ficaria perdido para todos; que ninguem gozaria do thesouro que lhe escapava.

Por isso apenas o aventureiro tirou-lhe a cinta onde guardava o roteiro, soltou um rugido de colera e de raiva impotente; seus olhos injectárão-se de sangue, e seus membros crispando-se ferirão-se contra as cordas que os ligavão ao poste.

Era horrivel de ver nesse momento; seu aspecto tinha a expressão brutal e feroz de um hydrophobo, seus labios espumavão, silvando como a serpente; e seus dentes ameaçavão de longe os seus algozes como as presas do jaguar.

Os aventureiros rirão-se do desespero do frade por ver roubarem-lhe o seu precioso thesouro, e divertirão-se em augmentar-lhe o supplicio, promettendo que apenas livres dos Aymorés farião uma expedição ás minas de prata.

A raiva do italiano redobrou quando Martim Vaz atou a cinta ao corpo, e disse-lhe sorrindo:

—Bem sabeis o proverbio: «O bocado não é para quem o faz.»


VI
TREGOA

Erão oito horas da noite.

Os aventureiros, sentados no terreiro em roda de um pequeno fogo, esperavão tristemente que cozinhassem alguns legumes destinados á magra cêa.

A penuria tinha succedido á abundancia de outr'ora; privados da caça, sua alimentação ordinaria, estavão reduzidos a simples vegetaes. Os seus vinhos e as bebidas fermentadas de que fazião largas libações, tinhão sido envenenadas por Pery, e forão pois obrigados a deita-las fóra, muito felizes ainda por não terem sido victimas dellas.

Loredano fechando a porta da despensa foi que os tinha salvado; apenas dous dos aventureiros que o havião acompanhado tinhão tocado nessas bebidas, e por isso poucas horas depois cahirão mortos, como vimos, na occasião em que ião atacar D. Antonio de Mariz.

Não erão porém essas scenas de luto e a situação critica em que se achavão, que infundião nesses homens sempre alegres e tão galhofeiros aquella tristeza que não lhes era habitual. Morrer com as armas na mão, batendo-se contra o inimigo, era para elles uma cousa natural, uma idéa a que a suavidade aventuras e de perigos os tinha affeito.

O que realmente os entristecia, era não terem uma boa cêa, e um cangirão de vinho diante de si; era o seu estomago que se contrahia por falto de alimento, e que tirava-lhes toda a disposição de rir e de folgar.

A chamma avermelhada da fogueira ás vezes oscillava ao sopro do vento, e estendendo-se pelo terreiro ia illuminar a alguma distancia com o seu frouxo clarão o vulto de Loredano atado ao poste sobre a pyra de lenha.

Os aventureiros tinhão resolvido demorar o supplicio, e dar tempo a que o frade se arrependesse dos seus crimes e se decidisse a morrer como christão, humilde e penitente; por isso deixárão-lhe a noite para reflectir.

Talvez entrasse tambem nessa resolução um requinte de maldade e de vingança; julgando o italiano a verdadeira causa da posição em que estavão collocados, os seus companheiros o odiavão e querião prolongar o seu soffrimento como uma reparação do mal que lhes tinha feito.

Assim, de vez em quando um delles se erguia, e chegando-se ao frade exprobrava-lhe a sua perversidade, e cobria-o de improperios e de injurias. Loredano estorcia-se de raiva, mas não proferia uma palavra, porque seus algozes o tinhão ameaçado de cortar-lhe a lingua.

Ayres Gomes veio chamar os aventureiros da parte de D. Antonio de Mariz; todos se apressárão em obedecer, e pouco depois entrárão na sala onde estava reunida toda a familia.

Tratava-se de uma sortida como fim de procurar viveres que podessem alimentar os habitantes da casa, até que D. Diogo tivesse tempo de chegar com o soccorro que tinha ido procurar. D. Antonio de Mariz reservava dez homens para defender-se; os outros partirião com Alvaro; se fossem felizes, havia ainda uma esperança de salvação; se fossem mal succedidos, uns e outros, os que fossem e os que ficassem morrerião como christãos e portuguezes.

Immediatamente a expedição preparou-se, e favorecida pelo silencio da noite partio e internou-se pela floresta; devia afastar-se sem ser percebida pelos Aymorés, e procurar pelas vizinhanças fazer uma ampla provisão de alimentos.

Durante a primeira hora que succedeu á partida, todos os que ficárão, com o ouvido attento escutavão, temendo ouvir a cada momento o estrondo de tiros que annunciasse um combate entre os aventureiros e os indios. Tudo conservou-se em silencio; e uma esperança, bem que vaga e tenue, veio pousar nesses corações quebrados por tantos soffrimentos e tantas angustias.

A noite passou-se tranquillamente; nada indicava que a casa estivesse cercada por um inimigo tão terrivel como os Aymorés.

D. Antonio admirava-se que os selvagens, depois do ataque da manhã, se conservassem tranquillos no seu campo, e não tivessem investido a habitação uma só vez. Passou-lhe pelo espirito a idéa de que se tivessem retirado com a perda de alguns dos seus principaes guerreiros; mas elle conhecia de ha muito o espirito vingativo e tenacidade dessa raça para admittir semelhante supposição.

Cecilia recostou-se n'um sofá, e alquebrada de fadiga conseguio adormecer apezar das idéas tristes e das inquietações que a agitavão. Isabel, com o coração cerrado por um terrivel presentimento, lembrava-se de Alvaro, e acompanhava-o de longe na sua perigosa expedição, misturando as suas preces com as palavras ardentes do seu amor.

Assim passou-se esta noite; a primeira, depois de tres dias, em que a familia de D. Antonio de Mariz pôde gozar alguns momentos de socego.

De vez em quando o fidalgo chegando á janella via ao longe, perto do rio, brilharem os fogos do campo dos Aymorés, mas uma calma profunda reinava em toda aquella planicie. Nem mesmo se ouvia o écho enfraquecido de uma dessas cantigas monotonas com que os selvagens costumão á noite acompanhar o embalançar de sua rede de palha; apenas o sussurrar do vento nas folhas, a queda da agua sobre as pedras, e o grito do oitibó.

Contemplando a solidão, o fidalgo insensivelmente voltava a essa esperança que ha pouco sorrira, e que o seu espirito tinha repellido como uma simples illusão. Tudo com effeito parecia indicar que os selvagens havião abandonado o seu campo, deixando nelle apenas os fogos que havião servido para esclarecer os seus preparativos de partida.

Para quem conhecia, como D. Antonio, os costumes desses povos barbaros, para quem sabia quanto era activa, agitada, ruidosa essa existencia nomada, o silencio em que estava sepultada a margem do rio era um signal certo de que os Aymorés já alli não estavão.

Comtudo o fidalgo, demasiadamente prudente para se fiar em apparencias, recommendára aos seus homens que redobrassem de vigilancia para evitar alguma surpreza.

Talvez que aquelle socego e aquella serenidade fossem apenas uma dessas calmas sinistras que preludião as grandes tempestades, e durante as quaes os elementos parecem concentrar as suas forças para entrarem nessa luta espantosa, que tem por campo de batalha o espaço e o infinito.

As horas corrêrão silenciosamente; a viuvinha cantou pela primeira vez; e a luz branca da alvorada veio empallidecer as sombras da noite.

Pouco a pouco o dia foi rompendo; o arrebol da manhã desenhou-se no horizonte, tingindo as nuvens com todas as côres do prisma. O primeiro raio do sol, desprendendo-se daquelles vapores tenues e diaphanos, deslisou pelo azul do céo, e foi brincar no cabeço dos montes.

O astro assomou, e torrentes de luz inundárão toda a floresta, que nadava n'um mar de ouro marchetado de brilhantes que scintillavão em cada uma das gotas do orvalho suspensas ás folhas das arvores.

Os habitantes da casa, despertando, admiravão esse espectaculo magnifico do nascer do dia, que depois de tantas tribulações e de tantas augustias, lhes parecia completamente novo.

Uma noite de quietação e socego os tinha como que restituido á vida; nunca esses campos verdes, esse rio puro e limpido, essas arvores florescentes, esses horizontes descortinados se havião mostrado a seus olhos tão bellos, tão risonhos como agora.

É que o prazer e o soffrimento não passão de um contraste; em luta perpetua e continua, elles se acrysolão um no outro, e se depurão; não ha homem verdadeiramente feliz senão aquelle que já conheceu a desgraça.

Cecilia, com a frescura da manhã, tinha-se expandido como uma flôr do campo; suas faces colorirão-se de novo, como se um raio do sol beijando-as lhes tivesse imprimido o seu reflexo roseado; os olhos brilhárão; e os labios entreabrindo-se para aspirarem o ar puro e embalsamado da manhã, arqueárão-se graciosamente quasi sorrindo.

A esperança, esse anjo invisivel, essa doce amiga dos que soffrem, tinha vindo pousar no seu coração, e murmurava-lhe ao ouvido palavras confusas, cantos mysteriosos, que ella não comprehendia, mas que a consolavão e vertião em sua alma um balsamo suave.

Sentia-se em todas as pessoas da casa um quer que seja, uma animação, um começo de bem-estar que revelava uma grande transformação operada na situação da vespera; era mais do que a esperança, menos do que a seguridade.

Só Isabel não partilhava essa impressão geral; como sua prima, ella tambem viera contemplar o raiar do dia; mas fôra para interrogar a natureza, e perguntar ao sol, á luz, ao céo, se as lugubres imagens que tinhão passado e repassado na sua longa vigilia, erão uma realidade ou uma visão.

E cousa singular! Esse sol tão brilhante, essa luz esplendida, esse céo azul, que aos outros reanimára, e que devia inspirar a Isabel o mesmo sentimento, pareceu-lhe ao contrario uma amarga ironia.

Comparou a scena radiante que se apresentava aos seus olhos com o quadro que se desenhava em sua alma; emquanto a natureza sorria, o seu coração chorava. No meio dessa festa esplendida do nascer do dia, a sua dôr, só, isolada, não achava uma sympathia, e repellida pela creação voltava a recalcar-se em seu seio. A moça recostou a cabeça sobre o hombro de sua prima, e escondeu ahi o rosto para não perturbar a doce serenidade que se expandia no semblante de Cecilia.

Entretanto D. Antonio tinha tratado de averiguar se as suas suspeitas da vespera erão reaes; certificou-se de que os selvagens havião abandonado o campo. Ayres Gomes, acompanhado de mestre Nunes, chegou mesmo a sahir da casa, e aproximar-se com todas as cautelas do lugar onde na vespera os Aymorés festejavão o sacrificio de Pery.

Tudo estava deserto; não se vião mais no campo os vasos de barro, as peças de caça suspensas aos galhos da arvore, e as redes grosseiras que indicavão a alta de uma horda selvagem. Não havia já duvida, os Aymorés tinhão partido desde a vespera á noite, depois de enterrarem os seus mortos.

O escudeiro voltou a dar esta noticia ao fidalgo, que recebeu-a menos favoravelmente do que se devia suppôr; ignorava a causa e o fim dessa partida repentina, e desconfiava della.

Não ha que admirar nisto; D. Antonio era um homem prudente e avisado; a sua experiencia de quarenta annos o tinha tornado suspeitoso; por cousa nenhuma queria dar aos seus uma esperança que viesse a frustrar-se.


VII
PELEJA

Quando a familia de D. Antonio de Mariz gozava dos primeiros momentos de tranquillidade que succedião a tantas afflicções, soou um grito na escada de pedra.

Cecilia levantou-se estremecendo de alegria e felicidade; tinha reconhecido a voz de Pery.

No momento em que ia correr ao encontro de seu amigo, mestre Nunes já tinha abaixado uma prancha que servia de ponte levadiça, e Pery chegava á porta da sala.

D. Antonio de Mariz, sua mulher e sua filha ficárão mudos de espanto e terror; Isabel cahio fulminada, como se a vida lhe faltasse de repente.

Pery trazia nos seus hombros o corpo inanimado de Alvaro; e no rosto uma expressão de tristeza profunda. Atravessando a sala, depôz sobre o sofá o seu fardo precioso, e olhando o rosto livido daquelle que fôra seu amigo, enxugou uma lagrima que lhe corria pela face.

Nunhuma das pessoas presentes se animava a quebrar o silencio solemne que envolvia aquella scena lugubre; os aventureiros que havião acompanhado Pery quando passára no meio delles correndo, pararão na porta, tomados de compaixão e respeito por aquella desgraça.

Cecilia nem pôde gozar da alegria de ver Pery salvo; seus olhos apezar dos soffrimentos passados, ainda tinhão lagrimas para chorar essa vida nobre e leal que a morte acabava de ceifar. Quanto a D. Antonio de Mariz, sua dôr era a de um pai que havia perdido um filho, era a dôr muda e concentrada que abala as organisações fortes, sem comtudo abatê-las.

Depois dessa primeira commoção produzida pela chegada de Pery, o fidalgo interrogou o indio e ouvio de sua bocca a narração breve dos acontecimentos, cuja peripecia tinha diante dos olhos.

Eis o que havia passado.

Partindo na vespera, no momento em que começava a sentir os primeiros effeitos do veneno terrivel que tomára, Pery ia cumprir a promessa que tinha feito a Cecilia. Ia procurar a vida em um contra-veneno infallivel cuja existencia só era conhecida pelos velhos payás da tribu, e pelas mulheres que os auxiliavão nas suas preparações medicinaes.

Sua mãi, quando elle partira para a primeira guerra lhe tinha revelado esse segredo que devia salva-lo de uma morte certa no caso de ser ferido por alguma setta hervada.

Vendo o desespero de sua senhora, o indio sentio-se com forças de resistir ao torpor do envenenamento que começava a ganhar-lhe o corpo, e ir ao fundo da floresta procurar essa herva poderosa que devia restituir-lhe a saude, o vigor e a existencia.

Comtudo, quando atravessava a matta parecia-lhe ás vezes que já era tarde, que não chegaria a tempo: então tinha medo de morrer longe de sua senhora, sem poder volver para ella o seu ultimo olhar. Arrependia-se quasi de ter partido de casa e não deixar-se ficar aos pés de Cecilia até exhalar o seu ultimo suspiro; mas lembrava-se que a menina o esperava, lembrava-se que ella ainda precisava de sua vida e creava novas forças.

Pery entranhou-se no mais basto e sombrio da floresta, e ahi, na sombra e no silencio passou-se entre elle e a natureza uma scena da vida selvagem, dessa vida primitiva, cuja imagem nos chegou tão incompleta e desfigurada. O dia declinou: veio a tarde, depois a noite, e sob essa abobada espessa em que Pery dormia como em um sanctuario, nem um rumor revelára o que ahi se passou.

Quando o primeiro reflexo do dia purpureou o horizonte, as folhas se abrirão, e Pery exhausto de forças, vacillante, emmagrecido como se acabasse de uma longa enfermidade, sahio do seu retiro.

Mal se podia suster, e para caminhar era obrigado a sustentar-se aos galhos das arvores que encontrava na sua passagem: assim adiantou-se pela floresta, e colheu alguns fructos, que lhe restabelecêrão um tanto as forças.

Chegando á beira do rio, Pery já sentia o vigor que voltava, e o calor que começava a animar-lhe o corpo en torpecido; atirou-se á agua e mergulhou. Quando voltou á margem, era outro homem; uma reacção se havia operado; seus membros tinhão adquirido a elasticidade natural; o sangue gyrava livremente nas veias.

Então tratou de recuperar as forças que havia perdido, e tudo quanto a floresta lhe offerecia de saboroso nutriente servio a esse banquete da vida, em que o selvagem festejava a sua victoria sobre a morte e o veneno.

O sol tinha raiado havia horas; Pery, acabada a sua refeição, caminhava pensativo, quando ouvio uma descarga de armas de fogo, cujo estrondo reboou pelo ambito da floresta.

Lançou-se na direcção dos tiros, e a pouca distancia, n'um claro da matta, descobrio um espectaculo grandioso.

Alvaro e os seus nove companheiros divididos em duas columnas de cinco homens com as costas apoiadas ás costas uns dos outros, estavão cercados por mais de cem Aymorés que se precipitavão sobre elles com um furor selvagem.

Mas as ondas dessa torrente de barbaros que soltavão bramidos espantosos, ião quebrar-se contra essa pequena columna, que não parecia de homens, mas de aço; as espadas jogavão com tanta velocidade que a tornavão impenetravel; no raio de uma braça o inimigo que se adiantava cahia morto.

Havia uma hora que durava esse combate, começado com armas de fogo; mas os Aymorés atacarão com tanta furia, que breve tinhão chegado á luta corpo a corpo e á arma branca.

No momento em que Pery assomava á margem da clareira, um incidente veio modificar a face do combate.

O aventureiro que dava as costas a Alvaro, levado pelo ardor da peleja, adiantou-se, alguns passos para ferir um inimigo; os selvagens o envolvêrão, deixando a columna interrompida e Alvaro sem defeza.

Entretando o valente cavalheiro continuava a fazer prodigios de valor e de coragem; cada volta que descrevia sua espada era um inimigo de menos, uma vida que se extinguia a seus pés n'um rio de sangue. Os selvagens redobravão de furor contra elle, e cada vez o seu braço agil movia-se com mais segurança e mais certeza, fazendo jogar como um raio a lamina de aço que mal se via brillar nas suas rapidas evoluções.

Desde porém que os Aymorés virão o moço sem defeza pelas costas, e exposto aos seus golpes, concentrárão-se nesse ponto; um delles adiantando-se, ergueu com as duas mãos a pesada tagapema e atirou-a ao alto da cabeça de Alvaro.

O moço cahio; mas na sua queda a espada descreveu ainda um semi-circulo e abateu o inimigo que o tinha ferido á traição; a dôr violenta dera a esse ultimo golpe uma força sobrenatural.

Quando os indios ião precipitar-se sobre o cavalheiro, Pery saltou no meio delles, e agarrando a espingarda que estava a seus pés fez delia uma arma terrivel, uma clava formidavel, cujo poder em breve sentirão os Aymorés. Apenas se viu livre do turbilhão dos inimigos o indio tomou Alvaro nos seus hombros, e abrindo caminho com a sua arma temivel, lançou-se pela floresta e desappareceu.

Alguns o seguirão; mas Pery voltou-se e fê-los arrepender-se de sua ousadia; livrando-se do peso que levava, carregou a espingarda com as munições que Alvaro trazia e mandou uma bala áquelle que o perseguia mais de perto; os outros, que o conhecião pelo combate da vespera, retrocedêrão.

A idéa de Pery era salvar Alvaro, não só pela amizade que lhe tinha, como por causa de Cecilia, que elle suppunha amar o cavalheiro; vendo porém que o corpo continuava inanimado, acreditou que Alvaro estava morto. Apezar disto não desistio do seu proposito; morto ou vivo devia leva-lo áquelles que o amavão, ou para o restituirem á vida, ou para derramarem sobre o seu corpo o pranto da despedida.

Quando Pery acabou a sua narração, o fidalgo commovido chegou-se á beira do sofá, e apertando a mão gelada e fria do cavalheiro, disse:

—Até logo, bravo e valente amigo; até logo! A nossa separação é de poucos instantes; breve nos reuniremos na mansão dos justos onde deveis estar, e onde espero que Deus me concederá a graça de entrar.

Cecilia deo á memoria do moço as ultimas lagrimas, e ajoelhando aos pés do moribundo com sua mãi dirigio ao céo uma prece ardente.

D. Lauriana tinha esgotado todos os recursos dessa medicina domestica que no interior das casas substituia a falta dos homens professionaes, muito raros naquella epoca, e sobretudo longe das cidades; o moço não deo porém o menor signal de vida.

D. Antonio de Mariz, que comprehendêra perfeitamente o que devia esperar da pretendida retirada dos Aymorés, mandou que os seus homens se preparassem para a defeza, não que tivesse a menor esperança, mas porque desejava resistir até o ultimo momento.

Pery, depois de ter respondido a todas as perguntas de Cecilia a respeito do modo por que se havia salvado do veneno, sahio da sala e percorreu a esplanada, observando os arredores. O indio infatigavel sempre que se tratava de sua senhora, apenas acabava de uma empreza gigantesca, como a que o tinha levado ao campo dos Aymorés, cuidava já em combinar outro projecto para salvar Cecilia.

Depois do seu exame estrategico, entrou no quarto que havia abandonado na ante-vespera, e no qual encontrou ainda as suas armas, do mesmo modo que as tinha deixado.

Lembrou-se do pedido que fizera a Alvaro, da contradicção do destino que lhe restituía a vida a elle um homem tres vezes morto, e roubava-a ao cavalheiro a quem elle havia deixado são e salvo.


VIII
NOIVA

Uma hora depois dos acontecimentos que acabamos de narrar, Pery, recostado á janella do quarto que tinha pertencido á sua senhora, olhava com uma grande attenção para uma arvore que se elevava a algumas braças de distancia.

Seu olhar parecia estudar as curvas dos galhos retorcidos, medinho-lhe a distancia, a altura e o tamanho, como se disso dependesse a solução de uma grande difficuldade com que lutava o seu espirito. No momento em que estava de todo entregue a esse exame minucioso, o indio sentio uma mão timida e delicada tocar-lhe de leve no hombro.

Voltou-se; era Isabel que estava junto delle, e que se havia aproximado como uma sombra, sem fazer o menor rumor. Uma pallidez mortal cobria as feições da moça, que apenas sahia do seu desmaio; mas o rosto tinha uma calma ou antes uma immobilidade que assustava.

Voltando a si, Isabel correu um olhar pelo aposento, como para certificar-se de que não era um sonho o que havia passado.

A sala estava deserta; D. Antonio de Mariz tinha sahido para dar as suas ordens; sua mulher, ajoelhada no oratorio sobre um montão de ruinas, rezava ao pé de uma cruz que ficára junto ao altar. No fundo do aposento, sobre o sofá, destacava-se o vulto immovel do cavalheiro, aos pés do qual ardia uma vela de cêra, lançando pallidos clarões.

Cecilia é que estava perto della, e apertava no seio a sua cabeça desfallecida, procurando reanima-la.

Quando o olhar de Isabel cahio sobre o corpo de seu amante, ella ergueu-se como impellida por uma força sobrenatural, atravessou rapidamente a sala, e foi por sua vez ajoelhar-se em face desse leito mortuario. Mas não era para fazer uma prece que ajoelhava, era para embeber-se na contemplação desse rosto livido e gelado, desses labios frios, desses olhos extinctos, que ella amava apezar da morte.

Cecilia respeitou a dôr de sua prima, e por um instincto de delicadeza que só possuem as mulheres, comprehendeu que o amor, mesmo em face de um cadaver, tem o seu pudor e a sua castidade; sahio para deixar que Isabel chorasse livremente.

Passado algum tempo depois da sahida de Cecilia, a moça ergueu-se, percorreu automaticamente a casa, e vendo Pery de longe aproximou-se delle o tocou-lhe no hombro.

O indio e a moça se odiavão desde o primeiro dia em que se tinhão visto; em Isabel era o odio de uma raça que a rebaixava a seus proprios olhos; em Pery era essa repugnancia natural que sente o homem por aquelles em quem reconhece um inimigo.

Por isso Pery, vendo Isabel junto delle, ficou extremamente admirado, sobretudo quando reparou no gesto supplicante que a moça lhe dirigia, como se esperasse delle uma graça.

—Pery!...

O indio sentio-se commovido ao aspecto daquelle soffrimento, e pela primeira vez na sua vida dirigio a palavra a Isabel.

—Precisas de Pery? disse elle.

—Vinha pedir-te um serviço. Não m'o negarás, sim? balbuciou a moça.

—Falla; se fôr cousa que Pery possa fazer, elle não te negará.

—Promettes então? exclamou Isabel, cujos olhos brilhárão com uma expressão de alegria.

—Sim, Pery te promette.

—Vem!

Dizendo essa palavra, a moça fez um gesto ao indio e dirigio-se acompanhada por elle á sala que ainda estava deserta como tinha deixado. Parou junto do sofá, e apontando para o corpo inanimado de seu amante, acenou a Pery que o tomasse nos seus braços.

O indio obedeceu, e acompanhou Isabel até um gabinete retirado a um lado da casa; ahi deitou o seu fardo sobre um leito, cujas cortinas a moça entreabrio, corando como uma noiva.

Corava porque o gabinete onde tinha entrado era o quarto em que habitára e encontrava ainda povoado de todos os sonhos de seu amor; porque o leito, que recebia seu amante, era o seu leito de virgem casta e pura; porque ella era realmente uma noiva do tumulo.

Pery, tendo satisfeito o desejo da moça, retirou-se e voltou ao seu trabalho, que elle proseguia com uma constancia infatigavel.

Apenas ficou só, Isabel sorrio; mas o seu sorriso tinha um quer que seja do extasi da dôr, da voluptuosidade do soffrimento, que faz sorrir na sua ultima hora os martyres e os desgraçados.

Tirou do seio a redoma de vidro onde guardava os cabellos de sua mãi e fitou nella um olhar ardente; mas abanou a cabeça com um gesto de expressão indefinivel. Tinha mudado de resolução; o segredo que encerrava essa joia, o pó subtil que empanava a face interior do crystal, a morte que sua mãi lhe confiára não a satisfazia; era muito rapida, quasi instantanea.

Sahio então furtivamente e acendeu uma vela de cêra, que havia sobre a commoda ao lado de um crucifixo de marfim; depois fechou a porta, cerrou as janellas e interceptou as frestas por onde a luz do dia podia penetrar. O gabinete ficou ás escuras; apenas em torno do cirio que ardia, uma aureola pallida se destacava no meio das trevas e illuminava a imagem de Christo.

A moça ajoelhou e fez uma oração breve; pedia a Deus uma ultima graça; pedia a eternidade e a ventura do seu amor, que tinha passado tão rapido pela terra.

Acabando a prece, tomou a luz, deitou-a na cabeceira do leito, afastou o cortinado e começou a contemplar o seu amante com enlevo.

Alvaro parecia adormecido apenas; sua bella physionomia não tinha a menor alteração; a morte imprimindo nos seus traços o descoramento da cêra e do marmore, havia unicamente immobilisado a expressão e feito do gentil cavalheiro um bella estatua.

Isabel interrompeu o enlevo de sua contemplação para chegar-se de novo á commoda, onde se vião algumas conchas de mariscos tintas de nacar que se apanhão nas nossas praias, e uma cesta de palha matizada.

Esta cesta continha todas as resinas aromaticas, todos os perfumes que dão as arvores de nossa terra; o anime da aroeira, as perolas do beijoim, as lagrimas crystallisadas da embaiba, e gotas do balsamo, esse sandalo do Brazil.

A moça deitou na concha a maior parte dos perfumes, e acendeu algumas bagas de beijoim; o oleo de que estavão impregnadas, alimentando a chamma, communicou-a ás outras resinas.

Frocos de fumo alvadio impregnado de perfumes embriagadores se elevarão da caçoula em grossas espiraes, e enchêrão o gabinete de nuvens transparentes que oscillavão á luz pallida do cirio.

Isabel, sentada á beira do leito, com as mãos do seu amante nas suas e com os olhos embebidos naquella imagem querida, balbuciava phrases entrecortadas, confidencias intimas, sons inarticulados, que são a linguagem verdadeira do coração.

Ás vezes sonhava que Alvaro ainda vivia, que lhe murmurava ao ouvido a confissão do seu amor; e ella fallava-lhe como se seu amante a ouvisse, contava-lhe os segredos de sua paixão, vertia toda a sua alma nas palavras que cahião dos labios. Sua mão, delicada afastava os cabellos do moço, descobria a sua fronte, animava a sua face gelada, e roçava aquelles labios frios e mudos como pedindo-lhe um sorriso.

—Porque não me fallas? murmurava ella docemente: Não conheces tua Isabel?... Dize outra vez que me amas! Dize sempre essa palavra, para que minha alma não duvide da felicidade! Eu te supplico!...

E com o ouvido attento, com os labios entreabertos, o seio palpitante, ella esperava o som dessa voz querida e o echo dessa primeira e ultima palavra de seu triste amor.

Mas o silencio só lhe respondia; seu peito aspirava apenas as ondas dos perfumes inebriantes, que fazião circular nas suas veias uma chamma ardente.

O aposento apresentava então um aspecto fantastico: no fundo escuro desenhava-se um circulo esclarecido, envolto por uma nevoa espessa.

Nessa esphera luminosa como no meio de uma visão surgião Alvaro deitado no leito e Isabel reclinada sobre o rosto de seu amante, a quem continuava a fallar, como se elle a escutasse. A menina começava a sentir a respiração faltar-lhe; seu seio oppresso suffocava-a, e entretanto uma voluptuosidade inexprimivel a embriagava: um gozo immenso havia nessa asphyxia de perfumes que se condensavão e rarefazião o ar.

Louca, perdida, hallucinada, ella ergueu-se, seu seio dilatou-se, e sua bocca, entreabrindo-se, collou-se aos labios frios e gelados de seu amante; era o seu primeiro e ultimo beijo; o seu beijo de noiva.

Foi uma agonia lenta, um pesadelo horrivel em que a dôr lutava com o gozo, em que as sensações tinhão um requinte de prazer e de soffrimento ao mesmo tempo; em que a morte, torturando o corpo, vertia na alma effluvios celestes.

De repente pareceu a Isabel que os labios de Alvaro se agitavão, que um tenue suspiro se exhalava de seu peito, ainda ha pouco insensivel como o marmore.

Julgou que se illudia, mais não; Alvaro estava vivo, realmente vivo, suas mãos apertavão as della convulsamente; seus olhos, brilhando com um fogo estranho, se tinhão fitado no rosto da moça: um sopro reanimou seus labios, que exhalárão uma palavra quasi imperceptivel.

—Isabel!...

A moça soltou um grito debil de alegria, de espanto, de medo; entre as idéas confusas que se agitavão na sua cabeça desvairada, lembrou-se com horror que era ella quem matava seu amante, quem o ia sacrificar por causa de um engano fatal. Fazendo um esforço extraordinario, conseguio erguer a cabeça e ia precipitar-se para janella, abri-la e dar entrada ao ar livre; sabia que a morte era inevitavel; mas salvaria Alvaro.

No momento, porém, em que se levantava, sentio as mãos do moço que apertavão as suas, e a obrigárão a reclinar-se sobre o leito; seus olhos encontrárão de novo os olhos de seu amante.

Isabel não tinha mais forças para resistir e realisar seu heroico sacrificio; deixou cahir a cabeça desfallecida, e seus labios se unirão outra vez n'um longo beijo, em que essas duas almas irmãs, confundindo-se n'uma só, voárão ao céo, e forão abrigar-se no seio do Creador.

As nuvens de fumaça e de perfume se condensavão cada vez mais e envolvião como um lençol aquelle grupo original, impossivel de descrever.

Por volta de duas horas da tarde, a porta da gabinete, impellida por um choque violento, abrio-se; e um turbilhão de fumo lançou-se por essa aberta, e quasi suffocou as pessoas que ahi estavão.

Erão Cecilia e Pery.

A menina, inquieta pela longa ausencia de sua prima, soube de Pery que ella estava no seu quarto; mas o indio occultou parte da verdade, e não disse onde deitára o corpo de Alvaro.

Duas vezes Cecilia viera até á porta, escutára e nada ouvira; por fim resolveu-se a bater, a fallar a Isabel, e não teve a menor resposta. Chamou Pery e contou-lhe o que se passava; o indio, tomado de um presentimento metteu o hombro á porta e abrio-a.

Quando a corrente de ar expellio a fumaça do aposento, Cecilia pôde entrar e ver a scena que descrevêmos.

A menina recuou, e respeitando esse mysterio de um amor profundo, fez um gesto a Pery e retirou-se.

O indio fechou de novo a porta e acompanhou sua senhora.

—Ella morreu feliz! disse Pery.

Cecilia fitou nelle os seus grandes olhos azues, e córou.


IX
O CASTIGO

O dia declinava rapidamente e as sombras da noite começavão a estender-se sobre o verde-negro da floresta.

D. Antonio de Mariz, apoiado ao umbral da porta, junto de sua mulher, passava o braço pela cintura de Cecilia. O sol a esconder-se illuminava com o seu reflexo esse grupo de familia, digno do quadro magestoso que lhe servia de baixo-relevo.

O fidalgo, Cecilia e sua mãi, com os olhos no horizonte, recebião esse ultimo raio de despedida, e mandavão o adeus extremo á luz do dia, ás montanhas que os cercavão, ás arvores, aos campos, ao rio, á toda a natureza.

Para elles esse sol era a imagem de sua vida; o occaso era a sua hora derradeira; e as sombras da eternidade se estendião já como as sombras da noite.

Os Aymorés tinhão voltado, depois do combate em que os aventureiros vendêrão caro a sua vida; e cada vez mais sequiosos de vingança, esperavão que anoitecesse para assaltar a casa. Certos desta vez que o inimigo extenuado não resistiria a um ataque violento, tinhão tratado de destruir todos os meios que podessem favorecer a fuga de um só dos brancos.

Isto era facil; além da escada de pedra, o rochedo formava um despenhadeiro por todos os lados; e só a arvore, que lançava os galhos sobre a cabana de Pery, offerecia um ponto de communicação praticavel para quem tivesse a agilidade e a força do indio.

Os selvagens, que não querião que lhes escapasse um só inimigo, e ainda menos que esse fosse Pery, abaterão a arvore, e cortárão assim a unica passagem por onde um homem poderia sahir do rochedo, no momento do ataque.

Ao primeiro golpe do machado de pedra sobre o grosso tronco do oleo, Pery estremeceu, e, saltando sobre a sua clavina, ia despedaçar a cabeça do selvagem; mas sorrio-se, e encostou tranquillamente a arma á parede. Sem inquietar-se com a destruição que fazião os Aymorés, continuou no seu trabalho interrompido, e acabou de torcer uma corda com os filamentos de uma das palmeiras que servião de esteio á sua cabana.

Elle tinha o seu plano: e para realisa-lo, começára por cortar as duas palmeiras e trazê-las para o quarto de Cecilia; depois rachou uma das arvores, e durante toda a manhã occupou-se em tercer essa longa corda, a que dava uma extraordinaria importancia.

Quando Pery terminava a sua obra, ouvio o baque da arvore que tombava sobre o rochedo; chegou-se de novo á janella, e seu rosto exprimio uma satisfação immensa. O oleo, cortado pela raiz, deitára-se sobre o precipicio, elevando a uma grande altura os seus galhos seculares, mais frondosos e mais robustos do que uma arvore nova da floresta.

Os Aymorés, tranquillos por esse lado, continuárão nos seus preparativos para o combate que conta vão dar durante as horas mortas da noite.

Quando o sol desappareceu no horizonte e a que luz do crepúsculo cedeu ás trevas que envolvião a terra, Pery dirigio-se á sala.

Ayres Gomes, sempre infatigavel, guardava a porta do gabinete; D. Antonio de Mariz estava recostado na sua cadeira de espaldar; e Cecilia, sentada sobre os seus joelhos, recusava beber uma taça que seu pai lhe apresentava.

—Bebe, minha Cecilia, dizia o fidalgo; é um cordial que te fará muito bem.

—De que serve, meu pai? Por uma hora, se tanto nos resta a viver, não vale a pena! respondia a menina, sorrindo tristemente.

—Tu te enganas! Ainda não estamos de todo perdidos.

—Tendes alguma esperança? perguntou ella incredula.

—Sim, tenho uma esperança, e esta não me illudirá! respondeu D. Antonio, com um accento profundo.

—Qual? Dizei-me!

—És curiosa? replicou o fidalgo sorrindo. Pois só te direi se fizeres o que te peço.

—Quereis que beba essa taça?

—Sim.

Cecilia tomou a taça das mãos de seu pai, e depois de beber, volveu para elle o seu olhar interrogador.

—A esperança que eu tenho, minha filha, é que nenhum inimigo passará nunca do limiar daquella porta; pódes crer na palavra de teu pai e dormir tranquilla. Deus vela sobre nós.

Beijando a fronte pura da menina, elle ergueu-se, tomou-a nos seus braços, e, recostando-a sobre a poltrona em que estivera sentado, sahio do gabinete e foi examinar o que se passava fóra da casa.

Pery, que tinha assistido a esse dialogo entre o pai e a filha, estava occupado em procurar no gabinete varios objectos de que tinha necessidade apparentemente.

Logo que achou quanto desejava, o indio encaminhou-se para a porta.

—Onde vais? disse Cecilia, que tinha acompanhado todos os seus movimentos.

—Pery volta, senhora.

—E porque nos deixas?

—Porque é preciso.

—Ao menos volta logo. Não devemos morrer todos juntos, da mesma morte?

O indio estremeceu.

—Não; Pery morrerá: mas tu has de viver, senhora.

—Para que viver, depois de ter perdido todos os seus amigos?...

Cecilia, que lia alguns momentos sentia a cabeça vacillar, os olhos cerrarem-se e um somno invencivel apoderar-se della, deixou-se cahir sobre o espaldar da cadeira.

—Não!... Antes morrer como Isabel! murmurou a menina já entorpecida pelo somno.

Um meigo sorriso veio adejar nos seus labios entreabertos, por onde se escapava a respiração doce, branda e igual.

Pery a principio assustou-se com esse somno repentino que não lhe parecia natural e com a pallidez subita de que se cobrirão as feições de Cecilia.

Seus olhos cahirão sobre a taça que estava em cima da mesa; deitou nos labios algumas gotas do liquido que tinhão ficado no fundo e tomou-lhes o sabor: não podia conhecer o que continha; mas satisfez-se em não achar o que receiára.

Repellio a idéa que lhe assaltára o espirito, e lembrou-se que D. Antonio sorria no momento em que pedia a sua filha para beber, e que a sua mão não tremêra apresentando-lhe a taça. Tranquillo a este respeito, o indio, que não tinha tempo a perder, ganhou a esplanada, correu para o quarto que occupava, e desappareceu.

A noite já estava fechada, e uma escuridão profunda envolvia a casa e os arredores. Durante esse tempo nenhum acontecimento extraordinario viera modificar a posição desesperada em que se achava a familia; a calma sinistra, que precede as grandes tempestades, plainava sobre a cabeça d'essas victimas que contavão, não as horas, mas os instantes de vida que lhes restavão.

D. Antonio passeava ao longo da sala, com a mesma serenidade dos seus dias tranquillos e placidos de outr'ora; de vez em quando o fidalgo parava na porta do gabinete, lançava um olhar sobre sua mulher que orava e sua filha adormecida; depois continuava o passeio interrompido.

Os aventureiros grupados junto á porta seguião com os olhos o vulto do fidalgo que se perdia no fundo escuro da sala, ou se destacava cheio de vigor e de colorido na esphera luminosa a que cingia a lampada de prata suspensa ao tecto.

Mudos, resignados, nenhum d'esses homens deixava escapar uma queixa, um suspiro que fosse; o exemplo de seu chefe reanimava nelles essa coragem heroica do soldado que morre por uma causa santa.

Antes de obedecerem á ordem de D. Antonio de Mariz, elles tinhão executado a sua sentença proferida contra Loredano; e quem passasse então sobre a esplanada veria em torno do poste, em que estava atado o frade, uma lingua vermelha que lambia a fogueira, enroscando-se pelos toros de lenha.

O italiano sentia já o fogo que se aproximava e a fumaça, que, ennovelando-se, envolvia-o n'uma nevoa espessa: é impossivel descrever a raiva, a colera e o furor que se apossárão d'elle n'esses momentos que precedêrão o supplicio.

Mas voltemos á sala em que se achavão reunidos os principaes personagens d'essa historia, e onde se vão passar as scenas talvez mais importantes do drama.

A calma profunda que reinava n'essa solidão não tinha sido perturbada; tudo estava em silencio; e as trevas espessas da noite não deixavão perceber os objectos a alguns passos de distancia.

De repente listras de fogo atravessárão o ar, e se abatêrão sobre o edificio; erão as settas inflammadas dos selvagens que annunciavão o começo do ataque; durante alguns minutos foi como uma chuva de fogo, uma cascata de chammas que cahio sobre a casa.

Os aventureiros estremecêrão; D. Antonio sorrio.

—É chegado o momento, meus amigos. Temos uma hora de vida; preparai-vos para morrer como christãos e portuguezes. Abri as portas para que possamos ver o céo.

O fidalgo dizia que lhe restava uma hora de vida, porque, tendo destruido o resto da escada de pedra, os selvagens não podião subir ao rochedo senão escalando-o; e por maior que fosse a sua habilidade, não era possivel que consumissem n'isso menos tempo.

Quando os aventureiros abrirão as portas, um vulto resvalou na sombra, e entrou na sala.

Era Pery.


X
CHRISTÃO

O indio dirigio-se rapidamente a D. Antonio de Mariz.

—Pery quer salvar a senhora.

O fidalgo abanou a cabeça em signal de duvida.

—Escuta! replicou o indio.

Aproximando os labios do ouvido de D. Antonio, fallou-lhe por algum tempo em voz baixa, e n'um tom rapido e decisivo.

—Tudo está preparado: parte, desce o rio; quando a lua estender o seu arco chegarás á tribu dos Goytacazes. A mãi de Pery te conhece: cem guerreiros te acompanharão á grande taba dos brancos.

D. Antonio de Mariz ouvio em profundo silencio as palavras do indio; e quando elle terminou, apertou-lhe a mão com reconhecimento.

—Não, Pery: o que me propões é impossivel. D. Antonio de Mariz não pode abandonar a sua casa, a sua familia e os seus amigos no momento do perigo, ainda mesmo para salvar aquillo que elle mais ama n'este mundo. Um fidalgo portuguez não pode fugir diante do inimigo, qualquer que elle seja; morre vingando a sua morte.

Pery fez um gesto de desespero.

—Assim tu não queres salvar a senhora?

—Não posso, respondeu o cavalheiro; o meu dever manda que fique, e partilhe a sorte de meus companheiros.

O indio no seu fanatismo não comprehendia que houvesse uma razão capaz de sacrificar a vida de Cecilia, que para elle era sagrada.

—Pery pensou que tu amasses a senhora! disse elle fôra de si.

D. Antonio olhou-o com uma expressão de dignidade e nobreza.

—Perdôo-te a offensa que me fizeste, amigo; porque é ainda uma prova de tua grande dedicação. Mas acredita-me; se fosse preciso que eu me votasse só ao sacrificio barbaro dos selvagens para salvar minha filha, eu o faria sorrindo.

—E porque recusas o que Pery te pede?

—Porque?... Porque o que tu pedes não é um sacrificio, é uma vergonha; é uma traição. Tu abandonarias tua mulher, teus companheiros, para salvar-te do inimigo, Pery?...

O indio abaixou a cabeça com abatimento.

—Demais, essa empreza demanda forças com que um velho como eu já não póde contar. Havia duas pessoas que a poderião realisar.

—Quem? perguntou Pery com um raio de esperança.

—Uma era meu filho, que a esta hora esta bem longe d'aqui; a outra deixou-nos esta manhã e nos espera; era Alvaro.

—Pery fez pela senhora o que podia; tu não queres salva-la; Pery vai morrer a seus pés.

Morrer? disse o fidalgo. Quando tens a liberdade e a vida á tua disposição? E julgas que consentirei nisto?... Nunca! Vai, Pery; conserva a lembrança de teus amigos; a nossa alma te acompanhará na terra. Adeus. Parte: o tempo urge.

O indio ergueu a cabeça com um gesto soberbo de indignação.

—Pery arriscou bastantes vezes a sua vida por ti, para ter o direito de morrer comtigo; tu não pódes abandonar teus companheiros; o escravo não póde abandonar sua senhora.

—És injusto, amigo; exprimi um desejo, não quiz arrogar-te uma injuria. Se exiges uma parte do sacrificio, esta te pertence, e tu és digno d'ella; fica.

Um grito dos selvagens retroou nos ares.

D. Antonio, fazendo um gesto aos aventureiros, encaminhou-se para o gabinete.

Cecilia, adormecida sobre a cadeira de espaldar, sorria como se algum sonho alegre a embalasse no seu somno tranquillo; o rosto um pouco pallido, moldurado pelas tranças louras de seus cabellos, tinha a expressão suave da innocencia feliz.

O fidalgo, contemplando sua filha, sentio uma dôr pungente e quasi arrependeu-se de não ter aceitado o offerecimento de Pery, e de não tentar ao menos esse ultimo esforço para defender aquella vida que apenas começava a expandir-se.

Mas podia elle mentir ao seu passado e faltar ao dever imperioso que o obrigava a morrer no seu posto? Podia trahir na sua ultima hora aquelles que havião partilhado a sua sorte?

Tal era o sentimento de honra naquelles antigos cavalheiros, que D. Antonio nem um momento admittio a idéa de fugir para salvar sua filha; se houvesse outro meio, de certo o receberia como um favor do céo; mas aquelle era impossivel.

Emquanto o espirito do fidalgo se debatia nessa luta cruel, Pery, de pé junto de Cecilia, parecia querer ainda protegê-la contra a morte inevitavel que a ameaçava. Dir-se-hia que o indio esperava algum soccorro imprevisto, algum milagre que salvasse sua senhora; e que aguardava o momento de fazer por ella tudo quanto fosse possivel ao homem.

D. Antonio, vendo a resolução que se pintava no rosto do selvagem, tornou-se ainda mais pensativo; quando passado esse momento de reflexão, ergueu a cabeça, seus olhos brilhavão com un raio de esperança.

Atravessou o espaço que o separava de sua filha, e, tomando a mão de Pery, disse-lhe com uma voz profunda e solemne:

—Se tu fosses christão, Pery!...

O indio voltou-se extremamente admirado daquellas palavras.

—Porque?... perguntou elle.

—Porque?... disse lentamente o fidalgo. Porque se tu fosses christão, eu te confiaria a salvação de minha Cecilia, estou convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro, á minha irmã.

O rosto do selvagem illuminou-se; seu peito arquejou de felicidade; seus labios tremulos mal podião articular o turbilhão de palavras que lhe vinhão do intimo d'alma.

—Pery quer ser christão! exclamou elle.

D. Antonio lançou-lhe um olhar humido de reconhecimento.

—A nossa religião permitte, disse o fidalgo, que na hora extrema todo o homem possa dar o baptismo. Nós estamos com o pé sobre o tumulo. Ajoelha, Pery!

O indio cahio aos pés do velho cavalheiro, que impoz-lhe as mãos sobre a cabeça.

—Sê christão! Dou-te o meu nome.

Pery beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe apresentou, e ergueu-se altivo e sobranceiro, prompto a affrontar todos os perigos para salvar sua senhora.

—Escuso exigir de ti a promessa de respeitares e defenderes minha filha. Conheço a tua alma nobre, conheço o teu heroismo e a tua sublime dedicação por Cecilia. Mas quero que me faças um outro juramento.

—Qual? Pery está prompto para tudo.

Jura que, se não poderes salvar minha filha, ella não cahirá nas mãos do inimigo?

—Pery te jura que elle levará a senhora a tua irmã; e que se o senhor do céo não deixar que Pery cumpra a sua promessa, nenhum inimigo tocará em tua filha; ainda que para isso seja preciso queimar uma floresta inteira.

—Bem; estou tranquillo. Ponho minha Cecilia sob tua guarda: e morro satisfeito. Podes partir.

—Manda fechar todas as portas.

Os aventureiros obedecêrão á ordem do fidalgo; todas as portas se fechárão; o indio empregava este meio para ganhar tempo.

Os gritos e bramidos dos selvagens, que continuavão com algumas interrupções, forão-se aproximando da casa; conhecia-se que escalavão o rochedo nesse momento.

Alguns minutos se passárão n'uma anciedade cruel. D. Antonio de Mariz depositou um ultimo beijo na fronte de sua filha; D. Lauriana apertou ao seio a cabeça adormecida da menina e envolveu-a n'uma manta de seda.

Pery, com o ouvido attento, o olhar fito na porta, esperava. Ligeiramente apoiado sobre o espaldar da cadeira ás vezes estremecia de impaciencia e batia com o pé sobre o pavimento da sala.

De repente, um grande clamor soou em tomo da casa; as chammas lambêrão com as suas linguas de fogo as frestas das portas e janellas: o edificio tremeu desde os alicerces com o embate da tromba de selvagens que se lançava furiosa no meio do incendio.

Pery, apenas ouvio o primeiro grito, reclinou sobre a cadeira e tomou Cecilia nos braços; quando o estrondo soou na porta larga do salão, o indio já tinha desapparecido.

Apezar da escuridão profunda que reinava em todo o interior da casa, Pery não hesitou um momento; caminhou direita ao quarto onde habitára sua senhora e subio á janella.

Uma das palmeiras da cabana estendia-se por cima do precipicio e apoiava-se a trinta palmos de distancia sobre um dos galhos da arvore que os Aymorés tinhão abatido durante o dia para tirarem aos habitantes da casa a menor esperança de fuga.

Pery apertando Cecilia nos braços, firmou o pé sobre essa ponte fragil, cuja faça convexa tinha quando muito algumas pollegadas de largura.

Quem lançasse os olhos nesse momento para aquella banda da esplanada veria ao pallido clarão do incendio deslisar-se lentamente por cima do precipicio o vulto hirto, como um dos fantasmas que, segundo a crença popular, atravessavão á meia noite as velhas amêas de algum castello em ruinas.

A palmeira oscillava, e Pery, embalançando-se sobre o abysmo, adiantava-se vagarosamente para a encosta opposta. Os gritos dos selvagens repercutião nos ares de envolta com o estrepito dos tacapes que abalavão as porta da sala e as paredes do edificio.

Sem se inquetar com a scena tumultuosa que deixava após si, o indio ganhou a encosta opposta, e segurando com uma mão nos galho da arvore, conseguio tocar a terra sem o menor accidente.

Então, fazendo uma volta para não aproximar-se do campo dos Aymorés, dirigio-se á margem do rio; ahi estava escondida entre as folhas a pequena canoa que servia outr'ora para os habitantes da casa atravessarem o Paquequer.

Durante a ausencia de uma hora que Pery tinha feito, quando deixára Cecilia adormecida, elle havia tudo preparado para essa empreza arriscada que devia salvar sua senhora.

Graças á sua actividade espantosa, armou com o auxilio da corda a ponte pensil sobre o precipicio, correu ao rio, amarrou a canôa no lugar que lhe pareceu mais propicio, e em duas viagens levou a esse barquinho, que ia servir de morada a Cecilia durante alguns dias, tudo quanto a menina podia carecer.

Erão roupas, uma colcha de damasco com que se poderia arranjar um leito, alguns alimentos que restavão na casa; lembrou-se até que D. Antonio devia ter necessidade de dinheiro logo que chegasse ao Rio de Janeiro, porque Pery contava que o fidalgo não duvidaria salvar sua filha.

Chegando á beira do rio, o indio deitou sua senhora no fundo da canôa, como uma menina no seu berço, envolveu-a na manta de seda para abrita-la do orvalho da noite, e tomando o remo, fez a canôa saltar como um peixe sobre as aguas.

A algumas braças de distancia, por entre uma aberta da floresta, Pery viu sobre o rochedo a casa illuminada pelas chammas do incendio, que começava a lavrar com alguma intensidade.

De repente uma scena fantastica, terrivel, passou, diante de seus olhos, como uma dessas visões rapidas que brilhão e se apagão de repente no delirio da imaginação.

A frente da casa estava ás escuras; o fogo ganhára as outras faces do edificio e o vento o lançava para o fundo. Pery do primeiro olhar tinha visto os vultos dos Aymorés a se moverem nas sombras; e a figura horrivel e medonha de Loredano, erguendo-se como um espectro no meio das chammas que o devoravão.

De repente a fachada do edificio tombou sobre a esplanada esmagando na sua queda um grande numero de selvagens.

Foi então que o quadro fantastico se desenhou aos olhos de Pery.

A sala era um mar de fogo; os vultos que se movião nessa esphera luminosa parecião nadar em vagas de chammas.

No fundo destacava-se o vulto magestoso de D. Antonio de Mariz, de pé no meio do gabinete, elevando com a mão esquerda uma imagem de Christo e com a direita abaixando a pistola para a cava escura onde dormia o volcão.

Sua mulher abraçava os seus joelhos calma e resignada; Ayres Gomes e os poucos aventureiros que restavão, immoveis e ajoelhados a seus pés, formavão o baixo-relevo dessa estatua digna de um grande cinzel.

Sobre o montão de ruinas formado pela parede que desmoronára, desenhavão-se as figuras sinistras dos selvagens, semelhantes a espiritos diabolicos dansando nas chammas infernaes.

Tudo isso, Pery viu de um só relance d'olhos; como um painel vivo illuminado um momento pelo clarão instantaneo do relampago.

Um estampido horrivel reboou por toda aquella solidão: aterra tremeu, as aguas do rio se encapellárão como batidas pelo tufão. As trevas envolvêrão o rochedo ha pouco esclarecido pelas chammas, e tudo entrou de novo no silencio profundo da noite.

Um soluço partio o peito de Pery, talvez a unica testemunha dessa grande catastrophe.

Dominando a sua dôr, o indio vergou sobre o remo, e a canôa voou pela face lisa e polida do Paquequer.


XI
EPILOGO

Quando o sol, erguendo-se no horizonte, illuminou os campos um montão de ruinas cobria as margens do Paquequer.

Grandes lascas de rochedos, talhadas de um golpe e semeadas pelo campo, paredão ter saltado do malho gigantesco de Novos Cyclopes.

A eminencia sobre a qual estava situada a casa tinha desapparecido, e no seu lugar via-se apenas uma larga fenda semelhante á cratera de algum volcão subterraneo.

As arvores arrancadas dos seus alveolos, a terra revolta, a cinza ennegrecida que cobria a floresta, annunciavão que por ahi tinha passado algum desses cataclysmas que deixão após si a morte e a destruição.

Aqui e alli por entre os comoros das ruinas apparecia alguma india, resto da tribu dos Aymorés, que tinha ficado para chorar a morte dos seus, e levar ás outras tribus a noticia dessa tremenda vingança.

Quem plainasse nesse momento sobre aquella solidão, e lançasse os olhos pelos vastos horizontes que se abrião em torno, se a vista podesse devassar a distancia de muitas leguas, veria ao longe, na larga esteira do Parahyba, passar rapidamente uma forma vaga e indecisa.

Era a canoa de Pery, que impellida pelo remo e pela viração da manhã corria com uma velocidade espantosa semelhando uma sombra a fugir das primeiras claridades do dia.

Toda a noite o indio tinha remado sem descansar um momento; não ignorava que D. Antonio de Mariz na sua terrivel vingança havia exterminado a tribu dos Aymorés, mas desejava apartar-se do theatro da catastrophe, e aproximar-se dos seus campos nativos.

Não era o sentimento da patria, sempre tão poderoso no coração do homem; não era o desejo de ver sua cabana reclinada á beira do rio, e abraçar sua mãi e seus irmãos, que dominava sua alma nesse momento e lhe dava esse ardor.

Era sim a idéa de que ia salvar sua senhora e cumprir o juramento que tinha feita ao velho fidalgo; era o sentimento de orgulho que se apoderava delle, pensando que bastava a sua coragem e a sua força para vencer todos os obstaculos, e realisar a missão de que se havia encarregado.

Quando o sol, no meio de sua carreira, lançava torrentes de luz sobre esse vasto deserto, Pery sentio que era tempo de abrigar Cecilia dos raios abrazadores, e fez a canôa abicar á beira do rio na sombra de uma ramagem de arvores.

A menina envolta na sua manta de seda com a cabeça apoiada sobre a prôa do barquinho dormia ainda o mesmo somno tranquillo da vespera; as côres tinhão voltado, e sob a alvura transparente de sua pelle alva brilhavão esses tons côr de rosa, esse colorido suave, que só a natureza, artista sublime, sabe crear.

Pery tomou a canôa nos seus braços, como se fôra um berço mimoso, e deitou-a sobre a relva que cobria a margem do rio; depois sentou-se ao lado, e com os olhos fitos em Cecilia, esperou que ella sahisse desse somno prolongado que começava a inquieta-lo.

Tremia lembrando-se da dôr que sua senhora ia sentir quando soubesse a desgraça de que elle fôra testemunha na vespera; e não se achava com forças de responder ao primeiro olhar de surpreza que a menina lançaria em torno de si logo que despertasse no meio do deserto.

Emquanto durou o somno, Pery, com o braço apoiado á borda da canôa e o corpo reclinado sobre o rosto da menina, esperando com anciedade o momento que elle desejava e temia ao mesmo tempo, velava sobre Cecilia com um cuidado e uma solicitude admiravel.

A mãi mais extremosa não se desvelaria tanto por seu filho, como esse amigo dedicado por sua senhora; uma restea de sol que, enfiando-se pelas folhas, vinha brincar no rosto da menina, um passarinho que cantava sobre um ramo do arbusto, um insecto que saltava na relva, tudo elle afastava para não perturbar o seu repouso.

Cada minuto que passava era uma nova inquietação para elle; porém era tambem um instante mais de socego e de tranquillidade que a menina gozava, antes de saber a desgraça que pesava sobre ella, e que a privára de sua familia.

Um longo suspiro elevou o seio de Cecilia; seus lindos olhos azues se abrirão e cerrarão, deslumbrados pela claridade do dia; ella passou a mão delicada pelas palpebras rosadas, como para afugentar o somno, e seu olhar limpido e suave foi pousar no rosto de Pery. Soltou um gritozinho de prazer, e sentando-se com vivacidade, lançou um olhar de surpreza e admiração em torno da especie de pavilhão de folhagem que a cercava; parecia interrogar as arvores, o rio, o céo; mas tudo emmudecia.

Pery não se animava a pronunciar uma palavra, via o que se passava n'alma de sua senhora, e não tinha a coragem de dizer a primeira letra do enigma que ella não tardaria a comprehender.

Por fim, a menina, baixando a vista para ver onde estava, descobrio a canôa, e lançando um volver rapido para o vasto leito do Parahyba que se espreguiçava indolentemente pela floresta, ficou branca como a cambraia do seu roupão.

Voltou-se para o indio com os olhos extremamente dilatados, os labios tremulos, a respiração presa, o seio offegante, e supplicando com as mãozinhas juntas:

—Meu pai!... meu pai!... exclamou soluçando.

O selvagem deixou cahir a cabeça sobre o peito e escondeu o rosto nas mãos.

—Morto!... Minha mãi tambem morta!... Todos mortos!...

Vencida pela dôr, a menina apertou convulsamente o seio que lhe estalava com os soluços, e reclinando-se como o calice delicado de uma flôr que a noite enchêra de orvalho, desfez-se em lagrimas.

—Pery só podia salvar a ti, senhora! murmurou o indio tristemente.

Cecilia ergueu a cabeça altiva.

—Porque não me deixaste morrer com os meus?... exclamou ella n'uma exaltação febril. Pedi-te eu que me salvasses? Precisava de teus serviços?...

Seu rosto tomou uma expressão de energia extraordinaria.

—Tu vais me levar ao lugar onde descansa o corpo de meu pai. É ahi que deve estar sua filha... Depois partirás!... Não careço de ti.

Pery estremeceu.

—Escuta, senhora... balbuciou elle em tom submisso.

A menina lançou-lhe um olhar tão imperioso, tão soberano, que o indio emmudeceu, e voltando o rosto escondeu as lagrimas que lhe molhavão as faces.

Cecilia caminhou até á beira do rio, e com os olhos estendidos pelo horizonte, que ella suppunha occultar o lugar em que habitára, ajoelhou e fez uma oração longa e ardente.

Quando ergueu-se, estava mais calma: a dôr tinha-se repassado do consolo sublime da religião, dessa doçura e suavidade que infiltra no coração a esperança de uma vida celeste, que reune aquelles que se amárão na terra.

Ella pôde então reflectir sobre o que se tinha passado na vespera; e procurou lembrar-se das circumstancias que havião precedido á morte de sua familia. Todas as suas recordações, porém, chegavão unicamente até o momento em que, já meia adormecida, fallava a Pery, e dizia essa palavra ingénua e innocente que lhe escapára do intimo d'alma.

—Antes morrer como Isabel!

Lembrando-se dessa palavra, córou; e vendo-se só no deserto com Pery, sentio uma inquietação vaga e indefinida, um sentimento de temor e de receio, cuja causa não sabia explicar.

Seria essa desconfiança subita proveniente da colera que ella sentira, porque o indio salvára a sua vida, e a arrancára da desgraça que tinha destruido toda a sua familia?

Não; não era essa a causa: ao contrario Cecilia conhecia que fôra injusta para com seu amigo que tinha talvez feito impossiveis por ella; e a não ser o receio instinctivo que se apoderára involuntariamente de sua alma, já o teria chamado para pedir-lhe perdão daquellas palavras duras e crueis.

A menina ergueu os olhos timidos e encontrou o olhar triste e supplice de Pery: não pôde resistir; esqueceu os seus receios, e um tenue sorriso fugio-lhe pelos labios.

—Pery!...

—O indio estremeceu, mas desta vez de alegria e de contentamento: veio cahir aos pés de sua senhora, que elle encontrava de novo boa como sempre tinha sido.

—Perdoa a Pery, senhora!

—És tu que me deves perdoar, porque te fiz soffrer; não é verdade? Mas bem sabes!... Não podia abandonar meu pobre pai!

—Foi elle que mandou a Pery que te salvasse! disse o indio.

—Como?... exclamou a menina. Conta-me, meu amigo.

O indio fez a narração da scena da noite antecedente desde que Cecilia tinha adormecido até o momento em que a casa saltára com a explosão, restando delia apenas um montão de ruinas.

Contou que elle tinha preparado tudo para que D. Antonio de Mariz fugissse, salvando Cecilia; mas que o fidalgo recusára, dizendo que a sua lealdade e a sua honra mandavão que morresse no seu posto.

—Meu nobre pai! murmurou a menina enxugando as lagrimas.

Houve um instante de silencio, depois do qual Pery concluio a sua narração, e referio como D. Antonio de Mariz o tinha baptisado, e lhe havia confiado a salvação de sua filha.

—Tu és christão, Pery?... exclamou a menina, cujos olhos brilhárão com uma alegria ineffavel.

—Sim; teu pai disse: «Pery; tu és christão; dou-te o meu nome!»

—Obrigado, meu Deus, disse a menina juntando as mãos e erguendo os olhos ao céo.

Depois, envergonhada desse movimento espontaneo, escondeu o rosto: o rubor que cobrio as suas faces tingio de longes côr de rosa as linhas puras do collo assetinado.

Pery ergueu-se e foi colher alguns fructos delicados que servirão de refeição á sua senhora.

O sol tinha quebrado a sua força, era tempo de continuar a viagem e aproveitar a frescura da tarde para vencer a distancia que os separava do campo dos Goytacazes.

O indio chegou-se tremulo para a menina:

—Que queres tu que Pery faça, senhora?

—Não sei; respondeu Cecilia indecisa.

—Não queres que Pery te leve á taba dos brancos?

—É a vontade de meu pai?... Deves cumpri-la.

—Pery prometteu a D. Antonio levar-te a sua irmã.

O indio fez a canôa boiar sobre as aguas do rio, e quando tomou a menina nos seus braços para deita-la no barquinho, ella sentio pela primeira vez na sua vida que o coração de Pery palpitava sobre o seu seio.

A tarde estava soberba; os raios do sol no occaso, filtrando por entre as folhas das arvores, douravão as flôres alvas que crescião pela beira do rio.

As rolas começavão a soltar os seus arrulhos no fundo da floresta; e a brisa, que passava ainda tepida das exhalações da terra, vinha impregnada de aromas silvestres.

A canôa resvalou pela flôr d'agua, como uma garça ligeira levada pela correnteza do rio.

Pery remava sentado na prôa.

Cecilia, deitada no fundo, meio apoiada sobre uma alcatifa de folhas que Pery tinha arranjado, engolfava-se nos seus pensamentos, e aspirava as emanações suaves e perfumadas das plantas, e a frescura do ar e das aguas.

Quando seus olhos encontravão os de Pery, os longos cilios descião occultando um momento o seu olhar doce e triste.

A noite estava serena.

A canôa, vogando sobre as aguas do rio, abria essas flôres de espuma, que brilhão um momento á luz das estrellas, e se desfazem como o sorriso da mulher.

A brisa tinha escasseado; e a natureza adormecida respirava a calma tepida e perfumada das noites americanas, tão cheias de enlevo e encanto.

A viagem fora silenciosa; essas duas creaturas abandonadas no meio do deserto, sós em face da natureza, emmudecião, como se temessem despertar o echo profundo da solidão.

Cecilia repassava na memoria toda a sua vida innocente e tranquilla, cujo fio dourado tinha-se rompido de uma maneira tão cruel; mas era sobretudo o ultimo anno dessa existencia, desde o dia do apparecimento imprevisto de Pery, que se desenhava na sua imaginação.

Porque interrogava ella assim os dias que tinha vivido no remanso da felicidade? Porque o seu espirito voltava ao passado, e procurava ligar todos esses factos a que na descuidosa ingenuidade dos primeiros annos dera tão pouco apreço?

Ella mesma não saberia explicar as emoções que sentia; sua alma innocente e ignorante tinha-se illuminado com uma subita revelação: novos horizontes se abrião aos sonhos castos de seu pensamento.

Volvendo ao passado admirava-se de sua existencia, como os olhos se deslumbrão com a claridadade depois de um somno profundo; não se reconhecia na imagem do que fôra outr'ora, na menina isenta e travessa.

Toda a sua vida estava mudada; a desgraça tinha operado essa revolução repentina, e um outro sentimento ainda confuso ia talvez completar a transformação mysteriosa da mulher.

Em torno della tudo se resentia dessa mudança; as côres tinhão tons harmoniosos, o ar perfumes inebriantes, a luz reflexos avelludados, que seus sentidos não conhecião.

Uma flôr que antes era para ella apenas uma bella fórma, parecia-lhe agora uma creatura que sentia e palpitava; a brisa que outr'ora passava como um simples bafejo das auras, murmurava ao seu ouvido nesse momento melodias ineffaveis, notas mysticas que resoavão no seu coração.

Pery, julgando sua senhora adormecida, remava docemente para não perturbar o seu repouso; a fadiga começava a vencê-lo; apezar de sua coragem indomavel e de sua vontade poderosa, as forças estavão exhaustas.

Apenas vencedor da luta terrivel que travára com o veneno, tinha começado a empreza quasi impossivel da salvação de sua senhora; havia tres dias que seus olhos não se cerravão, que seu espirito não repousava um instante.

Tudo quanto a natureza permittia á intelligencia e ao poder do homem, elle tinha feito; e comtudo não era a fadiga do corpo que o vencia, erão sim as emoções violentas por que passára durante esse tempo.

O que elle tinha sentido quando plainava sobre o abysmo, e que a vida de sua senhora dependia de um passo falso, de uma oscillação da haste fragil que lhe servia de ponte pensil, ninguem comprehenderia.

O que soffreu quando Cecilia no seu desespero pela morte de seu pai o accusava por tê-la salvado, e lhe dava ordem de leva-la ao lugar onde repousavão as cinzas do velho fidalgo, é impossivel de descrever.

Forão horas de martyrio, de soffrimento horrivel, em que sua alma succumbiria, se não achasse na sua vontade inflexivel e na sua dedicação sublime um conforto para a dôr, e um estimulo para triumphar de todos os obstaculos.

Erão essas emoções que o vencião, e ainda depois de vencidas, elle conheceu que seus musculos de aço, escravos submissos que obedecião ao seu menor desejo, se destendião como a corda do arco depois do combate. Lembrou-se que sua senhora precisava delle e que devia aproveitar esses momentos em que ella repousava para pedir ao somno novo vigor e novas forças.

Ganhou o meio do rio, e escolhendo um lugar onde não chegava nem um galho das arvores que crescião nas ribanceiras, amarrou a canôa nos nenuphares que boiavão á tona d'agua.

Tudo estava quieto; a terra ficava a uma distancia de muitas braças; portanto podia sua senhora dormir sem perigo sobre esse chão prateado, debaixo da abobada azul do céo; as ondinhas a embalarião no seu berço, as estrellas vigiarião o seu somno.

Livre de inquietação, Pery encostou a cabeça na borda da canôa; um momento depois suas palpebras entorpecidas cerrárão-se a pouco e pouco; seu ultimo olhar, esse olhar vago e incerto que adeja na pupilla já meio adormecida, viu desenhar-se na sombra uma forma alva e graciosa que se reclinava docemente para elle.

Não era um sonho, essa linda visão. Cecilia sentindo a canôa immovel despertou das suas recordações; sentou-se, e debruçando-se um pouco viu que seu amigo dormia, e accusou-se por não ter ha mais tempo exigido delle esse instante de repouso.

O primeiro sentimento que se apoderou da menina, vendo-se só, foi o terror solemne e respeitoso que infunde a solidão no meio do deserto, nas horas mortas da noite.

O silencio parece fallar; as sombras se povoão de seres invisiveis; os objectos, na sua immobilidade, como que oscillão pelo espaço.

E ao mesmo tempo o nada com o seu vacuo profundo, immenso, infinito; e o chãos com a sua confusão, as suas trevas, as suas formas increadas; a alma sente que falta-lhe a vida ou a luz em torno.

Cecilia recebeu essa impressão com um temor religioso; mas não se deixou dominar pelo susto; a desgraça a habituára ao perigo; e a confiança que tinha no seu companheiro era tanta, que mesmo dormindo parecia-lhe que Pery velava sobre ella.

Contemplando essa cabeça adormecida, a menina admirou-se da belleza inculta dos traços, da correcção das linhas do perfil altivo, da expressão de força e intelligencia que animava aquelle busto selvagem moldado pela natureza.

Como era que até então ella não tinha percebido naquelle aspecto senão um rosto amigo? Como seus olhos tinhão passado sem ver sobre essas feições talhadas com tanta energia?

Era que a revelação physica que acabava de illuminar o seu olhar, não era senão o resultado dessa outra revelação moral que esclarecêra o seu espirito; dantes via com os olhos do corpo, agora via com os olhos da alma.

Pery, que durante um anno não fôra para ella senão um amigo dedicado, apparecia-lhe de repente como um heróe; no seio de sua familia estimava-o, no meio dessa solidão admirava-o.

Como os quadros dos grandes pintores que precisão de luz, de um fundo brilhante, e de uma moldura simples, para mostrarem a perfeição de seu colorido e a pureza de suas linhas, o selvagem precisava do deserto para revelar-se em todo o esplendor de sua belleza primitiva.

No meio de homens civilisados, era um indio ignorante, nascido de uma raça barbara, a quem a civilisação repellia, e marcava o lugar de captivo. Embora para Cecilia e D. Antonio fosse um amigo, era apenas um amigo escravo.

Aqui, porém, todas as distincções desapparecião; o filho das mattas, voltando ao seio de sua mãi, recobrava a liberdade; era o rei do deserto, o senhor das florestas, dominando pelo direito da força e da coragem.

As altas montanhas, as nuvens, as catadupas, os grandes rios, as arvores seculares, servião de throno, de docel, de manto e sceptro a esse monarca das selvas cercado de toda a magestade e de todo o esplendor da natureza.

Que effusão de reconhecimento e de admiração não havia no olhar de Cecilia! Era nesse momento que ella comprehendia toda a abnegação do culto santo e respeitoso que o indio lhe votava!

As horas corrêrâo silenciosamente nessa muda contemplação; a aragem fresca que annuncia o despontar do dia bafejou o rosto da menina; e pouco depois o primeiro albor da manhã desmaiou o negrume do horizonte.

Sobre o relevo que formava o perfil escuro da floresta, nas sombras da noite, luzio limpida e brilhante a estrella d'alva; as aguas do rio arfárão docemente; e os leques das palmeiras se agitárão rumorejando.

A menina lembrou-se do seu despertar tão placido de outr'ora, de suas manhãs tão descuidosas, de sua prece alegre e risonha em que agradecia a Deus a ventura que vertia sobre ella e sua familia.

Uma lagrima pendeu nos cilios dourados, e cahio sobre a face de Pery; abrindo os olhos, e vendo ainda a mesma doce visão que o adormecêra, o indio julgou que o sonho continuava.

Cecilia sorrio-lhe; e passou a mãozinha pelas palpebras ainda meio cerradas de seu amigo:

—Dorme, disse ella, dorme; Cecy vela.

A musica dessas palavras despertou completamente o selvagem.

—Não! balbuciou elle envergonhado de ter cedido á fadiga. Pery sente-se forte.

—Mas tu deves ter necessidade de repouso! Ha tão pouco tempo que adormeceste!

—O dia vai raiar; Pery deve velar sobre sua senhora.

—E porque tua senhora não velará tambem sobre ti? Queres tomar tudo; e não me deixas nem mesmo a gratidão!

O indio lançou um olhar cheio de admiração á menina:

—Pery não entende o que tu dizes. A rolinha quando atravessa o campo e sente-se fatigada, descansa sobre a aza de seu companheiro que é mais forte; é elle que guarda o seu ninho emquanto ella dorme, que vai buscar o alimento, que a defende e que a protege. Tu és como a rolinha, senhora.

Cecilia córou da comparação ingénua de seu amigo.

—E tu? perguntou ella confusa e tremula de emoção.

—Pery... é teu escravo, respondeu o indio naturalmente.

A menina abanou a cabeça com uma inflexão graciosa:

—A rolinha não tem escravo.

Os olhos de Pery brilhárão, uma exclamação partio de seus labios:

—Teu...

Cecilia com o seio palpitante, as faces vermelhas, os olhos humidos, levou a mãozinha aos labios de Pery, e reteve a palavra que ella mesma na sua innocente faceirice tinha provocado.

—Tu és meu irmão! disse ella com um sorriso divino.

Pery olhou o céo, para fazê-lo confidente de sua felicidade.

A claridade da alvorada estendia-se sobre a floresta e os campos como um vêo finissimo; a estrella da manhã scintillava em todo o seu fulgor.

Cecilia ajoelhou-se.

—Salve, rainha!...

O indio contemplava-a com uma expressão de ventura ineffavel.

—Tu és christão, Pery! disse ella lançando-lhe um olhar supplicante.

Seu amigo comprehendeu-a, e ajoelhando, juntou as mãos como ella.

—Tu repetirás todas as minhas palavras; e faze por não esquecê-las. Sim?

—Ellas vêm de teus labios, senhora.

—Senhora, não! irmã!

Dahi a pouco os murmurios das aguas confundião-se com os accentos maviosos da voz de Cecilia que recitava o hymno christão repassado de tanta uncção e poesia.

A palavra de Pery repetia como um écho a phrase sagrada.

Terminada a prece christã, talvez a primeira que tinhão ouvido aqnellas arvores seculares, a viagem continuou.

Logo que o sol chegou ao zenith, Pery procurou como na vespera um abrigo para passar as horas de calma.

A canôa pojou n'um pequeno seio do rio, Cecilia saltou em terra; e seu companheiro escolheu uma sombra onde ella repousasse.

—Espera aqui; Pery já volta.

—Onde vais? perguntou a menina inquieta.

—Ver fructos para ti.

—Não tenho fome.

—Tu os guardarás.

—Pois bem; eu te acompanho.

—Não; Pery não consente.

—E porque? Não me queres junto de ti?

—Olha tuas roupas; olha teus pés, senhora; os espinhos do cardo te offenderião.

Com effeito Cecilia estava vestida com um ligeiro roupão de cambraia; e seu pézinho que descansava sobre a relva, calçava um borzeguim de seda.

—Então me deixas só? disse a menina entristecendo.

O indio ficou um momento indeciso; mas de repente sua physionomia expandio-se.

Cortou a haste de um iris que se balançava ao sopro da aragem, e apresentou a flôr á menina.

—Escuta, disse elle. Os velhos da tribu ouvirão de seus pais, que a alma do homem quando sahe do corpo, se esconde n'uma flôr, e fica alli até que a ave do céo vem busca-la e leva-la bem longe. É por isso que tu vês o guanumby, saltando de flôr em flôr, beijando uma, beijando outro; e depois batendo as azas e fugindo.

Cecilia, habituada á linguagem poetica do selvagem esperava a ultima palavra que devia fazê-la comprehender o seu pensamento.

O indio continuo:

—Pery não leva a sua alma no corpo, deixa-a nesta flôr. Tu não ficas só.

A menina sorrio, e tomando a flôr escondeu-a no seio.

—Ella me acompanhará. Vai, meu irmão, e volta logo.

—Pery não se afastará; se tu o chamares, elle ouvirá.

—E me responderás, sim?... para que eu te sinta perto de mim...

O indio, antes de partir, circulou a alguma distancia o lugar onde se achava Cecilia de uma corda de pequenas fogueiras feitas de louro, de canella, uratahy e outras arvores aromaticas.

Desta maneira tornava aquelle retiro impenetravel: o rio de um lado, e do outro as chammas que afugentarião os animaes damnihos, e sobretudo os reptis, o fumo odorifero que se escapava das fogueiras afastaria até mesmo os insectos. Pery não soffreria que uma vespa e uma mosca sequer offendesse a cutis de sua senhora, e sugasse uma gota desse sangue precioso; por isso tomára todas essas precauções.

Cecilia devia pois ficar tranquilla como se estivesse em um palacio; e de facto era um palacio de rainha do deserto esse sombrio cheio de frescura a que a relva servia de alcatifa, as folhas de docel, as grinaldas em flôres de cortinas, os sabiás de orchestra, as aguas de espelho, e os raios do sol de arabescos dourados.

A menina vio de longe o desvelo com que seu amigo tratava de sua segurança, e acompanhou-o com o olhar até o momento em que elle desappareceu no mais espesso da matta.

Foi então que ella sentio a soledade estender-se em torno e envolvê-la; insensivelmente levou a mão ao seio e tirou a flôr que Pery lhe tinha dado.

Apezar de sua fé christã, não pôde vencer essa innocente superstição do coração: pareceu-lhe, olhando o iris, que já não estava só e que a alma de Pery a acompanhava.

Qual é o seio de dezaseis annos que não abriga uma dessas illusões encantadoras, nascidas com o fogo dos primeiros raios do amor? Qual é a menina que não consulta o oraculo de um malmequer, e não vê n'uma borboleta negra a sibylla fatidica que lhe annuncia a perda da mais bella esperança?

Como a humanidade na infancia, o coração nos primeiros annos tem tambem a sua mythologia; mythologia mais graciosa e mais poetica do que as creações da Grecia; o amor é o seu Olympo povoado de deosas ou deoses de uma belleza celeste e immortal.

Cecilia amava; a gentil e innocente menina procurava illudir-se a si mesma, attribuindo o sentimento que enchia sua alma a uma affeição fraternal, e occultando, sob o doce nome de irmão, um outro mais doce que titillava nos seus labios, mas que seus labios não ousavão pronunciar.

Mesmo só, de vez em quando um pensamento que passava no seu espirito, incendia-lhe as faces de rubor, fazia palpitar-lhe o seio e pender mollemente a cabeça, como a haste da planta delicada quando o calor do sol fecunda a florescencia.

Em que pensava ella, com os olhos fitos no iris, que o seu habito bafejava, comas palpebras meio cerradas e o corpo reclinado sobre os joelhos?

Pensava no passado que não voltaria; no presente que devia escoar-se rapidamente; e no futuro que lhe apparecia vago, incerto e confuso.

Pensava que de todo o seu mundo só lhe restava um irmão de sangue, cujo destino ignorava, e um irmão d'alma, em que tinha concentrado todas as affeições que perdera.

Um sentimento de tristeza profunda annuviava seu semblante, lembrando-se de seu pai, de sua mãi, de Isabel, de Alvaro, de todos que amava e que formavão o universo para ella; então o que a consolava era a esperança de que os dous unicos corações que lhe restavão não a abandonarião nunca.

E isto a fazia feliz; não desejava mais nada; não pedia a Deos mais ventura do que a que sentiria vivendo junto de seus amigos e enchendo o futuro com as recordações do passado.

A sombra das arvores já beijava as aguas do rio, e Pery ainda não tinha voltado; Cecilia assustou-se, e, temendo que não lhe tivesse succedido alguma cousa, chamou por elle.

O indio respondeu de longe, e pouco depois appareceu entre as arvores; o seu tempo não tinha sido inutilmente empregado, a julgar pelos objectos que trazia.

—Como tardaste!... disse-lhe Cecilia erguendo-se e indo ao seu encontro.

—Tu estavas socegado; Pery aproveitou para não te deixar amanhã.

—Amanhã só?

—Sim, porque depois chegaremos.

—Aonde? perguntou a menina com vivacidade.

—Aos campos dos Goytacazes, á cabana de Pery, onde tu mandarás a todos os guerreiros da tribu.

—E depois, como iremos ao Rio de Janeiro?

—Não te inquietes; os Goytacazes tem igaras grandes como aquella arvore que toca ás nuvens; quando elles atirão o remo, ellas voão sobre as aguas como a atyaty de azas brancas. Antes que a lua, que vai nascer, tenha desapparecido, Pery te deixará com a irmã de teu pai.

—Deixará!... exclamou a menina, empallidecendo. Tu queres me abandonar?

—Pery é um selvagem, disse o indio tristemente; não póde viver na taba dos brancos.

—Porque? perguntou a menina com anciedade. Não és tu christão como Cecy?

—Sim; porque era preciso ser christão para te salvar; mas Pery morrerá selvagem como Ararê.

—Oh! não, disse a menina, eu te ensinarei a conhecer Deus, Nossa Senhora, as suas virgens e os seus anginhos. Tu viverás comigo e não me deixarás nunca!

—Vê, senhora: a flor que Pery te deu já murchou porque sahio de sua planta; e a flôr estava no teu seio. Pery na taba dos brancos, ainda mesmo junto de ti, será como esta flôr; tu terás vergonha de olhar para elle.

—Pery!... exclamou a menina offendida.

—Tu és boa; mas todas as que têm a tua côr não têm o teu coração. Lá, o selvagem seria um escravo dos escravos; e quem nasceu o primeiro póde ser teu escravo; mas é senhor dos campos, e mando aos mais fortes.

Cecilia, admirando o reflexo de nobre orgulho que brilhava na fronte do indio, sentio que não podia combater a sua resolução dictada por um sentimento elevado. Reconheceu que havia no fundo de suas palavras uma grande verdade, que o seu instincto adivinhava; ella tinha a prova na revolução que se operára no seu espirito, vendo Pery no meio do deserto, livre, grande, magestoso com um rei.

Qual não seria pois a consequencia dessa outra transição, muito mais brusca? N'uma cidade, no meio da civilisação, o que seria um selvagem, senão um captivo, tratado por todos com desprezo?

No intimo de sua alma quasi que approvava a resolução de Pery; mas não podia afazer-se á idéa de perder seu amigo, seu companheiro, a unica affeição que talvez ainda lhe restava no mundo.

Durante esse tempo, o indio preparava a simples refeição que lhes offerecia a natureza. Deitou sobre uma folha larga os fructos que tinha colhido: erão os aracás, os jambos corados, os ingás de polpa macia, os cocos de varias especies.

A outra folha continha favos de uma pequena abelha, que fabricára a sua colmeia no tronco de uma cabuiba, de sorte que o mel puro e claro tinha perfumes deliciosos: dir-se-hia mel de flôres.

O indio tornou concava uma palma larga e encheu-a com o succo do ananaz, cuja fragrancia é como a essencia do sabor: era o vinho que devia servir ao banquete frugal.

N'uma segunda palma tambem concava, apanhou a agua crystallina da corrente que murmurava a alguns passos; devia servir para Cecilia lavar as mãos depois da refeição.

Quando acabou esses preparativos que elle fazia com uma satisfação inexprimivel, Pery sentou-se junto da menina, e começou a trabalhar n'um arco de que precisava. O arco era sua arma favorita, e sem elle, embora possuisse a clavinha e as munições que por precaução deitára na canôa para servirem a D. Antonio de Mariz, não tinha tranquillidade de espirito e confiança plena na sua agilidade.

Reparando, porém, que sua senhora não tocava nos alimentos, ergueu a cabeça e vio o rosto da menina banhado de lagrimas, que cahião em perolas sobre os fructos, e os rociavão como gotas de orvalho.

Não era preciso adivinhar, para conhecer a causa dessas lagrimas.

—Não chores, senhora, disse o indio afflicto; Pery te fallou o que sentia; manda, e Pery fará a tua vontade.

Cecilia olhou-o com uma expressão de melancolia que partia a alma.

—Queres que Pery fique comtigo? Elle ficará; todos serão seus inimigos; todos o tratarão mal; desejará defender-te e não poderá; quererá servir-te e não o deixarão; mas Pery ficará.

—Não, respondeu Cecilia; não exijo de ti esse ultimo sacrificio. Deves viver onde nasceste, Pery.

—Mas tu vais ainda chorar!

—Vê, disse a menina enxugando as lagrimas; estou contente.

—Agora toma uma fructa.

—Sim; jantaremos juntos, como jantavas outr'ora no meio das mattas com tua irmã.

—Pery nunca teve irmã.

—Mas tens agora, respondeu ella sorrindo.

E como uma filha das florestas, uma verdadeira americana, a gentil menina fez a sua refeição partilhando-a com seu companheiro, e acompanhando-a dos gestos innocentes e faceiros que só ella sabia ter.

Pery admirava-se da mudança brusca que se tinha operado em sua senhora, e no fundo do seu coração sentia um aperto, pensando que ella se consolára bem depressa com a lembrança da separação.

Mas elle não era egoista, e preferia a alegria de sua senhora a seu prazer; porque vivia antes da vida della do que da sua propria.

Depois da refeição, Pery voltou ao seu trabalho.

Cecilia, que desde o primeiro dia sentia-se abatida e languida, tinha recobrado um pouco de sua vivacidade e gentileza dos bons dias.

O rosto mimoso conservava ainda a sombra melancolica que lhe deixarão impressas as scenas tristes de que fora testemunha, e sobretudo a ultima desgraça que a tinha privado de seu pai e de sua mãi.

Mas essa mágoa tomava nas suas feições uma expressão angelica, e tal mansuetude e suavidade que dava novo encanto á sua belleza ideal.

Deixando seu companheiro distrahido com a sua obra, chegou á beira do rio e sentou-se junto de uma moita de uvaias, á qual estava amarrada a canôa.

Pery viu-a afastar-se, e, sempre seguindo-a com os olhos, continuou a preparar a vergontea que devia servir-lhe de arco, e as cannas selvagens, ás quaes o seu braço ia dar o vôo da ave altaneira.

A menina com a face apoiada na mão e os olhos postos na correnteza do rio, scimava; ás vezes as palpebras cerravão-se; os labios se agitavão imperceptivelmente; nesses momentos parecia que conversava com algum espirito invisivel.

Outras vezes, um doce sorriso despontava nos seus labios e desfazia-se logo, como se o pensamento que viera pousar ali voltasse a esconder-se no fundo do coração, donde se tinha escapado.

Por fim ergueu a fronte com o meneio de rainha, que ás vezes tomava a sua cabecinha loura, á qual só faltava o diadema; a physionomia mostrou uma expressão de energia, que lembrava o caracter de D. Antonio de Mariz.

Tinha tomado uma resolução; uma resolução firme, inabalavel, que ia cumprir com a mesma força de vontade e coragem que herdára de seu pai, e dormia no fundo de sua alma, para só revelar-se nas occasiões extremas.

Levantou os olhos ao céo, e pedio a Deos um perdão para uma falta, e ao mesmo tempo uma esperança para uma boa acção que ia praticar; sua oração foi breve, mas ardente e cheia de fervor.

Emquanto isso se passava, Pery, vendo que as sombras da terra já se deitavão sobre o leito do Parahyba, conheceu que era tempo de partir, e preparou-se para continuar a viagem.

No momento em que levantava-se, Cecilia, correu para elle, e collocou-se em face, de modo a lhe occultar a vista do rio.

—Tu sabes? disse ella sorrindo; tenho uma cousa a pedir-te.

Esta só palavra bastava para que Pery não visse mais nada senão os olhos e os labios de sua senhora, que ião dizer-lhe o que ella desejava.

—Quero que apanhes muito algodão para mim e me tragas uma pelle bonita. Sim?

—Para que? perguntou o indio admirado.

—Do algodão fiarei um vestido; da pelle tu cobrirás os meus pés.

Pery, cada vez mais admirado, ouvia sua senhora sem comprehendê-la:

—Assim, disse a menina sorrindo, tu me deixarás acompanhar-te, os espinhos não me farão mal.

O espanto do indio tinha-o tornado immovel, mas de repente soltou um grito, e quiz precipitar-se para o rio.

A mãozinha de Cecilia apoiando-se no seu peito, reteve-o.

—Espera!

—Olha; respondeu o indio inquieto apontando o rio.

A canôa desprendida do tronco a que estava amarrada resvalava á discrição das aguas, e, gyrando sobre si, desapparecia levada pela correnteza.

Cecilia depois de olhar se voltou sorrindo:

—Fui eu que soltei!

—Tu senhora! Porque?

—Porque não precisamos mais della.

Fitando então no seu amigo os lindos olhos azues, disse com o tom grave e lento que revela um pensamento profundamente reflectido e uma resolução inabalavel.

—Pery não póde viver junto de sua irmã na cidade dos brancos; sua irmã fica com elle no deserto, no meio das florestas.

Era essa a idéa que ella ha pouco acariciava no seu espirito, e para a qual tinha invoeado a graça divina.

Não foi sem algum esforço que ella conseguio dominar os primeiros temores que a assaltárão, quando encarou em face essa existencia longe da sociedade, na solidão, no isolamento.

Mas qual era o laço que a prendia ao mundo civilisado? Não era ella quasi uma filha desses campos, criada com o seu ar puro e livre, com as suas aguas crystallinas?

A cidade lhe apparecia apenas como uma recordação da primeira infancia, como um sonho do berço; deixara o Rio de Janeiro aos cinco annos, e nunca mais alli voltára.

O campo, esse tinha para ella outras recordações ainda vivas e palpitantes; a flor da sua mocidade tinha sido bafejada por essas auras; o botão desatára aos raios desse sol esplendido.

Toda a sua vida, todos os seus bellos dias, todos os seus prazeres infantis vivião alli, fallavão naquelles échos da solidão, naquelles murmurios confusos, naquelle silencio mesmo.

Ella pertencia, pois, mais ao deserto do que á cidade; era mais uma virgem brazileira do que uma menina cortezã; seus habitos e seus gostos prendião-se mais ás pompas singelas da natureza, do que ás festas e ás galas da arte e da civilisação.

Decidio ficar.

A unica felicidade que ainda podia gozar neste mundo, depois da perda de sua familia, era viver com os dous entes que a amavão; essa felicidade não era possivel; devia escolher entre um delles.

Ahi o seu coração foi impellido pela força invencivel que o arrastava; mas depois, envergonhando-se de ter cedido tão depressa, procurou desculpar-se a si mesma.

Disse então que entre seus dous irmãos era justo que acompanhasse antes aquelle que só vivia para ella, que não tinha um pensamento, um cuidado, um desejo que não fosse inspirado por ella.

D. Diogo era um fidalgo, herdeiro do nome de seu pai; tinha um futuro diante de si, tinha uma missão a cumprir no mundo; elle escolheria uma companheira para suavisar-lhe a existencia.

Pery tinha abandonado tudo por ella; seu passado, seu presente, seu futuro, sua ambição, sua vida, sua religião mesmo; tudo era ella, e unicamente ella; não havia pois que hesitar.

Depois Cecilia tinha ainda um pensamento que lhe sorria: queria abrir ao seu amigo o céo que ella entrevia na sua fé christã; queria dar-lhe um lugar perto della na mansão dos justos, aos pés do throno celeste do Creador.

É impossivel descrever o que se passou no espirito do selvagem ouvindo as palavras de Cecilia: sua intelligencia inculta, mas brilhante, capaz de elevar-se aos mais altos pensamentos, não podia comprehender aquella idéa; duvidou do que escutava.

—Cecilia fica no deserto!... balbuciou elle.

—Sim! respondeu a menina tomando-lhe as mãos; Cecilia fica comtigo e não te deixará. Tu és rei destas florestas, destes campos, destas montanhas; tua irmã te acompanhará!

—Sempre?...

—Sempre!.... Viveremos juntos como hontem, como hoje, como amanhã. Tu cuidas?... Eu tambem sou filha desta terra; tambem me criei no seio desta natureza. Amo este bello paiz!...

—Mas, senhora, tu não vês que tuas mãos forão feitas para as flores e não para os espinhos; teus pés para brincar e não para andar; teu corpo para a sombra e não para o sol e a chuva?

—Oh! Eu sou forte! exclamou a menina erguendo a cabeça com altivez. Junto de ti não tenho medo. Quando eu estiver cansada, tu me levarás nos teus braços. A rolinha não se apoia sobre a aza de seu companheiro?

Era preciso ver a gentileza e a garridice com que ella dizia todas essas phrases graciosas, que borbulhavão dos seus labios! A irradiação do seu olhar, a animação do seu rosto e a travessura de seu gesto fascinavão.

Pery ficou estatico diante da perspectiva dessa felicidade immensa, com a qual nunca sonhara; mas jurou de novo em sua alma que cumpriria a promessa feita a D. Antonio.

A tarde descahia; e era preciso tratar de prover aos meios de passar a noite em terra, o que seria muito mais perigoso; não para elle a quem bastava o galho de uma arvore; mas para Cecilia.

Seguindo pela margem para escolher o lugar mais favoravel, Pery soltou uma palavra de surpreza vendo a canôa que se tinha embaraçado numa dessas ilhas fluctuantes feitas pelas parasitas do rio que boião sobre as aguas.

Era o melhor leito que podia ter a menina no meio do deserto; puxou a canôa, alcatifou o fundo com as folhas macias das palmeiras, e, tomando Cecilia nos braços, deitou-a no seu berço.

A menina não consentio que Pery remasse; e a canôa deslisou docemente pelo leito do rio, apenas impellida pela correnteza.

Cecilia brincava; debruçava-se sobre as aguas para colher uma flôr de passavem, para perseguir um peixe que beijava a face lisa das ondas, para ter o prazer de molhar as mãos nessa agua crystallina, para rever a sua imagem nesse espelho vacillante.

Quando tinha brincado bastante, voltava-se para seu amigo e fallava-lhe com o gazeio argentino, mimoso chilrear dos labios travessos de uma linda menina, onde as cousas mais ligeiras e mais frivolas revestem encantos e graça suprema.

Pery estava distrahido; seu olhar fitava-se no horizonte com uma attenção extraordinaria; a inquietação que se desenhava no seu semblante era indicio de algum perigo, embora ainda remoto.

Sobre a linha azulada da cordilheira dos Orgãos, que se destacava n'um fundo de purpura e rosicler, amontoavão-se grossas nuvens escuras e pesadas, que, feridas pelos raios do occaso, lançavão reflexos acobreados.

Dahi a pouco a serrania desappareceu envolta nesse manto côr de bronze, que se elevava como as columnas e abobadas de stalactites que se encontrão nas grutas das nossas montanhas. O azul puro e risonho que cobria o resto do firmamento contrastava com a cinta escura, que ia ennegrecendo gradualmente á medida que a noite cahia.

Pery voltou-se.

—Tu queres ir para terra, senhora?

—Não; estou tão bem aqui! Não foste tu que me trouxeste?

—Sim; mas...

—O que?

—Nada; pódes dormir sem receio!

Elle tinha-se lembrado que entre dous perigos o melhor era preferir o mais remoto; aquelle que ainda estava longe e talvez não viesse.

Por isso resolveu não dizer nada a Cecilia, e conservar-se attento e vigilante para salva-la, se o que elle temia se realisasse.

Pery havia lutado com o tigre, os homens, com uma tribu de selvagens, com o veneno; e tinha vencido. Era chegada a occasião de lutar com os elementos; com a mesma confiança calma e impassivel, esperou prompto a aceitar o combate.

Anoiteceu.

O horizonte, sempre negro e fechado, se illuminava ás vezes com um lampejo phosphorescente: um tremor surdo parecia correr pelas entranhas da terra e fazia ondular a superficie das aguas, como o seio de uma vela enfunada pelo vento.

Entretanto, ao redor tudo estava quieto; as estrellas recamavão o azul do céo; a viração aninhava-se nas folhas das arvores; os murmurios doces da solidão cantavão o hymno da noite.

Cecilia adormeceu no seu berço, murmurando uma prece.

Era alta noite; sombras espessas cobrião as margens do Parahyba.

De repente um rumor surdo e abafado, como de um tremor subterraneo, propagando-se por aquella solidão, quebrou o silencio profundo do ermo.

Pery estremeceu: ergueu a cabeça e estendeu os olhos pela larga esteira do rio, que, enroscando-se como uma serpente monstruosa de escamas prateadas, ia perder-se no fundo negro da floresta.

O espelho das aguas, liso e polido como um crystal, reflectia a claridade das estrellas, que já desmaiavão com a aproximação do dia; tudo estava immovel e quêdo.

O indio curvou-se sobre a borda da canôa, e de novo applicou o ouvido; pela superficie do rio rolava um som estrepitoso, semelhante ao quebrar-se da catadupa precipitando-se do alto dos rochedos.

Cecilia dormia tranquillamente; sua respiração ligeira resoava com a harmonia doce e subtil das folhas da canna quando estremecem ao sopro tenue da aragem.

Pery lançou um olhar de desespero para as margens que se destacavão a alguma distancia sobre a corrente placida do rio. Quebrou o laço que prendia a canôa, e impellio-a para a terra com toda a força do remo, que fendeu a agua rapidamente.

Á beira do rio elevava-se uma bella palmeira, cujo alto tronco era coroado pela grande cupola verde, formada com os leques de suas folhas lindas e graciosas. Os cipós e as parasitas, engrazando-se pelos ramos das arvores vizinhas, descião até o chão, formando grinaldas e cortinas de folhagem, que se prendião ás hastes da palmeira.

Tocando a margem, Pery saltou em terra, tomou Cecilia meio adormecida nos seus braços, e ia entranhar-se pela matta virgem que se elevava diante delle.

Nesse momento, o rio arquejou como um gigante estorcendo-se em convulsões, e deitou-se de novo no seu leito, soltando um gemido profundo e cavernoso.

Ao longe o crystal da corrente achamalotou-se; as aguas frisárão-se; e um lençol de espuma estendeu-se sobre essa face lisa e polida, semelhante a uma vaga do mar desenrolando-se pela arêa da praia.

Logo todo o leito do rio cobrio-se com esse delgado sendal que se desdobrava com uma velocidade espantosa, rumorejando como um manto de seda.

Então no fundo da floresta troou um estampido horrivel, que veio reboando pelo espaço; dir-se-hia o trovão correndo nas quebradas da serrania.

Era tarde!

Não havia tempo para fugir; a agua tinha soltado o seu primeiro bramido, e, erguendo o collo, precipitava-se furiosa, invencivel, devorando o espaço como algum monstro do deserto.

Pery tomou a resolução prompta que exigia a eminencia do perigo: em vez de ganhar a matta, suspendeu-se a um dos cipós, e galgando o cimo da palmeira, ahi abrigou-se com Cecilia.

A menina, despertada violentamente e procurando conhecer o que se passava, interrogou seu amigo.

—A agua!... respondeu elle, apontando para o horizonte.

Com effeito, uma montanha branca, phosphorescente, assomou entre as arcarias gigantescas formadas pela floresta, e atirou-se sobre o leito do rio, mugindo como o oceano quando açouta os rochedos com as suas vagas.

A torrente passou, rapida, veloz, vencendo na carreira o tapir das selvas ou a ema do deserto; seu dorso enorme se estorcia e enrolava pelos troncos diluvianos das grandes arvores, que estremecião com o embate herculeo.

Depois, outra montanha, e outra, e outra, se elevarão no fundo da floresta; arremessando-se no turbilhão, lutárão corpo a corpo, esmagando com o peso tudo que se oppunha á sua passagem.

Dir-se-hia que algum monstro enorme, dessas giboias tremendas quo vivem nas profundezas da agua, mordendo a raiz de uma rocha, fazia gyrar a cauda immensa, apertando nas suas mil voltas a matta que se estendia pelas margens.

Ou que o Parahyba, levantando-se qual novo Briareo no meio do deserto, estendia os cem braços titanicos, e apertava ao peito, estrangulando-a em uma convulsão horrivel, toda essa floresta secular que nascêra com o mundo.

As arvores estalavão; arrancadas do seio da terra ou partidas pelo tronco, prostravão-se vencidas sobre o gigante, que, carregando-as ao hombro, precipitava-se para o oceano.

O estrondo dessas montanhas d'agua que se quebravão, o estampido da torrente, os trôos do embate desses rochedos movediços, que se pulverisavão enchendo o espaço de neblina espessa, formavão um concerto horrivel, digno do drama magestoso que se representava no grande scenario.

As trevas envolvião o quadro, e apenas deixavão ver os reflexos prateados da espuma e a muralha negra que cingia esse vasto recinto, onde um dos elementos reinava como soberano.

Cecilia, apoiada ao hombro de seu amigo, assistia horrorisada a esse espectaculo pavoroso; Pery sentia o seu corpinho estremecer; mas os labios da menina não soltárão uma só queixa, um só grito de susto.

Em face desses trances solemnes, desses grandes cataclysmas da natureza, a alma humana sente-se tão pequena, anihila-se tanto, que se esquece da existencia; o receio é substituido pelo pavor, pelo respeito, pela emoção que emmudece e paralysa.

O sol, dissipando as trevas da noite, assomou no oriente; seu aspecto magestoso illuminou o deserto; as ondas de sua luz brilhante derramárão-se em cascatas sobre um lago immenso, sem horizontes.

Tudo era agua e céo.

A inundação tinha coberto as margens do rio até onde a vista podia alcançar; as grandes massas d'agua, que o temporal durante uma noite inteira vertêra sobre as cabeceiras dos confluentes do Parahyba, descêrão das serranias, e, de torrente em torrente, havião formado essa tromba gigantesca que se abatêra sobre a varzea.

A tempestade continuava ainda ao longo de toda a cordilheira, que apparecia coberta por um nevoeiro escuro; mas o céo, azul e limpido, sorria mirando-se no espelho das aguas.

A inundação crescia sempre; o leito do rio elevava-se gradualmente; as arvores pequenas desapparecião; e a folhagem dos soberbos jacarandás sobrenadava já como grandes moitas de arbustos.

A cupola da palmeira, em que se achavão Pery e Cecilia, parecia uma ilha de verdura banhando-se nas aguas da corrente; as palmas que se abrião formavão no centro um berço mimoso, onde os dous amigos, estreitando-se, pedião ao céo para ambos uma só morte, pois uma só era a sua vida.

Cecilia esperava o seu ultimo momento com a sublime resignação evangelica, que só dá a religião de Christo; morria feliz; Pery tinha confundido as suas almas na derradeira prece que expirára dos seus labios.

—Podemos morrer, meu amigo! disse ella com uma expressão sublime.

Pery estremeceu; ainda nessa hora suprema seu espirito revoltava-se contra aquella idéa, e não podia conceber que a vida de sua senhora tivesse de perecer como a de um simples mortal.

—Não! exclamou elle. Tu não podes morrer.

A menina sorrio docemente.

—Olha? disse ella com a sua voz maviosa, a agua sobe, sobe...

—Que importa! Pery vencerá a agua, como venceu a todos os teus inimigos.

—Se fosse um inimigo, tu o vencerias, Pery. Mas é Deos... É o seu poder infinito!

—Tu não sabes? disse o indio como inspirado pelo seu amor ardente, o Senhor do céo manda ás vezes áquelles a quem ama um bom pensamento!

E o indio ergueu os olhos com uma expressão ineffavel de reconhecimento.

Fallou com um tom solemne:

«Foi longe, bem longe dos tempos de agora. As aguas cahirão, e começárão a cobrir toda a terra. Os homens subirão ao alto dos montes; um só ficou na varzea com sua esposa.

«Era Tamandaré; forte entre os fortes; sabia mais que todos. O Senhor fallava-lhe de noite; e de dia elle ensinava aos filhos da tribu o que aprendia do céo.

«Quando todos subirão aos montes, elle disse:—Ficai comigo; fazei como eu, e deixai que venha a agua.

«Os outros não o escutárão; e forão para o alto; e deixárão elle só na varzea com sua companheira, que não o abandonou.

«Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subio com ella ao olho da palmeira; ahi esperou que a agua viesse e passasse; a palmeira dava fructos que os alimentavão.

«A agua veio, subio e cresceu; o sol mergulhou e surgio uma, duas e tres vezes. A terra desappareceu; a arvore desappareceu; a montanha desappareceu.

«A agua tocou o céo; e o Senhor mandou então que parasse. O sol olhando só viu céo e agua, e entre a agua e o céo, a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira.

«A corrente cavou a terra; cavando a terra, arrancou a palmeira; arrancando a palmeira, subio com ella; subió acima do valle, acima da arvore, acima da montanha.

«Todos morrêrão. A agua tocou o céo tres sões com tres noites; depois baixou: baixou até que descobrio a terra.

«Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira estava plantada no meio da varzea; e ouvio a avezinha do céo, o guanumby, que batia as azas.

«Desceu com a sua companheira, e povoou a terra.»

Pery tinha fallado com o tom inspirado que dão as crenças profundas; com o enthusiasmo das almas ricas de poesia e sentimento.

Cecilia o ouvia sorrindo, e bebia uma a uma as suas palavras como se fossem as particulas do ar que respirava; parecia-lhe que a alma de seu amigo, essa alma nobre e bella, se desprendia do seu corpo em cada uma das phrases solemnes, e vinha embeber-se no seu coração, que se abria para recebê-la.

A agua subindo molhou as pontas das largas folhas da palmeira, e uma gota, resvalando pelo leque, foi embeber-se na alva cambraia das roupas de Cecilia.

A menina, por um movimento instinctivo de terror, conchegou-se ao seu amigo; e nesse momento supremo, em que a inundação abria fauce enorme para traga-los, murmurou docemente:

—Meu Deus!... Pery!...

Então passou-se sobre esse vasto deserto d'agua e céo uma scena estupenda, heroica, sobrehumana; um espectaculo grandioso, uma sublime loucura.

Pery hallucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavão pelos ramos das arvores já cobertas d'agua, e com esforço desesperado cingindo o tronco da palmeira nos seus braços hirtos, abalou-o até ás raizes.

Tres vezes os seus musculos de aço, estorcendo-se, inclinárão a haste robusta; e tres vezes o seu corpo vergou, cedendo á retracção violenta da arvore, que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado.

Luta terrivel, espantosa, louca, esvairada, luta da vida contra a materia; luta do homem contra a terra; luta da força contra a immobilidade.

Houve um momento de repouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo contra a arvore; o impeto foi terrivel; e pareceu que o corpo ia despedaçar-se nessa distensão horrivel.

Ambos, arvore e homem, embalançáráo-se no seio das aguas: a haste oscillou; as raizes desprendêrão-se da terra já minada profundamente pela torrente.

A cupola da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flôr d'agua como um ninho de garças ou alguma ilha fluctuante, formada pelas vegetações aquaticas.

Pery estava de novo sentado junto de sua senhora quasi inanimada; e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um accento de ventura suprema:

—Tu viverás!

Cecilia abrio os olhos, e vendo seu amigo junto della, ouvindo ainda suas palavras, sentio o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.

—Sim?... murmurou ella; viveremos!... lá no céo, no seio de Deos, junto daquelles que amamos!...

O anjo espanejava-se para remontarão berço.

—Sobre aquelle azul que tu vês, continuou ella, Deos mora no seu throno, rodeado dos que o adorão. Nós iremos lá, Pery! Tu viverás com tua irmã, sempre!..

Ella embebeu os olhos nos olhos do seu amigo, e languida reclinou a loura fronte.

O halito ardente de Pery bafejou-lhe a face.

Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e limpidos sorrisos: os labios abrirão como as azas purpureas de um beijo soltando o vôo.

A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...

E sumio-se no horizonte.


FIM DA QUARTA E ULTIMA PARTE.


NOTAS
DO TOMO SEGUNDO

PAG. 7.—Crispim Tenreiro.

Foi um dos fundadores do Rio de Janeiro; era casado com D. Isabel Mariz, irmã de D. Antonio.

PAG. 153.—Mussurana.

«Os contrarios que os Tupinambás captivão na guerra ou de outra maneira, mettem-nos em prisões, as quaes são cordas de algodão grossas, que para isso tem muito louçãs, a que chamão mussuranas.»—G.S. de SOUZA, Roteiro do Brazil.

PAG. 155.—Esposa do tumulo.

«Dão a cada um prisioneiro por mulher a mais formosa moça que ha na sua casa; a qual moça tem o cuidado de o servir e dar-lhe o necessario para comer e beber.»—G. SOARES DE SOUZA, Roteiro do Brazil, cap. 71.

PAG. 156.—Cardo.

Fructo da urumbeba e de outras palmas de espinhos de que ha differentes especies; é vermelho na casca, de polpa branca e sementes pretas.

PAG. 158.—Corrixo.

Corrixo é um passarinho que tem o dom de arremedar a todos os outros.

«Temos o passaro que entôa
Por mil differentes modos,
Porque elle remeda a todos,
Seu proprio nome é corrixo.»
J. J. LISBOA, Desc. curiosa.

PAG. 159.—És livre.

«Mas tambem ha algumas que tomárão tamanho amor aos captivos que as tomárão por mulher, que lhes derão muito geito para se acolherem e fugirem das prisões que elle cortão com alguma ferramenta que ellas ás escondidas lhes derão, etc.»—G. SOARES DE SOUZA, Roteiro do Brazil, cap. 171.

PAG. 173.—Sacrificio.

Os costumes dos Aymorés não erão inteiramente conhecidos, por causa do afastamento em que sempre viverão dos colonos. Em algumas cousas porém assemelhavão-se á raça tupy; e é por isso que na descripção do sacrificio aproveitámos o que dizem Simão de Vasconcellos e Lamartinière a respeito dos Tupinambás e outras tribus mais ferozes.

PAG. 201.—Veneno.

Os indigenas fabricavão diversos venenos, e a sua perfeição foi objecto de admiração para os colonisadores. Humboldt, á vista dos seus conhecimentos toxicologicos, concluio que devia ter havido na America antigamente uma grande civilisação, e que delia havião os selvagens herdado esses usos. Os principaes desses venenos erão o bororé e o uirari.

PAG. 202.—Curarê.

«Le bororé, dont le révérend père Grumilha a donné la description dans son Orenoco illustrado, parait être exactement le même dont l'abbé Gilly parle dans son Histoire de l'Amérique, et qu'on désigne aujourd'hui par le nom de curarê. Suivant M. Humboldt, c'est un strichnos, et il ne faut pas le confondre avec le tucunas, composé toxique dont parle M. de la Condamine dans la relation de son voyage aux Amazones.»—Dr SIGAUD, Du climat et des maladies du Brésil.

PAG. 203.—Em algumas horas.

Sobre a violencia do curarê diz ainda o Dr Sigaud o seguinte:

«En 1830, le président C. J. de Nyemer apporta du Pará à Rio de Janeiro une petite portion de curarê qu'on fit prendre à petites doses à divers animaux, qui tous ont succombé en peu d'heures dans des convulsions violentes. Le docteur Lacerda, qui a longtemps pratique au Pará et au Maranhão, a fait, dit-on, d'importantes recherches sur les poisons indiens encore inédites; le curarê est, de son aveu, un poison violent, causant d'abord un état tétanique, ensuite une torpeur générale qui précède la mort.»

PAG. 229.—Contraveneno.

Segundo Humboldt, o assucar é um contraveneno do curarê. Os indios porém conhecião naturalmente outros muito mais efficazes, e que hoje ignorão-se, do mesmo modo que o da cascavel.

PAG. 229.—Setta hervada.

O curarê tambem servia aos indios para hervarem as settas, e nesse caso tinha uma preparação especial. Vid. GUMILHA, Orenoco illustrado.

PAG. 292.—Guanumby.

Segundo uma tradição dos indios, o colibri, que conhecião pelo nome de guanumby, levava e trazia as almas do outro mundo.

PAG. 296.—Igara.

Significa em guarany canôa; atyaty é o nome que davão á gaivota.

PAG. 321.—Tamandaré.

É o nome do Noé indigena. A tradição rezava que na occasião do diluvio elle escapara no olho de uma palmeira, e depois povoára a terra. É a lenda que conta Pery.


FIM DAS NOTAS DO TOMO SEGUNDO.