Nota de editor:
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Rita
Farinha (Nov. 2007)
COLLECÇÃO
ANTONIO
MARIA PEREIRA
M. PINHEIRO CHAGAS
A LENDA DA MEIA-NOITE
2.ª edição
LISBOA
Parceria A. M. PEREIRA―Livraria editora
Rua Augusta, 50, 52 e 54
1906
LISBOA
Officinas typographica e de encadernação
movidas a vapor
Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1.º
1906
A LENDA DA MEIA-NOITE
N'um dos sitios mais pittorescos da Beira-Baixa,
n'essa montanha vestida de verdura, onde se recosta Alpedrinha,
e que domina o verdejante valle do Fundão,
ergue-se uma casa ampla e antiga, de cuja varanda, extensa
varanda de madeira, em cujos beiraes vem as andorinhas
fazer os seus ninhos, se descortina a extensa
paisagem, onde alvejam Val de Prazeres e outras villas
e aldeias que matizam, com as suas casas brancas, o
verde do arvoredo, e que tem como panno de fundo a
imponente massa da serra da Estrella, coroada com as
suas neves eternas.
A casa não tem formosuras architectonicas, nem aspecto
de palacio; é apenas um edificio vasto, cercado
de dependencias rusticas, tendo defronte do portão as
cavallariças, casas de habitação dos
criados, etc., que,
desenrolando se em semi circulo, fecham um terreiro
que dá ao edificio campestre uma especie de pateo de
[6]entrada. A parte
mais caracteristica da residencia é a
extensa varanda de madeira, tão usada na provincia,
onde nas tardes de estio se respira a viração da
serra,
onde nas manhãs de inverno se toma alegremente a
restea do sol.
Fica isolada a habitação que a largos
traços descrevemos.
Pegada com a fachada principal está o muro,
onde se abre o portão da quinta. Esta é
assombreada
pelo magnifico arvoredo, que viça, com incrivel vigor,
n'esse torrão privilegiado conhecido na provincia pelo
nome de cova da Beira. Para um lado a pouca distancia
fica Alpedrinha, a pittoresca villa com as suas casas
penduradas entre verduras da encosta da montanha,
para outro lado a estrada desce até ao Fundão.
Por toda a parte verdura, arvores, aguas, o ar purissimo
das serras, os rumores mysteriosos das solidões.
É encantadora a situação d'aquelle
formoso eremiterio.
No outono e no inverno a paisagem toma uns tons
mais carregados e lugubres. A montanha assume um
certo ar de grandeza. Nos soutos espessos dos castanheiros
passa o furacão silvando com furia; a trovoada
vae-se repercutindo de echo em echo pelas concavidades
dos valles, e os relampagos illuminam, com a sua
luz sinistra, o arvoredo que se estorce nos braços doidos
do vendaval. Nos amplos salões d'esses edificios
isolados ouvem-se rumores sinistros, e sons mysteriosos,
e o vento, fazendo ranger os pilares da varanda,
entôa a musica triste das lendas populares.
É exactamente no outono que nós conduzimos o
leitor
á casa da Fragosa, como por lá se chama ao sitio
em que ella fica. Os viscondes da Fragosa, que alli
moram, tinham convidado alguns amigos seus para irem
[7]caçar nas
suas terras, de fórma que estavam
reunidas
bastantes pessoas no grande salão da residencia, junto
da brazeira, no momento em que convidamos o leitor
para entrar tambem e aproveitar o calor benefico do
lume.
É já noite; a tarde estivera sobre-maneira
ventosa e
fria, de fórma que os convidados, reunidos na varanda,
para assistirem a um d'esses esplendidos occasos do sol,
que são tão frequentes no outono, tiveram que
retirar
e fechar-se em casa, deixando o vento gemer lá
fóra,
estorcendo os ramos do arvoredo. Accendeu-se a brazeira,
e, esquecendo-se o frio e o vento, entrou-se n'uma
palestra tão animada, como se se estivesse n'uma sala
de Lisboa, a dois passos do Theatro Italiano, e sentindo-se,
a rodarem nas ruas, as carruagens da cidade.
O salão era vasto e simples, mobilado á antiga.
Nas
paredes alguns velhos quadros sombrios; pesadas cadeiras,
de pés torneados, forradas de coiro lavrado,
dispostas em circulo, em torno de uma mesa de pau
santo, ornava apenas um canto da sala immensa. N'esse
canto, onde se agrupavam a familia e os convidados,
havia uma profusa illuminação. O resto da sala
ficava
perdido na sombra. De vez em quando surgiam d'esse
fundo escuro os criados que vinham fazer
algum serviço.
O toque da campainha não parecia que os chamava,
parecia que os evocava. Saíam de subito da penumbra,
como se surgissem do chão. O aspecto da
casa
era, portanto, o mais legendario que podia imaginar-se.
A conversação prolongára-se ainda
depois do chá!
Um medico, que residia em Alpedrinha, para onde viera,
não exercer a clinica, mas tratar da sua propria
saude, arruinada, em proveito da saude dos outros, homem
[8]de
espirito fino e
amavel, fôra quem
sustentára
principalmente a palestra, ajudado
por um
sr. Lucio
Valença, escriptor de certa aura, e caçador
intrepido,
e por uma filha dos viscondes, gentil menina, sympathica,
alegre e desembaraçada, que, apesar de ter vivido
sempre em Castello-Branco, e de ter ido apenas
uma ou duas vezes a Lisboa, não tinha nenhum dos
acanhamentos tradicionaes das provincianas de romance.
A pouco e pouco, porém, esmorecera a
conversação:
pausas cada vez mais amiudadas cortavam a palestra,
e o medico já tirára o relogio para vêr
se não íam sendo horas de retirada. Mas o
visconde da Fragosa
estava agarrado, com o commendador Madureira, e alguns
visinhos de campo, a um impertinente
boston, e
em vista d'isso ninguem ousava ser o primeiro a tocar
a recolher.
N'estes silencios ouvia-se distinctamente o rugir do
vento na serra, e os seus gemidos e silvos nos corredores
da casa.
―Meu Deus! que tristeza de noite! disse de subito
uma joven senhora, de notavel
formosura, extraordinariamente
pallida, mas com umas opulentas tranças
negras, e uns olhos negros tambem, grandes, rasgados,
que lhe illuminavam com estranho fulgor o rosto
de alabastro. O vento geme com uns sons tão lugubres,
que nos parece ouvir as queixas dos phantasmas.
É uma noite de lenda allemã!
―Para isso, acudiu o doutor Macedo, falta a chuva,
a trovoada, a neve e muitos outros accessorios germanicos.
O vento só não basta.
―V. ex.
a gosta de lendas, sr.
a
D. Isaura? perguntou
inclinando-se para ella um elegante moço do
Fundão,
[9]em quem pareciam ter
produzido uma
impressão
profunda os olhos negros e a romantica pallidez da filha
do commendador Madureira.
―Se gosto de lendas! respondeu a pallida menina.
Ah! de certo, adoro-as, mas gosto de as lêr em Lisboa,
no meu gabinete e á luz do sol.
―Sem
mise-en-scene não
prestam, observou com
toda a gravidade o doutor Macedo.
―A que chama
mise-en-scene, doutor?
perguntou
Isaura.
―O Lucio que lh'o explique, minha senhora; não
quero invadir os seus dominios.
―Oh! meu Deus, acudiu o escriptor, não é
difficil
de adivinhar. O doutor entende que as lendas devem
ser lidas e apreciadas á noite, no meio do silencio geral,
quando se está sósinho, n'um velho castello de
Anna Radcliffe, cheio de alçapões e de
subterraneos,
quando o vento geme lugubremente nos corredores, e
faz oscillar a luz da vela que illumina a nossa solitaria
vigilia. Creio que o doutor, acudiu Lucio voltando-se
rindo para elle, dispensa que a vela esteja n'um craneo,
em vez de estar n'um castiçal, e que haja um cemiterio
por baixo da janella.
―Dispenso... dispenso... acudiu o doutor com a
mesma imperturbavel gravidade, quero dizer... não
julgo indispensaveis esses accessorios, mas não posso
negar que augmentavam de um modo notabilissimo o
effeito phantastico da narrativa legendaria.
―Meu Deus! exclamou a pallida Isaura. Fazem-me
morrer de susto com essas historias pavorosas. Hoje
com toda a certeza não durmo. Que idéa!
É necessario
que não tenham a minima dóse de sensibilidade
para
[10]assim estarem
zombeteando a respeito de coisas, que
me produziriam uma impressão tamanha, que os meus
nervos de certo não resistiriam. Estou já toda
tremula!
―Mas, minha senhora, exclamou o doutor Macedo,
as lendas são como os ananazes. Ha os nascidos ao ar
livre, na sua terra propria, e ha-os desabrochados artificialmente
com o calor da estufa. N'um velho solar
provinciano, ao som lugubre do vento nos corredores,
n'uma noite de inverno sulcada de relampagos, nasce
a lenda tão naturalmente como o ananaz no
Brazil.
N'uma sala de Lisboa, forrada de espelhos, ornada de
macios sophás, entre os rumores meridianos da rua, a
luz clara e alegre do sol, a lenda não póde ter
mais
sabor do que um ananaz de estufa.
―Jesus, meu Deus, exclamou D. Isaura, percebo
isso perfeitamente, e bem sei que o phantastico só
póde
produzir toda a impressão de que é susceptivel no
scenario
que o doutor descreve: mas é que levado a esse
ponto, o phantastico produziria no meu espirito um funesto
effeito. Matava-me ou enlouquecia-me! Ah! tornou
ella, eu adoro o ideal, mas o ideal póde tambem
partir as cordas da minha alma.
―Tomo o partido de Isaura, disse não sem alguma
ironia a filha dos viscondes de Fragosa, linda menina
de cabellos castanhos claros e olhos azues, de um azul
tão vivo que produziam ás vezes a
sensação de olhos
negros, como se fossem aquelles reflexos azulados da
aza negra do corvo; tomo o partido de Isaura. Os senhores
estão fallando ahi como creaturas vulgares incapazes
de sentirem profundamente as grandes
commoções.
Para as almas privilegiadas os grandes prazeres
da imaginação muitas vezes são tambem
o martyrio.
[11]São
as Ophelias, as Marias de Noronha, as creaturas
ideaes cujos corpos são apenas, como o da irmã
do bispo Myriel nos
Misérables, de Victor
Hugo, pretextos
para conservarem no mundo almas de anjos.
―E cuidas que não ha na terra esses entes, cujas
expressões mais sublimes foram encontradas por tres
grandes poetas que acabas de citar, Garrett, Shakespeare
e Victor Hugo? acudiu vivamente o enthusiasta
de Isaura, que sentira o leve epigramma, que o seu
idolo não comprehendêra.
―Não cuido tal, Henrique. A prova de que os ha é
que Isaura é um d'esses entes.
―Por quem és, Leonor... acudiu Isaura com uns
certos ares de modestia, que ainda mais desesperaram
o seu apaixonado.
―É assim, tornou Leonor. Tu, Isaura, sentes que
se partiriam as cordas da tua alma, se quizesses lêr
á
noite n'um quarto de uma velha casa provinciana uma
historia de phantasmas. Morrias se te achasses sósinha
á noite n'uma sala de lugubre aspecto. Porque? Porque
tens a imaginação exaltada, a sensibilidade
nervosa
das Ophelias e das Marias de Noronha!
―E não admirava, acudiu Henrique Osorio que assim
se chamava o moço do Fundão, não
admirava, sr.
a
D. Isaura, que v. ex.
a tivesse medo de estar
sósinha
n'um castello de Anna Radcliffe. Nem todas podem ter
a imaginação calma, o prosaico bom senso, a fria
intrepidez
de Leonor. A marqueza da Lusacia, de que
falla Victor Hugo n'um dos seus poemas, preferia perder
a soberania do seu marquezado a ir passar a noite
sósinha, como o ordenava o costume tradicional, no
castello de seus avós...
[12] ―Logo encontrou
quem a acompanhasse, interrompeu
Leonor ironicamente.
―E não seria só ella.
―Isaura, ouviste? acudiu Leonor rindo com tal ou
qual amargura, se quizeres passar alguma noite n'um
castello legendario, como a marqueza da Lusacia, já
tens trovador que te acompanhe, ao bater da meia-noite,
e que te cante:
Si tu veux, faisons un rêve,
Montons sur deux palefrois,
Tu m'emmènes, je t'enlève.
L'oiseau chante dans les bois.
Isaura sorriu-se sem comprehender bem a lucta que
em torno d'ella se travava; Henrique Osorio calou-se.
Leonor, um pouco arrependida de ter mostrado um tal
ou qual azedume, voltou-se para sua mãe que resonava
recostada na sua poltrona, e, chamando-a, disse-lhe algumas
palavras em voz baixa, convidando-a a que lembrasse
a seu pae que eram horas de pôr um termo ao
boston. O doutor levára a
mão aos labios para cumprimir
um bocejo, e Lucio Valença, sorrindo-se, contemplava
a esplendida formosura de Isaura, e êsses olhos
que Deus fizera tão formosos, e que não
reflectiam
comtudo senão as preoccupações pueris
da mulher da
moda, e da lisbonense frivola.
No meio d'este silencio ouviu-se o vento bramir com
mais força, para depois gemer com mais tristeza, parecendo
que se estabelecia um dialogo entre os espiritos
atmosphericos, e que aos rugidos ameaçadores de um
demonio respondiam as queixas plangentes de um ente
fraco e debil.
[13]
De subito ouviu-se ao longe, ao longe, vibrar uma
badalada no sino de S. Martinho de Alpedrinha.
O vento soprava d'aquelle lado, e trazia nas suas
azas as lugubres vibrações do bronze.
Ouviu-se em profundo silencio uma, duas, tres...
doze badaladas.
―Meia-noite! disse naturalmente o doutor, quebrando
o silencio em que todos estavam, porque todos tinham
estado contando as horas.
Mas a voz do doutor tambem tomára involuntariamente
como que uma sinistra entoação.
D. Isaura soltou um grito.
―Jesus! disse ella.
―Que tem, minha senhora? perguntou Henrique
sollicito e afflicto.
―Meu Deus! exclamou Isaura, é que me aterraram
com as suas loucas historias, é que me puzeram n'um
estado incrivel de sobre-excitação nervosa.
Meia-noite!
vê? Meia-noite é a hora dos phantasmas,
é a hora das
apparições! E esta sala é
tão lugubre, e este silencio
é tão agoireiro!
―Minha senhora, exclamou o doutor Macedo alegremente,
v. ex.
a suppõe por acaso que
nós sejamos
phantasmas,
e que estejamos quasi a dissipar-nos em fumo
como quaesquer entes mal-creados do mundo sobrenatural?
V. ex.
a está no meio d'um
batalhão de gente
viva capaz de affrontar dois subterraneos de Anna Radcliffe,
tres conventos de Lewis, reforçados ainda pelos
mil e um phantasmas de Alexandre Dumas.
―Oh! tornou Isaura toda tremula, mas é que a
meia-noite soou de um modo tão lugubre... E nós a
esta hora ainda a p ―Oh! tornou Isaura toda tremula, mas é
que a
meia-noite soou de um modo tão lugubre... E nós a
esta hora ainda a pé...
[14] ―V. ex.
a
deita-se mais cedo em Lisboa?
perguntou
o doutor.
―Não, mas...
―Mas é que a meia-noite só aterra os que lhe
dão
ímportancia. É uma hora covarde e manhosa, que,
se
vê a alegria do baile, as salas illuminadas, as
danças
caprichosas e revoluteadoras, entra pacatamente como
outra hora qualquer, até com mais risos e mais alegrias,
accendendo mais o fogo das walsas, cumprimentando
para todos os lados amavelmente. Se vê o estudioso
debruçado sobre os livros, indifferente e sereno,
entra timidamente, nos bicos dos pés, e abafa até
as suas proprias vibrações; se encontra n'um
serão
de familia a conversação alegre, o bule de
chá em cima
da mesa, as cartas do
boston para um
lado, um livro
para outro, bate á porta discretamente, e annuncia que
é tempo de se recolher cada qual para o seu leito. Ora
agora, se encontra gente que espera com susto, que
está prompta a desmaiar apenas ouvir a primeira badalada
que a annuncia, então eil-a que toma uns ares
pavorosos, engrossa a voz, faz entrada solemne, espalha
em torno de si o terror e o assombro. Fóra com
semelhante fanfarrão! É necessario darmos-lhe uma
lição mestra! Peço a palavra para um
requerimento.
―Hein? disse lá da mesa do jogo o visconde da
Fragosa, que aspirava á deputação.
―Está concedida, visconde? disse o doutor, rindo.
―Mas que diz você? tornou o visconde muito espantado
dos risos com que os interlocutores do Macedo
acolhiam a sua idéa.
―Bem! Passo adiante. Requeiro que para todos os
effeitos seja abolida a meia-noite.
[15] ―Approvado por
unanimidade e mais um que é o
visconde, tornou, rindo, Lucio Valença. Agora queira o
sr. deputado apresentar uma proposta indicando o modo
pratico de se levar a effeito essa medida importante.
―Proponho, tornou o doutor com gravidade comica,
que de ámanhã em diante affrontemos a meia-noite
rosto a rosto, e lhe torçamos o pescoço.
―Mas o meio? o meio? o meio pratico? bradaram
Lucio e Leonor.
―O meio é o seguinte: O mau tempo ameaça
prolongar-se,
e nós ou não podemos caçar, ou
não podemos
prolongar a caça por todo o dia, sob pena de estoirarmos
ahi de frio por essa serra. Portanto á noite
estamos frescos e descançados, e podemos protrahir o
serão. Proponho que organisemos um
Decameron para
zombarmos da meia-noite, como os narradores de Bocaccio
zombaram da peste de Florença. Cada um de
nós, que se sentir para isso com forças, se
compromette
a compôr uma historia phantastica, uma lenda,
um conto maravilhoso que será lido aqui ao bater da
meia-noite. D'essa fórma affrontamos face a face a terrivel
inimiga do repouso da sr.
a D. Isaura, e, se ella
ainda ousar fazer uso dos seus sortilegios, comnosco
se ha de haver!
―Apoiado! apoiado! bradaram todos menos D. Isaura,
que soltou um grito, exclamando:
―Isso é horrivel!
―Não, minha senhora, é uma receita, é
um remedio
heroico, é um banho russo. Vou-lhe combater os
seus nervos.
―Mate-me, doutor!
―Qual historia, minha senhora! Mato a meia-noite!
[16]Verá
como depressa a moda acceita a minha idéa.
D'aqui
a pouco tempo não se falla em Lisboa n'outra coisa, e
a
lenda da meia-noite
será o anti-espasmodico mais empregado.
A idéa de que effectivamente em Lisboa d'ahi a pouco
tempo se não fallaria n'outra coisa foi o que decidiu
D. Isaura. Ao mesmo tempo terminára a partida do voltarete,
e um dos jogadores, homem já de cabellos grisalhos,
vivo, espirituoso, illustrado, que no tempo do
romantismo commettera alguns peccados litterarios, exclamou
alegremente:
―Acceitam-me para companheiro! Eu ainda sirvo
para uma montaria aos lobos, vamos a vêr se tambem
presto para uma montaria á meia-noite.
―É acceito com mil vontades, sr. Roberto Soares.
Eu já o conheço como robusto campeão,
e assento-lhe
praça com enthusiasmo. Agora cabe-me designar o
serviço.
Henrique Osorio, você é quem rompe o fogo.
Henrique inclinou-se em silencio relanceando um ardente
olhar á pallida Isaura.
―Meia-noite e meia-hora! disse o doutor tirando o
relogio. Saudemos, meus senhores, a ultima meia-noite
que passa, e vamo-nos deitar. Todos se riram, e um
borborinho alegre encheu d'ahi a pouco os corredores
da habitação. Ainda por algum tempo se sentiu o
rumor
de portas que se abriam e fechavam, de passos
que se perdiam ao longe, de vozes que se despediam.
Depois caiu tudo em silencio, e só se pôde ouvir o
vento que continuou toda a noite a gemer lugubremente
as suas monotonas queixas.
[17]
A previsão do doutor realisou-se. O tempo continuou
mau, e aggravou-se ainda com a chuva que principiava
a cair em torrentes. A noite seguinte passou-se alegremente.
Quando, porém, um relogio de parede, que fôra
posto na sala, indicou onze e meia, Isaura fez-se ainda
mais pallida do que era, e houve no auditorio uns taes
ou quaes signaes de commoção.
―A postos, meus senhores! exclamou o doutor alegremente.
Firmeza, companheiros! Do alto d'aquelle
relogio trinta minutos vos contemplam.
Houve de novo
entrain, risos e
enthusiasmo. N'isto
o sino de S. Martinho deu a primeira badalada da meia-noite.
Soava ainda mais lugubremente do que na vespera.
Solta no meio dos loucos rumores do vendaval,
a vibração do bronze parecia uma nota perdida de
agonia
e de desespero.
―Henrique! disse o doutor. Vamos! Estás um pouco
pallido? É a commoção do auctor e
não a da meia-noite,
juro-o aos deuses immortaes.
Vá! inflexão lugubre,
voz cavernosa, gesto sombrio!
Henrique desenrolou um manuscripto, e, no meio da
attenção geral, leu o seguinte:
JULIETA
CONTO PHANTASTICO
I
Eram onze horas da noite, e estava-se tomando chá
em casa do meu amigo Frederico B * * *, em Bemfica.
Havia uma roda d'intimos; a conversa estava animada
e o meu amigo, a quem a alegria e o
entrain dos convidados
deixavam mais liberdade no cumprimento dos
seus deveres de dono da casa, aproveitava-se d'isso
para contemplar extasiado sua linda mulher, com quem
casára havia pouco tempo, e que do seu lado lhe sorria
tambem com a meiguice e ternura da mulher que
ama devéras.
A conversa animára-se tanto, que se ia transformando
em algazarra.
Discutia-se acaloradamente a questão da existencia
das almas do outro mundo, com grande desprazer d'um
jornalista que por força queria conduzir ao bom caminho
[20]aquelles
discutidores extraviados, propondo que se
tratasse da bondade do ministerio, deixando de parte
essas tolices, que não serviam para nada. Mas ninguem
lhe prestava attenção, o que fez com que elle
desesperado
fosse lêr pela centesima vez um artigo seu publicado
n'um jornal que estava em cima de uma das mezas
da sala. Essa producção do seu engenho, que o
jornalista relia com tanto enthusiasmo merecia indubitavelmente
tão paterna sollicitude, porque elle e o revisor
da imprensa tinham sido os seus unicos leitores.
Mas o auctor tantas vezes o tinha lido, e tal
admiração
professava pelo seu proprio talento, que podéra dizer,
sem receio de ser taxado de mentiroso―«
que
o seu
artigo tinha feito tal impressão, que lhe constava ter
havido
uma pessoa que o relia a miudo, e sempre com enthusiasmo
crescente, honra de que se podiam gabar poucos
artigos politicos da imprensa portugueza.»
―Concluamos, bradava entretanto um medico materialista
por dever de profissão, onde collocam os senhores
esse agente mysterioso a que dão o nome de espirito,
teimando em appellidar assim pomposamente o mechanismo
material, que a morte paralysa? Quando esse
relojoeiro sombrio, que se chama tempo, quebra com
mão despiedosa as rodas complicadas do nosso systema
vital, onde se refugia esse ente inutil, esse ser impalpavel
a que os senhores espiritualistas querem dar as
redeas do governo d'este barro quebradiço, que constitue
o homem? E durante a vida quaes são os laços
invisiveis, que prendem o escravo ao senhor, o corpo
material e fragil á alma etherea e immortal? Tremendo
absurdo, utopia talvez respeitavel, sublime tolice pela
qual se tem sacrificado innumeras gerações! Ah!
mas
[21]sobretudo,
é doido devéras quem imagina que essa
invenção
impossivel, resultado das aspirações da
humanidade
para a existencia eterna, possa vir aos cemiterios
animar os restos putrefactos dos reis da creação;
quem tal suppõe, não sentiu nunca debaixo do
escalpello
anatomico o cadaver inerte e despresivel, nem
póde avaliar com a vista infallivel da sciencia o nada
immenso das vaidades humanas!
―Fóra com o materialista, bradou um rapaz enthusiasta;
sabes tu, meu caro doutor, que a primeira vaidade
humana cujo nada immenso tu devias avaliar, é
a vaidade da sciencia? Que sabes tu, presumpçoso
Hippocrates,
que tens de recuar vencido perante o primeiro
obstaculosinho, que a natureza caprichosa queira
oppôr á vista infallivel, como tu dizes, do saber
dos
homens? E és tu que andas perdido no meio da
confusão
dos systemas medicos a procurar no labyrintho
scientifico o fio conductor que te está sempre a escapar
das mãos, és tu que pretendes entrar com passo
firme no insondavel labyrintho da eternidade?... Espera,
continuou elle vendo entrar um mancebo muito
pallido, que foi apertar a mão de Frederico, e comprimentar
a dona da casa, queres-te convencer? Pois ahi
tens tu um homem vivo, que teve relações directas
com
um phantasma.
―Roberto, assenta-te ahi, e conta-nos immediatamente
a historia do teu espectro, se v. ex.
as
não se
oppõem a isso ainda assim, continuou elle, voltando-se
para as senhoras presentes, que tinham escutado a
discussão metaphysica, com ligeiros signaes de
aborrecimento.
Propôr a senhoras uma historia de phantasmas é
[22]despertar-lhes a
attenção, é
fazer-lhes passar nas veias
o estremecimento do enthusiasmo. Não sei porque, esses
entes frageis, pallidos ou rosados, de olhos negros
ou azues, alegres ou melancolicos, esses entes femininos
encantadores e timidos adoram tudo o que os faz
tremer, e recreiam-se sobre tudo com essas historias
terriveis, em que o leitor estupefacto encontra um punhal
ao voltar de cada pagina, um ladrão á esquina de
cada periodo, um phantasma pelo menos em cada capitulo.
Por isso a parte feminina da assembléa acolheu a
proposta com enthusiasmo: e a mim e aos outros homens,
que estavam presentes, não desagradou a idéa
de ouvir uma historia terrivel, em
petit
comité, no pino
da meia noite, tendo de voltar depois para casa por
aquelles caminhos desertos dos arredores de Lisboa;
a mim sobretudo, que tinha de passar pelas casas arruinadas
de Campolide, sorria a idéa de
ir com a imaginação
povoada de phantasmas, que poderia distribuir
á vontade pelos recantos d'essa paisagem tão
magestosa,
quando a lua envolve os paredões solitarios na
branca mortalha da sua luz, em quanto ao longe se
desenha sobranceiro entre os campos verdejantes o perfil
grandioso do aqueducto sombrio.
Roberto, devemos dizel-o para honra sua, não se fez
rogado, comprimentou silenciosamente a assembléa, e
começou pouco mais ou menos n'estes termo
Roberto, devemos dizel-o para honra sua, não se fez
rogado, comprimentou silenciosamente a assembléa, e
começou pouco mais ou menos n'estes termos:
[23]
II
«Cantava-se em Lisboa pela segunda ou terceira vez
o
Baile de mascaras. Era uma noite
de delirio no theatro
de S. Carlos. Franschini, o cantor sublime, fazia
tremer de enthusiasmo a platéa inteira, e a voz portentosa
de madame Lotti despenhava sobre o publico
palpitante torrentes de melodia e de sentimento. O
personagem de Amelia, interpretado como então o foi,
deixava de ser um typo creado pela imaginação do
poeta
para se transformar, animado pelo Prometheo do genio,
n'um ente real, cujos sentimentos traduzidos em
suspiros de harmonia, iam arrancar os
soluços dos peitos
dos espectadores.
Era o poema da paixão, com todas as suas peripecias,
mas da paixão verdadeira, da paixão que geme e
rasga os seios da alma, da paixão que verte lagrimas,
de cujas feridas brota o sangue, e não d'essa
paixão
ficticia, cuja expressão convencional anima só a
mascara,
que a artista desafivella apenas desce o panno.
Eu, perdido n'um canto da platéa, escutava, como escuto
sempre quando vou ao theatro lyrico. N'isso devo
confessar-lhes que tenho idéas um pouco originaes. O
panno, que sóbe lentamente no principio da opera, descerra
para os outros espectadores meia duzia de taboas
rodeadas por bastidores de lona, onde uns poucos de
artistas vão cantar umas poucas de arias para divertimento
do publico. Para mim é como que uma janella
encantada que se abre por onde eu me arrojo para os
espaços azues do ideal. Os outros analysam com toda a
paciencia a instrumentação e o canto, investigam
se foram
[24]
executadas as leis do contraponto, e depois de satisfeitos
applaudem compassadamente para não rasgarem
as luvas, voltam-se bocejando, e comprimentam a
senhora condessa de * * *, ou a senhora baroneza de * * *,
cuja chronica escandalosa vão contar immediatamente
ao seu visinho da esquerda.
Mas eu não. A minha alma, que illumina o fogo do
enthusiasmo, não póde ficar na terra, quando
sente passar
no espaço o sopro da harmonia, da casta filha do
céo. Desapparece o theatro, desapparecem os espectadores,
desapparece a ficção. Arrastada no manto de fogo
do ideal, a minha alma sente, enleva-se, palpita, geme,
pranteia, soluça com Macbeth o grito do remorso, suspira
com Desdémona a canção da saudade,
gorgeia com
Helena o hymno da desposada, escuta com Rosina a
meiga serenata, sólta com Lucrecia o rugido da envenenadora,
e volta depois á terra, deixando-me ficar pallido,
extasiado, porque entrevi em sonhos a deslumbrante
claridade de um mundo desconhecido.
Tinha começado o segundo acto, e eu seguia cheia de
um vago terror a scena lugubre do principio. As notas
da aria de Amelia soavam-me aos ouvidos como dobres
de finados, e quando a Lotti soltou aquelle grito de pavor,
que vibrava sonoro e plangente pelo theatro, fazendo
estremecer os espectadores, eu levantei-me pallido,
convulso, e senti correr-me pela raiz dos cabellos
o halito de fogo de uma mysteriosa commoção.
O meu visinho olhou para mim espantado; sentei-me,
deixei cahir a cabeça entre as mãos, e scismei.
―Ó ideal, dizia eu, quando poderei finalmente sorver
a longos tragos o teu nectar precioso na cinzelada
taça da phantasia?
[25]
«Ó virgem dos meus sonhos, ó anjo das
azas de
ouro, quando poderá a minha alma, abraçando-se
comtigo
nas regiões celestes, aspirar a plenos pulmões a
balsamica aragem da poesia?... O que és tu, ente
mysterioso, que assim bafejas o
espirito
dos grandes
poetas, e lhes vaes murmurar, em noites de
inspiração,
os segredos sublimes que o vulgo profano admira, mas
não comprehende?
«Oh! quaes serão as visões d'estes
homens portentosos,
e nas suas noites de febre, de delirio e de insomnia,
em que mysticos amores te enlaças tu com
elles, ó ideal sublime, ó ideal inspirador? E
emtanto
nós, os desherdados, bebemos com um riso alvar a agua
insipida e lodosa dos prazeres do mundo, e caminhamos
n'esta planicie monotona da vida, olhando com
terror para o Sinai chammejante, onde campeiam, cercados
da divina aureola, os harmoniosos prophetas, os
validos da inspiração!
«Não posso; falta-me o ar no recinto estreito da
vida
social; a prosa d'este mundo opprime-me o
coração. A
minha alma está sequiosa de amor, e este apparece-me
sempre escoltado pelas conveniencias, trazendo sobre o
rosto formoso a mascara ridicula dos interesses materiaes,
ou a mascara odiosa do capricho sensual. Amor!
amor! mas um amor como o teu, ó casta e pura Amelia,
como o teu, ó Julieta, ó noiva gentil de Romeu e
da sepultura, quero um d'esses amores sublimes, e, se
elle não se encontra na terra, surge dos tumulos,
ó
pallida virgem por quem eu anhelo, e mostra-me ao
menos n'um relampago as mysteriosas alegrias da eternidade!»
N'isto levantei a cabeça, e os meus olhos
involuntariamente
[26]fixaram-se
n'um camarote, que ficava pouco
distante do logar que eu occupava na platéa. Uma senhora
de belleza maravilhosa estava sósinha n'esse camarote,
e encarava-me com uma attenção extraordinaria.
Não sei porque gelou-se-me o sangue nas veias, e
fiquei extatico a contemplar aquella esplendida formosura.
Raras vezes tenho encontrado um rosto assim! A
correcção das linhas, a pureza dos contornos, a
magestade
do perfil deixavam na sombra os mais perfeitos
modelos da antiga estatuaria. Praxíteles quebraria
desesperado
as estatuas e o cinzel, se lhe fosse dado
contemplar as inflexões suaves, a
perfeição das fórmas
d'aquella viva esculptura.
Se algum defeito se lhe poderia notar, era a rigidez
marmorea da physionomia. Via-se que nem tristezas
nem alegrias seriam capazes de alterar a regularidade
do semblante, que só parecia ter vida nos olhos, que
eram lindos a mais não ser, e d'onde emanavam raios
magneticos e deslumbrantes, que enlouqueciam quem
se atrevesse a encaral-os. Aquelle rosto assemelhava-se
a uma urna de marmore, em cima da qual se tivesse
collocado uma lampada de luz fascinadora. Era um
fragmento de gêlo dourado levemente pelos reflexos de
um vulcão, mas essa physionomia tinha um não sei
que de mysterioso e sombrio, que me impressionou
profundamente.
Olhei para o relogio. Os ponteiros marcavam no
mostrador meia-noite em ponto.
No theatro os conjurados cantavam o côro das gargalhadas,
e repetiam rindo o estribilho:
Ah! chè baccano-sul caso
strano
Andrà dimani per la città!
[27]
III
Sem poder explicar a mim mesmo a fascinação
irresistivel,
que me impellia tão imperiosamente á
contemplação
d'aquelle formoso semblante, nunca mais desviei
a vista do camarote. E ella, oh! ella olhava-me com
uma meiguice de enlouquecer.
Estava toda vestida de negro, e isso ainda mais contribuia
para fazer realçar a alvura da sua tez. Trajava
elegantissimamente, mas com uma singeleza, que me
encantou, a mim, que procuro quasi sempre o bom
gosto na simplicidade.
Só ella occupava o camarote! Sósinha! Quem
poderia
ser? Tão nova, tão formosa, e só! Oh!
meu Deus!
seria ella uma d'essas mulheres sem pudor, que arrastam
por toda a parte o manto de seda da ignominia,
que foram apanhar da lama, onde deixaram em troca
o candido véo da innocencia? Impossivel! O seu porte
modesto, a simplicidade do seu trajo
eram um protesto
vivo contra o descaro, e orgulhoso cynismo d'essas
Messalinas venaes.
Mas só! Quem sabe? Talvez a pessoa que a acompanhava,
estivesse escondida na sombra do camarote;
talvez tivesse saído. Tudo podia ser, mas a suspeita
é
que não podia manchar nem por momentos a luz serena
d'aquelle rosto angelical.
E eu olhava-a deslumbrado; e uma transformação
estranha se operava em mim. Parecia-me que as luzes
do theatro iam esmorecendo a pouco e pouco até se
reduzirem á claridade sinistra das lampadas sepulchraes,
[28]o palco e a
platéa confundiam-se n'um vasto
cemiterio, onde o vento da noite fazia ondular a copa
dos cyprestes, por entre cujos ramos passavam os
raios da lua, da pallida scismadora, da solitaria amiga
das sepulturas.
E ella, ella, a formosa desconhecida, vinha dizer-me
com o seu olhar tão triste:
―Queres o meu amor, ó pobre escravo d'um corpo
material, ó doido, que aspiras ao infinito sem pensares
que tens os pés embaraçados na immunda vasa
d'esse
oceano de desespero, que se chama a vida? Oh! não
queiras conhecer os segredos dos tumulos, porque tu,
meu louro poeta, voltavas ao mundo de cabellos brancos,
se tocasses um só minuto com os labios na taça
inebriante dos amores da eternidade!
―Oh! que me importa a vida, respondia eu na
allucinação
febril, se em troca d'esses dias de prosa me
posso arrojar um instante só aos espaços
infinítos das
sublimes commoções! A minha alma é
como a aguia,
que se arroja ás regiões das nuvens, affrontando
a tempestade,
e cae depois na terra fulminada pelo raio, que
altiva foi provocar. Que me importa a mim a morte, a
condemnação eterna, se podér sorver
nos teus
labios
voluptuosidades desconhecidas, e lêr nos teus olhos o
poema sublime do amor, que eu phantasio?
A visão desapparecia; mas no palco a voz seductora
d'Oscar, o elegante pagem, vinha murmurar-me aos
ouvidos:
Pieno d'amor
Mi balza il cor;
Ma pur discreto
Serba il segreto.
[29]
E no olhar da minha formosa desconhecida lia-se em
letras de fogo a mesma confissão inebriante:
Pieno d'amor
Mi balza il cor.
IV
Tinha acabado a opera. Levantei-me e saí.
Fiz um esforço sobre mim, não querendo olhar para
o camarote fatal. A pessoa que o occupára durante a
noite produzira em mim uma impressão tal que cheguei
a ter medo... medo da influencia pasmosa que
ella ía tomando sobre o meu pobre
coração.
Oh! fatalidade! Quando cheguei ao corredor, o primeiro
vulto, que passou por diante de mim, foi o vulto
elegante e nobre da gentil desconhecida. Ia só!
Tive como que uma vertigem, quando ella, ao passar,
me lançou um d'esses olhares que endoidecem o
homem de rasão mais fria, que lançam no inferno o
mais virtuoso santo do paraizo.
Não tive forças para luctar contra a
fascinação irresistivel
d'esse olhar. Se elle tinha sobre mim a influencia
magnetica do olhar de José Balsamo sobre a pobre
Lorenza ideada por Alexandre Dumas! Debalde a pobre
italiana se torcia desesperada debaixo d'aquelle
jugo oppressor, debalde oppunha toda a força da sua
vontade e do seu odio á tenacidade diabolica do terrivel
magnetisador, debalde resistia com todo o ardor da
sua devoção, com todo o vigor da sua alma
virginal
áquelle poder incomprehensivel, mas horrendamente
[30]verdadeiro; tinha
de recuar diante d'esse olhar, como
diante d'uma espada chammejante, até caír
oppressa e
desesperada aos pés de José Balsamo.
Então esse corpo
quebrado pela resistencia, reclinava-se nos braços
da voluptuosidade, e a voz que ia terrivel a bradar:
«Odeio-te», terminava supplicante a balbuciar:
«Adoro-te».
Ao vêl-a, disse eu commigo mesmo: «Não
quero,
não quero ceder a esse imperio inexplicavel.» E
minutos
depois, surprehendia-me a seguil-a apressadamente
pelas ruas de Lisboa.
Ha occasiões em que nos vêmos obrigados a
acreditar
em forças sobrenaturaes que nos attrahem e nos
repellem, é quando a nossa vontade se aniquila, e quando
as leis da nossa organisação são
violentamente revogadas
por um despotismo estranho.
Submetto esta reflexão á
consideração dos illustres
materialistas que me escutam!
V
A desculpa que eu dei a mim mesmo, quando apesar
de todos os meus protestos me surprehendi a seguir
a senhora de negro, foi a desculpa da curiosidade.
Com effeito, dizia eu commigo, tirando philosophicamente
baforadas de fumo do charuto que acabára de
accender no momento em que passou por diante de
mim a formosa desconhecida; o que ha mais natural?
Encontro uma linda mulher em S. Carlos, linda como
poucas, e original a mais não poder ser. Vejo-a no camarote
sósinha, e torno a vêl-a, saíndo a
pé, e ainda
[31]só.
Não tenho nada que fazer, e por conseguinte
sigo-a.
É naturalismo.
E a voz da consciencia murmurava-me ao ouvido:
―É o brilho da chamma tentadora, ó doida
borboleta,
é o olhar fascinador da serpente, ó ave
descuidosa.
―Ora adeus, respondia a voz da minha apparente
philosophia, prejuizo, superstição, fanatismo,
como dizia
o tenente Boutraix de um dos romances de Carlos
Nodier. Vou offerecer-lhe o meu braço.
A senhora que eu seguia caminhava lentamente a
quinze passos adiante de mim, quando muito. Passava
ella então defronte da egreja dos Martyres. Puz o
chapéu
ao lado com modos conquistadores, colloquei o
charuto ao canto da bocca, e accelerei o passo.
Apesar d'isso, e apesar da minha bella não alterar por
fórma alguma o seu andamento, não diminuia, pelo
menos
sensivelmente, a distancia que nos separava. O vulto
elegante da senhora de negro, ao passar por diante dos
candieiros de gaz, revelava-se em toda a sua riqueza
de fórmas, em toda a magestade do seu porte airoso.
Havia uma suprema distincção no seu modo de
andar,
mas apesar d'isso havia um não sei quê de
mysterioso
n'aquelle mover de estatua, lento e inteiriçado, que fazia
uma impressão pouco agradavel.
Chegámos assim á rua Nova do Carmo; ella voltou
para baixo; eu segui-a.
A distancia conservava-se a mesma. Mas, como ia diminuindo
o numero das pessoas que caminhavam para
aquelles sitios, saindo, como nós, de S. Carlos, eu tomei
uma resolução definitiva, e comecei a dar grandes
passadas
para apanhar finalmente aquella mulher que me
[32]fugia
incessantemente como esse caçador das lendas do
norte, que foge sempre, sem perder um palmo de terreno,
mas sem poder tambem desapparecer, á sua matilha
infernal.
Nem assim pude diminuir a distancia que me separava
d'esse vulto extraordinario.
E o vulto parecia escorregar magestoso e sombrio,
sem que a bulha dos seus passos acordasse um só echo
nas ruas solitarias.
Chegámos ao Rocio. Eu começava a estar suado.
Despi, sem affrouxar o passo, o paletot que me incommodava,
e pul-o aos hombros.
Depois dei a andar com dobrada rapidez.
A senhora de negro caminhou pelo Rocio na
direcção
do Passeio.
Chegámos ao largo de Camões.
Nem uma pollegada diminuira a distancia que mediava
entre nós.
E o vulto parecia escorregar magestoso e sombrio,
sem que a bulha dos seus passos acordasse um só echo
nas ruas solitarias.
Eu apertava as mãos na cabeça, porque sentia uma
torrente de fogo a inundar-me o cerebro, e a rasão a
abandonar-me.
A noite era sombria, e no estado em que estava pareceu-me
sinistro devéras o aspecto d'essa massa do
Passeio Publico, envolto n'um manto de trevas.
A quinze passos adiante de mim caminhava sempre
elegante e distincto o vulto negro da minha gentil desconhecida.
Perdi a cabeça e deitei a correr, litteralmente a correr,
atraz d'ella. A bulha da corrida produzia um som
[33]lugubre, e fazia-me
estremecer de vez em quando. O
suor escorria-me em fio pela cara abaixo.
Saimos da rua Oriental do Passeio, entrámos na
calçada
do Salitre, chegámos á esquina da travessa do
Moreira, e eu não conquistára um palmo de
terreno.
E o vulto parecia escorregar magestoso e sombrio,
sem que a bulha dos seus passos acordasse um só echo
nas ruas solitarias.
Quando ali chegámos, a desconhecida entrou resolutamente
na travessa, e eu parei. Sentia o coração
palpitar-me
com violencia, e... tive medo, confesso o.
Era tão extraordinario o que me estava succedendo,
que este sentimento, devem confessal-o, era um pouco
desculpavel.
Comtudo venci a timidez passageira, e entrei resolutamente
n'essa rua tão deserta.
Quando a minha desconhecida chegou ao pé de uma
casa isolada no meio da travessa, parou, voltou-se para
mim, e bradou com uma voz melodiosissima:
―Ámanhã á meia-noite, debaixo d'esta
janella.
Eu estaquei attonito de surpreza.
VI
Descrever-lhes a lucta que se travou no meu espirito,
quando voltando para casa me fui sentar á mesa de
trabalho, e comecei a reflectir fria e pausadamente na
aventura nocturna, seria contar-lhes a historia longa e
fastidiosa do combate da rasão com as minhas tendencias
para o sobrenatural.
Dir-lhes-hei, resumindo, que sem attender a outra
[34]coisa que
não fosse a seducção
inexplicavel, que me attraía
para esse ente incomprehensivel, fui no dia seguinte
á meia-noite ao
rendez-vous aprazado.
Soava não sei em que relogio a ultima badalada da
meia-noite, quando se abriu a janella, e appareceu ante
os meus olhos deslumbrados o formoso rosto da gentil
desconhecida.
Balbuciei phrases sem sentido, mas a lingua pegou-se-me
ao céo da bocca, e não pude dizer uma palavra
que se entendesse.
―Porque me seguiu hontem? perguntou ella
com
uma voz melodiosa e triste, como o gemer da brisa
nos cyprestes.
―Porque a amo.
―Sabe quem eu sou?
―Que me importa! Quem vae perguntar ao anjo
que nos afaga em sonho o nome com que o distinguem
nas phalanges celestiaes?
―E ama-me?
―Mais do que a vida!
―Só?!
Que poder incrivel tinha aquella mulher sobre mim?
Não sei; sei que lhe respondi com o olhar inflammado:
―Mais do que Deus!
―Não estranha o mysterio em que me envolvo?
―Não sei. Este amor é uma paixão
fatal. Virgem
ou devassa, candida ou profanada, anjo ou demonio,
amo-a cegamente, sem me importar com o passado nem
com o futuro, desejando só ter o presente meu, só
meu. Este amor é para mim um vinho que embriaga,
e se no fundo da taça encontrar veneno, que importa?
morrerei abençoando as horas da embriaguez. Isto
é
[35]uma
loucura, bem
sei, mas se podesse conhecer a atonia
moral em que o meu espirito tem existido! Se soubesse
como eu anhelo por estas commoções
extraordinarias,
que devoram n'um minuto a existencia de um
homem! Já vê quão pouco exigente eu
sou; não me
negue um raio d'essa aureola d'amor que lhe circunda
a fronte. Essa luz tenuissima transformal-a-hei em chamma
esplendida, que ha de illuminar as trevas do meu
viver prosaico.
―Acceito o seu amor, se essas palavras não o
exageram.
Não queira penetrar no mysterio que me envolve.
Quando fôr necessario, eu mesma o rasgarei, e confie
em mim, ha de encontrar-me digna do seu amor. Entretanto
creia e espere. Adeus.
―Já?
―Não me posso demorar nem um minuto.
―Oh! mas diga-me uma palavra consoladora. Este
amor immenso não encontrou echo no seu
coração?
―Amo-o.
―Mas com um amor semelhante ao meu, inebriante,
immenso?
―Immenso... como a eternidade.
E fechou a janella, deixando-me ficar extatico e cada
vez mais espantado da estranheza dos seus modos.
VII
Assim continuou todas as noites aquelle amor
excentrico.
Todas as noites eu tomava a firme resolução
de não tornar lá, e sempre as badaladas da
meia-noite
[36]me
surprehendiam na
travessa do Moreira, por baixo da
janella fatal.
No tempo em que me succedeu esta aventura, tratavam
meus paes do meu casamento com uma menina
rica, que não desgostava de mim, e por quem eu,
não
sentindo amor, não sentia tambem antipathia.
Era ella uma menina capaz de inspirar uma
affeição
fraternal, mas nunca uma paixão a um espirito arrebatado
como este meu.
Era bonita, mas um typo vulgar, horrivelmente vulgar.
A pobre menina não tinha culpa d'isso. Demais a
mais era o que se podia chamar um acerto: dote soffrivel,
excellentes qualidades de mulher e de dona de
casa.
Creio que juntava a isso tudo o fazer marmelada perfeitamente.
Não sendo muito guloso, não era eu o mais
proprio para poder apreciar dignamente esta prenda,
que a distinguia.
Nunca mais appareci em casa d'ella, desde a noite de
S. Carlos. Um dia passei occasionalmente por lá, e vi-a
com os olhos
vermelhos de chorar.
Comprimentei-a,
ella
correspondeu me tristemente, e retirou-se da
janella.
―Ora adeus, disse eu comigo mesmo, foi deitar assucar
nos marmelos. Talvez ali esteja um coração!
accrescentei
eu no monologo mental. Não creio, continuei,
o coração desarranja as cassarolas, e incommoda-a
no
varrer da casa.
Foram estas idéas falsas que me perderam, meus senhores;
idéas d'um espirito extravagante que procurou
sempre em regiões inaccessiveis a felicidade, que nunca
pude encontrar, e que talvez caminhasse ao meu lado
sem eu dar por isso.
[37]
O meu espirito talvez fosse como o Rouvière de uma
comedia de Feuillet, que, depois de ter percorrido o
mundo em todos os sentidos, fica espantado de encontrar
a felicidade sentada ao canto da lareira de uma familia
burgueza n'uma aldeola do seu paiz natal.
VIII
Chamava-se Julieta a heroina do meu romance de
amor. Até o nome era de fazer enlouquecer um enthusiasta
como eu.
Essa aureola de poesia e de encanto com que Shakespeare
circumdou a fronte da pallida italiana, parecia
atravez das edades vir doirar com um reflexo luminoso
a fronte gentil da Julieta, que eu adorava.
Foi a unica informação a seu respeito que d'ella
obtive.
Tudo o mais ficava para mim envolvido n'um mysterio
que eu não tentava penetrar.
Uma noite a nossa conversação foi tomando a pouco
e pouco um caracter mais ardente e languido. Palavras
de amor entrecortadas, suspiros involuntarios vindo interromper
o dialogo, longos silencios durante os quaes
eu sentia o palpitar apressado do meu coração, em
quanto via a imagem seductora de Julieta desenhar-se
na janella illuminada caprichosamente pelo fulgor da
lua, tudo isto despertava em mim uma voluptuosidade
deliciosa, mas que me magoava.
Uma vez, em quanto ella ficava perdida n'essa vaga
contemplação da lua e da noite perfumada, eu
involuntariamente
approximei-me da parede da casa, e ajudando-me
com as grades da janella do pavimento das lojas,
[38]pude trepar
até ao parapeito da janella, e de repente,
sem que ella parecesse reparar na ousadia do meu procedimento,
imprimi-lhe nos labios um beijo de fogo.
Os labios d'ella estavam frios como os de uma estatua.
Olhou para mim com olhar meigo e recuou.
Entrei no quarto e cahi-lhe aos pés, balbuciando:
―Julieta, amo-te!
E cobri-lhe as mãos de beijos devoradores.
Ella olhava para mim com uma expressão indefinivel.
Não podia dizer se era ternura, se ardor, se frieza, o
que esse olhar continha; sei sómente que quanto mais
ella me encarava, mais eu me sentia enlouquecer.
―Vem, meu amante, murmurou Julieta passando-me
o braço á roda do pescoço, e
arrastando-me com
meiguice para uma porta entre-aberta, vem! sobre o
lilaz florido do meu jardim embalsamado descanta o
rouxinol as suas trovas de amores! é tudo mysterio
n'esta hora encantadora! Vem!
Abriu-se a porta e nós entramos n'um jardim esplendido.
IX
Era na hora mysteriosa em que das urnas das flôres
se expandem na atmosphera thesouros de aroma e de
languidez, e em que o homem absorto julga escutar
vagamente na esplendida immensidade a longiqua harmonia
das espheras.
Na hora em que o rouxinol espalha sobre a terra as
perolas do seu canto, e em que a natureza escuta embevecida
o hymno mavioso do seu interprete sublime.
[39]
Porque n'essa hora dormem as paixões terrenas, e
o mundo parece envolver-se por momentos no manto
da sua virgindade, afim que Deus possa reconhecer a
sua feitura, desfigurada pelo agitar convulso do verme
pretencioso que se chama o homem.
E o Omnipotente immovel no throno da sua grandeza,
revê-se silencioso no espelho da
Creação.
Oh! como a lua desenrola graciosamente o seu manto
luminoso sobre as alamedas desertas do esplendido jardim!
Como os seus raios se baloiçam mollemente no
berço fluctuante da folhagem! Como se miram descuidosos
no crystal das fontes!
E as estatuas primorosas dos deuses do paganismo,
parecem espreitar complacentes os mysterios da voluptuosidade
que se vão abrigar nos caramanchões floridos!
E emtanto as acacias que lhes assombreiam os
vultos immoveis, inundam com a chuva perfumada das
flôres vermelhas as pregas ondeantes da sua roupagem
marmorea!
E eu e Julieta caminhavamos silenciosos por entre
os alegretes, e a voz do rouxinol da balseira despertava
no meu coração um rouxinol desconhecido que me
fallava
de amor e de ternura.
Inclinei-me para ella e beijei-a! E parecia-me que
sentia ao tocar-lhe nos labios as azas brancas do anjo
da pureza que davam áquella fronte limpida um resplendor
celestial.
Por um sentimento involuntario troquei o meu annel
pelo annel de Julieta.
Julguei que Deus santificava o nosso amor, e nos
contemplava com indulgencia!
[40]
X
Mas quando ergui os olhos, erriçaram-se-me os cabellos
de terror, e correu-me pelas veias um calafrio.
Fugiu-me a luz dos olhos, e o sangue refluiu ao
coração.
Desappareceram os floridos canteiros, emmudeceu o
rouxinol suave, sumiram-se as estatuas, fugiram as
acacias.
Estendem-se a perder de vista as ruas sombrias de
um cemiterio, de um lado e de outro avultam as pedras
brancas das sepulturas.
O vento da noite faz ondear os cyprestes funerarios,
e o pallido clarão da lua vem beijar melancolico as cruzes
tumulares.
O grito sinistro do mocho só de vez em quando perturba
a paz dos mortos; por entre a relva dos sepulchros
fulgura a lugubre phosphorescencia dos cemiterios.
É tudo silencio em roda, mas ao longe começa a
sentir-se
um vago rumor, que parece o longiquo ruido de
um exercito marchando.
E uma aragem de terror parece esvoaçar por entre
os tumulos, dando vida ás loisas e voz ao cyprestal.
Lugubres clarões abraçam as cruzes das campas, e
as figuras de pedra que guardam, sentinellas inanimadas,
o somno dos finados, agitam-se convulsamente ao
sopro de fogo d'aquella procella desconhecida.
A sineta da ermida vibrou no meio do silencio; tres
vezes echoou na immensidade aquelle som terrivel.
E eu senti os cabellos erriçarem-se-me, e um suor
gelado me inundava a testa.
[41]
Então um côro de vozes cavas e profundas entoou
lugubremente o
Dies irae, o hymno
da colera de Deus.
E logo uma longa procissão de phantasmas brancos
começou a desfilar por diante de mim n'um silencio
aterrador.
Depois deram-se as mãos e formaram em torno de
mim uma dança de espectros.
E eu sentia os cabellos erriçarem-se-me, e um suor
gelado me inundava a testa.
Depois um dos vultos brancos destacou-se do grupo
e avançou para mim.
E eu quiz recuar, mas os pés estavam pregados no
terreno, e uma força invencivel me domava.
O passo do phantasma não produzia ruido algum, mas
eu sentia-o vibrar no fundo do coração.
Vinha envolto no longo manto sepulchral, e ornava-lhe
a fronte a grinalda virginal das rosas brancas.
Reconheci as pallidas feições de Julieta, da
minha
noiva de ha pouco.
―Vae consumar-se o lugubre noivado, disse-me ella
sorrindo; vem, meu pallido amante, vem inebriar-te com
as mysticas voluptuosidades das sepulturas.
O mocho cantará o nosso epithalamio, e no cruzeiro
do cemiterio serão as danças dos finados o nosso
baile nupcial.
Olha para a mysteriosa alcova, como nos sorri de
dentro da loisa entreaberta a alva mortalha do nosso
leito de noivado!
E eu olhei e vi abrir-se a garganta pavorosa de um
sepulchro, e senti que a mão de Julieta me arrastava
invencivelmente.
Echoavam nas lugubres alamedas as gargalhadas dos
[42] finados, o mocho
soltava o seu grito funebre, e a lua
entornava sobre as campas a sua luz tão pallida.
E eu senti os cabellos erriçarem-se-me de terror, e
um suor gelado me inundava a testa.
Não pude resistir, passou-me uma nuvem de sangue
por diante dos olhos e cahi desmaiado!
XI
Roberto parou um momento como se se sentisse
opprimir pela recordação terrivel d'essa noite.
―Pouco mais lhes posso dizer, meus senhores, sei
apenas que no dia seguinte acordei no meu leito, e que
estive sériamente doente. Apenas me restabeleci corri
á travessa do Moreira.
Da casa de Julieta nem signaes! Tudo desapparecera.
Julguei que fôra victima de uma
allucinação, mas
ainda hoje se me representam tanto ao vivo as scenas,
a que assisti, que não posso admittir a possibilidade
d'essa hypothese.
D'ahi por diante nunca mais tive felicidade! Em
pouco tempo gosei e padeci muito. As fibras da minha
alma sujeitas a uma fortissima tensão quebraram-se, e
hoje vivo n'uma incrivel atonia.
A senhora, com quem minha familia me queria vêr
casado, desposou um homem menos imaginoso do que
eu, que a estremece, e a quem ella estima. Tem dois
filhos, que são a alegria da casa e o enlevo dos paes.
A minha imaginação desregrada deixou-me isolado
no mundo.
[43]
Roberto calou-se. Todos nós ficamos silenciosos,
impressionados
por essa lugubre historia. Mas Frederico
abraçando sua mulher, e dando-lhe um beijo na testa,
disse para Roberto:
―As aspirações da alma têm um limite,
que não podem
ultrapassar. No céo da felicidade ha espheras inaccessiveis
onde a natureza humana desmaia, prostrada
pela vertigem. Na familia, meu amigo, resume-se a suprema
ventura. É prosaica unicamente para os que a
não comprehendem. N'esses amores ideaes chega o homem
a pontos, em que para me servir das phrases do
sceptico Musset:
Où le vertige prend,
où l'air devient le feu,
Et l'homme doit mourir où commence le Dieu.
Quando Henrique Osorio acabou de lêr o seu improvisado
romance, applaudiram-n'o fervorosamente os seus
indulgentes ouvintes. Só Isaura bocejava de um modo
notavel.
Henrique mordeu os labios um pouco raivoso, e, inclinando-se
para ella, disse-lhe ironicamente:
―A nossa idéa foi soberba, minha senhora; se não
cura dos terrores, que sentem as pessoas nervosas, ao
menos concilia-lhes o somno que affugenta os phantasmas.
―Ah! não, sr. Henrique Osorio, respondeu Isaura;
a sua idéa acho-a cada vez peior. Vejam se é
admissivel
[44]fallar-se
aqui em cemiterios á uma hora da noite.
Eu, se estou assim mais tranquilla é porque a Leonor
me prometteu que dormia no meu quarto.
―É contra os regulamentos, bradou o doutor Macedo.
A sr.
a D. Isaura está illudindo a
receita.
―Meu Deus, doutor! exclamou Leonor alegremente.
Os regulamentos cumprem-se assim de um modo feroz.
Não vê que eu vou passar a noite com uma mulher
pallida?
Depois de ouvir o romance de Henrique, deve
confessar que é necessario ser-se heroina!
―É verdade, exclamou Isaura, o sr. Osorio tratou
bem as pallidas! No seu entender mulher pallida só
póde ser mulher desenterrada. Muito agradecida.
―Mas, minha senhora... balbuciou Henrique.
―Aquillo são reminiscencias de Lisboa, Isaura, exclamou
Leonor, rindo. Quiz-se vingar de alguma pallida
que o magoou.
―És maldosa, Leonor, murmurou Henrique ao ouvido
da sua amiga de infancia.
―É para te ensinar a fazer
declarações mais habeis,
disse-lhe Leonor tambem ao ouvido. Isaura levantára-se
para ir ter com seu pae.
―Então o meu romance é uma
declaração? tornou
Henrique.
―O teu romance é uma loucura. Estás
engraçado
com as tuas idealisações constantes. Queres
mulheres
sobre-naturaes, entes phantasticos, damas brancas de
Avenel! Se achas que é lisongeiro para uma mulher
perder a sua realidade para agradar ao homem que diz
amal-a, morrer primeiro para ser depois desposada por
elle em fórma espectral, como no
Noivado do
Sepulchro,
de Soares de Passos...
[45]
E a maliciosa rapariga recitou, zombeteando:
E ao som dos pios do cantor funerio,
E á luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro sepulchral mysterio
Foi celebrado de infeliz amor!
―Então, menina! exclamou Isaura, lá de longe.
Olha que eu não vou sósinha para o quarto.
―Ahi vou, querida, ahi vou!
E Leonor, deitando a Henrique um olhar malicioso,
foi ter com a sua amiga.
―Então, sr. Roberto Soares, disse o doutor Macedo
emquanto pegava no castiçal para se dirigir para o seu
quarto, porque, n'essa noite de temporal, nem os visinhos
tinham podido recolher a suas casas; então, sr.
Roberto Soares, a sua composição caminha? Olhe
que
é ámanhã a sua vez.
―Que lhe hei de eu fazer? Cá me vou apressando,
tanto quanto posso. Metti-me em boa, não ha duvida.
Já não estou para estas folias. O viver da
provincia enferruja.
Ámanhã os rapazes vão rir-se de mim.
―Veremos isso! redarguiu Henrique Osorio, sorrindo
amigavelmente. Eu preparo uma pateada.
Roberto Soares affastou-se, rindo, e o doutor Macedo,
accendendo um charuto, disse para Henrique Osorio:
―Sabe o que lhe digo, Henrique? Você é uma
creança. Anda todo enlevado na pallidez e nos terrores
nervosos de Isaura, que é uma tola com bonitos olhos,
e não repara que ha por estas serranias uma rapariga,
uma perola, que se fina por você.
―Por mim?! Quem me faz essa honra? exclamou
Henrique, fazendo se córado.
[46] ―Quem tem olhos
para vêr, veja; quem tem ouvidos
para ouvir, oiça; e quem tem somno para dormir,
durma; respondeu gravemente o doutor Macedo. Boas
noites.
E partiu, deixando ficar Henrique pasmado. Este demorou-se
por alguns instantes a ouvir o temporal que
rugia com violencia, e a contemplar com tristeza o sitio
onde estivera sentada Isaura. Depois, soltando um
suspiro, saíu da sala.
Devo dizer que no dia seguinte as impressões foram
muito menos profundas que na vespera. A noite estava
mais socegada; caçára-se pela manhã.
Estivera bonito
o dia, cortado apenas por alguns chuveiros. Comtudo,
quando deu a meia-noite, correu um frémito por todos
os ouvintes. Estabeleceu-se um profundo silencio, mas
a figura amavel de Roberto Soares não era para inspirar
terrores legendarios, e foi no meio de uma
attenção
tranquilla, até um pouco risonha, que o jornalista
aposentado começou a sua leitura.
I
O meu romance annuncia-se de um modo terrivel.
Começa por uma tempestade. Estou obrigado moralmente
a apresentar alçapões, subterraneos, e donzellas
perseguidas. Se não invento por ahi uns quatro assassinios,
estou perdido no conceito de certos leitores!
Tenham paciencia os amadores das
Nodoas de
sangue
e dos
Amantes infelizes ou as victimas de uma
paixão,
mas d'esta vez hão de contentar-se com um romance
bem morigerado, cujos heroes, todos elles pessoas
honestas, não hão de incommodar, em quanto durar
o enredo, nem as partes de policia, nem os regedores
de parochia, nem os jovens advogados, nem as columnas
dos jornaes destinadas pelos noticiaristas aos acontecimentos
tragicos do paiz.
Feita esta
declaração,
vou introduzir os meus
leitores...
[48]n'um
lagar de
azeite, por uma noite tempestuosa
de dezembro, quando o vendaval açoita rijamente
os pinheiraes frementes, e os relampagos illuminam
com pallido fulgor as campinas inundadas pelas chuvas
copiosas de uma noite de invernia.
Recresce o temporal. As levadas de agua, engrossadas
com as chuvas, resvalam pelos penedos, despenham se, espadanam, fazem
scintillar á luz do raio doidejantes
borbotões de espuma, e arrastam na carreira
vertiginosa as arvores desarreigadas pela força irresistivel
do furacão! N'estas noites, o aspecto ridente dos
campos, que a primavera orna com todas as galas da
vegetação, transforma-se completamente.
Parece-nos
impossivel que o regato, que havia pouco se espreguiçava
voluptuosamente sobre as campinas esmaltadas,
seja agora a torrente impetuosa que arranca, n'um accesso
de furor, as arvores que se miravam descuidosas
na sua limpida corrente.
A mim agrada-me o quadro medonho das furias da
invernia! Contemplo com delicias a physionomia terrivelmente
phantastica das planicies e dos bosques, onde
paira, batendo as azas chammejantes, o sinistro archanjo
da tempestade!
São estes os episodios grandiosos do poema da natureza!
São estas as paginas sublimes do livro da
creação!
Era uma quinta solitaria nos arredores de Santarem;
a casa dos morgados campeiava orgulhosa e insulada
no meio dos campos cultivados, e lá mais ao longe alvejavam
as modestas casinhas do logarejo que se debruçava
curiosamente sobre as aguas do riacho, mirando
n'esse espelho crystallino o seu humilde aspecto,
[49]e contemplando
depois, á socapa as pompas quasi feudaes
do solar dos descendentes d'algum valentão das
Indias.
Como os gloriosos representantes d'essa familia aristocratica,
deixando a quinta só, estão comendo em Lisboa
os seus rendimentos, escusamos de lhes bater á
porta, e, se vos parece, vamos immediatamente ao lagar
de azeite, que não fica muito longe.
A entrada é franca, e a vista da fornalha, sobre a
qual está collocada a caldeira, e onde arde um
mólho
de lenha, produzindo um bom fogo, claro e crepitante,
tenta devéras o pobre homem, que, todo ensopado,
contempla o lume da fogueira, tão consolador e attrahente
em noites de frio e chuva.
Entrámos em boa occasião; o lagar está
em plena
actividade. Os clarões indecisos da lareira illuminam um
quadro pittoresco e original. Aqui o
engenho de
agua
gira produzindo um som monotono, que, no meio dos
rugidos da tempestade, similha o resmungar de velha
feiticeira por entre os córos dos archanjos rebeldes em
noite de congresso infernal, e, girando sem cessar, tritura
conscienciosamente a azeitona submettida á sua
implacavel pressão. Além as
varas, subindo e descendo
com toda a regularidade, obrigam a azeitona, já triturada
e estendida nas
ceiras, a distillar
o seu oleo precioso.
Mas não se resumem n'estes os trabalhos do lagar.
Quem reconhecerá o azeite n'esse liquido negro
que vae acolher-se silenciosamente na enorme vasilha
de barro, a que nos lagares se dá o nome de
tarefa?
Trata-se de o purificar; vamos ás
abluções. O liquido
negro é assaltado repentinamente por um diluvio de
agua a ferver, proveniente da caldeira, que opéra a
[50]decomposição
com toda a rapidez. Pelo
inferno,
communicação
subterranea que conduz a um vallo distante, escoa-se
a agua negra, que vae terminar ao longe a sua
existencia ignorada, e o azeite, livre finalmente da macula
original, apparece em toda a sua limpidez, em
todo o seu brilho, em todo o seu esplendor.
No centro da casa terrea, o sr. Manuel dos Reis,
mestre-lagareiro, chefe das operações, e supremo
dictador
n'esta solemne occasião, vigia attentamente as
multiplicadas operações do lagar, em quanto o sr.
João
Moedor (assim chamado por causa das importantes
funcções
que ali exercia), contempla satisfeito o andamento
do
engenho de agua, confiado aos
seus cuidados.
Os adjunctos d'estes dois chefes, sentados á roda da
fogueira, alguns camponezes de fóra, que tinham vindo
para o «cavaco», e que a tempestade tinha
accommettido,
os quaes em pé encostados ao cajado ficavam no
segundo plano, e dois rapazes de Lisboa a quem a
cortezia aldeã tinha concedido o logar de honra, eram
as restantes figuras d'este quadro.
Os dois lisbonenses merecem uma descripção
especial.
Chamava-se o primeiro José Augusto de Albuquerque.
Alto e elegante, pallido, d'esta pallidez ardente,
que é quasi sempre symptoma de uma
imaginação
exaltada, revelava no fulgor desusado dos olhos, scintillantes
como dois diamantes negros, o ardor d'aquella
organisação sympathica, que devia ser ou a de um
grande poeta, ou a de um grande doido, se estas duas
idéas não são synonymas, segundo a
opinião de muita
gente. As olheiras fortemente accentuadas, e que pareciam
crestadas pela ardente irradiação das pupillas,
[51]acabavam de dar a
esta physionomia um cunho original,
romantico emfim,
tranchons le mont,
porque devo
confessar que o meu heroe tem todas as apparencias
de um typo de romance, apesar de ser tão verdadeiro
como... o orçamento portuguez.
O companheiro de José Augusto formava com elle
um perfeito contraste. Se as centelhas de intelligencia,
que se escapavam dos olhos negros de José Augusto,
revelavam uma organisação em que o espirito
predominava,
em que
l'âme dominava
la bête, para me servir
da classificação de Xavier de Maistre, a luz fria
e
sem expressão, que brilhava nos olhos azues do seu
companheiro, dava a conhecer a beatifica indifferença
do adorador da materia. N'um a estatua delicada e
quasi feminil denunciava a fina constituição de
uma natureza
naturalmente aristocratica; no outro a obesidade
das fórmas dava idéa do Sancho Pança
de Cervantes,
ainda que a alta estatura mostrasse que esta nova
edição
do governador da Barataria era feita n'outro formato.
N'aquelle os movimentos altivos da cabeça, o modo
enthusiastico com que atirava para traz as ondas lustrosas
da sua negra cabelleira, indicavam bem as
aspirações
elevadas de um coração a trasbordar de poesia e
de generosidade; n'este os gestos pacatos, e as suissas
loiras que flanqueavam serenamente uma cara de lua
cheia, mostravam o genio bonacheirão do homem que
não pensa senão no modo de conservar sempre, em
bom estado, a sua economia animal, satisfazendo as
reclamações incessantes de um estomago
insaciavel.
O primeiro era, como disse, José Augusto de Albuquerque,
rapaz com alguns vintens, que viajava para
se divertir. O segundo era o sr. John Williams, inglez
[52]ingenuo e bem
morigerado, que aguentava uma boa
dóse de garrafas de vinho sem vacillar, que bebia
exactamente
o que ganhava n'um escriptorio de negociante,
e que, apaixonado por viagens, como todo o bom inglez
deve ser, tinha pedido licença de um mez para
acompanhar o seu amigo José Augusto n'uma
excursão
á Extremadura.
No momento em que entrámos, reinava um profundo
silencio. Lá fóra os rios, que a chuva fazia
ferver em
cachão, resaltavam sobre os rochedos com um estampido
formidavel; as rajadas da ventania, batendo com furor
de encontro á porta, faziam-n'a ranger, e abriam-n'a
de vez em quando, arrojando torrentes de chuva para
dentro do lagar. A voz da procella ora se assimilhava
aos rugidos blasphemos do anjo das trevas, ora, plangente
e soturna, imitava os gemidos das almas penadas,
que vagueiam na terra pedindo aos vivos orações.
O
trovão, ribombando no espaço, dominava, de vez em
quando, com a sua voz magestosa, o pavoroso ruido da
tempestade.
Havia harmonias sublimes n'aquella desharmonia apparente;
era selvatica mas grandiosa a immensa orchestra
do temporal.
―Santa Barbara nos acuda, murmurou devotamente
o sr. Manuel dos Reis, tirando o seu barrete azul, já
bastante azeitado, no momento em que um trovão formidavel
fazia benzer todos os circumstantes―S. Jeronymo
te afaste, ruim trovoada, de todo o povoado onde
haja almas christãs.
―Amen, resmungou em côro a companha aldeã.
―E temos a chuva pegada, que não ha que esperar
senão uma noite de agua. O vento puxa por ella que
é
[53]
um regalo, tornou o mestre-lagareiro, quando o terror
produzido pelo trovão se dissipou um pouco mais. Ah!
meu fidalgo, v. s.
a querer metter-se a caminho
por
uma noite d'estas é mesmo tentar a Deus!
―Deixal-o, tornou o interpellado, que era o nosso
amigo José Augusto de Albuquerque, sabe você, sr.
Manuel dos Reis, que eu gósto de noites assim? Que
diabo! quando atravesso a galope a clareira de um
bosque inundado pela chuva, e que vejo, á luz do relampago,
as arvores nuas de folhas estenderem-me os
braços descarnados, e formarem em torno de mim,
guiadas pelo furacão, danças phantasticas e
extravagantes,
imagino vêr as danças da meia-noite, travadas
pelos espectros nos cruzeiros dos cemiterios, e, lembrando-me
dos contos lindissimos que a minha ama
me contava quando eu era pequeno, chego a acreditar
na sua realidade, e acho prazer n'aquillo. Então que
quer?
―Arreda!―bradou o João Moedor, coçando a
cabeça
e fazendo ao mesmo tempo um gesto de susto,
sempre v. ex.
a diz coisas que fazem arripiar os
cabellos
á gente. Gostar v. s.
a de
vêr dançar
as aventesmas
as suas danças malditas, como o meu compadre
viu com os seus proprios olhos na noite de S. Bartholomeu,
em que anda o diabo solto, como vocemecê ha
de saber. Safa! Era capaz de seguir o phantasma do
Açude até ao seu esconderijo infernal.
―O phantasma do Açude! O que é isso, o que
é
isso, ó sr. João?―perguntou José
Augusto com a
maior curiosidade.
―Historias da vida, meu fidalgo, retrocou o sr. Manuel
dos Reis, é este diabo do João Moedor que
não
[54]sabe fazer outra
coisa senão contar contos da carochinha.
Bom estavas tu, meu rapaz, para mestre-lagareiro!
Andas com a cabeça a rasão de juros a pensar
lá n'essas
maniversias,
deixavas ir o azeite pelo
inferno
abaixo, e nunca eras capaz de pôr o
espicho a tempo e
a horas. Sempre estás um massador!
―E é verdade, sôr Manuel dos Reis. Este
João Moedor
não faz senão moer a paciencia á
gente, tornou um
camponez que estava ao pé da porta, encostado com
toda a denguice ao seu varapau.
Todos se riram do
calembourg
aldeão, e o sr. João
Moedor esteve algum tempo sem poder fallar no meio
dos motejos e das risadas da turba campesina. Finalmente:
―Leva rumor!―bradou elle. Com que então, sô
Zé do Moinho, acha você que eu môo a
paciencia á
gente, hein! Você não acredita n'estas coisas,
apesar
de eu ter visto muita vez sua tia andar por cima da
folha, e correr por cima das latadas para ir ter com
seu compadre
Berzabum! E ainda
não estou muito certo
se não é você, sô cara de
não sei que diga, que anda
a horas mortas a cumprir o seu fado, feito burro, por
esse mundo de Christo, como fazia seu avô que foi
lobis-homem,
segundo diz a gente antiga cá da terra.
A victoria ficou d'esta vez ao novo campeador. Os
motejos dirigiram-se todos para o sr. Zé do Moinho,
que quiz replicar enfurecido, mas que se viu obrigado
a metter a viola no sacco, e a ficar de cabeça baixa a
um canto. O triumphador havia pouco era agora humilhado.
Sic transit gloria mundi!
―Conte lá a historia, ó sr. João, que
aqui tem você
um ouvinte que não é capaz de duvidar da
veracidade
[55]
das suas palavras―tornou José Augusto com a curiosidade
a revelar-se-lhe nas feições.
―Tem v. s.
a muita rasão, meu
fidalgo, retrocou o
João Moedor com modos de triumpho, e com perdão
de vocemecê, sôr Manuel dos Reis, sempre lhe direi
que a historia do phantasma do Açude não
é conto da
carochinha. Em noites assim de temporal, quando o rio
engrossado pela cheia, ceifa os pinheiros mais taludos
como eu ceifaria uma espiga de trigo no tempo da monda,
não é cá o rapaz que se atreve a
passar ao pé do
Açude, sem se benzer quatro vezes, e sem fechar os
olhos para não vêr a melancolica D. Branca. E
não é
só a mim que isso acontece; o mais pimpão do
sitio
tremia, como varas verdes, se se visse obrigado a passar
a estas horas por aquelle sitio amaldiçoado, a
não
ser o
Come-bichos, que vendeu a alma
ao diabo. Deus
me perdôe se minto; mas o maldito tem mesmo cara
de condemnado. E conheço eu alguns que se fazem
muito valentes quando estão bem acompanhados, e que
não eram capazes de passar sósinhos por ao
pé do
Açude, nem que lhes dessem todos os thesouros encantados
do imperador da Moirama.
Esta ultima allusão ia evidentemente com sobre-escripto
para o Zé do Moinho; a resposta d'este (se por
acaso elle tencionava responder), foi abafada pelas
acclamações
dos restantes, que applaudiram o orador,
bradando em côro:
―Tem rasão! É uma heresia duvidar d'estas
coisas!
O João fallou bem. Tem uma linguinha de oiro,
este moedor!
O distincto orador comprimentou modestamente os
seus amigos politicos pela ovação que fizeram ao
seu
[56]
estiradissimo discurso, e que impacientou apenas o Zé
do Moinho, que era da opposição, José
Augusto de Albuquerque,
que estava desejoso de conhecer a lenda,
e o leitor, que talvez nem esteja para a ouvir.
―Vamos á historia, vamos á historia, bradou
José
Augusto, todos lhe prestamos attenção, e
acreditamos
em tudo quanto você disser, como os mahometanos na
missão do seu propheta.
Ninguem comprehendeu a comparação: por
conseguinte
todos ficaram fazendo uma elevadissima idéa da
erudição de José Augusto.
João Moedor piscou os olhos,
e bradou com enthusiasmo:
―Fallou que nem um livro. Pois então já que
tanto
aperta, lá vae a historia.
Todos se chegaram uns para os outros, e João Moedor
começou no meio de um silencio solemne a sua
narração.
Chegado a este ponto, Roberto Soares interrompeu-se,
e, levantando os oculos, disse para os seus ouvintes:
―Não me responsabiliso pela verdade do modo de
dizer. José Augusto, que tinha o desagradavel sestro
de fazer estylo, quando me contou a historia, transfigurou
completamente a expressão do narrador da aldeia.
Comtudo asseverava-me elle que o estylo do camponez
tinha uma certa elevação.
―Siga, siga, acudiu o doutor Macedo. José Augusto
é o seu Jedediah Cleishbotham, já
vêmos. Era moda
no seu tempo, como as epigraphes.
Roberto Soares riu-se e continuou da seguinte maneira:
Ha de haver um par de annos, muito antes do terremoto,
e talvez antes que tivessem nascido os paes dos
[57]nossos
bisavós, governavam os moiros a maior parte
da nossa terra abençoada. Segundo eu ouvi contar ao
nosso padre prior, que Deus haja, dava-se e recebia-se
muita lançada antes que a bandeira de Christo fluctuasse
triumphante nas ameias das fortalezas. Cada palmo de
terra conquistado aos cães dos sarracenos era regado
por muito sangue, e muitos cadaveres dos nossos antepassados
adubaram a terra, antes que os seus descendentes
podessem fazer em paz a semeadura e a colheita.
Era mau tempo aquelle. Mas Deus e Santiago
eram por nós, e os esquadrões cerrados dos
cavalleiros
de Christo levaram sempre de vencida as hostes
aguerridas dos perros amaldiçoados.
Como dizia o padre prior, os pergaminhos d'esses fidalgos,
que por ahi andam tão orgulhosos da sua inutilidade,
foram sellados com o sangue de seus antepassados
nos campos de batalha, em que se comprou bem
cara a independencia portugueza. Deshonrado seria para
todo o sempre o fidalgo portuguez que não envergasse
as armas ao sair da infancia, e não luctasse incessante
a favor dos opprimidos até cair no campo
da batalha
amortalhado na sua armadura de ferro. Repousem em
paz nas campas os ossos d'esses valentes.
―O João Moedor sempre tem uma cachimonia de
truz, resmungou á parte o Manuel dos Reis; onde elle
vae buscar tudo isto!
―O que elle é, é um papagaio, murmurou o
Zé do
Moinho, não faz mais do que repetir tim tim por tim
tim o que ouviu ao nosso antigo padre prior.
―N'esse tempo, continuou o João Moedor sem reparar
na interrupção, viviam aqui n'este sitio dois
fidalgos
velhos, que, depois de terem ganho muitas cicatrizes,
[58]e creado muitos
cabellos brancos no seu luctar
incessante contra o poder da Moirama, tinham vindo
descançar na paz dos seus castellos das lides gloriosas
em que haviam dispendido a sua existencia inteira. Não
porque lhes faltassem valor e bons desejos; mas a
edade tudo gasta, e os corpos alquebrados dos bons cavalleiros
já vergavam ao peso da armadura, e a voz
implacavel da velhice advertiu-os que cedessem o logar
a novos e mais vigorosos campeões. Penduraram na sala
de armas dos seus castellos as valentes espadas, e, sentados
ao canto da lareira, esqueciam o peso dos annos
com as gratas recordações das suas
façanhas d'outr'ora.
Ao mais velho dos dois; Inigo Paes,
concedêra o céo
um filho; Raymundo se chamava elle. Era a delicia do
bom velho rever no esbelto mancebo a risonha imagem
da sua mocidade. Vendo-o crescer em annos, em vigor
e em destreza, consolava-se o valente cavalleiro, esperando
que Raymundo não deshonraria, nas fileiras portuguezas,
o nome venerando que elle proprio tinha conquistado.
Esperava com anciedade que seu filho completasse
os dezoito annos para lhe cingir a espada, afivellar-lhe
o arnez, e dizer-lhe, apontando lhe o
campo
da batalha: «Vae, é esse o caminho da
gloria»
E tinha rasão em se gloriar de ter um filho assim.
Ninguem meneava com mais garbo e destreza um cavallo
fogoso, ninguem manejava com mais vigor o pesado
montante, ninguem mostrava mais ardor guerreiro,
quando o pae, sentado no salão do castello, contava
aos rapazes, anciosos de aventuras, os feitos de armas
dos velhos campeadores. E se Raymundo dava esperanças
de ser um rude lidador, nem por isso deixava de
ser o mais gentil mancebo d'estas cercanias. Alto e
[59]elegante, se os
seus olhos negros quizessem fallar de
amor, não havia dama que se não rendesse, nem
coração
feminino que escutasse insensivel os seus protestos
enamorados. Mais de uma altiva castellã apparecia na
varanda do seu solar para vêr o elegante Raymundo
correr a cavallo por essas campinas. Mas que importavam
ao filho de Inigo Paes todas as castellãs do mundo
se tinha o coração já preso, e se
Branca, a ingenua
Branca, lhe conquistára o affecto, e accendera nos seus
olhos a chamma ardente do primeiro amor?
Branca era filha do companheiro de armas de Inigo
Paes; grande desconsolação tivera elle, vendo-se
viuvo
em edade avançada, sem ter um filho a quem podesse
transmittir a sua herança de gloria. Muitas vezes, ao
vêr a filha a doidejar na varzea, como gentil borboleta
esvoaçando por entre flôres, se lhe enrugava a
fronte,
e duas lagrimas de tristeza deslisavam pelas faces crestadas
do velho soldado. Mas a sombra ligeira, que lhe
annuviava o gesto, dissipava-se promptamente com as
caricias affaveis da gentil donzella. Quem poderia resistir
á influencia d'aquelle anjo de candura, loiro e rosado,
como as imagens seductoras dos cherubins que cercam
a Virgem Nossa Senhora na pintura do altar-mór
da freguezia!
Branca e Raymundo conheciam-se e amavam-se desde
creanças. Juntos tinham crescido, juntos tinham doidejado
n'estas campinas, e, sem que nunca a palavra
amor
fosse pronunciada, tinham apesar d'isso consagrado um
ao outro um affecto que a edade fôra desenvolvendo.
E era um par galante a mais não poder ser. Quando
Branca, fatigada de correr atraz de uma borboleta, vinha,
com as faces vermelhas como duas rosas, os olhos
[60]a brilharem de
alegria infantil e as loiras tranças
fluctuando
em ondas doiradas sobre os seus hombros de
neve, refugiar-se nos braços de Raymundo, e encostar
o rosto encantador nas faces levemente morenas do gentil
fidalguinho, todos os que os viam paravam extasiados,
e faziam votos pela felicidade d'aquelles anjos de
innocencia e de candura.
Chegou finalmente o dia em que Raymundo completava
dezoito annos, e em que, para não desmentir as
gloriosas tradições da sua raça, devia
cingir a espada,
e ir aos campos de batalha pagar á patria e á
santa religião
dos nossos paes o tributo de sangue, que devia
ser pago por todos os que se prezavam de christãos
fieis, e portuguezes leaes.
No dia fixado para a partida de Raymundo, encontraram-se
os dois namorados no sitio do Açude. É um
sitio medonho, como v. s.
a ha de saber; um
pinhal sombrio,
que vae terminar á beira de um precipicio, no
fundo do qual o rio faz mugir, espadanando nos rochedos
as suas aguas turvas e espumantes. Mas n'esse dia
o sol estava brilhante, e dava a esse quadro medonho
o mais ridente aspecto. Os pinheiros, illuminados pelos
raios de um sol de agosto, pareciam frechas doiradas
que mão occulta arrojava ao céo limpido e azul de
um
bonito dia de verão. Cada gotinha de agua parecia um
espelho que reflectia a imagem brilhante do sol de Portugal,
e o rio scintillante e espumoso parecia arrastar
na corrente palhetas de oiro e prata. Gorgeiavam os
passaros na floresta, e tudo dizia contentamento, quando
os corações de Branca e Raymundo
sómente sentiam
tristeza e desesperação.
Branca vinha triste, triste como a rôla namorada que
[61]vê
fugir
para longes terras o escolhido do seu
coração,
e pallida como a açucena batida pelo vendaval. Mas que
bem que lhe ficava aquella pallidez, e como a alvura da
face realçava a côr negra das roupas que vestira
em
signal de luto e de saudade! O brilho dos olhos, empanado
pelo pranto que tinha derramado, parecia ainda
mais suave e meigo, e os loiros cabellos, caindo-lhe ao
desdem sobre o pescoço deslumbrante de brancura,
faziam-n'a assimilhar á imagem da Virgem que está
pendurada na sala do presbyterio, e que o senhor padre
prior dizia ser copiada de um quadro pintado por
um italiano chamado Raphael.
Chegou, e ajoelhou aos pés de um crucifixo, que
então
existia n'aquelle sitio; porque n'esses tempos de fé
viva, a imagem do Crucificado apparecia em toda a
parte para acolher em seu seio misericordioso as
orações
dos fieis. O sol tinha surgido havia pouco do
Oriente, e a oração da candida virgem, pura como
a
rosa que abre o seio ao primeiro alvor da madrugada,
foi, perfume singelo, de fé e de innocencia, conduzida
pela brisa aos pés do throno do Senhor.
Quando se levantou viu Raymundo em pé diante
d'ella, de cabeça descoberta, pallido e mal podendo
conter as lagrimas que lhe bailavam nos olhos.
―Raymundo, disse ella desatando a chorar, e
escondendo
a cabeça no peito do mancebo, não me deixes!
―Não posso, Branca, tornou elle, apertando-a ao
peito com anciedade; o que pensariam de mim o rei,
os ricos homens e os villões, se preso nos teus
braços
me esquecesse do que devo a mim, ao rei e a Deus?
Era um nome deshonrado o nome de teu esposo, Branca,
e não m'o podias acceitar. A espada de meu pae,
[62]que
outr'ora
brilhou ao sol das batalhas com deslumbrante
fulgor, não póde jazer inerte a um canto do meu
solar, em quanto as achas de armas dos meus compatriotas
escrevem nas paginas de pedra, das fortalezas
moiriscas, a historia sanguinolenta da
ressurreição dos
godos. Bem vês, Branca, é um penoso dever; mas
devo
cumpril-o.
―E o nosso amor, Raymundo!―balbuciou a donzella,
afogada em lagrimas.
―Oh! cala-te, Branca, não vês que me
despedaças
o coração? Queres que eu perca o animo, queres
que
o puro azul dos teus olhos me faça esquecer que existe
outro céo, outra ventura que não seja o teu amor,
outro
dever que não seja o adorar-te? Não, Branca,
não
ordenes a minha deshonra; a tua imagem seductora
será a estrella que me ha de guiar no caminho da gloria.
Quaes serão as façanhas para mim impossiveis,
pensando que o teu sorriso será a recompensa do meu
valor, e que será a tua mãosinha branca e mimosa
que
me ha de limpar na fronte o suor dos combates e das
luctas sanguinolentas?
―Mas quem sabe, Raymundo, tornou Branca, erguendo
para elle os olhos radiantes, ainda humedecidos
das lagrimas que
derramára; quem sabe se
n'esses
paizes longiquos não encontrarás alguma formosa
dama
cujos encantos te farão depressa olvidar a imagem da
triste Branca, que dizes ter gravada no coração?
Oh!
meu Deus, que horrivel idéa! Se tu me esquecesses...
―Que fazias, Branca?
―Morria!―tornou ella com resolução.
Raymundo apertou-lhe a mão e levou-a ao p
Raymundo apertou-lhe a mão e levou-a ao pé do
crucifixo. Alli, erguendo os olhos para o rosto divino
[63]do Christo
crucificado, bradou com voz solemne e altiva:
―Juro diante de Deus que morreu pregado na cruz
para remir os homens do peccado original, juro guardar-te
sempre fé inteira e immutavel, como te juraria
se um sacerdote nos abençoasse ao pé do altar.
És minha
esposa diante de Christo. Cáia sobre mim a
vingança
do céo se atraiçoar o meu juramento.
―Oh! obrigada, Raymundo, obrigada, clamou a donzella,
lançando-se com immenso ardor nos braços do
mancebo e derramando copiosas lagrimas; tambem eu
juro amar-te sempre, meu Raymundo, amar-te com
inalteravel constancia, não viver senão com a tua
imagem,
não pensar senão em ti, meu unico amor. E agora
parte, accrescentou ella, erguendo-se com inesperada
resolução, vae conquistar um nome glorioso; a
benção
de Deus vae comtigo, porque os nossos anjos da guarda,
abraçados e de joelhos ao pé do throno do Senhor,
rogarão a Deus que proteja os esposos, cuja união
foi
abençoada pelo Crucificado, saudada pelos canticos da
alvorada, perfumada pelos thuribulos das flôres, illuminada
pelos raios do sol nascente!
Raymundo apertou-a ao peito com enthusiasmo; deu-lhe
na fronte, com timidez, um beijo, e montando n'um
cavallo que o esperava a pouca distancia, seguro por
um pagem, partiu, dizendo com ardor:
―Adeus, minha gentil esposa!
―Adeus, meu adorado esposo!
Estas palavras pronunciára-as ella, caindo ajoelhada
aos pés da cruz. O perfume das flôres, o canto dos
passarinhos, o rumorejar das folhas, a luz pura e serena
do sol, tudo parecia abençoar o seu amor. Unicamente
[64]no momento da
despedida, uma nuvem ligeira
passou por diante do astro do dia e offuscou-lhe um
pouco o brilho.
Ai! Branca, timida Branca, nos momentos de felicidade
uma ligeira nuvem é indicio temeroso de tempestade!
II
«Passaram-se mezes e mezes―continuou o João;
veiu o outono desfolhar as arvores, e estender sobre a
terra o seu manto de tristezas; depois o inverno gelado
agrupou as familias ao canto da lareira; voltou a primavera
sacudindo sobre os campos o seu regaço cheio
de flôres e verduras, voltaram as longas tardes do estio,
e o sol ardente de agosto veiu de novo doirar os
pinheiros que ensombravam a cruz do precipicio; e nem
a triste Branca recebia noticias do seu noivo, nem Inigo
Paes a podia consolar com outras novas, que não fossem
as que, logo pouco depois da partida de Raymundo,
tinham sido trazidas por um fidalgo que voltava das
terras do Algarve.
Contava elle que vira n'uma renhida escaramuça o filho
de Inigo Paes estreiar-se no arduo mister do lidador
d'aquellas eras. A estreia fôra digna do nome honrado
de seu pae. Contava o fidalgo que o tinha visto arrojar-se
aos moiros com valor sobrehumano, e abrir com
a acha de armas um largo e sanguinolento sulco nas
fileiras mahometanas. Quando, no fim da escaramuça,
Raymundo Paes passou de viseira levantada junto dos
prisioneiros, estes, vendo o rosto delicado, o buço que
lhe assombreava levemente o labio superior, e a belleza
[65]quasi feminil do
mancebo, não queriam acreditar que
fosse o mesmo que praticára prodigios de valor, e ante
o qual as cimitarras moiriscas voavam em lascas, decepadas
pelo montante que parecia manejado pelo braço
de robusto montanhez.
Estas noticias encheram de orgulho o coração
paternal
do velho guerreiro. A Branca não succedia o mesmo.
As façanhas que enthusiasmavam Inigo Paes, faziam
receiar á gentil donzella que Raymundo, arrastado
pelo seu ardor juvenil, fosse encontrar a morte no gume
afiado de um alfange mahometano.
Assim correram os mezes, e as rosas do rosto de
Branca desbotavam, desbotavam até se trocarem nos
lyrios que a desesperança ia fazendo brotar nas faces
da donzella.
E Raymundo? Valente cavalleiro, não
ha proezas que
absolvam um perjuro, nem as indulgencias, concedidas
pelo santo padre aos defensores da fé, são
sufficientes
para arredar de cima da cabeça do sacrilego o raio fulminado
pela mão do Omnipotente.
Raymundo Paes, Raymundo Paes, que demonio fatal
te arrojou aos pés da cruz, e te dictou o terrivel
juramento,
que havias de esquecer tão cedo? Ai! cavalleiro,
ainda o vento do outono não desfolhou a verde grinalda
que enramava a cruz do precipicio, e já o vento
da inconstancia fez murchar o candido affecto que floria
em teu peito, e que juráras conservar tão puro e
tão
sem mancha, como era pura e immaculada a imagem
d'aquella que t'o inspirou.
Ai! Branca, timida rôla, que, escondida na espessura,
a sós com as tuas tristezas, pranteias a ausencia
do ingrato que te esqueceu, mal sabes tu que, em
[66]quanto fitas o
olhar melancholico na lua pallida como o
anjo da saudade, e pareces perguntar-lhe mudamente
se o teu olhar se cruza no espaço com o olhar saudoso
do teu gentil campeão, elle, o perfido, o perjuro, o
sacrilego,
esquece nos braços de outra o teu amor de
virgem, o teu modesto encanto, as tuas graças
infantís.
Durante os primeiros tempos, as meigas
recordações
do seu amor de creança arderam dentro d'elle tão
vivas
e tão serenas, como arde viva e serena a lampada do
altar no recinto sagrado da egreja christã; se uma
tentação
má lhe surgia no animo, e lhe mostrava á luz de
um relampago infernal mundos desconhecidos de prazer
vertiginoso, era logo repellida pelo saudoso mancebo,
que conservava o coração perfumado de innocencia,
como sanctuario florido, onde o christão abriga devotamente
a imagem da Mãe do Salvador.
Era por uma noite sombria, calada e mysteriosa, noite
propria como nenhuma outra para emboscadas e ardis
de guerra. N'essa noite, n'um alcaçar moirisco, situado
em terras do Algarve, dormiam socegados os perros
descridos, confiados na vigilancia das atalaias, e certos
que os rudes batalhadores de Christo, vencidos do cansaço,
concederiam involuntariamente treguas aos filhos
de Mafoma. Os almogavares, voltando das suas excursões,
não tinham trazido novas de movimento algum no
exercito christão. Dormiam as almenaras no cimo das
montanhas, e a atalaia, vigiando no alto da torre, não
estremecêra vendo uma pluma de fogo accender-se de
repente, e, ondulando nos ares, dar signal da
apparição
dos nazarenos. Quão enganados estavam, e essa
[67]serpente de ferro,
que se enrosca ás muralhas da fortaleza,
vae acordal-os inesperadamente do seu somno
voluptuoso!
De repente o grito de S. Thiago é ávante!
echôa nas
barbacans do alcaçar, e as sentinellas, caindo apunhaladas
sem terem tempo de soltar um grito, pagam com
a vida a sua indolencia descuidosa.
Que scena de confusão no meio das trevas! Os gemidos
dos moribundos, os gritos das mulheres, as blasphemias
dos guerreiros surprehendidos cruzam-se com
os gritos de victoria dos cavalleiros portuguezes. Apenas
de quando em quando um ou outro arabe mais destemido
arranca da cimitarra, e faz brotar centelhas instantaneas,
cruzando-a com o pesado montante christão.
Não tem quartel os vencidos; os vencedores sequiosos
de sangue transformam n'aquelle momento o valor do
guerreiro na ferocidade do assassino. Eras de barbaridade!
Já vão longe, felizmente.
Raymundo vae entre elles. Embriagado pela carnificina,
descarregava ás mãos ambas a acha de armas
sobre os que pretendiam fugir á sorte de seus
irmãos.
De repente um vulto feminino roja-se-lhe aos pés,
suspende-lhe o braço já levantado para
descarregar o
golpe, e com uma voz melodiosa como o sussurrar da
brisa nos ramos do salgueiro, murmura em portuguez:
Perdão!
A lua, que até ahi se conservára escondida entre
nuvens,
desembaraçou-se afinal do seu manto sombrio,
e veiu acariciar com os raios da luz serena as faces
tostadas da arabe gentil.
Nunca Raymundo vira um rosto tão diabolicamente
tentador! Eram uns labios onde se viam arfar promessas
[68]voluptuosas de
beijos delirantes. Eram uns olhos negros,
onde brilhavam as chammas do desejo, as labaredas
infernaes da tentação! Eram as tranças
negras
fluctuando sobre o collo nú, que a brisa beijava com
delirio, roubando-lhes perfumes inebriantes, que vinham
enlouquecer o ingenuo amador da casta Branca. E elle
sentiu a febre do desejo a vir escaldar-lhe o sangue,
sentiu uma ignota anciedade vir opprimir-lhe o peito.
Era o terrivel despertar dos sentidos n'um rapaz de
dezoito annos. Eram as tentações da
voluptuosidade,
eram as commoções do prazer sensual, era um
demonio
desconhecido que lhe vinha murmurar ao ouvido os
vagos encantos de mysteriosos amores.
Raymundo sentiu o perigo, e quiz afastar-se d'elle.
Repelliu-a, e, invocando a imagem de Branca, quiz fugir
da tentação fatal; mas a moira, enroscando-se a
elle, como a serpente se enrosca ao corpo do homem
fascinado pelo poder invencivel do seu olhar, murmurou:
―Não me deixes, nazareno. Os teus olhos são
negros
como noite sem estrellas; mas são transparentes
como o espelho das aguas. Porque havias tu de ser
cruel como a hyena do deserto, se és bello e magestoso
como o leão das selvas? Olha, sou tão nova! Ainda
a amendoeira não floriu vinte vezes, desde que minha
mãe me apertou pela primeira vez ao seio palpitante.
Salva-me, salva-me e serei a tua escrava. Servir-te-hei
de joelhos como a meu senhor e amo, cingir-te-hei a
armadura, adivinharei os teus caprichos, e adorar-te-hei
como adoro o propheta de Medina. Ouves? Filho
dos christãos, salva-me, salva-me!
―Deixa-me, tentação do demonio, bradava Raymundo
[69]com voz
balbuciante; deixa-me, anjo das trevas;
deixa-me, enviada de Satanaz.
―Não, tornou a amaldiçoada, approximando os
labios
vermelhos como a flôr de romanzeira dos labios de Raymundo.
Sou bella, e amo-te! Sou tua, e tu és todo meu,
porque te vejo torcer desesperado nos braços de fogo
do prazer. Amas-me, e eu... sou tua.
―Amo-te, amo-te, bradou Raymundo, caindo oppresso
aos pés da musulmana.
Ai! Branca, timida Branca, chora o teu amor profanado!
N'esse momento fatal o anjo da guarda do teu
amante velou com as mãos o rosto celestial, que as lagrimas
inundavam, e foi, suspenso n'um raio da lua,
prostrar-se aos pés do throno do Omnipotente!
Entrado na senda da perdição, não
havia poder humano
que salvasse Raymundo da condemnação eterna.
Tinha vendido a sua alma por um beijo de fogo, e trocára
o paraizo pelo inferno da voluptuosidade. Profanado
o terrivel juramento, o que havia de sagrado para
Raymundo? O que importava a honra de cavalleiro a
quem prostituira a santa crença de seus paes?
Apagára-se
a candida estrella que o guiava nas trevas da
existencia, e a luz, que o fascinava, scintillava nos olhos
negros de Zoraida, a gentil amaldiçoada. Se tinha reflexos
infernaes, tinha tambem o esplendor prestigioso
da tentação sensual.
Desde essa noite ninguem mais soube d'elle. Diziam
que renegára, e que, enlaçado nos
braços da musulmana,
fechára os olhos á luz do christianismo, e se
arrojára
ao abysmo infernal, onde ha o fogo eterno e o
eterno ranger de dentes.
Foram estas as noticias que Branca recebêra, no dia
[70]
em que fazia um anno que Raymundo a deixára. Não
disse palavra ao receber a nova fatal. Saiu e caminhou
pallida, hirta e vagarosa como estatua adormecida n'um
tumulo, que, obedecendo a feitiço desconhecido, se erguesse
do seu leito de pedra, e se dirigisse muda para
o sitio aonde a chamava a attracção mysteriosa.
Os aldeãos, que a encontravam, paravam para a saudar.
Mas ella nem os ouvia, nem parecia vêl-os. Costumados
á amabilidade da fidalguinha, ficavam os coitados
boquiabertos, ao vêrem a desusada
distracção. Mas,
se lhe reparavam nas feições demudadas, vendo a
pallidez
de marmore, os labios brancos e entre-abertos, os
olhos fixos e esgazeados, benziam-se devotamente, e
murmuravam que era mau olhado que tinham dado á
menina do castello.
Assim caminhou até chegar ao sitio do Açude.
Ajoelhou
junto da cruz, e um aldeão, que a seguia de longe,
viu-a rezar muito tempo, e abraçar os pés do
Crucificado.
Depois, chegou á beira do precipicio, e sem
hesitação,
sem fraqueza, despenhou-se no abysmo. O corpo
gentil ennovelou-se nos ares, e foi despedaçar-se
nas pedras da cascata, espirrando ondas de sangue
que tingiram de purpura o manto de espuma que envolvia
as rochas. As aguas do rio abriram-se para tragar
o cadaver, e depois continuaram indolentes a correr,
e a murmurar o seu eterno cantico, como se não
se tivesse escripto alli o epilogo de um drama desventurado.
O aldeão, que vira de longe a scena fatal, sem poder
obstar ao seu inesperado desenlace, fugiu dando um
grito de horror, e foi contar ao castello o que presenceára.
Quem perdeu alguma vez, de modo tão terrivel,
[71]um ente
estremecido, avalie a dôr do triste pae de
Branca. Eu não a sei narrar. Sente-a o
coração, mas
os labios recusam-se a exprimil-a. Veiu depois gente
do castello, e tiraram do fundo do precipicio o cadaver
horrivelmente desfigurado da gentil donzella. Enterraram
os restos d'aquella pobre martyr aos pés do Crucificado,
que ouvira a sua ultima prece, e a quem pedira
talvez perdão do crime que ia commetter. Plantaram
ao pé da cruz roseiras e madresilvas, cujo perfume
suavissimo ia levar ao longe a ultima recordação
da que
tivera na terra a corôa da innocencia, e tinha agora nos
céos a palma do martyrio.»
―Pobre rapariguinha, interrompeu o mestre lagareiro
com mostras de penalisado, dar cabo de si por
causa d'aquelle patife!
―Então que quer vossemecê,
sô Manoel dos Reis,
coisas que acontecem, tornou o narrador, ninguem póde
fugir á boa ou má sina, que Deus lhe deu. Era
aquella
a sorte de Branca, havia de cumpril-a.
―Vamos á historia, vamos á historia, bradou
José
Augusto, com enthusiasmo! Que fez Raymundo? O que
aconteceu a Zoraida? Quero saber quem é por fim de
contas o phantasma do Açude.
«Raymundo, meu fidalgo, não via senão
Zoraida
n'este mundo. Um capricho d'ella valia mais do que
um mandado de Deus.
Christão tripudiou com a infame sobre a cruz
despedaçada
do Redemptor; cavalleiro, quebrou a espada
de seu pae para que esse espelho de honra não lhe
reflectisse
constantemente toda a hediondez do seu crime,
fidalgo e portuguez, salpicou de lama o brazão de seus
maiores, e abandonou a defeza da patria, quando ella
[72]reclamava o auxilio
de todos os seus filhos. Aqui está
o que se póde chamar um amor de
perdição!
Uma noite chovia agua se Deus a dava, o vento fazia
tremer as casas, e curvava até ao chão os
pinheiros
agigantados! A trovoada estalava com medonho estampido,
os relampagos cingiam a terra com o seu cinto de
chammas, e os raios vinham de vez em quando, lascando
as rochas, transformar as arvores em archotes colossaes.
O temporal era como nunca se tinha visto n'esta
terra, nem nunca mais se tornou a
vêr, porque todos
dizem que a procella d'aquella noite era obra de Satanaz.
No Açude principalmente era medonho o aspecto
da tormenta. O rio furioso arrojava borbotões de espuma,
que se cruzavam com os raios, que vinham lamber
as rochas com as suas linguas de fogo. Deus me
perdôe, mas o temporal de hoje tem algumas
parecenças
com a tempestade d'essa noite infernal. Quer-me
parecer que tambem hoje anda fazendo das suas o inimigo
do genero humano.»
Um calafrio de horror correu pela assembléa. Todos
se chegaram mais para o pé do lume, e olharam uns
para os outros benzendo-se silenciosamente ao passo
que lá fóra gemia o vento com voz soturna na
porta
carunchosa do lagar.
«N'essa mesma noite Raymundo e Zoraida atravessavam
a cavallo o pinheiral que termina no Açude. A
reprovada de Deus folgava com noites tempestuosas,
e nunca se sentia tão bem como quando os raios lhe
illuminavam a estrada, e o trovão respondia magestoso
á sua voz blasphema.
―Olha a cruz do nazareno, bradou Zoraida quando
chegaram á cruz do precipicio; não vês,
Raymundo,
[73]como a chuva
açoita irreverente o rosto do martyr do
Calvario! Porque não transforma elle os raios, que fulminam
a cruz abandonada, em cimitarras de fogo que
façam rolar a seus pés a cabeça da
condemnada, da filha
de Mahomet?
E ella ria,―ria com umas gargalhadas estridentes,
que vibravam sinistras dominando os ruidos da
tempestade,
e que, repercutidas pelos echos do abysmo, tinham
um não sei quê de infernal. Raymundo estremeceu.
―Não zombes d'esta cruz, respondeu elle com modo
sombrio; quando eu era innocente―e suspirou―vinha
aqui ajoelhar muita vez. Não zombes d'esta cruz,
peço-t'o.
Zoraida fitou por muito tempo n'elle o seu olhar aveludado,
fascinante, diabolico e tentador. Era incomprehensivel
a magia d'esse olhar, e mais incomprehensivel
ainda o dominio que exercia no moço cavalleiro.
Dir-se-ia que dois sentimentos oppostos combatiam no
coração de Raymundo: de um lado a repugnancia, a
rebellião da vontade, do coração, do
espirito contra
aquelle demonio oppressor; do outro lado uma
attracção
irresistivel, fatal, que o arrastava a seu pesar, e o
prostrava aos pés da musulmana.
Venceu o anjo mau. Raymundo curvou-se sobre o
pescoço do cavallo, ebrio de amor ou de desejos fitou
um olhar frenetico nos olhos de Zoraida, e quando ella,
com um sorriso de escarneo, se approximou da cruz, e
cuspiu no rosto do Crucificado!... elle, vencido pelo
demonio, imitou-a, rindo com um riso convulso e doloroso,
que fazia horror.»
―Jesus!―bradaram os circumstantes.
[74]
O vento abriu a porta do lagar, e á luz de um relampago
viu-se o campo devastado pelo vendaval e inundado
pela chuva; um trovão medonho fez benzer todos,
e emmudecer o narrador. Chegaram-se mais ao lume,
e olharam uns para os outros. Estavam todos pallidos
e tremulos.
―Aconteceu exactamente o mesmo que aconteceu
agora, continuou o João Moedor com a voz a tremer-lhe
um pouco; a luz de um relampago deixou vêr uma loisa
aos pés da cruz, e o nome de Branca inscripto sobre a
pedra. Um trovão formidavel ribombou sobre a
cabeça
dos dois amaldiçoados, e a campa estalou como se fosse
de vidro. O phantasma de Branca, involto em candidas
roupas, e com a fronte cingida de rosas virginaes, ergueu-se
da sepultura, fazendo recuar Raymundo horrorisado.
Este quiz desviar a vista, e o phantasma seguiu
o movimento dos seus olhos; quiz tapar o rosto com as
mãos, e as mãos fizeram-se-lhe transparentes,
deixando
vêr ainda a imagem da donzella serena como uma santa,
triste como uma martyr, impassivel como o destino.
Quiz enterrar os acicates nos ilhaes do cavallo, e o cavallo
esvaiu-se como fumo, adelgaçando-se, e escapando-lhe
por entre os joelhos, como um pedaço de neve
que o sol derrete nas montanhas. Raymundo deu um
grito de horror, e estacou petrificado.
Então voltou os olhos para Zoraida, e ficou aterrado
da transformação da sua amante. O rosto, cuja
belleza
o fascinára, fizera-se negro, mais negro do que o
carvão.
Scintillavam os olhos como duas brazas, e nos labios
volteava-lhe um sorriso de ironia. O braço assetinado
que beijára tanto, estendia-se para elle terrivel e
ameaçador. Raymundo, por um esforço supremo de
vontade,
[75]recuou
dois passos, mas o braço estendeu-se,
estendeu-se,
tornou-se desmesurado e apertou-lhe o pescoço,
queimando como se fôra uma tenaz ardente.
―Não me foges, bradou ella com voz rouca, vendes-te-me
a tua alma, renegado. Segue-me, segue-me.
Pertences-me. Vem, que o inferno celebra hoje o nosso
noivado. Os raios são os fachos do hymeneu, e Lucifer
o sacerdote. Vem, é este o leito nupcial.
E, arrastando-o com uma força irresistivel, precipitou-se
com elle no abysmo. Um clarão avermelhado illuminou
as aguas da torrente, que exhalaram um cheiro
nauseabundo de enxofre.
Mas o phantasma de Branca ficára ajoelhado aos
pés
da cruz, implorando o perdão do condemnado. No rosto
de Christo, suavemente illuminado, resplandecia um
vago arraiar precursor da aurora da misericordia.
Apenas Zoraida desappareceu, desfez se o encanto.
Serenou a tempestade, e a brisa perfumada da noite
veiu timida brincar nas rosas do tumulo de Branca.
Mas ainda hoje, em dias de vendaval, se vêem duas
sombras terriveis correndo para o precipicio, uma horrorisada,
tremula, arrastada, a outra com uma alegria
feroz no semblante. Aos pés da cruz vem então
ajoelhar
uma sombra com o rosto inundado de lagrimas celestiaes.
É que Raymundo ainda está cumprindo as penas do
purgatorio, e Branca, o anjo do Senhor, sem deixar de
implorar a misericordia divina para aquelle que tanto a
fez soffrer, mas a quem tanto amou!
[76] ―Era inevitavel,
disse, rindo, Lucio Valença depois
de feitos os cumprimentos do estylo, eu estava já prevendo
que iamos descambar em plena edade média. O
nosso amigo Roberto Soares não póde dispensar-se
de
consagrar um vivo affecto ás couraças da sua
adolescencia,
e ás achas d'armas da sua creação.
Fez-nos
voltar para 1830 o nosso bom amigo.
―E não era epocha tão má como isso a
tal de 1830,
disse Roberto Soares. Abusava-se do veneno e do punhal
e dos solares e das chacaras e dos cavalleiros que
voltavam da cruzada, mas, como dizia Musset, um dos
romanticos do tempo:
Hugo portait
déjà, dans l'âme
Notre-Dame,
Et commençait à
s'occuper
D'y grimper.
―Não ha duvida, não ha duvida, acudiu o doutor
Macedo, e Lucio é de certo o primeiro a prestar homenagem
a essa epocha da potente efflorescencia litteraria;
mas, por Deus, tornou elle interrompendo-se com
espanto, está já vencida a meia-noite; a sr.
a
D.
Isaura
adormeceu!
Era verdade; Isaura, que não tinha de
predilecções
litterarias senão o
quantum
satis para ser senhora da
moda, enfastiada já d'estas repetições
de historias phantasticas,
resistira um momento ao somno que a perseguia,
mas, quando se entrára na historia dos amores
de Raymundo e Zoraida, fôra a pouco e pouco encostando
a cabeça para traz, e adormecera profundamente.
―Podéra, pensou de si para si o nosso Henrique
Osorio, teimando em vêr em Isaura uma menina toda
[77]idealisadora, e
capaz de apreciar os mais elevados prazeres
do espirito, podéra! Eu mesmo me vi em ancias
para resistir ao somno. Quem atura hoje um d'estes
soláos cançados e gastos que deliciaram a velha
geração,
com os seus cavalleiros de armas negras, e os
seus diabos disfarçados em mulheres formosas, e os
seus fidalgos que venderam a alma a Satanaz como na
Dama Pé de Cabra, de
Alexandre Herculano, ou na
Torre de Caim, de Rebello da Silva?
Isso foi bom no
seu tempo, hoje está longe do maravilhoso moderno, e
Isaura, com a fina intuição do seu juvenil
espirito, não
pôde commover-se com esses velhos
trucs de magica,
resuscitados ingenuamente pelo Roberto Soares para
nos entreter á meia-noite.
Emquanto Henrique Osorio fazia de si para si esse
monologo, Leonor acordava a sua amiga, que, abrindo
sobresaltada os olhos, foi acolhida por um riso jovial de
todos os seus companheiros de noitada.
―Venceu-se ou não se venceu? dizia o doutor Macedo.
Veja v. ex.
a se hoje lhe produziu a mais leve
impressão
a meia-noite, e se lhe deram muito cuidado os
phantasmas.
―Ah! meu Deus, eu peço-lhes mil desculpas, disse
Isaura um pouco envergonhada. É que estou fatigada
das noites passadas em claro, porque o peior não
é
aqui, o peior é depois quando vou para o meu quarto.
Custa-me a conciliar o somno, e vem ás vezes pesadelos
terriveis perturbar o meu dormir inquieto.
―Minha senhora, exclamou, rindo, o doutor Macedo,
nem tudo são rosas no tratamento de uma enfermidade.
Pois v. ex.
a não sabe que
são muitas vezes
amargos os
remedios salutares? Então julgava que, para ter uma
[78]cura radical,
bastava-lhe ouvir aqui
lêr contos, n'uma sala
confortavel, cheia de luz, a dois passos do seu papá, e
apertando a mão da sua amiga? Nada! nós aqui
doiramos-lhe
a pilula. Se depois lhe sente no seu quarto o
amargor, paciencia! Mithridates é de crêr que
tambem
não achasse aos venenos o gosto da ambrosia. Afinal
bebia-os como quem bebe agua. V. ex.
a hontem
dormiu
mal, hoje ha de dormir melhor, d'aqui a dois dias
chega a tornar-se-lhe necessaria uma historia de phantasmas
para adormecer profundamente.
―Ah! doutor, eu ao menos peço treguas. O sr. Henrique
Osorio, hontem, com a sua alameda transformada
em cemiterio, e com essa mulher pallida
desenterrada,
atacou-me os nervos de tal fórma que fiquei
devéras
enferma. Cheguei a suppôr que eu mesma era uma defunta.
O proprio Henrique Osorio é que ficou devéras
atordoado!
Decidídamente Isaura não lhe perdoava a
creação
do typo de Julieta que elle julgava que tanto devia
lisongeal-a. Persistia em acreditar que elle não tivera
outro intento senão o de lhe chamar desenterrada.
―Minha senhora, disse elle, eu sinto realmente profundissimos
remorsos por ter assim concorrido involuntariamente
para a magoar. Creia v. ex.
a que a minha
intenção era boa, continuou elle em voz mais
baixa; se depuz a seus pés um ramalhete de goivos
em vez de um ramalhete de rosas, foi porque as flôres
funereas eram as unicas que a nossa regra me permittia
que colhesse.
Isaura era
coquette, e, sentindo
n'esta phrase um
aroma de galanteio, vibrou a Henrique um olhar fascinador.
N'este momento, porém, o doutor Macedo levantou-se,
[79]e, depois de ter
pedido licença para ir accender
um charuto, cantarolou, puxando uma baforada de
fumo, com musica desconhecida, esta quadra de Thomaz
Ribeiro:
Trazes agoirento goivo
prezo em negros passadores!
Disse-te acaso o teu noivo
que tinhas novos amores?
―O dr. Macedo, murmurou Isaura, voltando-se para
Henrique Osorio com uma expressão no olhar muito
diversa da que primeiro lh'o illuminára, o dr. Macedo
está-me explicando involuntariamente o sentido da sua
offerta do ramalhete de goivos. É um epigramma,
sr. Osorio?
―Minha senhora, respondeu Henrique desesperado,
estou por tal fórma infeliz com v. ex.
a!
V. ex.
a
interpreta
de um modo tão singular todas as minhas palavras,
e todas as minhas acções, que desisto de as
explicar
de um modo satisfatorio.
Estava verdadeiramente mortificado. Levantou-se
comprimentando seccamente a sua interlocutora. Dirigiu-se
a uma janella e abriu-a para respirar mais á
vontade. As reclamações dos circumstantes
obrigaram-n'o
a fechal-a de novo. Isto ainda mais o desesperou.
Estavam-se fazendo as despedidas. Leonor, ao
passar junto d'elle, disse-lhe com um riso malicioso, e
em voz baixa:
―É para que tu saibas o que valem os galanteios
funebres.
―Olha, sabes que mais, Leonorsinha? tornou Henrique
bruscamente, occupa-te das tuas bonecas.
[80]
A pobre senhora sentiu a dôr profunda do golpe.
Recuou um passo, levou a mão ao
coração, e marejaram-lhe
nos olhos duas lagrimas.
―Perdão, menina, acudiu Henrique, caindo em si.
―Estás perdoado, respondeu Leonor com voz fraca,
mas... mas como tu a amas!
Saiu. Se se demora mais um instante, rebentavam-lhe
os soluços mesmo diante de Henrique.
O doutor Macedo, ao passar por diante de Osorio,
parou, e disse declamatoriamente:
Si je vous le disais pourtant que je vous aime,
Qui sait, brune aux yeux bleus, ce que vous en
diriez?
―Está fallando por enigmas poeticos, doutor, exclamou
Henrique impaciente. Quer fazer concorrencia
ao
Diario Illustrado, ou ao
Jornal da Noite?
―Não, disse o doutor, quero apenas dizer, com palavras
de Alfredo de Musset, que passam muitas vezes
duas pessoas ao lado uma da outra, sem saberem os
sentimentos que vivem nas suas duas almas, e que, se
ousassem exprimil-os, voariam a encontrar-se.
―A solução no proximo numero, não
é verdade,
doutor? tornou Henrique, impaciente.
―Talvez, redarguiu o doutor.
E saiu, ao passo que Henrique Osorio encolhia os
hombros com desdem.
Na seguinte noite, antes de chegar a hora fatidica,
o doutor Macedo pediu a palavra.
[81] ―Minhas senhoras e
meus senhores, disse elle, desenrolando
um manuscripto, se não espero o bater da
meia-noite, é porque o romance que vou lêr precisa
de
um prologo, e á meia-noite em ponto o que deve entrar
em scena é o elemento phantastico. Seja dito sem envolver
nem a mais leve censura aos illustres preopinantes
que se afastaram d'esta regra. Não é meu este
romance, o seu auctor deseja conservar o incognito...
―São prohibidas as substituições,
bradou Lucio,
rindo, serviço obrigatorio!
―Mau! Não me interrompam! O auctor é um dos
nossos collegas, não direi mesmo se está
presente. Faz
o seu serviço, mas provisoriamente quer conservar a
mascara. Ora diz Gennaro na
Lucrecia
Borgia, pouco
mais ou menos, o seguinte: A mascara de uma senhora
é tão sagrada como a face de um homem.
É assim ou
não é, Soares? É assim, romantico?
―Será, mas o que d'ahi deduzo é que o auctor
é
uma das nossas amaveis companheiras de serão.
―As conjecturas são permittidas, mas vae dar a
meia-noite, e eu, conformando-me com os preceitos do
regimento, passo a lêr a
Egreja
profanada.
No meio do mais profundo silencio, em que se sentia
a avida curiosidade dos ouvintes excitada pelo mysterio
em que se envolvia o conto, o doutor, que lia
admiravelmente, começou assim:
A EGREJA PROFANADA
I
Corre socegada a noite, mas não brilha a lua no
céo
a espargir tristezas, escondendo um devaneio, um sonho
de poeta em cada uma das pregas da sua candida
tunica; scintillam apenas as estrellas no véo escuro do
firmamento.
Formosas são as noites estrelladas, mas não teem
a
suave melancolia das noites de luar; enleva-se-nos o
espirito ao contemplar essas myriades d'orbes luminosos;
porém os raios da lua teem uma linguagem mysteriosa
que nos falla ao coração.
Quando no véo nocturno brilham sem rivaes as estrellas,
como que percebemos a magestosa melodia das
espheras; mas, quando a lua illumina a terra com a sua
doce luz, ouvimos então no espaço vagos canticos
de
saudade, suspiros de virgem enamorada, canto de pescador
que se perde ao longe nas ondas, toada de Quando no véo
nocturno brilham sem rivaes as estrellas,
como que percebemos a magestosa melodia das
espheras; mas, quando a lua illumina a terra com a sua
doce luz, ouvimos então no espaço vagos canticos
de
saudade, suspiros de virgem enamorada, canto de pescador
que se perde ao longe nas ondas, toada de pegureiro,
[84]que vem
desfallecida expirar no nosso ouvido,
intimas melodias, que nos dizem: «amor e tristeza.»
Porque as estrellas são desdenhosas rainhas d'outros
céos, sóes de outros mundos, que nos enviam, como
que
por descuido, um signal de sua grandeza, um tenue
raio da sua immensa luz, em quanto a lua é a extremosa
amante, que prendeu á nossa a sua existencia, a
companheira que nos segue incessantemente n'essa viagem
sem fim, que emprehendemos pelo espaço.
As estrellas tornam mais profunda a solidão, e mais
espessas as trevas. Os bosques, os valles, as montanhas
conservam-se envoltos n'um véo sombrio, por mais
que os raios dos sóes da noite se esforcem por penetrar
na escuridade; as ondas baloiçam com indifferença
os seus reflexos, e não fazem caso das palhetas doiradas
que avivam aqui e ali a candidez da sua fimbria espumosa.
Mas, quando surge a lua, a natureza anima-se. Desperta
a viração nos antros perfumados das florestas,
que exhalam vivissimos aromas. As fadas vem pentear
as suas loiras tranças no espelho das fontes, cuja
crystallina
superficie palpita de prazer. Jorram torrentes de
prata pela falda dos montes, scintillam diamantes na folhagem
das arvores. Erguem se as ondas em vago
enleio
de voluptuosidade, como seio de virgem que arfa
pela vez primeira. Rescende o meigo perfume no thuribulo
da violeta. Rescende a saudade no thuribulo do
coração.
As estrellas são os anjos de Deus, que entoam lá
ao
longe, nas profundidades do Empyreo, o hymno ás glorias
do Eterno; a lua é o archanjo consolador que presta
um ouvido compadecido aos lamentos da humanidade.
[85]
As estrellas são os candelabros de oiro, que ardem
constantemente diante do throno do Altissimo; a lua é
a urna argentea onde se transformam as lagrimas dos
que soffrem em perolas, que os anjos entornam no regaço
do Omnipotente.
As estrellas são o enlevo do philosopho, a lua é
enlevo
de poetas.
Porque as estrellas revelam o poder de Jehovah, a
lua a caridade do Redemptor.
Mas vae a noite socegada, e a luz dos fachos da abobada
celeste scintilla frouxamente na face adormecida
do mar. As vagas erguem-se vagarosamente, enroscam-se
a pouco e pouco, caminham em longa fileira
para as praias, e alastram no areial o seu manto escuro.
Negra, bem negra está a superficie do Oceano; os
raios das estrellas, naufragos luminosos, debatem-se
com as ondas, que mal conseguem doirar. Do seio d'essas
trevas sae um gemido cavernoso. É a voz eterna
do liquido leão, é o rugir tranquillo mas
terrivel do
monarcha da immensidade.
Não param as vibrações nas espumosas
cordas da
harpa dos abysmos; ora plangente, ora formidavel, o
cantico incessante resôa no espaço.
E que diversidade de vozes não ha n'esse concerto
immenso! o magestoso ruido das ondas ao assoberbarem-se
lá no mar alto, o grito que resulta do embate
de dois d'esses colossos que se encontram, o uivo de
raiva que soltam quando espadanam nos rochedos da
praia, o suspiro amoroso que desprendem ao beijarem
o areial, o murmurio palreiro das gottinhas de agua ao
despedirem-se a custo das conchas das ribas, E que diversidade de vozes
não ha n'esse concerto
immenso! o magestoso ruido das ondas ao assoberbarem-se
lá no mar alto, o grito que resulta do embate
de dois d'esses colossos que se encontram, o uivo de
raiva que soltam quando espadanam nos rochedos da
praia, o suspiro amoroso que desprendem ao beijarem
o areial, o murmurio palreiro das gottinhas de agua ao
despedirem-se a custo das conchas das ribas, o lamento
que exhalam ao açoital-as o vento, tudo isto se resume
[86]n'um hymno sublime,
intraduzivel, como os poetas
os
sonham, mas não escrevem.
Ó mar! A opulenta imaginação da
antiguidade grega
povoou de sereias as tuas ondas, poisou no cimo d'estas
o velho Glaucus, com as suas barbas limosas, com
a sua voz aterradora, poisou no teu leito de espuma
ora a rosea concha Acidalia em cujo seio se abrigava a
candida Aphrodite, ora a seductora Lamia, ora as horriveis
Gréas, e nem assim conseguiu traduzir o indizivel
encanto com que nos attraes, e o vago terror que
nos incutes, a suavidade da tua voz, e a selvagem energia
dos teus hymnos! Ó mar immenso, que lyra
infeitiçada
te deu o Senhor, de que mysteriosa seducção
impregnou as tuas solidões?
Assim perdido nas trevas como é magestoso o Oceano!
Nem uma véla se distingue na immensidade solitaria!
Ainda n'aquelle isolamento, não descontinúa o
fadario das ondas! Vão, vem, atropellam-se, espraiam-se,
beijam se, desmaiam, agitam-se,
revolvem-se, cantam,
suspiram, e, lá ao longe talvez, algum scismador,
encostado ao peitoril da sua janella, ao ouvir aquelle
ruido ineffavel, pensa na eternidade, e em Deus!
Comtudo bem junto da praia, a pouca distancia de
uma casa cuja fachada branca mira silenciosa a eterna
agitação do Oceano, que envia ás
vezes, de enamorado,
uma das suas ondas a beijar-lhe os pés,
baloiça-se indolentemente
uma barca, onde dorme um pescador,
cujo somno é acalentado por esse murmurio suave.
As ondas embalam tão docemente o bote, como carinhosa
mãe póde embalar o berço do
recem-nascido.
A uma das janellas que se rasgam na fachada branca
da casa da praia, encosta-se um vulto de mulher. Em
[87]baixo
está um outro vulto varonil e elegante. Ouve-se,
por entre o concerto das vagas, o mysterioso segredar
de duas vozes.
Leandro e Hero, Rosina e Almaviva, Julieta e Romeu!
O bramir do mar abafa o manso ruido das vozes.
Mas o rugido do Oceano, e o flebil sussurrar dos namorados
chegam, em murmurio egual, ao throno do
Omnipotente: porque são duas notas do hymno immenso
do Universo, que se resume n'uma palavra «Amor.»
II
Tudo n'este mundo acaba, inclusivamente as doces
palestras enamoradas. Mais infeliz do que a desditosa
heroina de Shakespeare, a donzella da casa da praia
não pôde esperar que o grito matinal da cotovia
saudasse
o alvorecer. Ainda a noite não chegára ao meio
do seu giro, e já era forçosa a
separação.
Trocaram-se suaves promessas, mil vezes se affastou
o nosso Romeu da fachada branca, mil vezes voltou a
ella, como se as ondas, que lhe vinham quasi banhar
os pés, o arrastassem comsigo nas incessantes
ondulações
do fluxo e do refluxo.
Afinal a palavra «Adeus» escoou-se, como um timido
murmurio, pelos labios dos dois namorados; o elegante
moço affastou-se rapidamente, e, dando um pulo bem
calculado, foi cair em pé dentro do barco, que as ondas
baloiçavam.
Ao choque inesperado acordou em sobresalto o barqueiro.
[88]Ergueu-se
á pressa, e, depois de reconhecer
seu amo, fitou os olhos com certa inquietação no
céo
estrellado, chronometro infallivel dos homens do mar.
―Ah! senhor, disse elle com a voz entrecortada,
que tanto se demorou! É forçoso apressarmo-nos, e
não sei ainda se chegaremos a tempo á praia.
―Que medo tens tu, homem? perguntou o que embarcára,
sentando-se commodamente na pôpa do bote.
Está o mar de leite, e nem a mais ligeira brisa lhe agita
as ondas, nem uma nuvem ameaçadora assoma no horisonte!
As tempestades repousam, amigo!
―Não temo a procella, tornou o barqueiro, abanando
a cabeça; eu e o vendaval somos conhecidos velhos, e
não me assusta a tormenta em noite escura, nem receio
ser engulido pelas ondas! Assim como assim um homem
ha de morrer uma vez, e vale mais adormecer livremente
envolto n'esta mortalha de espuma, do que
ser cozido n'um lençol branco, e mettido em uma cova,
onde o nosso pobre corpo nem uma vez só se poderá
regalar com o cheiro da marezia! Mas ainda que a temesse,
não é n'uma noite d'estas que um velho marujo
receia a tempestade. V. s.
a tem
rasão: o mar
está de
leite, e o barco ha de deslisar tão commodamente por
sobre as suas aguas como uma carruagem por cima da
poeira da estrada real.
―Então o que te assusta, meu velho?
―Está quasi a dar meia-noite, senhor.
―Percebo! Receias que o fuso da tua companheira
não corra tão ligeiramente nas suas
mãos enrugadas,
de farta que esteja de te esperar. Socega, homem! Irei
eu mesmo acalmar as rabugices da Catharina, e prometter-lhe
uma estriga de linho para os serões do inverno.
[89]Verás
que a velhita ha de ficar tão
contente,
que nem pensará em ralhar comtigo por causa da desusada
demorada.
―Não esteja com cuidado na Catharina, senhor, que
ella bem sabe que me não demoro por culpa minha.
Oh! se sabe. Antes de ser velha desdentada já foi
moça
e louçã, e ha de se lembrar de como
nós esqueciamos
as horas, que passavam, ella sentada á porta da choupana
a concertar as rêdes de seu pae, eu assentado no
areial a fallar-lhe fallas de namoro, que lhe punham o
rosto mais vermelho do que uma rosa de maio. Ainda
não é isso, meu amo.
―Então o que é, finalmente? perguntou o seu
interlocutor,
já um tanto enfadado.
―É que não resulta bem algum ás almas
de dois
christãos de estarem assim no mar por estes sitios ao
bater da meia-noite.
―Porque?
O barqueiro olhou com inquietação em torno de si,
e depois murmurou em voz baixa que mal se ouvia:
―É por causa da
egreja
profanada!
O esbelto moço olhou espantado para elle.
Durante a conversação, o pescador
desamarrára o
barco, e, lançando mão dos remos,
déra-lhe um impulso
vigoroso. Jà estavam longe da praia, as ondas vinham
bater no costado do bote com um murmurio queixoso,
que acompanhava o som compassado do bater dos remos
na agua.
O pescador tornou a fitar o céo com
inquietação, e,
sem responder a uma nova pergunta do seu passageiro,
curvando-se para diante, metteu os remos nas ondas,
e, entezando depois os musculos vigorosos, fez, erguendo-os
[90]de novo, espadanar
uma cascata de espuma
de cada lado do ligeiro bote.
Este, como um corsel generoso, que ao sentir enterrarem
se-lhe nos ilhaes as esporas do cavalleiro, se empina
primeiro, depois, sacudindo as crinas, desata em
vertiginoso galope, e, saltando de um pulo uma onda,
que vinha orgulhosa para elle, deslisou por sobre as
aguas com incrivel rapidez.
Ainda o passageiro não tivera tempo de repetir a
pergunta, quando vibrou o espaço com as lentas pancadas
da meia-noite, que soava lá muito ao longe, no
sino de uma egreja situada á beira mar.
Produzia um effeito sinistro aquelle som distante.
Cada uma das vibrações vinha, em intervallos
eguaes,
expirar no ouvido dos dois navegantes, e casar-se melancolicamente
ao rugir contínuo das vagas.
O barqueiro deixou cair os remos, e bradou: «Jesus,
meu Deus!» O mesmo seu amo não se pôde
eximir a
um inexplicavel receio.
Ambos silenciosos, o barqueiro com os cabellos em
pé, o nosso enamorado com vaga curiosidade, e um tal
ou qual terror, contaram as lentas pancadas do bronze
sagrado.
Parece que aquellas vibrações não eram
produzidas
pelo simples sino de uma egreja, mas que fôra o anjo
das vinganças do Senhor quem fizera vibrar o bronze,
e quem lhe dera aquella voz sobrenatural e pavorosa.
Contaram uma... duas... tres... doze. A ultima
vibração assemelhava-se a um gemido terno, ao
uivo
lamentoso do genio da meia-noite, que, abrindo as suas
negras azas, annunciasse aos phantasmas o começo do
seu imperio.
[91]
O barqueiro, que se levantára, caíu de novo no
meio
do barco e escondeu o rosto entre as mãos; seu amo
soltou uma exclamação de espanto.
Um clarão avermelhado tingira subitamente as ondas,
como se um incendio começasse a lavrar no fundo do
Oceano. As vagas soltaram um gemido plangente, como
creanças açoitadas.
E um concerto horrivel, formado por muitas vozes,
erguera-se do fundo dos mares; e essas vozes cantavam
os psalmos da penitencia.
Mas as palavras, cheias de uncção, e impregnadas
de
tristeza das sublimes poesias do rei propheta, tomavam
uma accentuação ironica, como se passassem pelos
labios
requeimados dos anjos malditos.
No meio d'essas vozes roucas fez-se ouvir de repente
uma voz suave e argentina de mulher, doce como o gemer
da brisa nas solidões do Oceano, feiticeira como a
voz das seductoras sereias.
Mas aquella mesma doçura tinha um não sei
quê de
medonho, e n'essas melodias celestiaes reverberava-se
o fogo do inferno.
No meio das notas mais ternas, vibrava subitamente
uma outra aspera e dissonante, que produzia o effeito
que produziria no meio das harmonias da harpa o som
do estalar de uma corda.
E essa voz tinha ao mesmo tempo uma profunda tristeza,
uma plangente intonação, uma pungente ironia e
um não sei quê d'attraente e seductor que fazia
pensar
na fatalidade.
Os olhos do moço passageiro encheram-se involunta
Os olhos do moço passageiro encheram-se involuntariamente
de lagrimas, e com os braços estendidos, perdido
n'um vago extasi, parecia querer voar nas azas da
[92]melodia para o
antro sub-marinho, onde se aninhava a
infeitiçada sereia.
E a voz cantava:
Co'a vossa santa colera,
raio que fere e brilha,
ao impio que se humilha
não fulmineis, Senhor!
N'este meu seio embebe-se
a vossa frecha ardente,
e a mão omnipotente
me opprime em seu furor.
Da vossa ira o halito
seccou-me membro a membro,
e ai! se então me lembro
do meu longo peccar,
de como olvidei, réprobo,
santos dictames vossos,
oh! sinto até meus ossos
um frémito agitar!
O fardo immenso e horrido
da minha iniquidade,
á voz da Divindade,
a fronte me curvou.
Da minha carne as ulceras
corrompe-as a lembrança
da impia atroz folgança,
que a Deus me arrebatou.
Era triste, profundamente triste a voz, que assim
cantava nos abysmos do Oceano as primeiras palavras
do primeiro psalmo da penitencia. Ia enfraquecendo
pouco a pouco até desfallecer quasi de todo no ultimo
verso, mas então a voz vibrava de novo com aspere
Era triste, profundamente triste a voz, que assim
cantava nos abysmos do Oceano as primeiras palavras
do primeiro psalmo da penitencia. Ia enfraquecendo
pouco a pouco até desfallecer quasi de todo no ultimo
verso, mas então a voz vibrava de novo com aspereza, e
era quasi uma gargalhada infernal, de desafio ao Eterno,
[93]o grito ironico com
que voltava a cantar os seguintes
versos:
Co'a vossa santa colera,
raio que fere e brilha,
ao impio que se humilha
não fulmineis, Senhor!
N'este momento rasgaram-se as ondas, como se um
novo Moysés lhes tocasse com a varinha magica.
Entremostraram-se
aos olhos do espantado moço as profundidades
do mar. Foi isso rapido como um relampago,
mas deu-lhe tempo sufficiente para vêr o interior de
uma egreja gothica esplendidamente illuminada com uma
immensa profusão de cirios. Uma longa fileira de guerreiros
da edade média cercava os altares, mas no meio
da nave campeiava, coisa estranha! a meza de uma orgia,
e as taças de oiro, cheias de vinho espumoso, ostentavam-se
em cima da toalha. Uma mulher formosa
como os anjos, mas tendo na fronte pallida não sei que
inexprimivel sêllo da maldição divina,
ergueu-se, como
se fosse sustentada por azas invisiveis, até á
superficie
dos mares. Cerrou-se de novo o abysmo, e as ondas
purpureadas pelo reflexo dos cirios estenderam por
cima d'essa mysteriosa egreja o seu liquido docel.
E o vulto feminino, com as vestes alvejantes ondeando
por cima das vagas, e roçando a fimbria na orla da espuma,
que o clarão vermelho fazia espuma de sangue,
com a corôa da orgia ainda na fronte, encaminhou-se
lentamente para o sitio onde o barco parára, porque o
pescador ainda não ousára nem sequer levantar-se.
O phantasma deslisava por cima das ondas, como se
invisivel mão o impellisse; já estava proximo do
bote,
e os seus olhos negros, onde scintillava uma chamma
[94]infernal, exerciam
uma incrivel fascinação no
nosso heroe.
Afinal parou, e os seus braços estenderam-se vagarosamente
para elle, a fronte pallida tombou-lhe para
o hombro, como lyrio pendido pelo tufão. Ignota languidez
suavisou-lhe o fogo do olhar. As tranças negras
desprenderam-se-lhe e fluctuaram-lhe nas espaduas. Os
labios descerraram-se, e a sua voz doce e melodiosa
suspirou, como um triste queixume os versos:
N'este meu seio embebe-se
a vossa frecha ardente,
e a mão omnipotente
me opprime em seu furor.
Cego, louco, fascinado, o juvenil passageiro do bote
nem forças teve para resistir á
seducção. Inclinou meio
corpo para fóra do barco, estendeu as mãos, e ia
precipitar-se
nas ondas.
―Jesus! bradou o barqueiro.
O phantasma soltou um bramido de desesperação,
as ondas rasgaram-se de novo, e quando o moço abriu
os olhos, que fechára de deslumbrado pela chamma que
faiscára nas pupillas negras da gentil desconhecida,
já
o vulto feminino desapparecêra.
Mas as ondas continuavam a conservar a sua côr escarlate,
e o canto dos psalmos vibrava ainda na immensidade.
III
O terror tirára as forças ao barqueiro, o terror
lh'as
deu de novo. Lançou mão dos remos, e o bote
afastou-se
rapidamente d'aquelle terrivel sitio.
[95] ―Sabes a historia
do que estamos vendo? perguntou
o companheiro do pescador, com voz ainda agitada.
―Oh! se sei, senhor, é uma historia terrivel. Mas
não é n'este sitio nem a esta hora que eu a hei
de
contar.
―Conta, tornou o interrogador imperiosamente, já
estamos longe do ponto fatal, e a voz dos réprobos
vae-se perdendo no horisonte.
O barqueiro hesitou um instante, depois principiou
em voz tão baixa que mal se percebia, e sem deixar de
impellir vigorosamente o bote, a seguinte
narração:
«Havia aqui d'antes, ha um bom par de annos, e
junto d'aquelle castello, cujas ruinas ainda póde divisar
penduradas como ninho de aguias em cima das fragas,
uma egreja que fôra mandada construir por um devoto
fidalgo d'aquelle solar, fidalgo que morreu em cheiro de
santidade. A igreja era tida em conta de milagrosa, e alli
concorriam immensos fieis attrahidos pela fama do templo,
e pelas virtudes do capellão, homem de vida austera,
affectuoso para com os humildes e nada servil com
os grandes, a quem dizia as verdades por mais amargas
que fossem, quando entendia que assim o exigiam
os deveres do seu ministerio.
«Vivia então no castello um fidalgo devasso, filho
do
fundador da egreja, o qual, se lhe herdára as riquezas,
não lhe herdára as virtudes, porque os thesouros
da
terra na terra ficam, mas os thesouros do céo esses
voltam com o seu possuidor para o seio do Omnipotente.
«Tinha esse fidalgo uma irmã. Linda era ella.
Gentil
a mais não poder ser. Dizem que o rosto é o
espelho
da alma, e se assim fosse, ninguem possuia mais
[96]formosa
indole nem
mais candido espirito do que a irmã
de Guilherme, a filha do virtuoso Pelayo. Mas não era
assim. A natureza esmerára-se tanto em lhe aprimorar
a belleza physica, que se esquecêra de certo de cuidar
com egual desvelo na formosura moral. É assim que
dizem que Satanaz tem uma belleza seductora, e que
seria um guapo archanjo, se o pé caprino não
revelasse
a quem se deixa fascinar pela etherea gentileza
do anjo maldito, que está a contas com o pae da mentira.
Infelizmente Ignez não tinha esse signal que a
distinguisse dos anjos de que parecia irmã, e, se algum
cauteloso enamorado, para tranquillidade de consciencia,
lançasse
uma vista de olhos
para o
pésinho encantador
da formosa filha de Pelayo, não fazia mais do que
completar a fascinação, e, em vez da agua benta,
com
que tencionava aspergil-o, era natural que o cobrisse de
beijos, tão airoso era elle e tão pequenino,
tão pequenino
que parecia que a natureza, ao esquecer-se de
lhe formar a alma, se esquecêra tambem de lhe formar
o pé.
«Quando ella passeava a cavallo por essas ferteis varzeas,
montada elegantemente n'um lindo cavallo preto,
todos se ficavam enlevados a contemplal-a, e não havia
donzella nem rico homem que não sacrificasse de boa
vontade a vida para fazer brotar um raio d'amor na
pupilla negra da gentil Ignez. Mas ninguem o conseguia,
e o marmore d'aquelle rosto adorado nunca se
purpureára com o rubor da paixão. Engano-me.
Paixão
sentia ella, vehemente, incestuosa, horrenda, e que lhe
devia incendiar o rosto não no vivo escarlate do pejo
de donzella enamorada, mas sim no rubor da vergonha
e do remorso. A réproba amava seu irmão!
[97]
«E não imagine que ella occultasse essa
paixão criminosa.
Pelo contrario gloriava-se d'ella impudentemente.
E o espectaculo, que davam aquelles dois impios,
era um escandalo contínuo para os bons christãos
dos arredores.
«Não se faz idéa das orgias freneticas
e loucas, a
que no castello se entregavam aquelles dois abandonados
de Deus. Quem passasse á meia-noite pelo caminho
que serpeia na montanha, e onde estava situado o solar
defrontando com a egreja, havia de parar cheio de
religioso terror ao vêr de um lado o immenso
clarão
das luzes incendiando as vidraças da sala da orgia, ouvindo
os cantares ebrios, os risos descompassados, as
blasphemias, as musicas voluptuosas, e dando com a
vista do outro lado na casa do Senhor, muda, deserta,
sepultada em trevas, como um terrivel archanjo que
contemplasse com olhar sevéro os folgares dos malditos,
e que esperasse silencioso que soasse a hora da
punição.
«O mar batia de continuo nos rochedos, e aquelle
ruido incessante, se o ouvissem nas salas, havia de
lhes soar lugubremente como a voz justamente irritada
do Deus vingador.
«A egreja e o mar! Diante do templo erigido pela
piedade dos homens, diante do templo immenso em que
mais se revela a imagem da Providencia, como poderia
haver quem esquecesse por tal fórma os preceitos da
lei divina?
«Pois havia! e á noite, quando na mysteriosa
soledade
da nave, se erguiam os mortos do seu leito de
pedra para se ajoelharem diante do altar, quando o vasto
Oceano desprendia dos seus labios de espuma o hymno
[98]religioso com que
celebra a omnipotencia de Deus,
accendiam-se as luzes no salão do castello, sentavam-se
á meza da orgia Guilherme e Ignez e alguns
cortezãos
das suas devassidões, porque os seus eguaes todos se
haviam desviado d'aquella Gomorrha amaldiçoada, sobre
a qual cedo ou tarde cairia o fogo do céo; e a
irmã do castellão, no fim do banquete, cingia a
fronte
com uma grinalda de rosas, empunhava a harpa, e cantava
canções bacchicas com essa voz melodiosa, pura
e vibrante, que os anjos lhe invejavam, para descantar
os seus hymnos de louvor ao Eterno.
«Um dia o velho capellão, que fôra o
primeiro padre
que dissera missa na egreja cujo fundador fôra o pae
dos dois devassos, dirigiu-se ao castello, tencionando
chamar para o redil da egreja aquellas duas ovelhas
desgarradas por atalhos de maldição.
«Nada conseguiu senão excitar o odio de Ignez, que
ouviu furiosa as reprehensões do padre, e que foi
immediatamente
queixar-se a Guilherme da insolencia do
sacerdote, e pedir-lhe, como premio de amor, a cabeça
do digno homem, como outr'ora Herodias pedia a Antipas
a cabeça de S. João Baptista.
«Não ousou conceder-lh'a Guilherme. Conservava
ainda, no meio dos seus vicios, um respeito supersticioso
por seu pae, e não ousava tocar na pessoa inviolavel
d'aquelle a quem Pelayo confiára o templo que
fundára.
«Não insistiu Ignez; mas projectos de
vingança atroz
calaram immediatamente n'aquelle espirito pervertido.
«Uma noite, noite de Natal, a chuva caía em
torrentes,
açoitando egualmente as vidraças do castello,
illuminadas com o clarão do festim, e os vidros de
côr
[99]da egreja atravez
dos quaes coava a religiosa luz dos
tocheiros accesos para se celebrar a tocante solemnidade
da missa da meia-noite.
«O mar rugia de encontro aos rochedos, e soltava
ora gemidos pavorosos, ora lamentosos queixumes.
«O vendaval corria infrene por sobre as ondas.
«De mais folias ainda do que de costume era testemunha
o salão do castello. Os gritos dos ebrios ouviam-se
cá fóra distinctamente, e faziam com que todos
os que se dirigiam á missa se persignassem com horror.
«Sentada n'uma cadeira de espaldar, junto de seu
irmão,
Ignez, com os cabellos em desordem, soltos pelas
espaduas núas, com a lascivia no olhar e na attitude,
desferia a harpa de oiro e descantava as mais alegres
canções.
«O vento e o mar soltavam cá fóra os
seus tristes
e lugubres lamentos.
«De repente soou meia-noite na torre da egreja. Os
repiques da sineta annunciaram immediatamente que
ia principiar a missa.
«Cessaram os risos e os cantares no castello de Guilherme.
Só Ignez com o seu diabolico sorriso a pairar-lhe
nos roseos labíos, exclamou:
«―De que vos temeis, nobres cavalleiros? Tão
desgeitosa
estou já no dedilhar da harpa, que lhe prefiram
o agudo cantar da sineta? Tão enfraquecida está a
minha
voz, que cessem de a escutar para ouvirem o
bronze de um campanario?
«N'este mesmo instante um raio fuzilou no espaço,
inundando a sala com a sua luz phosphoríca, e o vendaval,
redobrando de força, fez em estilhas uma das
vidraças.
[100]
«Todos sentiram um convulso tremor percorrer-lhes
as veias, e o proprio Guilherme limpou o suor frio que
lhe escorria na testa. Ignez continuou:
«―Receiaes a tormenta? Quereis um conselho?
Deixemos esta sala que o vento vae tornar inhabitavel,
e que a chuva vae inundar, e vamos procurar um abrigo
na egreja. Alli, sim, que é sala commoda. Utilisemol-a.
Um ultimo copo de vinho, meus senhores, e façamos a
transferencia.
«Todos obedeceram ás ordens da formosa Ignez.
Beberam
um copo de vinho, e ergueram-se bradando resolutamente:
«Para a egreja.»
«O ministro de Deus subira n'esse instante ao altar
revestido dos seus sagrados paramentos. Tornavam-n'o
respeitavel o seu caracter augusto de immaculado sacrificador,
e ainda mais o seu diadema de cabellos
brancos, e a invisivel aureola de virtudes que lhe circumdavam
a fronte.
«A multidão ajoelhada sentia como que o espirito
de
Deus baixar ao templo, evocado pelo santo sacerdote.
O orgão começava a gemer os seus doces cantares.
A
tempestade parecia respeitar aquelle sacro asylo, suspirando
plangente nas frestas ogivaes, e não rugindo
pavorosa, como quando sacudia as suas negras azas
em torno do castello.
«Tudo era socego e serenidade n'aquella divina estancia.
«Subito irrompeu pelo portal da egreja a turba dos
ebrios, em descompostos cantares. Ficou gelada de terror
a devota multidão. Perturbado quando erguia a
Deus o immaculado espirito, o sacerdote voltou-se e
deu com os olhos na bella Ignez, que vinha na frente
[101]encostando-se com
insolente descaro ao braço de seu
irmão.
«Inflammado em santa colera, o velho ministro do
Senhor desceu os degraus do altar, e, dirigindo-se aos
recem-chegados, bradou com voz sonora, em que vibrava
o echo das iras de Deus:
«―Parae, não profaneis o templo, e não
obrigueis a
fulminar-vos o raio de excommunhão, que vos está
impendente.
«Era venerando o vulto apostolico do santo varão.
O povo caíu de joelhos, e a tempestade suspendeu os
seus bramidos, como que respeitosa e tremula.
«Ouviam os elementos desvairados a voz do ministro
do Omnipotente. Só ficavam cerrados os ouvidos dos
impios.
«Era porque chegára a hora fatal, e a
taça das iniquidades
trasbordára emfim.
«Ignez sorriu-se meigamente para seu irmão. Que
doce, que angelico sorriso! Quem diria que esse sorriso,
que rescendia amores, era apenas um incitamento
ao assassino?
«Pois foi. Guilherme allucinado arrancou do punhal,
e feriu o velho sacerdote.
«O sangue espadanou da ferida, e salpicou, tingindo
de escarlate o candido vestido de Ignez.
«A multidão fugira horrorisada, os criados, impios
como seus amos, haviam trazido n'esse instante a meza
da orgia.
«Mas assim que baqueou o sacerdote, a tempestade,
suspensa por um momento, soltou-se com novo furor.
Rugiu o vento nas frestas da egreja, fuzilaram os raios,
bramiu, quebrando-se nos «Mas assim que baqueou o sacerdote,
a tempestade,
suspensa por um momento, soltou-se com novo furor.
Rugiu o vento nas frestas da egreja, fuzilaram os raios,
bramiu, quebrando-se nos rochedos, o Oceano enfurecido,
[102]e
os tumulos de pedra da egreja estalaram como
se fossem de vidro.
«E do tumulo de mais primoroso lavor, surgiu, envolto
na mortalha, o espectro de Pelayo, o fundador da
egreja. Ondeiavam-lhe ainda as barbas nevadas sobre
o funebre escapulario, e das orbitas cavadas, coisa horrivel!
brotavam lagrimas ardentes.
«Ergueu-se, ergueu-se; já não tocava
com os pés no
chão marmoreo da egreja. O vento engolphando-se pelo
portal do templo, agitava-lhe as pregas da mortalha.
Com as mãos unidas, em attitude de
oração, o velho
finado, subindo lentamente nos ares, parecia um d'esses
prophetas que o Senhor Deus arrebatava para as
alturas do Empyrio.
«Quando chegou ao tecto, o tecto abriu-se como por
encanto e o venerando finado continuou a sua magestosa
ascensão na atmosphera que se esclarecia em torno
d'elle, como se aquelle cadaver irradiasse luz.
«Os impios haviam ficado immoveis e attonitos de
terror. Mas, apenas o velho Pelayo se sumiu ao longe
na região das nuvens, resoou em toda a egreja um terrivel
estampido. O orgão vibrou, sem que mão humana
o tocasse, e o tremendo
Dies irae
jorrou em torrentes
de severa melodia pela nave do templo. Vacillaram os
columnelos, nos frisos e laçarias gemeu o vento em
canticos sinistros, e, como se o vendaval a tivesse arrancado
pela base, aquella mole immensa levantou-se
do chão, oscillou nos ares como impellida por invisivel
fundibulario, e arrojou-se ao Oceano, levando no seu
seio os profanadores, que soltaram um ultimo rugido
de desespero.
«Abriu-se o mar para tragar a preza enorme que se
[103]lhe offerecia,
depois a liquida superficie uniu-se de
novo, e essa mortalha immensa, cujas pregas são as
ondas, desenrolou-se para encobrir esse cadaver de
pedra.
«Desde então todas as noites, ao bater da
meia-noite,
accendem-se os cyrios na egreja sepultada, e, no fundo
do mar, os réprobos entoam os psalmos da penitencia.
«A voz de Ignez sobreleva a todas, e exerce ainda,
do fundo do Oceano, a sua irresistivel seducção.
«Ás vezes ergue-se o phantasma da formosa
até ao
cimo das ondas, e arrasta para os abysmos os incautos
que cedem ao magico poder dos seus feitiços.
«Proteja-nos o Senhor contra estas
tentações. Eis-nos
chegados á praia.
O barqueiro amarrou o bote, e saltou em terra. O
moço passageiro ficou largo tempo a contemplar o
Oceano.
As ondas conservavam ainda ao longe o seu reflexo
escarlate, e a voz dos precitos, enfraquecida pela distancia,
vinha expirar na praia em melancolica toada.
Aos primeiros clarões da aurora tudo se dissipou;
apagou-se a pouco e pouco a luz vermelha, ao passo
que se ia aclarando mais o horisonte, e que as ondas
se iam branqueando com o tenue fulgor do alvorecer.
O canto dos malditos foi tambem esmorecendo a
pouco e pouco, até que a ultima nota vibrou solitaria
no espaço; e esse silencio singular que precede o romper
[104]do dia foi apenas
quebrado pelo hymno eterno do
marulhar das ondas.
[1]
Houve um momento de silencio, quando o doutor
Macedo acabou a leitura do romance. N'aquelle grupo
havia de certo n'esse instante um coração que
esse silencio
fazia bater com desusada violencia. Afinal Lucio
Valença quebrou o encanto, dizendo:
―Decididamente, caro doutor, o nosso desconhecido
collega deu um golpe de mestre, escolhendo o para
leitor de uma lenda. A sua voz deu-me arripios, as suas
inflexões resuscitaram a meia-noite. Co'a breca! houve
um momento, em que me não atrevi a olhar para a
[105]janella,
com medo
de vêr encostado aos vidros o espectro
fascinador de Ignez.
―Ah! de certo, disse ou antes balbuciou Leonor,
nem assim se póde avaliar o merito da lenda. O doutor
é como um d'estes actores, que transformam sempre
em magnificos papeis as mais insignificantes banalidades.
O doutor sorriu-se para ella maliciosamente, mas ao
mesmo tempo um concerto de elogios protestava contra
a phrase dubia de Leonor. O mais ardente no applauso
era Henrique Osorio.
―Bem! chegou o momento solemne! disse Macedo,
o publico chama pelo auctor, e eu, como no theatro
francez e hespanhol, depois dos tres cumprimentos do
estylo, vou arrojar o nome do poeta á platéa
enthusiasmada.
Se me dispensam dos cumprimentos, substituo-os
por uns certos effeitos oratorios.
―Vá! vá! diga, doutor! bradaram todos em
côro.
―Um! exclamou o doutor Macedo, batendo as palmas;
o auctor é uma senhora linda, elegante e espirituosa.
―Isso é abusar, doutor! bradaram os circumstantes
indignados.
―Dois! tornou Macedo. Acha-se presente a referida
senhora.
―Estrangulamol-o? propoz Lucio Valença.
―Um voto de censura na acta! bradou o visconde
da Fragosa, sempre parlamentar.
―Dependuramol-o da
janella
até elle dizer o
nome!
exclamou Henrique Osorio.
―Já o tinha dito, se vocês me não
interrompessem,
exclamou placidamente o doutor Macedo emquanto a
[106]viscondessa da
Fragosa, Leonor e Isaura riam a bom
rir da alegre scena.
―Então falla,
ventre-saint-gris! bradou Roberto
Soares.
―
Ventre-saint-gris não
é da edade média, sr. Roberto
Soares, disse o doutor Macedo que já erguera as
mãos
para bater as palmas pela terceira vez, e que tirou
tranquillamente um charuto da algibeira.
―Uma corda! bradou Henrique Osorio.
―E um algoz de boa vontade! exclamou Lucio Valença.
―Á ordem! acudiu logo o visconde da Fragosa.
Então, o doutor Macedo, com o charuto ainda não
acceso nos dentes, bateu as palmas, e disse:
―Tres!
Estabeleceu-se um profundo silencio.
―A lenda que tive a honra de submetter á
apreciação
de vv. ex.
as, concluiu o doutor, foi escripta
pela
ex.
ma sr.
a D. Leonor de
Mattos e Vasconcellos, filha do
nosso excellente amigo, visconde da Fragosa.
―Tu, Leonor! exclamou Henrique Osorio estupefacto.
―Tu, filha! disse a viscondessa com os olhos rasos
de agua.
―Eu logo vi que tinha sido ella, exclamava o pae
todo ufano.
Confusa no meio de todos os comprimentos, com que
em todas as familias se festejam as mais insignificantes
estreias litterarias do filho mimoso da casa, Leonor nem
ousava erguer os olhos para Henrique. Este contemplava-a
pasmado, depois mirava a furto Isaura, um
pouco fria, um pouco descontente com a ovação da
sua
[107]amiga,
e evidentemente de si para si
lamentava que
não fosse a pallida menina a sonhadora das phantasias
da
Egreja profanada.
Mas tambem, quando tornava a mirar Leonor, e a
via modesta, perturbada, evidentemente envergonhada
de ser o alvo de todas as attenções, agora mil
vezes
mais affavel com Isaura do que até ahi, como que pedindo-lhe
perdão do seu involuntario triumpho, Henrique
não podia deixar de dizer de si para si que havia
um abysmo entre a pretenciosa frivolidade de Isaura e
a desaffectada simplicidade de Leonor, que bem se via
que não dava ao seu conto maior valor do que elle merecia,
e que, escrevendo-o, parecia ter querido mostrar
apenas que não era estranha ás altas
preoccupações do
espirito, e que a sua phantasia tambem tinha azas para
se arrojar ao mundo do ideal.
E, emquanto a conversação volteiava alegremente
em
torno do conto de Leonor, emquanto uns narravam os
calafrios que tinham sentido, e outros felicitavam o leitor
e a auctora, Osorio, encostando a fronte na mão,
ficou profundamente pensativo.
Instantes depois, dispersava-se a companhia, e Leonor,
passando junto de Henrique para se retirar para
o seu quarto, sentia poisar na sua mão, para a demorar,
a mão tremente do seu companheiro de infancia.
Ella estremeceu toda, como se se tivesse posto em
contacto com uma garrafa de Leyde.
―Sabes, disse-lhe elle, que achei encantador o teu
conto?
―Sabes que te não acredito? respondeu ella, rindo,
e já senhora de si.
―Oh! eu não faço a critica litteraria do
romance.
[108]É
provavel que tenha innumeros defeitos. Digo-te apenas
que me impressionou. Quando o escreveste?
―Hoje!
―Hoje? acudiu elle cravando em Leonor um olhar
profundo.
―Sim, tornou ella com o coração a bater-lhe
violentamente,
córada até á raíz dos
cabellos, mas resoluta,
quiz-te mostrar que já passou para mim o tempo das
bonecas, e que o que me preoccupa o coração e o
espirito
não são já as puerilidades dos nossos
brinquedos
de outr'ora, mas os affectos e as paixões da mulher.
Henrique apertou-lhe docemente a mão.
―Foi por minha causa, pois, que espertaste a phantasia,
para escreveres essa lenda? Tive eu a ventura
suprema de preoccupar devéras o teu espirito intelligente?
de fazer pulsar com mais força o teu ingenuo
e nobre coração?
―Henrique! murmurou ella.
―És um anjo, Leonor! disse elle em voz baixa.
O doutor Macedo encaminhava-se para onde estavam
os dois. Leonor despediu se, e toda palpitante
de commoção
e... dil-o-hemos... tambem!... de alegria,
dirigiu-se para o seu quarto.
O doutor Macedo sorriu-se para Henrique, e murmurou
maliciosamente:
Si je vous le disais pourtant que je vous aime,
Qui sait, brune aux yeux bleus, ce que vous en diriez?
―O que! era esta, doutor? exclamou Henrique.
―Pois quem, meu creançola? É necessario ter a
[109]myopia amorosa dos
vinte annos para o não perceber
ha immenso tempo.
―Que quer você, Macedo! tornou Henrique, Leonor
foi minha companheira de infancia. Havia entre nós,
em creanças, uma certa desproporção de
edades. Entre
dois pequenitos uma differença de cinco annos abre um
abysmo! Na mocidade é um curtissimo intervallo. Costumei-me
a vêr sempre em Leonor uma creança. A
mulher feita revelou-se me agora, ao ouvir
lêr o conto
que ella escrevêra. Então contemplei-a, e li nos
seus
formosos olhos a bondade da sua alma, e a virgindade
do seu affecto. Só agora percebi o tremor da sua voz
nas palavras que me dirigia! E eu passava junto d'ella
quasi sem a conhecer!
―Meu amigo, tornou Macedo, isso é uma historia
vulgar. Tem a gente ao pé da porta um lago tranquillo,
risonho, córado pelo esplendor do sol, nunca se lembra
de mergulhar n'essas aguas limpidas para colher a
perola que lá brilha no fundo, vae procural-a
então ao
mar das tempestades, mergulha, e encontra ostras.
Boa noite, meu amigo.
E dirigiu-se para o seu quarto. Henrique imitou-o,
mas n'essa noite não dormiu. A imagem que fluctuava
diante dos seus olhos semi-cerrados, não era,
não, a
pallida imagem de Isaura.
Devemos dizer que na noite immediata, esqueceu
completamente a hora fatidica, e que tendo Lucio Valença
pedido a palavra ás dez horas e meia da noite,
allegando que era longo o seu romance, que, sendo
[110]phantastico, por
isso que o personagem principal era
um ente inanimado, tinha comtudo uma pequena parte
propriamente legendaria, e que portanto podia começar
a ser lido antes da meia noite; acolhe-se com applauso
esta idéa, e Lucio Valença começou
logo depois do chá
a leitura do seu volumoso manuscripto. O doutor fizera
uma careta ao avaliar o numero de paginas que ia ter
que ouvir; Henrique Osorio e Leonor, enlevados nas
doçuras de um amor nascente, não tendo olhos
senão
um para o outro, amaldiçoavam a leitura que os ia privar
de algumas horas de doce conversação; Isaura,
despeitada, furiosa por ter visto fugir-lhe um dos seus
vassallos, e mais furiosa ainda por lhe falharem todos
os manejos que empregava para reconquistar o inconstante,
que tratára com tão soberbo desdem quando o
tivera nos seus ferros, dirigira de pura colera as suas
baterias para Lucio Valença, e preparára-se
portanto
para ouvir o conto com a mais profunda attenção.
O visconde da Fragosa, o conselheiro Madureira e
um honrado e silencioso proprietario de Val de Prazeres,
que vinha completar a partida do visconde, não
abandonaram sem um suspiro o
boston.
Resignaram-se,
porém, e Lucio Valença, presentindo vagamente a
hostilidade
do auditorio, começou com voz não muito firme
a leitura do manuscripto, que se intitulava
Memorias
de uma bolsa verde.
[111]
MEMORIAS D'UMA BOLSA VERDE
I
Um dia fôra eu assistir, por curiosidade, a um
leilão
que se fizera em casa de uma rica viuva que fallecêra.
Os parentes, apressados em se desfazerem de todos
esses moveis, que para elles não tinham valor algum,
abriram o leilão apenas se fechou a campa que ia encerrar
a pobre finada. O que importavam aos herdeiros
esses pobres livros, por exemplo, sobre os quaes se
debruçàra tantas vezes a fronte encanecida da
viuva,
esses mysteriosos confidentes dos seus pezares e das
suas saudades, cujas paginas teriam sido regadas com
tantas lagrimas, e que tantas vezes teriam repousado
sobre os seus joelhos tremulos, quando ella, interrompendo
a leitura nocturna, fitasse os olhos humedecidos
no sitio onde seu marido se costumava sentar, a lampada
a cuja doce luz tinham tantas vezes travado uma
[112]d'essas deliciosas
conversações intimas, tornadas
mais
suaves ainda pelo conchego do lar, e pelo prazer de
sentir a chuva bater nas vidraças, e o vento gemer de
caixilhos das janellas? Que significação tinham
essas
coisas para os corvos ávidos, que esperam anciosamente
que o corpo se transforme em cadaver, para
descerem em bandos a saciar a fome impaciente? E
quem sabe se, reunidos em volta do leito mortuario,
não miravam com os olhos affectadamente compungidos,
onde brilhavam algumas lagrimas de convenção,
os trastes do quarto, e os proprios lençoes que agitava
o estertor da moribunda? Quem sabe se elles não estariam
já calculando o valor approximado d'esses objectos?
Ai! todo o anjo, que baixa a este mundo, tem
um demonio que lhe espia os passos, que o segue cautelosamente
sorrindo com um sorrir diabolico, que esconde
na sombra projectada pelas azas brancas do habitante
do céo as negras azas do habitante do inferno,
e que, apenas aquelle acaba de cumprir a sua missão
divina, começa a cumprir a sua missão infame, e a
desfazer por todos os modos o effeito salutar produzido
pela candida apparição.
Após o anjo do amor vem o demonio do ciume, após
o anjo da caridade o demonio da ingratidão, após
o
anjo da morte o demonio da cubiça.
Morre uma creatura boa, pura, santa; vem um anjo
de Deus cerrar-lhe os olhos, e levar para os céos, no
regaço da sua tunica transparente, o espirito immaculado
que se desprendeu do invólucro terreno. No rosto
do cadaver, sereno e tranquillo, fica como que um reflexo
do clarão que derramaram sobre elle as azas luminosas
do Senhor. Nada mais proprio para inspirar
[113]respeito do que
essa morte socegada, tão socegada como
a de um passarinho que esconde sob a aza a gentil cabecinha.
Uma suave compuncção se apodera do animo
de todos os circumstantes. Ninguem ousa perturbar o
magestoso silencio da camara funeraria; todos temem
profanar a augusta santidade d'aquella scena. Mas o
demonio da cubiça lá estava espreitando
á porta com
o seu olhar de tigre. Assim que o anjo bateu as azas,
entrou pé ante pé, debruçou-se sobre
todas as frontes
pendidas, bafejou-as com o halito repugnante, e logo
todos se ergueram apressadamente, e trataram de fazer
desapparecer o cadaver, de annunciar o leilão, de
preparar tudo para se reduzir a dinheiro, e para se fazerem
as partilhas. «É preciso tratar da
vida», dizem
elles. Regateiam-se as despezas do enterro, e, para se
resarcirem d'ellas, não conservam um unico objecto,
por mais desprezivel que seja o seu valor. Ahi tem
pouco mais ou menos a scena horrenda que precede
um acto tão natural como é um leilão.
Por isso eu sempre resinto uma impressão desagradavel,
quando me vou confundir com a multidão de
compradores que penetram, com tão pouco respeito,
n'esses quartos outr'ora tão socegados, agora tão
ruidosos.
No dia em que assisti ao leilão em que fallo, occorreram-me
estas idéas que acabo de expender.
Já se tinha vendido a maior parte da mobilia. Os
sophás, as mezas, as cadeiras, os livros, tudo se
dispersára
já. O pregoeiro continuava a fazer apparecer os
differentes lotes, e, com o ouvido á escuta, repetia
machinalmente
os lanços dos circumstantes com uma rapidez,
e com uma segurança taes, voltando a cabeça
[114]ora
para um lado,
ora para outro, que
pareceria
ser
antes machina do que homem, se não fossem as
chalaças
com que entremeiava o seu pregão monotonamente
saltitante (se assim me posso exprimir). Eu estava encostado
a uma porta, e contemplava com certa tristeza
aquelle grupo, em que figuravam os rostos indifferentes
dos compradores, as physionomias ávidas dos herdeiros,
e a cara maliciosamente alvar do pregoeiro,
pago para alegrar a assembléa com os ditos joviaes
que tinha fabricado, e que provavelmente já lhe teriam
servido para dezenas e dezenas de leilões d'aquella especie.
Finalmente appareceu um objecto, cuja
exhibição
(perdôem o anglicismo) foi acompanhada com um commentario
burlesco do pregoeiro, e acolhida por uma
gargalhada da assembléa.
Era uma bolsa de seda verde com borlas de oiro.
Mas que bolsa, senhores! Era necessaria toda a cortezia
do pregoeiro para conservar esse nome a um objecto
que já não tinha fórma! Era uma bolsa
de cabellos
brancos! Rota, esburacada, sem côr definida e em
cujas borlas o oiro brilhava... pela sua ausencia! O
pregoeiro passeiou-a triumphantemente por diante de
todos, e todos se riam, e todos zombavam, e todos faziam
uma observação que redobrava as gargalhadas.
Finalmente o pregoeiro passou por diante de mim, e
mostrou-m'a. Foi então que eu a pude vêr bem.
Se a podessem vêr como eu a vi, haviam de se compadecer
d'ella. No meio da alegria geral, que a rodeiava,
ella só parecia chorar, e conservar uma triste
recordação d'aquella de quem todos se esqueciam!
Se
a podessem vêr como eu a vi, baloiçando-se
tristemente
[115]na mão
grosseira d'aquelle homem que a estortegava,
apertando os seus frageis membrosinhos de seda! E a
pobre bolsa parecia olhar com uma tristeza profunda
para todos aquelles rostos crueis, em que a zombaria
se pintava, e de cada um dos rasgões que tinha aberto
no seu corpinho, d'antes tão gentil, a mão
destruidora
do tempo, parecia sair um gemido.
Que profunda impressão me causou o seu aspecto!
Talvez os meus leitores chegando a este ponto, se
riam de mim. Pois não tem rasão! Eu acredito que
os
objectos inanimados, que nos rodeiam, recebem de nós
como que um reflexo de sensibilidade. Quando morre
uma pessoa n'uma casa, não vêem como tudo toma um
aspecto luctuoso? A sala, em que tantas vezes estivemos
sós em quanto essa pessoa vivia, tinha por acaso
o silencio lugubre que lhe notamos apenas ella deixa
de existir? Os livros, cuja leitura desperta em nós o
enthusiasmo, serão simplesmente mudos reproductores
dos pensamentos do escriptor, e não conservarão
como
que o vestigio do talento, que por intermedio d'elles
se manifestou? E qual será o motivo d'essa inexplicavel
affeição que nós consagramos a certos
moveis queridos?
do pesar que sentimos ao vêrmo-nos obrigados
a abandonal-os?
Quando alta noite acordam, e, sem poderem conciliar
o somno, ficam deitados de olhos abertos a contemplar
as trevas, e a escutar o silencio, não sentem
de repente um indizivel murmurio, e umas inexplicaveis
luzes encherem o quarto e rasgarem a escuridão?
Como explicam isso? Eu creio firmemente que esse
ruido, que se não ouve quando não estamos n'essas
circumstancias, é o que produzem as mysteriosas
conversações
[116]dos espiritos
invisiveis que existem
escondidos
em cada um d'esses moveis, e que alta noite se
reunem, para segredarem uns com os outros, e que
esse tenue fulgor é resultado do scintillar das pequeninas
azas d'esses sylphos subtis.
Quer me acreditem, quer não, o que eu lhes posso
assegurar é que a tal pobre e velha bolsa verde, quando
viu a minha physionomia séria no meio de tantos rostos
zombeteiros, lançou-me um olhar supplicante a pedir-me
que a livrasse d'aquella triste posição.
E o caso é que a comprei, com grande espanto de
todos os circumstantes, que principiaram por olhar para
mim com uns olhos muito abertos, e que concluiram
por sorrirem uns para os outros, dando a entender que
me julgavam doido. O pregoeiro entregou-me a bolsa,
e recebeu o dinheiro, tendo cuidado de interpôr, como
se fosse por acaso, uma cadeira entre nós ambos, com
receio que me d'ésse
alguma furia.
Escuso de dizer que ninguem me disputou o lanço.
Nem mesmo esses agentes, que tem, em giria de leilão,
o nome expressivo de
picadores, ou,
por abuso de
metaphora, de
toireiros, ousaram
erguer a voz para
m'a fazerem pagar mais caro.
A surpreza emprestára-lhes um bocadinho de consciencia.
Pois o que é certo é que eu comprei a bolsa, e
saí
com ella muito ancho, sem me importar com as largas
alas que me abriam as pessoas presentes, imitando a
prudencia do que m'a vendêra.
E, como eu passo a mostrar-lhes, não tive motivo de
me arrepender.
[117]
II
Era uma noite de maio. Eu estava sentado á meza
do trabalho. Um caderno de papel, ainda virgem de letras,
estendia-se diante de mim aterrador na sua alvura,
que me advertia mudamente da obrigação que eu
tinha
contrahido de a fazer desapparecer debaixo de uma alluvião
d'esses monstrosinhos negros, que se chamam
letras, que, amontoando-se umas em cima das outras,
formam as palavras, essas mysteriosas colmeias, dentro
das quaes se agita o candido enxame das idéas. O tinteiro,
boquiaberto, não cessava de me mostrar o oceanosinho
sombrio que tumultuava dentro de seus vitreos
muros. A penna, debruçando se sobre
esse mar tenebroso,
contemplava-o com indifferença, preparando-se
para o sulcar atrevidamente, quando eu julgasse opportuno
começar a navegação.
Uma janella aberta oppunha aos meus designios um
obstaculo insuperavel.
Uma janella aberta?―diz o leitor; porque a não fechava?
O leitor de certo se não recorda de eu lhe ter dito
que estavamos em maio.
Fechar uma janella quando a fada da primavera percorre
as urnas das flôres, colhe todos os aromas que
encontra, e vae espalhal-os prodigamente no regaço das
brisas, que doidejam depois na atmosphera, alegres
como as creanças folgazãs que correm na campina
com
as suas arregaçadas de flôres! Fechar uma janella!
E
porque não fecha o leitor os ouvidos quando está
escutando
[118]uma
melodia de Bellini, e os olhos quando está
vendo um quadro de Raphael?
Eu, com um charuto na bocca, docemente recostado
na minha cadeira, aspirava os perfumes do ambiente,
sem me importar com as provocações do papel, com
as
agitações da tinta, e com as
suggestões da penna. Devo
até dizer, para ser completamente veridico, que me deliciava
em desprezar tudo isso.
Fi donc! Um escriptor!
Eu queria vêl-os no meu logar! Uma larangeira a
enviar-me perfumes perfidos, e, quando me via prestes
a estender a mão para a penna, a baloiçar-se sem
piedade, e a remetter-me directamente nas azas da
viração
uma taça inebriante, cheia a trasbordar dos seus
effluvios! E um rouxinol, um travesso rouxinol, muito
escondido n'uma alcovasinha de folhas, que o demonico
da laranjeira lhe tinha arranjado de proposito para acabar
de me tentar, a desentranhar-se em melodias que
era um enlêvo escutal as! Sem fallar
n'umas roseiras,
que a pretexto de serem
dilletanti,
e de serem impellidas
pela aragem, prepassavam por diante da minha
janella para ouvirem mais de perto aquelle Tamberlik
plumoso! Não mettendo em linha de conta a lua, que
se ria no céo a bandeiras despregadas, escancarando
com os frouxos de riso umas nuvens teimosas, que por
força queriam esconder-lhe as perolas que ella com as
gargalhadas mostrava á natureza, e que tinha a innocente
vaidade de contemplar espelhadas nas fontes!
Vão lá, com tudo isto, debruçar-se
sobre um caderno
de papel e escrever!
Escrever; mas escrever o quê? Um romance de
amores?! Um poema?! Romances e poemas tinha eu
[119]na
imaginação, sublimes, portentososos,
admiraveis,
como todos os tem, e como ainda ninguem os escreveu.
Se elles se desprendem, capitulo a capitulo, estrophe
a estrophe, e vão fluctuar na atmosphera de envolta
com os perfumes da rosa, com os canticos do rouxinol,
e com os raios da lua!
E, apesar d'isso, não deixam que outros, que se possam
entornar sobre o papel, nos occupem ao mesmo
tempo a imaginação.
Assim estava eu, torturando o espirito para obter
uma idéa, e encontrando n'elle mundos de poesia,
não
digo bem, um chaos de poesia, cujo
fiat
lux eu nunca
poderia descobrir.
De vez em quando revestia-me de animo, e tentava
levantar-me para ir fechar a janella! Mas a larangeira
baloiçava-se e deixava cair uma chuva de perfumes, o
rouxinol redobrava de gorgeios encantadores, os ramos
da roseira prendiam-se, ao perpassar, no parapeito da
janella, e deixavam ficar as suas rosas de cem folhas,
purpureas e embalsamadas, a mirarem curiosamente o
meu quarto; a lua desprendia indolentemente dos hombros
o seu manto de luz, arrastava-o no firmamento,
e eu caía desanimado na cadeira.
De repente senti aos meus ouvidos uma voz ligeira
como um murmurio, que me fallava n'uma linguagem
desconhecida, mas que eu, por uma intuição
inexplicavel,
comprehendi immediatamente.
Voltei-me, e com grande pasmo, vi a bolsa verde
em cima da meza.
Era ella quem me fallava.
―Amigo, dizia-me a velha bolsa, tu valeste-me n'uma
grande afflicção, e é justo que tenhas
a recompensa.
[120]Queres escrever? A
tua imaginação
preguiçosa, enervada
pelos effluvios d'esta noite de primavera, recusa-se
a dictar-te o que deves lançar no papel? Eu substituirei
a tua imaginação. Pega na penna, e escreve o
seguinte
no alto d'essa pagina branca: «
Memorias
d'uma
bolsa verde.»
Eu, estupefacto, obedeci machinalmente, e ahi vão
vêr os meus leitores o que a pobre bolsa velha me dictou.
Desculpem os erros do auctor. Não ha nada que
se pareça menos com um litterato do que uma bolsa.
A rasão é muito simples. A bolsa tem muitas vezes
dinheiro,
e um escriptor... Vamos ao assumpto.
III
«Gira, gira, agulha ligeira, impellida por mão
tão
delicada. Cinge a fragil seda em suave abraço,
enlaça
os tenues fios uns aos outros, e prepara esse corpinho
gentil, a quem ha de o amor dar vida.
«O amor, sim. Não vês a loira cabecinha
do anjo de
meigo sorriso, debruçando-se por cima do hombro da
tua formosa dona, a contemplar curiosamente os teus
rapidos movimentos?
«Gira, gira, os instantes são preciosos, e
póde subitamente
chegar quem transtorne a surpreza tão cuidadosamente
preparada! Gira, gira sem cessar, agulha,
agulha subtil.
«Que suave serenidade transparece no limpido olhar
d'aquella cuja mão febril te dirige! Quando um sorriso
anima a graciosa physionomia, contempla-se com enlêvo
o céo azul que lhe ri nos olhos, e as perolas, que os
[121]labios
entre-mostram! A quem fôr perspicaz tambem
esse sorriso mostra a alma, que é mais celestial do que
o olhar, mais candida do que as perolas da boquinha.
«Mas a esse limpido firmamento doira-o agora o sol
de um affecto suave, cujo brilho não é offuscado
por
nenhuma nuvem. Os seus raios aquecem-lhe o
coração,
e alegram-lhe ao mesmo tempo todos os horisontes da
vida.
«Porque vem misturar-se, comtudo, uma
inquietação
febril com o sentimento de felicidade que lhe anima as
feições? Oh! não receieis nada! Essa
mesma inquietação
é um prazer. Teme não ter completo o presente
que desejava offerecer a seu marido, que fazia annos
n'esse dia.
«E por isso a agulha girava, girava com impetuosidade,
e os fios de seda agrupavam-se com uma ligeireza
inconcebivel!
«Está a concluir-se a tarefa. A agulha
approxima-se
do sitio marcado. Um mate, um mate risonho lá surge
no horisonte. Apressa-te, agulha, faze prodigios de celeridade.
Emfim!
«Dera-se o mate. As doiradas borlas pregaram-se
instantaneamente. Eil-o, o gentil producto de oito dias
de trabalho! A formosa senhora contempla-o com ternura.
O amor sacode o regaço cheio de perolas, e em
cada ponto faz pullular mil pensamentos apaixonados.
«O ente, que nascera, era nem mais nem menos do
que esta humilde bolsa verde que lhe está dictando
essas linhas, senhor mandrião.
[122]
IV
Quando cheguei a este ponto interrompi eu a bolsa.
―Minha senhora, observei com a respeitosa cortezia
que um escriptor consagra ao narrador officioso que lhe
conta uma historia, v. ex.
a tem fallado
até agora n'uma
linguagem que me tem penetrado de admiração,
porque
me parece biblica, e o emprego d'esse estylo é
muito para apreciar n'uma bolsa que não foi contemporanea
de Isaias. Mas se v. ex.
a antes de nascer falla
n'esse tom, receio muito que, se continuar na ascensão,
quando chegar á velhice, já os leitores, ainda
que
se mettam no balão de Nadar, não serão
capazes de a
seguir com a vista n'essas espheras inaccessiveis. Pedia,
portanto, a v. ex.
a o favor de baixar o
vôo á
terra,
algumas vezes, afim de que os nossos leitores percebam
alguma coisa do que se fôr passando, sacrificando
por conseguinte o diploma de socia da academia... do
amphiguri, que, segundo me parece, está em caminho
d'obter. Desculpe-me esta ligeira observação.
A bolsa olhou para mim com modos um tanto severos,
e respondeu:
―Admiro-me bastante de tu te queixares. Sabe que
nem cheguei a dar-te uma ligeira amostra do estylo
pomposo que eu deveria empregar, e que te poupei o
prologo obrigado que precede lá entre vós outros,
os
homens, a magra biographia d'aquelles, a quem nomeaes
grandes, com a mesma convicção com que os antigos
romanos faziam a apotheose dos Tiberios e dos Caligulas.
Já vês que a rajada vae começar, e que
se me excitas
mais, bailam-te no meu discurso gregos, assyrios,
[123]indios e hebreus.
Mas voltemos ao que importa. Em logar
de te queixares, devias-me agradecer o eu não ter
dito uma palavra só ácerca do estado da Europa na
epocha do meu nascimento, nem de ter fallado nos
grandes homens que se agitavam no mundo, em quanto
a minha gentil creadora unia uns aos outros os fios
que me haviam de formar. Podia fazer-te gastar com
estes preambulos dez paginas, pelo menos. Não o fiz,
e tu accusas-me! Para te castigar não devia dizer nem
mais uma palavra.
―Oh! por amor de Deus, continue v. ex.
a como
quizer; estou prompto a admirar tudo quanto eu não
entender, nem v. ex.
a tambem. Estou esperando.
V
«Nasci, continuou a bolsa, e a minha vista não
encontrou
nada que a ferisse, nada que lhe repugnasse
no quarto onde eu viera á luz. No movel mais insignificante
se denunciava a riqueza e bom gosto dos donos
da casa. Eu repousava mollemente no collo da minha
dona, e os meus membros recem-nascidos sentiram
logo o suave contacto da seda. Um alegre raio de sol
entrava pela janella, acariciava o meu corpinho verde,
e fazia resplandecer as minhas borlas doiradas. As agulhas
repousavam ao meu lado, contemplando curiosamente
a obra prima que tinham acabado de produzir.
A gentil habitante do quarto beijava-me carinhosamente
e, beijando-me, murmurava estas palavras que eu conservei
de cór:
―«Vae, pobre bolsinha, repousar sobre o
coração
[124]d'aquelle a quem
tanto amo. Conserva a impressão dos
meus beijos, e, quando elle te approximar do rosto,
oh! anima-te, por um milagre de amor, e sê tu a mensageira
d'estes osculos que eu te confio. Dize-lhe, conta-lhe
que em segredo trabalhava em te fazer
coquette,
elegante, para seres digna d'elle. Olha, lê bem no fundo
do meu coração, para poderes narrar ao meu esposo
os thesouros de affecto que em mim se abrigam. Vae,
e Deus queira que elle te ache a seu gosto, e te faça
um bom acolhimento.
«N'este momento um rapaz, cujo labio superior era
levemente assombreado por um bigodinho nascente,
entrou, e, dirigindo-se á minha dona, beijou-a com ternura.
―«Que deliciosa bolsinha tu tens no collo!―disse-lhe
elle. Foi presente ou compra?
―«Agrada-te?―tornou ella, contemplando-o meigamente.
―«Acho-a lindissima.
―«É tua.
―«Minha?
―«Tua, sim. Não te lembras que dia é
hoje? Completas
vinte e dois annos. Trabalho ha oito dias a furto
para te dar este presente. Sorria-me sósinha, quando
pensava na surpreza que te ia causar, quando te désse
a bolsa, e, saltando-te ao pescoço, te dissesse
alegremente:―Ahi
tens um presente da tua querida mulher,
é para vêres que pensa sempre em ti.―E
então agora
não mereço um beijo em paga?
«E a galante senhora, unindo a acção
á palavra, tinha-se
pendurado no pescoço de seu marido, e contemplava-o
com olhos humidos de ternura.
[125]
«Elle estreitou-a meigamente, e disse-lhe ao ouvido
baixinho, e beijando-lhe os cabellos:
―«Amo te, meu anjo da guarda!
Amo-te e sou feliz,
feliz com o teu amor.
―«E isso é dito com sinceridade?―perguntou ella,
sorrindo, travêssa.
―«Não sou eu quem falla, é o
coração.
―«Sim? Sobre esse coração é
que eu quero que
esta bolsa ande sempre! Advirto-te que tenho dentro
d'ella um genio familiar que me obedece, que ha de
lêr atravez do teu peito, e que me ha de vir contar os
segredos que tu julgares mais reconditos. Acceitas?
―«Que remedio, meu anjo! Venha esse gentil
espião,
cuja côr me anima já, porque é a
côr da esperança.
Hei de lhe dar o observatorio mais commodo que
o meu casaco lhe podér proporcionar; telescopios
não
devem ser necessarios a quem possue a vista subtil
dos espiritos. Mas por cavilloso o declaro, se elle descobrir
no meu coração outra estrella que não
seja a tua
imagem.
―«Não gósto da
comparação; as estrellas são sempre
offuscadas umas pelas outras.
―«Mesmo quando essa estrella se chama
Venus?
―«Viva! O meu maridinho a fazer madrigaes! Queres
que eu continue no mesmo tom? Dir-te-hei n'esse
caso que a Venus, mais do que a qualquer outra, succede
o que acabei de dizer. Á tarde vem a lua offuscal-a,
pela manhã o sol.
―«Não, minha querida, não
succederá assim comtigo.
Sempre viva, sempre pura a tua imagem resplandecerá
no meu peito. É isto o que a tua bolsa te ha
de dizer constantemente.
[126]
―«Querido Eduardo!
―«Querida Camilla!
―«Amo-te!
―«Adoro-te!
«E foi assim que eu passei das mãos da loira
Camilla
para as mãos do moreno Eduardo.
VI
«Não tive rasão de queixa. O meu dono
trazia-me nas
palminhas. Quando saía occupava sempre um logar de
honra na algibeira do casaco, e alli ia eu, sentindo pulsar
o coração de Eduardo, regalando-me, porque
estavamos
no inverno, de caminhar bem abafadinha e conchegada,
em quanto muitas das minhas irmãs estariam
talvez tiritando de frio nas algibeiras rotas dos seus
possuidores. Que justo orgulho se apoderava de mim,
quando Eduardo, sacando-me negligentemente para fazer
alguma compra, me collocava em cima do balcão;
como todos olhavam cubiçosamente para as minhas
fórmas
arredondadas, e que bello effeito que eu produzia
com as libras que fulgiam atravez dos intersticios da
seda.
«Nunca me ha de esquecer a cara de piedade que
fez a bolsa de um empregado publico, a quem o acaso
collocára junto de mim. Era uma bolsinha de lã,
tão
magra, tão magra, tão escorrida que mettia
dó. Uns
pobres meios tostões escondiam-se envergonhados no
fundo, e alvejavam tristemente, aborrecidos da sua solidão.
A pobre bolsa olhou para mim com uma certa
inveja, e não me dirigiu palavra. O dono da loja
cumprimentou-me
[127]respeitosamente, e
desviou com desdem
a minha visinha. Ella não ousou protestar, e
pôz-se de
parte, esperando que eu me dignasse voltar ao meu
alojamento ambulante! E eu ria-me e pavoneava-me
toda ufana! Mal sabia que ainda havia de passar pelas
mesmas humilhações!
«E o caso é que eu suppunha que todos esses
cumprimentos
eram devidos á minha gentileza, á formosura
da minha côr! E Eduardo julgava egualmente que era
a influencia, que a sua pessoa exercia, a causadora das
humilhações, do servilismo que o rodeavam!
Eduardo
attribuia a si o que a mim era devido. Eu attribuia a
mim o que era devido ás libras que eu abrigava, e as
libras tambem attribuiram a si o que se devia simplesmente
á somma de gózos que ellas proporcionam. Todo
o homem se adora a si mesmo nos objectos perante os
quaes se curva. O «eu» é o idolo
constante da humanidade.
O egoismo é o seu unico motor.»
E n'este ponto a bolsa philosophica soltou um profundo
suspiro.
«Á noite, continuou ella, repousava dentro da
gaveta
de uma linda secretária de pau rosa, e alli ficava
até
pela manhã tagarellando com umas cartas de amores,
minhas visinhas, que me contavam os mil deliciosos
segredinhos que lhes tinham sido confiados; e n'esta
doce pratica voavam para mim as lentas horas da noite.
«Comtudo, eu começava a presentir o meu futuro
destino. Eduardo era o que vulgarmente se chama uma
cabeça de vento. Frequentes vezes, e com as melhores
intenções d'este mundo, se esquecia de mim, e me
deixava
ficar á noite em cima da meza, em vez de me
conduzir á minha deliciosa alcova da secretária.
[128]
«Uma vez, tendo acabado de fazer umas compras,
deixou-me em cima do balcão. Não posso explicar a
impressão
dolorosa que senti quando o vi desviar-se distrahidamente,
e quando reparei, olhando em torno de
mim, nos ávidos olhares dos caixeiros. Segui-os tristemente
com a vista, e já me ia a despedir d'elle para
sempre, quando Eduardo, chegando á porta, mostrou
recordar-se de alguma coisa, e, voltando se precipitadamente,
correu ao balcão. Deu logo com a vista em mim,
que estava toda tremula de alegria, e, beijando-me fervorosamente,
escondeu-me no seio.
«Infelizmente nem sempre lhe succederia isso.
VII
«Uma vez (sempre me hei de lembrar d'este dia nefasto)
Eduardo, estando a fazer umas contas, tirou me
da algibeira e pôz-me em cima da secretária.
Depois,
a pouco e pouco, foi amontoando os papeis em cima de
mim, de fórma que eu já parecia um pobre
Encéladosinho
de seda, debaixo de um Etna de papelada.
«Quando acabou o que tinha que fazer, Eduardo levantou-se,
e, como estivesse tocando a sineta para o
jantar, foi para a meza e não se lembrou mais da pobre
bolsa.
«Por infelicidade, na vespera,
tinham os donos da
casa recebido a visita de uma joven viuva, muito galante,
muito
coquette, e que parecia
desejar jungir ao
seu carro de triumpho o marido de Camilla, sobre quem
não se cansava de experimentar o effeito dos seus olhares
cheios de fogo e de estrategia. Eduardo, como podem
[129]
imaginar, nem
reparára
em semelhante coisa; porém
sua esposa, com a perspicacia de mulher, adivinhára
tudo, e sentira o ciume, não digo bem, o despeito
apoderar-se d'ella. Não sei a que proposito, Eduardo
me fôra buscar, e a joven
viuva mostrou desejo de
me vêr. Eduardo entregou-me cortezmente nas mãos
da
baroneza (a viuva era baroneza) e os dedos involuntariamente
encontraram os dedos da gentil
coquette. Um
raio de indignação fusilou nos olhos de Camilla,
a baroneza
sorriu-se, Eduardo ficou impassivel, e eu previ
uma proxima tempestade.
«Por isso, e apesar da mão da baroneza ser
tão delicada
e macia como a da minha creadora, apesar dos
elogios que ella me prodigalisou, eu não fiquei satisfeita
senão quando me vi livre da sua analyse.
«Mas d'esta vez foi a mão de Camilla quem me
recebeu.
Rapidos como o relampago, os dedos elegantes,
que me tinham lançado ao
mundo,
adivinharam,
antes
d'ella a executar, a tenção que a baroneza
formára de
me entregar ao meu dono, e apressaram-se em preceder
a mão solicita de Eduardo.
«Devo confessar que, desde essa visita fatal, o bom
humor de Camilla alterára-se sensivelmente,
alteração
cujas consequencias Eduardo soffria com grande pasmo
seu. Não podia comprehender o azedume que sentia em
todas as palavras de Camilla, e, muitas vezes, espreitando
pelo buraco da fechadura da minha gaveta, o vi
de pernas cruzadas, e em attitude meditativa, perguntando
a si mesmo quaes seriam os díabos
azues que
atormentavam sua esposa, e a elle por conseguinte.
«Depois de jantar, os dois esposos vieram tomar
café
para o sitio onde eu estava; a conversa que se travára
[130]entre elles
affrouxava a cada instante, porque os esforços
que Eduardo fazia para a sustentar eram completamente
infructiferos, por causa da sequidão das
respostas de Camilla.
«Acabaram de tomar o café, e Camilla foi
encostar-se
á janella.
―«Está uma tarde tão bonita!―disse
Eduardo,
não queres aproveitar este lindo dia de inverno para
ires vêr os campos, que estão experimentando
já os
mantos verdejantes com que hão de comparecer na
festa annual da primavera?
―Está estragando comigo a sua poesia, respondeu
Camilla seccamente, guarde-a para as pessoas que
quizer deslumbrar. Isso era bom quando me fazia a
côrte.
―«E não sou eu sempre o mesmo, Camilla; deixaste
tu um instante só de ser a noiva gentil que eu
adorei, que adoro, e que sempre hei de adorar? Não
sou eu sempre o namorado solicito dos primeiros tempos?
Isso, a que se deu, por convenção, o triste nome
de prosa do casamento, teve nunca entrada nos nossos
corações?
―Ah! Ah! que differença! O que me dizia então:
«Oh! nunca me hei de separar de ti! Hei de estar
sempre ao teu lado! Que valor tem o mundo inteiro
junto do teu olhar?» E agora sae quando lhe parece,
anda por fóra o tempo que quer, demora-se a conversar
com os amigos; porque sua mulher, essa não serve
senão para estar n'um canto da casa, á espera que
o
senhor lhe faça a esmola
da sua presença. Não é porque
eu me importe com isso! Eu, sim! É-me completamente
indifferente! Nunca estou melhor do que quando
[131]está
longe de mim! Olhe, d'isso
póde estar certo! Se
fallei, foi porque me enraiveceu a sua hypocrisia.
―«Quanto és injusta, Camilla! Pois eu
não desdenho
tudo, tudo n'este mundo para estar junto de ti;
não prefiro a todos os vãos divertimentos, a
todos os
prazeres a nossa deliciosa intimidade? E, quando os
meus negocios me chamam fóra de casa, não me
affasto
de ti tão penalisado, e não aproveito a primeira
occasião de me desembaraçar d'elles para correr
alegre,
satisfeito, risonho, a abraçar-te, a beijar-te, a
testemunhar-te
o immenso e inalteravel affecto que te
consagro?
―«Negocios! que grandes negocios que tem! Quaes
são elles? Talvez ir visitar a baroneza!
«Eduardo levantou-se, olhou fixamente para sua mulher,
e disse:
―«A baroneza! A baroneza, porquê?
―«Foi a primeira pessoa que me lembrou, tornou
Camilla, fazendo-se ligeiramente córada.
―«Nada! Isso è um tanto inverosimil.
―«Inverosimil, porquê?―tornou Camilla,
irritando-se
e fazendo-se vermelha de despeito. Talvez imagine
que eu tenho ciumes do senhor. Que vaidade tão louca!
que presumpção! Que fatuidade! Ora esta! como
logo
suppôz que eu era ciumenta!
―«Mas, filha...
―«Ciumenta e de quem? Ah! Ah! Ah! é de um
ridiculo incrivel! Não querem vêr o formoso
Richelieu,
que anda semeando paixões por toda a parte! E julga
talvez que eu me importo com semelhante coisa! Namore
á sua vontade! Faça o que quizer! Esteja certo
que nunca me ha de dar cuidado! convença-se... entendeu?
[132]Convença-se
bem de que nunca tive ciumes
do senhor, porque eu nunca o amei. Foi uma
predilecção
passageira! Foi um capricho de que me arrependo!
―«Parece-me comtudo, tornou Eduardo ferido no
seu amor proprio, que a união eterna de duas pessoas
não é coisa tão ligeira que se possa
decidir levianamente,
e, se não sentias por mim o amor immenso que
eu te consagrava, mais valia que me despedaçasses o
coração, do que me dirigisses agora essas
palavras
amargas.
―«Então chegou o momento! Sempre fica sabendo
que se enganou; quando suppôz que eu tinha ciumes
da baroneza.
―«Mas foi coisa em que não fallei, filha, bradou
Eduardo um pouco impacientado.
―«Bem o deu a entender! Não o disse, mas
pensou-o.
E então escolheu bem a pessoa que me poderia
tornar zelosa! A baroneza, uma tola presumida, uma
coquette insupportavel, que
não tem nem belleza, nem
espirito, nem graça, nem elegancia, mas que possue
em compensação uma vaidade immensa.
―«Pobre baroneza!
―«Defenda-a, ande! então porque a não
defende?
É o que lhe falta unicamente! Ouse tomar, deante de
sua esposa, o partido de uma mulher como é a baroneza.
―«Ih! Jesus! Camilla! Eu não tomo a defeza de
pessoa alguma. Mas tu fallas da pobre senhora, como
se lhe tivesses um odio mortal.
―«E tenho, bradou Camilla, erguendo-se com os
dentes cerrados e os olhos fusilantes, tenho odio a essas
mulheres de maneiras affectadas, de olhares languidos,
[133]de vistas
fascinadoras, deslumbrantes na apparencia,
grosseiras na realidade, a quem os homens seguem
tolamente, como as borboletas seguem a luz, ainda que
essa luz emane de uma candeia afumada. Quando ella
hontem quiz vêr a bolsa que eu fizera, tive
tentações
de a rasgar, para lhe poupar uma profanação. E a
proposito,
onde a tens tu?
«Eduardo, ao ouvir esta pergunta, que parecia dever
servir de transição para uma
conversação mais serena,
começou-me a procurar alegremente por todas as algibeiras.
O acaso fôra-me collocar muito mirrada na extremidade
da secretária. No remexer dos papeis eu tinha
quasi caido ao chão; felizmente ou infelizmente,
um resalto da secretária tinha-me retido, e eu alli
ficára
suspensa por uma das borlas, estando esta de
mais a mais completamente occulta por um fragmento
microscopico de papel. Da posição em que eu
estava,
podia vêr e ouvir tudo, sem que ninguem me podésse
divisar.
«Quando Eduardo começou a revolver as algibeiras
não pude deixar de me rir. Era tão comico o
espanto
d'elle, quando, depois de ter esquadrinhado minuciosamente
todos os cantos do seu fato, não encontrava
coisa alguma, que eu, ignorando ainda quaes seriam
as consequencias d'aquella scena, ria-me a fartar.
«Camilla contemplava-o com um sorriso ironico, e
batendo o compasso com o pé no sobrado da sala.
―«Talvez lhe esquecesse lá por
fóra!―disse ella,
accentuando muito as palavras.
―«É impossivel; lembro-me perfeitamente de a ter
n'esta algibeira. Já depois de estar em casa eu a vi, e
até lhe peguei.
[134]
―«Talvez a tivesse confiado a alguem!―tornou
Camilla com o mesmo sorriso estereotypado nos labios.
―«A quem?―perguntou Eduardo com a maior ingenuidade.
―«Eu sei! A alguem que a visse, que gostasse
d'ella, e que a desejasse conservar por algum tempo.
―«Ora essa! Não pódes suppôr
que eu fizesse tal!
―«E porque não? Os homens julgam que tudo lhes
é permittido.
«Mas Eduardo não a ouvia. Tinha-se recordado das
contas que fizera, e tinha corrido a revolver os papeis
que estavam em cima da secretária. Eu, que via a
má
figura que o negocio ia tomando, não desgostei de que
elle tomasse aquella resolução.
«Comtudo, debalde Eduardo deitou ao meio do chão
toda a papelada com uma impaciencia febril, debalde
tentou, depois de os ter reunidos, separal-os um a um.
Eu não apparecia; preza na minha esquininha, sem poder
revelar por fórma alguma onde estava, assisti, espectadora
muda mas não indifferente, áquella
caçada
férvida, em que tanto interesse tinham em se encontrar
a caça como o caçador, mas que apesar d'isso
ficava
sem resultado. Vi os papeis, impellidos pela mão
de Eduardo, revolutearem nos ares em torno de mim,
senti a sua mão impaciente pousar em cima das minhas
borlas, sem saber que estava a meia pollegada de distancia
da extremidade dos seus dedos o objecto que
tanto procurava. E elle bafejava-me com o halito e não
tinha um presentimento que o advertisse, desviava com
a mão tremula os papeis que me encobriam, e de nenhum
d'elles saia uma voz mysteriosa que lhe dissesse:
[135]
«Para conseguires esse thesouro, que tu pagarias agora
com dez annos da tua vida, basta-te abaixar a cabeça,
e estender a mão.»
«Finalmente Eduardo, pallido, com a fronte inundada
de suor, deixou-se cair prostrado em cima de uma cadeira,
e dirigindo-se a sua mulher, disse com voz sumida:
―«Creio que a perdi.
«Camilla não se pôde conter. As
lagrimas, tanto tempo
retidas, rebentaram finalmente, e inundaram-lhe as
faces.
―«Era isso que eu esperava havia muito tempo,
bradou ella com voz entrecortada. Eis a resposta com
que não só pagam a minha
dedicação, mas tambem com
que pretendem illudir a minha boa fé. Anda! trabalha
com amor, com alegria, despende n'essa pobre bolsinha
thesouros de affecto, sorri só ao pensares que essa
obra das tuas mãos vae ser a constante companheira
d'aquelle em que tu só pensas, por quem tu só
vives,
cuja apparição te enche de prazer, cuja ausencia
te faz
ficar immensamente triste. Ai! quanto te illudes, pobre
louca, esse teu mimo ha de ser desprezado, porque tu
tens esse titulo malfadado de esposa, e o amor conjugal
é uma coisa altamente ridicula. Acceitam com desdem
o teu presente, e vão depressa offerecel-o á
primeira
namoradeira que prender, nas suas rêdes vulgares,
a ave fugida do ninho da familia, ninho cuja prisão
lhe é insupportavel. Devia ser esta a minha sorte. Ninguem
se exime a ella.
―«Ih! Jesus! Ih! Jesus!―dizia o pobre Eduardo
com as mãos na cabeça; mas, filha... eu sou um
estouvado...
a bolsa ha de estar por ahi... Da nefanda
[136]traição
de que me accusas é que sou
completamente
incapaz.
―«Traição!―tornava Camilla
procurando, sem o
conseguir, conter o pranto; póde-me trahir á sua
vontade
que me é completamente indifferente. Engana-se
se julga que eu dê o menor apreço á sua
fidelidade.
―«Mas n'esse caso porquê?
―«Cale-se! Diga-me: zombaram bastante de mim?
Riram-se das minhas creancices? Quantas caricias lhe
valeu esse sacrificio tão pouco custoso?
―«Isto é demais!
Juro-te...
―«Cale-se. Quanto mais jura mais mente. Tambem
me jurou amor eterno, e...
«E a pobre senhora desatou a soluçar, e caiu
sentada
n'uma cadeira. Eduardo, com as lagrimas nos olhos,
ajoelhou aos pés d'ella, e exclamou com voz commovida:
―«Camilla, não chores que me
despedaças o coração.
Sou um grande criminoso, mas não mereço castigo
tão cruel. Bem sabes que o amor que te consagro
é immenso, é exclusivo, e que, desde que te
conheço,
nunca mais ergui os olhos para outra mulher. Camilla...
«Mas esta levantou-se enxugando as lagrimas, e disse-lhe
com modo friamente
desdenhoso:
―«Aproveite a inspiração para algum
arrufo que tiver
com a baroneza.
«E saiu da sala, deixando ficar o pobre Eduardo com
um joelho no chão, as mãos erguidas, a bocca
aberta,
espantado, aterrado, paralysado, petrificado, estupefacto!
«Finalmente levantou-se, dirigiu-se de novo á
secretária,
[137]e
procurou
entre os papeis. Com o revolver caíram
alguns, e eu caí d'envolta com elles; o acaso fez-me
ainda ficar tão mirrada entre duas folhas, que,
quando Eduardo veiu procurar ao chão, escapei com
grande desespero meu ás suas pesquizas. Um tal accesso
de desespero se apoderou do meu dono, que,
pegando n'um grande mólho de papeis, no meio dos
quaes ia eu, sem elle o saber, amachucou-o, e depois
enraivecido, atirou-o pela janella fóra. O vento desfez
o mólho, e n'este instante ouvi dois gritos, um de Eduardo,
outro de Camilla, que estava n'uma outra janella
por traz dos vidros.
«O vento forte que soprava, tinha-me separado dos
papeis, meus involuntarios carcereiros, eu caía
magestosamente
isolada, á vista dos dois conjuges, sobre as
pedras da rua.
VIII
«Nunca vim a saber o que se passára na casa,
d'onde
fôra tão bruscamente e tão
involuntariamente expulsa!
Apenas eu caíra no chão, um gaiato de
pé descalço,
que passava por acaso, abaixou-se, apanhou-me, e largou
a correr, apertando-me nas mãos, com uma tal velocidade,
que, por mais ligeiro que fosse Eduardo em
me vir apanhar, logo percebi que não havia
esperança
alguma de que o conseguisse.
«A corrida era desenfreada. Apertada na mão
callosa
do garoto, eu, habituada ao fino contacto das mãos
aristocraticas, que até ahi me tinham manuseado, sentia
dôres atrozes, e uma profunda
humilhação. Eu, a
favorita dos opulentos, tratada assim tão
irreverenciosamente
[138]por um rapaz
pertencente á escoria da sociedade!
Ao meu passado de gavetas de secretárias, de
sophás, de divans, de tapetes, ia succeder um futuro
de palheiro, de calças esfarrapadas, de degraus humidos
de escadarias. As feridas abertas na minha pelle,
tão cuidadosamente curadas e cicatrisadas pela minha
senhora, iam agora ser abandonadas, e talvez alargadas
pelos dedos travêssos do rapaz da rua. Tudo isto ia eu
pensando, em quanto o meu roubador corria a bom
correr, primeiramente pelas ruas da cidade, e depois já
pelo campo.
«Ninguem se tinha importado com elle. Um rapaz
descalço á desfilada, não é
um caso tão grave, e tão
raro, que os encarregados da policia descessem da sua
dignidade, para inquirirem o que motivára a carreira
despedida em que elle ia.
«Chegou ao pé de uma fonte, e, pensando
provavelmente
que já estava fóra do alcance dos seus
perseguidores,
entendeu que podia descançar. Por conseguinte
estirou-se em cima da relva, e tirando da algibeira
um lenço muito esfarrapado, começou a limpar o
suor que lhe escorria pelas faces.
«Estavamos já nos primeiros dias da primavera, e
os
campos revestiam-se de um manto verdejante, que os
malmequeres e as boninas esmaltavam. A agua da fonte
corria com um doce murmurio, e myriades de insectos
com as azinhas doiradas pelo sol, esvoaçavam zumbindo
pelo prado. O sôpro, mysteriosamente vivificador da
primavera, percorria a creação.
«O meu novo possuidor deitara-se, como já disse,
em cima da relva, e collocára-me ao seu lado. Para mim
tudo quanto me rodeava era completamente novo. Eu
[139]nunca tinha
saído da cidade, e o aspecto dos campos
enchia-me de prazer. Parecia-me que respirava um outro
ambiente, que via um céo mais largo, mais azul!
Um enchame de novas sensações se agitava dentro
de mim.
«Assim estava eu boqui-aberta, olhando para tudo
com uma alegre curiosidade. As feveras da herva que
se agitavam em torno, mettiam as suas cabecinhas tambem
curiosas pelos intersticios da seda, afim de observarem
que monstro desconhecido eu era. As boninas
coquettes como todas as
flôres, mostravam-me com desvanecimento
a sua formosura, para verem se d'ellas me
enamorava. Era a tentação que todas as formosas
sentem,
de fascinar os estrangeiros. Os dois proverbios:
«Ninguem é propheta na sua terra»
«Santos de casa
não fazem milagres», são, n'este caso,
da mais escrupulosa
exactidão. As abelhas, que vem de fóra, extrahem
mais depressa a essencia das flôres, do que as que
pertencem á colmeia do jardim.
«Eu sentia correr um indizivel murmurio pelo prado.
O vento, acamando a relva e as florinhas, perguntava-lhes,
no seu dialecto incomprehensivel, que vós não
entendeis, mas que para todas nós é clarissimo,
quem
era a recem-chegada. E os bichinhos pequeninos que
arfavam debaixo de mim, respondiam que era o Hymalaia,
e os insectos zumbidores respondiam que era uma
grande flôr verde com estames de oiro.
«O que é certo é que eu
consubstanciava-me de todo
com a relva que me cercava. Egualmente verde, não
transtornava em nada a unidade do tapete, e as minhas
borlas de oiro matizavam-n'o agradavelmente.
«Assim estava n'aquelle
dolce
farniente, e confesso
[140]que,
apesar de me lembrar de vez em
quando
dos donos
que me eram tão affeiçoados, e de quem me tinha
separado, as saudades que sentia eram attenuadas pelo
prazer completamente novo que me embriagava.
«Mas aquelle ocio não podia durar sempre. O
Tytiro,
que me apanhára, não estava muito disposto a
repousar
sub tegmine fagi, mais do que
convinha á sua indole
vagabunda, e depois de ter saboreado, por espaço
de dez minutos, quando muito, as delicias da
posição
horisontal succedendo á rapidez da corrida, levantou-se,
dirigiu-se á fonte, encheu de agua a palma da
mão,
disposta para esse fim, levou-a á bocca, bebeu, repetiu
duas ou tres vezes esta operação, e depois,
dirigindo-se
a mim, levantou me do chão, e
foi-me levando
socegadamente pelos campos fóra.
«É tempo agora de descrever o meu novo dono. Era
um rapazito dos seus quatorze annos, de rosto alegre
e queimado, com uns olhos negros muito vivos e rasgados,
uma bocca grande, que parecia estar sempre
preparada para as gargalhadas. Todo o seu fato consistia
n'umas calças rotas, n'uma camisa muito suja, e
n'uma jaqueta tão arremendada, que era um verdadeiro
mosaico, porque creio que tinha todas as côres do espectro
solar, e todas as combinações que com ellas se
podem fazer. Um bonet, que estava rodeado por uma
densa armadura de sebo, occupava o alto da cabeça;
porque julgo não haver exemplo de ter sido collocado
na posição habitual, e a testa do garoto, se lhe
dissessem
que este possuia um bonet, estou que ficaria summamente
espantada.
«E lá ia elle por ahi fóra,
baloiçando o corpo a compasso
de uma cantiga, devida ao seu genio musical, distrahindo-se
[141]no
caminho a apanhar
borboletas, a atirar
pedras aos cães, fugindo depois a bom fugir quando
estes o perseguiam ladrando, trepando acima das arvores
da estrada a espreitar se já haveria ninhos entre
os seus ramos, cobertos de novas folhas, e saltando os
muros dos pomares, para se ir empoleirar nas larangeiras,
trincando as laranjas verdes ou maduras, que
se lhe deparavam.
«Devo confessar que a minha situação
durante estas
excursões, motivadas pelos entretenimentos do meu
dono, não eram das mais invejaveis, e que bastantes
vezes amarguei o gosto que sentira, respirando o ar
dos campos. Com effeito o gaiato attendia mais aos
seus prazeres do que ás minhas commodidades, e nem
posso descrever os sustos que curtí, quando os
cães
corriam atraz de nós, e que eu via os seus dentes agudos,
que seriam capazes de me despedaçar n'um segundo;
a triste impressão que eu sentia, vendo as borboletas
tão gentis, tão galantinhas, nas garras do seu
caçador cruel; as dôres que me faziam os esgalhos
das
arvores, rasgando me sem piedade, em
quanto elle subia
descuidoso,
indifferente, affastando a
ramaría, para
vêr se, n'alguma verdejante alcôva, não
teria ido a carinhosa
mãe dos passarinhos depôr o berço
gentil, que
as auras embalariam.
«Sobre tudo o que me atormentava era o costume
que elle tinha de saltar os muros dos pomares para se
ir sentar nas larangeiras, a fartar-se d'esses pomos que
a antiguidade chamou aureos por serem vermelhos, e
que o seu Camões asseverou terem
A côr que tinha Daphne nos
cabellos;
[142]
o que é pouco lisongeiro para a belleza d'essa nympha,
que vinha a ser hyper-ruiva, se acreditarmos as
asserções
do cantor dos
Lusiadas.
N'este ponto tornei eu a interromper a bolsa tão prodiga
em reflexões.
―O espanto, em que me colloca a sua erudição,
impede-me
de reprehender energicamente o tom com que
falla n'essa gloria nacional. Mas diga-me, quem a fez
tão instruida?
―Não antecipemos os acontecimentos, como diria o
visconde d'Arlincourt, respondeu-me a bolsa.
―O quê? Pois tambem leu ou ouviu os romances
do visconde d'Arlincourt?
―Então! meu amigo, tornou-me a narradora, suspirando,
nem tudo são rosas na instrucção.
―Bem, continue.
«Como já disse, esse costume do meu dono
incommodava-me
sobremaneira; porque a escalada tinha para
mim todos os seus inconvenientes, e muitos mais, sem
ter nenhuma das suas vantagens. Em primeiro logar a
subida pelo muro era summamente incommoda; porque
o bom do meu amigo, tendo todas as algibeiras
rotas, e, por conseguinte, não me podendo confiar a
nenhum d'esses toneis das Danaides, de que as suas
calças e a sua jaqueta estavam tão amplamente
providas,
levava-me na mão, apertava-me sem cerimonia de
encontro ao muro, e esmagava-me, torturando ao mesmo
tempo uma pobre meia corôa que eu tinha dentro
de mim, e que eu sentia, de afflicta, resmungar no
meu seio.
«Depois, quando, á força de trabalhos e
de arranhões,
chegavamos ao cimo do muro, novos desastres nos esperavam.
[143]Garrafas partidas
formavam uma especie de
negra palissada, dispostas d'aquella maneira para enterrar
os seus dentes agudissimos nos aventureiros que
intentassem a conquista. Mas o meu dono, que era, segundo
parece, já pratico n'aquelles assedios, tinha tomado
as suas precauções, e foi então que eu
vi que
não era só a questão das algibeiras
que o inhibia de
me resguardar, mas sim tambem uma questão de defeza
propria. Eu, malfadada, servia-lhe de escudo! Eu
era, para assim dizer, o
césto, á
sombra do qual o garoto
jogava o murro com as paredes. N'uma das mãos
ia eu, na outra o lenço de assoar muito embrulhado.
A mão que eu protegia, era ainda assim a que estava
resguardada melhor; porque o tal lenço, para fallarmos
verdade, parecia a moldura de um quadro ausente;
um immenso rasgão formado por uma multidão de
rasgõesinhos
que se tinham annexado, occupava o centro-rodeado em toda a
extensão por uma pobre tira. Creio
que a historia d'essa transformação se
póde explicar
geographicamente. Imagine que o lenço ao principio se
assimilhava com aquelle territorio da America do Norte,
onde existe o lago Ontario, cercado de muitos outros.
Supponha que um grande cataclysmo rasgava os terrenos
que separam esses lagos, e que as aguas trasbordando,
e unindo-se, formavam um verdadeiro mar no
genero do mar Caspio. Ahi tem o que succedeu com
os rasgões do lenço do garoto.
―V. ex.
a permitte-me, interrompi eu, que a
proponha
para socia do Instituto Geographico de Paris?
―Muito obrigada! Não estou agora decente para entrar
n'uma academia.
―Pelo contrario, minha senhora, tornei eu, as bolsas
[144]vasias devem ser
da mesma fôrma que as cabeças, as
que mais depressa sejam admittidas n'essas sociedades
sábias. Póde continuar.
«Não findavam aqui os meus soffrimentos.
Experimentava
alguns rasgões, mas consolava-me com o pensamento
de que o meu sacrificio era util ás mãos do
meu dono, por quem eu professava uma secreta e inexplicavel
sympathia. É verdade que o demonico do rapaz
parecia não se affligir muito com as arranhadellas
que recebia. A mão esquerda, confiada á
protecção nominal
do lenço de assoar, chegava toda em sangue, e
isso, em vez de lhe diminuir a alegria, parecia augmentar-lh'a
e dar melhor sabor ás laranjas com que se fartava.
«Ahi se empoleirava elle, por conseguinte, sentando-se
no ponto de união de dois ramos, toucado de folhas,
baloiçando os pés no ar, e enviando as
mãos em
toda a direcção, a fazerem uma atrevida
razzia aos
taes pomos de oiro do antigo jardim das Hesperides.
E quer as laranjas estivessem ainda verdes, e por conseguinte
amarellas (n'esse caso tem rasão Camões e a
antiguidade), quer estivessem já em pleno sazonar, e
por conseguinte trajassem a purpura que merecem,
como rainhas que são de todas as fructas, o meu bom
gaiato apanhava-as sempre com uma imparcialidade digna
de especial menção, e, ministro justiceiro dos
negocios
do seu estomago, escolhia para funccionarios todos
os fructos, sem distincção de côres.
«Era um bello espectaculo o d'esse rapazito rôto,
esfarrapado,
mais feliz no seu throno de cortiça do que
os reis no seu throno de oiro, comendo as laranjas do
proximo com mais satisfação, de certo, do que a
que
[145]
sente o czar da Russia ao devorar o producto dos roubos
de que é victima a infeliz Polonia.
«Mas por fim de contas vinha a ser eu quem soffria
as más consequencias dos prazeres do meu senhor.
Para poder comer á sua vontade, o meu amigo largava-me
e pendurava-me no primeiro ramo que lhe ficava
á mão. O vento baloiçava o ramo;
ás vezes um gatinho,
que andava passeiando por cima dos muros, vendo-me
ondular na extremidade, saltava e principiava a brincar
comigo. A isto reunia-se o susto de me vêr n'uma
altura para mim desmesurada. Era necessario que os
latidos de um cão de guarda viessem inquietar o meu
dono, para que elle se lembrasse de me tirar da minha
incommoda posição, afim de operar a sua retirada.
Já vê, por conseguinte, que a minha existencia
aventurosa,
se tinha as suas vantagens, tinha tambem os
seus inconvenientes.
IX
«O meu possuidor reconhecera, desde o primeiro momento,
que eu não estava vasia, mas ainda se não dera
ao trabalho de verificar a quanto montava a sua nova
riqueza. Finalmente, depois de estar saciado de laranjas,
cançado de trepar ás arvores, entendeu que era
já
tempo de attender aos negocios do thesouro. Sentou-se
por conseguinte n'uma pedra da estrada, abriu-me com
toda a gravidade, e tirou de dentro triumphalmente a
moeda de cinco tostões.
―«Olá! um
caiado!―bradou elle com alegria, e
para
demonstrar melhor o seu regosijo entoou a aria da
Saloia,
e atirou comigo ao ar a uma distancia immensa,
[146]
com grande desespero meu, porque vim assustadissima,
aos trambolhões pelo espaço, cair na
mão aberta do garoto.
«Este não ficou em
contemplação diante do seu thesouro;
metteu o outra vez no sitio em que estava,
levantou-se,
e continuou o seu caminho, cantando com uma
voz de Stentor, atirando comigo ao ar, e tomando, para
me receber, attitudes de tambor-mór.
«A estrada, que se ia approximando da cidade, ia
sendo tambem mais frequentada. Os caminhantes multiplicavam-se,
e as casas começavam a apparecer. Nem
por isso o gaiato deixou de cantar a
Saloia a plenos pulmões,
com grande escandalo das velhas sentadas nos
degraus das portas, que acompanhavam cada estrophe
da aria popular com um desafinadissimo côro de
imprecações.
―«Valdevinos!―Bregeiro!―Gaiato sem emenda!―D'onde
vens tu, maroto?―Ah! boa sova!―Fosse
eu tua mãe que te havia de moer o corpo com
pancadas!―Só
se perdiam as que caissem no chão!―D'onde
vens tu, desavergonhado, vens de roubar laranjas?―Tu
vaes direitinho para o
inferno!―
Berzabum te valha,
démo pequeno!―O descarado vem a cantar para
quebrar a cabeça ás almas
christãs!―Quem te puzesse
uma farda ás costas!
«E outras amabilidades de egual jaez, a que elle
só
respondia, grave e serenamente, com esta invariavel
apostrophe:
―«Eh! bruxas!
«Quiz o acaso que passasse ao nosso lado um sujeito
gordo, com umas barbas de phariseu, uns olhos esgazeados
e orlados de vermelho, uma d'estas physionomias
[147]baixamente
orgulhosas, onde se lê ao mesmo tempo
o servilismo para com os poderosos, o desabrimento
para com os humildes. Desbarretava-se até ao chão
quando passava alguma carruagem, onde ia pessoa conhecida
d'elle, e correspondia ligeiramente á
saudação
dos pobres trabalhadores, que levantavam o chapéo,
com aquelle ar gravemente cortez dos homens do
campo, para lhe dizerem:
―«Guarde-o Deus, senhor Domingos Gil.
«Para o meu gaiato, vel-o, e conceber a idéa de
lhe
fazer alguma, foi acto simultaneo. Com um sorriso malicioso
nos labios enrolou-me na mão muito bem enrolada,
de sorte que só ficasse de fóra o sitio onde
estavam
os cinco tostões, e approximando-se, pé ante
pé,
do empavezado passeiante, ergueu a mão, vibrou-me
com toda a força, e fez-me desabar, indo a meia
corôa
de esquina, na copa do chapéo do gorducho.
«A
gebada foi magistral; o
chapéo enterrou-se até aos
olhos; e em quanto o dono d'elle, espumante de raiva,
procurava desembaraçar a cara d'aquelle inesperado
invólucro,
o rapaz pôz-se fóra do seu alcance, e,
já lá
muito ao longe, ouviu as exclamações furiosas da
sua
victima, que ameaçava prendel-o, matal-o, enforcal-o,
esquartejal-o.
«O homem ficára desesperado. Pois não
tinha rasão;
o seu chapéo, como sempre, tinha-se curvado ao dinheiro.
X
«Livre de perigo, o meu dono, reflectindo no caso,
houve por bem rir-se ás gargalhadas do que
praticára.
[148]
Com effeito merecia a pena. Eu, apesar de ter padecido,
não desgostei da correcção.
«Depois de se rir á vontade, entendeu o auctor da
gebada
que não poderia ser completa a sua
satisfação se
não visse a cara do paciente depois do castigo. Reflectiu
como poderia conseguir vêl-o sem ser visto, e como
afim de reflectir melhor, quando olhava para o céo a
procurar inspiração, deu com a vista n'uma arvore
que
se erguia mesmo ao seu lado. Vêl-a, e trepar a ella, foi
uma e a mesma coisa. O mirante era optimo, bem arejado,
completamente resguardado da curiosidade dos
profanos, proporcionando ao seu habitador provisorio
um delicioso panorama para se entreter emquanto não
passasse aquelle a quem esperava. Attendendo, pois,
ao merecimento e mais partes que concorriam na pessoa
da dita arvore, estabelecemo nos n'ella
sem cerimonia,
eu n'uma caminha de folhas, elle encostado a
uma especie de janella verdejante, d'onde via optimamente
tudo quanto se passava na rua.
«Assim, todo escondido, de joelhos, com a sua physionomia
curiosa e maliciosa á espreita por entre os ramos,
parecia um macaquinho agil, que espera occasião
propicia para apanhar um fructo que lhe fica distante.
«Por baixo de nós um pobre velho, pallido, magro,
macilento, mostrando no rosto a timidez envergonhada
d'aquelles que um soffrer verdadeiro obriga a pedir esmola,
estendia o chapéo a quem passava. Lagrimas silenciosas
lhe deslisavam nas faces encovadas: o sêllo da
desventura estava gravado na sua fronte livida. Os cabellos
brancos, que o vento agitava, cingiam aquelle
infortunio de uma aureola de magestade. Era augusta
aquella miseria!
[149]
«Comtudo, nenhum dos que passavam deixava cair
uma pobre moeda de cobre n'aquelle chapéo supplicante,
que se lhes estendia. Uns seguiam desdenhosos
o seu caminho, sem responderem sequer com um gesto
á muda rogativa do mendigo! Outros, um pouco mais
humanos, faziam distrahidamente um gesto negativo,
levando ao mesmo tempo a mão ao chapéo. Outros,
mais caritativos ainda, murmuravam «Tenha
paciencia»
ou «Não levo troco», e todos diziam,
lá de si para si,
a phrase conhecida: «Este maroto provavelmente tem
mais dinheiro do que eu. Desavergonhado! Abusarem
assim da caridade publica! Os que mendigam não
são
os que precisam; nas aguas-furtadas é que se aninha
a verdadeira pobreza.»
«Ah! miseraveis! que fingís pensar que
é um officio
divertido o expôr-se um velho, alquebrado de
forças, ao
sol, ao vento, á chuva, ás
humilhações, ao desprezo,
para fazer uma pobre colheita de dez ou doze moedas
de cinco réis, e ás vezes de nenhuma! E a chuva a
inundar os membros mal resguardados do pobre pae
de familias! E o sol a abrazal-o! E a imagem dos seus
filhinhos, lividos e esfomeados, a despertar-se-lhe na
imaginação, e a redobrar-lhe as amarguras!
«Porque vós não sabeis, ou antes
fingís não saber, vós
que julgaes que esse homem vem pedir esmola para se
ir embebedar na taverna proxima, não sabeis que ha
n'algum canto obscuro e doentio da cidade uma familia
de espectros, que espera anciosamente a volta d'aquelle
a quem despedis com as mãos vasias! Não sabeis,
vós
que accusaes de falta de resignação, de falta de
animo,
o pedinte que vos exora com as lagrimas nos olhos,
não sabeis que lhe foi necessario mil vezes mais valor
[150]para se embrulhar
na pobre capinha, sair furtivamente
do misero alojamento, e ir collocar-se, espectro da miseria,
ás portas da opulencia, do que lhe seria preciso
para se despenhar da janella da sua agua-furtada e
despedaçar a cabeça nas lages da rua!
«Continuemos.
«Todos passavam, como já disse, e ninguem dava
sequer ao pobre velho a esmola de um olhar de compaixão.
O meu gaiato mirava-o de vez em quando.
«Passou finalmente o sr. Domingos Gil. O pobre velho
estendeu-lhe o chapéo, murmurando mansinho:
―«Uma esmola por amor de Deus. Meus filhos
morrem de fome.
«O sr. Domingos Gil vinha, como facilmente
imaginará,
de muito mau humor. Trazia a
gebada,
para assim
dizer, atravessada na garganta. As sobrancelhas franzidas,
o olhar fusilante, a cara fula de raiva, denunciavam
o rancor que o consumia. O chapéo, ainda um pouco
amolgado, tambem mostrava resentir uma nobre
indignação.
«A voz do mendigo como que abriu no sr. Gil uma
valvula de segurança, por onde póde sair uma
porção
de colera, que, mais tempo contida, o faria rebentar.
Evitou-se d'esta fórma uma grave perda para a humanidade.
«O sr. Gil desabafou, bradando, ao passo que desviava
bruscamente o chapéo do pobre velho:
―«Sucia de mandriões! Estão estes
marotos á esquina
de todas as ruas, para nos roubarem o dinheiro
que nos custa a ganhar com o suor do nosso rosto!
Vossê não tem vergonha de pedir esmola?
Vá trabalhar,
ou metta-se no hospital se está doente, ou vá
para
[151]
o asylo! Está o governo a pagar um bom par de contos
de réis alli em Santo Antonio dos Capuchos, e pessoas
ricas a deixarem quantias avultadas, que bem tolo
é quem cae em tal, não ha de ser nunca o meu
dinheiro
que elles hão de apanhar; mas está alli aquelle
estabelecimento prompto a receber todo o fiel patife
que não tem eira nem beira, para que? Para andarem
estes velhacos a incommodar-nos. Fosse eu da camara
municipal! Rêde para os cães, rêde para
os mendigos.
Vá para o demonio! Não lhe dou nem cinco
réis!
Canalha!
«E o digno homem continuou magestosamente o seu
caminho.
«Uma lagrima caíu das palpebras abrazadas do
velho!
Fez um gesto de resignação, e deixou pender a
cabeça sobre o peito.
«E a noite estendia já sobre a terra o seu manto
negro.
A noite com o seu duplo cortejo de alegrias, de
festas, de prazeres, de suspiros enamorados, e de tristezas,
de crimes, de horrores, de soluços da miseria!
A noite, fada mysteriosa, e negra feiticeira! A noite que
se deixa illuminar pelo lustre dos salões, e pela candeia
das aguas-furtadas, mas felizmente tambem e em toda
a parte pelo fulgor das estrellas, que é o olhar de
Deus.
«E o velho scismava tristemente. Não tivera
resultado
o sacrificio! Nem um pedaço de pão podia levar
aos
filhos esfaimados! Tristeza! A brisa soprava asperamente,
e elle não a sentia! As lanternas das carruagens
que passavam pareciam olhar para elle ironicamente,
mas as estrellas, essas miravam-no tristemente.
«E o velho scismava! A pobre agua-furtada, onde
[152]vivia,
representava-se-lhe na imaginação! Via a
filha
doente, ella que á força de trabalho sustentava
os irmãos,
os pobres innocentes, que pediam de comer! E
elle, o triste velho, ia-lhes apparecer sombrio, para
lhes dizer: «Morrei, não tenho que vos
dar!»
«Então pareceu-me vêr na fronte do
garoto surgir
uma estranha aurora! Immovel na arvore, contemplava
o pobre velho, e a sua physionomia maliciosa tornava-se
pensativa! Eu tinha-o ouvido durante o caminho
fazer mil projectos para o emprego dos cinco tostões,
comprar bolos, ir ao theatro, alugar um burro, mil extravancias
que elle acariciava com o amor de creança!
N'aquelle momento não trocaria os cinco tostões
por
um imperio!
«Depois de contemplar por um instante o velho, estendeu
a mão para mim, tirou-me do ramo, e deixou-me
cair no chapéo do mendigo.
«E depois de ter gozado por um instante da
estupefacção
do pobre homem, deixou-se escorregar da arvore,
e escapou-se sorrateiramente.
«O garoto desapparecera; mas quem olhasse bem podia
vêr alvejarem vagamente, na escuridão nocturna,
as azas luminosas do anjo da caridade.
XI
«Quando me achei no chapéo, e depois na
mão do
pobre velho, a primeira sensação foi a da
alegria, a do
desvanecimento. Parecia-me que eu tambem participára
da boa acção do rapaz, e que me competia uma
parte
dos agradecimentos que lhe eram devidos. O que e
«Quando me achei no chapéo, e depois na
mão do
pobre velho, a primeira sensação foi a da
alegria, a do
desvanecimento. Parecia-me que eu tambem participára
da boa acção do rapaz, e que me competia uma
parte
dos agradecimentos que lhe eram devidos. O que estava
[153]longe
de esperar,
é que seria eu quem os receberia
a todos.
«Com effeito o pobre velho, depois de olhar muito
tempo em torno de si, depois de mirar bem a arvore,
cujos ramos se estendiam sobre a sua cabeça, concluiu
por attribuir ingenuamente a um milagre da Providencia
o beneficio que recebêra; e, depois de ter reflectido
bastante tempo, convenceu-se devéras de que a bolsa
lhe caira do céo, e tão arreigada conservou esta
convicção,
que ninguem seria capaz de lh'a arrancar. Veneravel
candidez de crenças! Não se importou com
o pensamento de que não
valia a pena fazer um
milagro
para dar cinco tostões, e que, ainda que o céo
estivesse
inclinado a economias, não era natural que a Providencia
tomasse a precaução de collocar a sua esmola
dentro
de uma bolsa de seda verde.
«A tudo isso responderia elle que a menos que a
bolsa não se formasse no ar, e caisse por si mesma,
ou que existissem actualmente arvores com esse fructo,
esse dinheiro não podia vir senão do
céo. E vinha com
effeito.
«Por conseguinte o bom do velho, passando do immenso
desalento á immensa alegria, ajoelhou, beijou-me
fervorosamente, depois levantou-se, e correu com
uma lizeireza de rapaz a fazer as compras necessarias
á sua pobre familia.
«Foi então que eu me pude convencer de que
não
eram a mim que se dirigiam, no tempo da minha prosperidade,
os comprimentos que tanto me enchiam de
orgulho, mas sim e unicamente á opulencia que eu
representava.
Foi essa uma desillusão fatal, e que me
causou uma tristeza pungente! Ah! meu amigo, bastará
[154]esse
dia para eu
conhecer o egoismo dos homens.
Desde o instante em que eu saíra da casa em que
nascêra,
no curto espaço de duas ou tres horas, que de
agargas lições, que de tristes
ensinamentos!
«Nas casas em que entrava com o meu pobre possuidor,
ninguem olhava para mim, assim como ninguem
olhava para elle. N'uma loja de capellista onde o velhinho
foi comprar agulhas, o instrumento de trabalho de
sua filha, a fragil armasinha com que ella combatia intrepidamente
o demonio da miseria, estavam umas senhoras
arrastando sedas, e resplendendo em joias. Estavam
comprando não sei o quê, mas fosse qual fosse
a compra, ellas demoravam-se immenso, porque desejavam
escolher á vontade, e obrigavam a dona da loja,
que satisfazia as suas exigencias com toda a complacencia,
a revolver todas as caixas, a mexer em todas
as gavetas, a abrir todos os armarios.
«O bom do meu velhinho, impaciente como estava,
para levar de comer á sua pobre familia, depois de esperar
um pedaço, não pôde deixar de
dizer,
collocando-me
timidamente em cima do balcão:
―«Se a sr.
a Ignacia me podesse aviar
n'um instantinho...
«A capellista, interiormente enfurecida pelas
maçadas
que lhe estavam dando as suas opulentas freguezas,
voltou-se, e empurrando-me bruscamente, tão bruscamente
que caí no meio do chão, bradou com uma
voz desesperada:
―«Espere, não tenha pressa, guarde o seu
dinheiro.
Não vê que estou a servir estas senhoras?
«O meu pobre dono calou-se, e apanhou-me sem
murmur
«O meu pobre dono calou-se, e apanhou-me sem
murmurar sequer. O que havia elle de fazer? A capellista
[155]fiava lhe os
utensilios necessarios a
sua filha, em
occasiões de apuro, e até ás vezes,
porque no fundo a
tia Ignacia tinha um bom coração, lhe emprestava
os
seus vintens.
«Eu é que não admitti circumstancia
attenuante possivel
para o ultrage que recebêra. N'essa manhã mesma
eu fôra tratada tão amavelmente n'uma loja de
capellista
com estanco, onde Eduardo entrára a comprar
charutos, que não percebia qual fosse o motivo da subita
differença.
«Já vê que as
lições ainda não tinham aproveitado.
«N'esse ponto foi que eu principiei a avaliar as amarguras
da minha nova posição. Felizmente, a scena que
se lhe seguiu veiu adoçal-as um pouco.
XII
«Tremulo de alegria, subiu o velho os ingremes degraus
de uma escada tortuosa e escura, que conduzia
á agua-furtada onde habitava. Quando chegou ao ultimo
patamar parou para respirar. O coração batia-lhe
com
alegria. Pensára tanto em subir aquella escada lentamente,
como um homem que leva sobre os seus hombros
o peso enorme do infortunio; pensára tanto no
soffrimento que o havia de dilacerar quando chegasse
com o desespero na alma ao mesmo sitio onde parára
ebrio de alegria; pensára tanto no triste espectaculo que
se lhe havia de deparar, no desgosto profundo que havia
de sentir; pensára tanto em tudo isso, que
chegára
quasi a costumar-se a essa idéa, e que a felicidade
[156]encontra-o armado
para a desgraça e desprevenido para
a ventura.
«Finalmente entrou.
«Que espectaculo tão novo para mim foi esse que eu
divisei! Das trevas, que envolviam a casa, saiam gemidos
abafados, soluços horrendos, murmurio dilacerante,
reflexo pavoroso do sussurro dos condemnados
do inferno accumulados na tenebrosa
géhenne que Dante
visitou. O meu dono, depois de abrir a porta, ficou um
instante parado, e involuntariamente as lagrimas inundaram-lhe
as faces, parando nos labios, que sorriam
com um sorriso de consolação.
«Quando o meu olhar se costumou ás trevas, pude
então vêr no fundo do quarto, e deitadas em cima
de
uma pobre enxerga, duas creanças de nove para dez
annos, pallidas, magras, com os seus corpinhos quasi
nús, tremendo de frio n'aquelle recinto humido. Choravam,
e choravam de fome! Mais ao fundo, n'um pobre
catre, que era ainda assim o unico traste da casa,
jazia a filha mais velha, rapariga dos seus vinte e tantos
annos, a quem o soffrimento arrancava gemidos.
Uma pobre coberta esfarrapada mal a resguardava. E
comtudo, a pobre rapariga estava com uma febre violentissima;
o delirio apoderára-se d'ella. Murmurava
phrases incoherentes, gemia, soluçava. E as trevas, a
escuridão atroz a suffocal-a! E lá ao fundo, na
sombra,
a fulgirem sinistramente as garras do demonio livido
da fome!
«Uma toada de musicas alegres entrava pelo quarto.
No primeiro andar havia baile. A dois passos do risonho
turbilhão das walsas o horrido vendaval do infortunio!
[157]
«Ó destino!
«O velho, silencioso, accendeu uma véla. Depois
pôz
na chaminé a lenha que trouxera, e accendeu o lume.
Espalhou-se no quarto um doce calor.
«Os pequenos tinham-se levantado na cama, estupefactos!
«Depois, sempre silencioso, pegou n'um braçado de
couves, migou-as, tirou um pão, fel-o em sopas, deitou
tudo dentro de um pobre tachinho de barro, e pôl-o
ao lume. Os pequenos tinham-se approximado d'elle.
«O velho voltou-se. A sua cabeça, coroada de
cãs,
inclinou-se meigamente para as loiras cabecinhas que o
rodeavam.
«E, vendo-os tremulos, mal se podendo suster em
pé,
abraçando-lhe os joelhos, as lagrimas saltaram-lhe de
novo dos olhos, a voz embargou-se-lhe na garganta, e
só pôde dizer:
―«Meus filhos!
―«Pão!―foi a resposta das creanças.
―«Sim, meus filhos, esperem, esperem um instante.
Haveis de ceiar, haveis de ceiar, meus pobres pequeninos,
e haveis de dormir depois o somno de innocentes,
que a fome repelle ha tanto tempo de cima das
vossas gentis cabecinhas! Deixae-me, deixae-me ir tratar
de vossa irmã, da minha querida filha, que tanto
soffre por nossa causa.
«E o velho approximou-se da pobre doente, que
olhava para elle com uns olhos desvairados, coou-lhe
por entre os dentes um calmante, que comprára n'uma
botica, porque o pobre do homem gastára até aos
ultimos
cinco réis, e comtudo quantas coisas de primeira
necessidade tinham ficado ainda por comprar!
[158]
«O calmante produziu um bom effeito. Ao delirio succedeu
a prostração, e a costureira adormeceu com um
somno pacifico e reparador.
«Então o resto da familia agrupou-se em torno da
enxerga, meza improvisada, para onde foi trazido em
triumpho o tacho das couves. Os pequenos lançaram-se
sofregamente á comida, e em poucos minutos desappareceram
as couves e as sopas, sem omissão de um
talo, sem esquecer uma migalha.
«O velho mal tinha bebido um golo de caldo. Embevecido
na contemplação de seus filhos satisfeitos, nem
pensára na sua propria fome. De vez em quando levantava
ao céo os olhos arrazados de agua, e murmurava
palavras incomprehensiveis. É essa a
oração que a
Deus mais agrada; porque é a effusão sincera, e
livre
de preceitos, de um coração que trasborda de
reconhecimento.
«Quando terminou a ceia frugal, o bom do velho chamou
as creanças para junto de si, e fazendo-as ajoelhar,
e unindo-lhes as tenras mãosinhas, disse-lhes com voz
grave:
―«Meus filhos, agora que por uma esmola divina
saciaram a fome, é justo que se não
esqueçam d'Aquelle
que se amerceou de vós. Vinde, e repeti comigo:
―«Pae do céo, Vós que, apesar da vossa
omnipotencia,
vos não esqueceis dos vossos filhinhos, que
déstes pão a quem tinha fome, e
consolações a quem
estava afflicto! Vós que, por um milagre da vossa infinita
bondade, nos salvastes da morte, e a nosso pae
do desespero! Vós que sois todo misericordia, tende
compaixão de nossa pobre irmã! E vós,
nossa mãe
querida, que sois agora uma santa no céo, rogae tambem
[159]a Deus que
dê saúde a quem é o
nosso amparo!
Nós vos damos graças, Deus todo-poderoso, e
promettemos
sempre ser dignos da vossa affeição, e
conservarmo-nos
no caminho da virtude, para que a alma da
nossa mãesinha se não afflija de nos
vêr peccadores.»
«E as creancinhas repetiam com a sua voz argentina
aquellas singelas palavras, pronunciadas pelo velho, commovido,
que estendia as mãos tremulas sobre essas cabeças
innocentes, e erguia para o céo os olhos humedecidos.
«Depois beijou-as na fronte com ternura, e mandou-as
deitar. Elle apagou a luz e o lume; sentou-se á borda
da enxerga, e, encostando a cabeça nas mãos,
meditou.
«Porém o dia fôra agitadissimo; a
natureza foi mais
forte do que elle, e d'ahi a pouco tempo o velho, cerrando
a pouco e pouco as palpebras, adormeceu.
«As trevas encheram de novo o quarto. Mas o horror
fugira. Á porta, um anjo do Senhor, com um dedo
nos labios, velava meigamente sobre o somno da innocencia.
XIII
«Cinco tostões não duram eternamente, e
a prova
d'isso é que já tinham desapparecido. A miseria,
que
fugira um instante espavorida, voltava de novo a bater
á porta. Que remedio senão abrir-lh'a!
«Não era feliz no mendigar o meu pobre dono. Raras
vezes obtinha o dinheiro sufficiente para comprar o
necessario. Sua pobre filha melhorára sim, por um prodigio
da natureza completamente desajudada da sciencia;
mas a sua convalescença, desprotegida d'aquelle
[160]conforto,
d'aquelles cuidados tão indispensaveis para o
restabelecimento da saude, prolongava-se, apesar de todos
os esforços que a animosa rapariga fazia para resumir,
e que, como é facil de suppôr, só
contribuiam
para a accrescentar. Queria pegar em trabalho, mas estava
tão fraca, tão fraca, que, apenas dava dois ou
tres
pontos, caía desmaiada sobre a costura, e assim passava
os dias em continuados desfallecimentos.
«Seu pae tambem estava completamente impossibilitado
de trabalhar. Eu chamei-o velho, porque com
effeito os desgostos e as privações essa
apparencia lhe
haviam dado; mas não o era effectivamente. Ainda
não
contava cincoenta annos, e já não tinha na
cabeça um
só cabello preto.
«Despedido da fabrica de oleados em que trabalhava,
porque a sua nimia fraqueza o tornava completamente
improprio para os rudes trabalhos manuaes da fabrica,
vira-se só com tres filhos, sem recursos, sem poder
obter, n'um outro emprego mais suave, o pão para si
e para elles.
«A sua completa ignorancia tornava-o improprio para
qualquer trabalho que não fosse manual.
«Ó ignorancia, negra irmã da livida
miseria!
«Como eu ia dizendo, eram poucos ou nenhuns os
proventos que o pobre homem tirava da mendicidade.
As comidas iam sendo cada vez mais frugaes, e a pobre
rapariga, debilitada, enfraquecida, ia-se tornando
cada vez mais incapaz de trabalhar.
«Admira-se de certo de eu continuar a existir n'uma
casa onde reinava tão profunda miseria! Espanta-se de
que me não tivessem vendido no dia immediato
áquelle
em que tinham gasto os cinco tostões. Eu lhe explico
[161]esse facto na
apparencia incomprehensivel, eu lhe dou
a chave d'esse enigma.
«O meu dono considerava-me, para assim dizer, como
uma enviada de Deus, e não estava muito longe de
imaginar que existisse no meu seio um anjo occulto.
Tocar-me era quasi uma irreverencia, vender-me seria
de certo uma profanação.
«Candidamente supersticioso, o bom velho tinha lá
de
si para si que eu, como mensageira que fôra de uma
esmola providencial, não podia deixar de fazer a felicidade
d'aquelles que me possuiam. Vender-me ser-lhe-hia
tão difficil, como aos romanos cederem, em troca
dos mais enormes thesouros, o palladio que fazia a republica
invencivel. Eu era a égide da casa, emfim.
«Mas um dia o pobre pae de familias voltou mais
triste e amargurado do que nunca. O dia correra-lhe
como aquelle em que eu o tinha visto pela primeira vez,
com a differença que nenhum garoto compassivo, enviado
pela Providencia, se fôra esconder na ramaria de
uma arvore protectora. O velho entrava, pois, em casa,
sombrio, triste, como entraria uns poucos de dias antes,
se não fosse eu apparecer-lhe inopinadamente.
«Entrou, sem dizer palavra. Dirigiu-se logo a um armario
que havia na parede, onde eu habitava, e, tirando-me
para fóra, disse-me, depois de me ter contemplado
lugubremente alguns instantes:
―«Vae, pobre bolsinha, que me trouxeste momentos
de allivio, e cuja côr suave me aconselha a
esperança.
A esperança?! não a posso ter já! Ai!
a minha
sina fatal é mais forte do que a tua benefica influencia!
Ramo verde que uma pomba do céo trouxe no bico a
esta pobre arca, que vae sem rumo nas aguas de um
[162]
diluvio de infortunios, enganaste-me involuntariamente!
Não parou a tempestade! Nem ha de parar talvez! Vae,
não procures luctar mais contra a minha má
estrella!
Vae, e que a tua mesma partida nos seja ainda bemfazeja!
Os anjos de Deus, ou quando descem ao mundo,
ou quando voltam ao paraizo, sempre enviam adiante,
ou deixam após si, um rasto luminoso!
«E beijando-me com fervor, metteu-me no seio, e
saiu.
«Foi triste a sua peregrinação
á procura de um comprador
que se resolvesse a dar por mim um preço razoavel.
Todos, vendo-o assim pobre, mostrando no rosto
livido a fome que o impellia a vender-me, offereciam,
depois de me terem mirado com desdem, um preço
tão
baixo, que, fosse qual fosse a extrema necessidade que
o meu dono tivesse de dinheiro, entendeu que me não
devia deixar ir assim.
«Comtudo, percorriamos lojas e lojas, e nenhum dos
donos d'ellas se resolveu a comprar-me. Pois eu não
valia tão pouco como isso, e estou convencida que muitas
das pessoas, a quem o velho mendigo me apresentava,
desejariam ficar comigo. Rebaixavam-me muito,
mas, segundo depois vim a saber, isso é trica de negociante
para especular com a miseria. Sabem que ainda
que a sua primeira proposta repilla o vendedor, este,
por fim de contas, sempre volta ou a acceital-a ou a diminuir
muito o preço que estabelecera.
«Chamam elles a isso esperteza no negocio. E quem
não quer não venha cá, accrescentam,
terminando com
a phrase pittoresca: «Eu não lhe puz a faca aos
peitos.»
É regra estabelecida que o vendedor peça um
preço exorbitante, e o comprador offereça um
preço diminutissimo.
[163]Que
venha á discussão, mesmo por acaso,
o valor real do objecto, isso é raro. Um negocio de
compra e venda é um jogo de azar em que dois jogadores
trapaceiam. Vêr qual dos dois ha de roubar o
outro,
that is the question. Nunca
um só vendedor se
lembrou de calcular: «Este objecto custou-me tanto,
devo tirar o juro razoavel de tanto, logo vendo-o por
tanto, e nem um real de mais, nem um real de menos»;
e o comprador de pensar: «Posso gastar tanto,
se o objecto valer mais, não compro.» Isso nunca:
sem
uma discussão preliminar, é sensabor o negocio.
Se a
invenção da moeda simplificou as
relações mercantis,
quanto as não simplificaria a invenção
d'esta moeda dos
corações nobres, que se chama «boa
fé!».
«A antiguidade, que fez Mercurio o deus dos
ladrões
e dos negociantes, acertava devéras se accrescentasse―e
dos consumidores.
«Desculpe estas reflexões um pouco prolixas; mas
eu sou o Nestor das bolsas, e desde o celebre ancião
homerico, cujas palavras eram doces como favos de
mel, e que talvez por isso eram prodigalisadas por tal
fórma pelo rei de Pylos, que não sei como os
gregos
não tomaram uma indigestão de melaço:
desde esse
vulto epico, todos os Nestores gostam de pregar grandes
massadas. Eu não me podia esquivar á regra geral.
«Agora vou continuar.
«O meu dono luctou muito tempo contra a avidez dos
compradores, e fez-lhes falhar os calculos. Saía das lojas
com o desespero na alma, o rubor da indignação
na fronte, e não voltava.
«Assim se passaram duas horas.
«O preço, que lhe offereciam, ia sempre
diminuindo:
[164]
porquê? Porque de cada vez a physionomia do mendigo
se tornava mais livida. A anciedade pintava-se-lhe
nas feições. Cada ruga de mais, que se lhe cavava
na
fronte angustiada, traduzia-se immediatamente em cinco
réis de menos no preço que lhe offereciam.
«Finalmente, exhausto, prostrado, desfallecido, entrou
n'uma ultima loja, e, quando entrou, deixou-se cair em
cima de uma cadeira. As pernas recusavam-se a sustental-o
mais tempo.
«Na loja estavam o mercador, e um freguez escolhendo
não sei o quê. Sei apenas que era um rapaz de
uma physionomia sympathica.
«Ambos olharam espantados para o pobre velho, mas
o espanto do primeiro era um espanto encolerisado, o
do segundo um espanto compadecido.
«O dono da loja receiava para as suas cadeiras o
contagio da miseria. Que um cão se estirasse em cima
d'ellas, passe; mas um mendigo!
«O meu dono estendeu-me com mão tremula para o
logista, e disse com voz que mal se ouviu:
―«Eu desejava vender esta bolsa. Quanto me dá o
senhor por ella?
―«Que diz vossê?―tornou o dono da loja com modos
irritados. Falle de maneira que se entenda! Julga
que tenho ouvidos de tisico? Graças a Deus sempre
gozei de boa saude.
―«Desculpe-me, senhor, respondeu o meu dono fazendo
um esforço sobre si mesmo para fallar com voz
mais intelligivel, é porque estou muito fraco. Desejava
saber quanto o senhor me dá por esta bolsa.
―«Ah! até que emfim! Não seria mau que
vossê se
levantasse, porque este senhor talvez se queira sentar.
[165] ―«Deixe
estar o pobre homem,―interrompeu o
freguez com vehemencia, não vê que mal se
póde ter
em pé. Coitado!
―«Pois sim, sim!―resmungou o logista, se toda
a gente que não póde andar se me viesse pespegar
nas cadeiras, estava eu arranjado. Mas vamos lá a
vêr
a bolsa. Ah! está toda esfarrapada! que trapo! isto
não vale cinco réis. Quanto quer vossê
por isto!
―«V. s.
a dirá quanto quer
dar por ella!
―«Eu! olhe, já lhe digo que não lhe
dou mais de
quatro vintens. Nem um real. Serve-lhe?
―«Quatro vintens por uma bolsa de seda, senhor!―tornou
o meu dono com uma profunda accentuação
de amargura na voz.
―«Sim! que ella está muito bonita. E quem me
assevera
que vossê não roubou isto? Nada, parece-me
que nem os quatro vintens lhe dou.
―«Roubar! eu?―bradou o meu bom velho, erguendo-se
indignado da cadeira.
―«Sim! sim! Eu já conheço essas capas
de santidade.
O senhor não póde imaginar, continuou elle,
voltando-se para o freguez, quanto esses malandros
são finos! Olhe, um dia d'estes...
―«Este homem não tem cara de ladrão,
interrompeu
bruscamente o desconhecido.
―«Muito obrigado, senhor, muito obrigado!―exclamou
o meu dono. Sirvam-me de consolação as suas
palavras! Faz-me bem ouvil-as! Partem de um
coração
nobre.
―«Emfim, tornou o logista um pouco despeitado,
se me quer dar a bolsa ahi tem os quatro vintens.
―«Que remedio, senhor! A necessidade é
má conselheira!
[166]ahi
tem a bolsa! Sempre meus filhos não
morrerão hoje de fome!
―«Não, interrompeu ainda o generoso rapaz,
agarrando
no braço do mendigo, não consentirei que se
pratique um roubo assím na minha
presença. Sou eu
quem lhe compra a bolsa. Ahi tem dez tostões, é
tudo
quanto tenho comigo. Creio que a bolsa não valerá
muito mais.
«E, pondo na mão do mendigo duas meias
corôas,
saiu levando-me comsigo, deixando o logista estupefacto,
e sendo acompanhado pelas bençãos do velho.
XIV
«Quando cheguei ao alojamento do meu novo dono,
percebi que a minha posição não
melhorára consideravelmente.
A mobilia da casa não era muito mais numerosa,
do que a da miseravel agua-furtada, d'onde
eu saíra n'esse mesmo dia. Uma estante de pinho, vergando
ao peso dos livros, e uma meza cuja superficie
desapparecia debaixo de uma triplice camada de papeis,
ahi tem quaes eram os moveis principaes d'aquella
casa.
«O resto da mobilia, se o meu amigo quizer absolutamente
uma descripção á Balzac, compunha-se
de um
leito de ferro, e de duas cadeiras de pinho, uma das
quaes se distinguia pela ausencia de um pé, o que lhe
dava as prerogativas de tripode, e a outra primava na
singular docilidade com que se domava a todo o corpo
que se lhe pozesse em cima; porque se prostrava immediatamente
no chão em signal de obediencia. Confesso
[167]que,
quando o meu
generoso possuidor atirou
comigo para a tal cadeira nimiamente flexivel, receei
que apesar da minha leveza, obrigasse o pobre movel
a dar provas da sua habilidade gymnastica.
«O meu proprietario, assim que entrou, despiu o casaco
e atirou com elle irreflectidamente para cima da
cadeira cortez, onde eu, por minha desgraça, estava
tambem collocada. Receber o casaco, fazer um
plié com
toda a habilidade de um mestre de dança, e ir parar
ao chão arrastando-me na quéda, foi uma e a mesma
coisa para a cadeira. O meu dono nem reparou em tal,
e, dirigindo-se logo para a outra, sentou-se á meza,
pegou n'uma penna, molhou-a no tinteiro, e começou
a escrever com uma rapidez incrivel.
«Eu entretanto não estava lá muito
á vontade. Litteralmente
esmagada debaixo do casaco, tinha, para cumulo
de desventuras, mesmo encostado a mim um
grosso caderno de papel, que saía de uma das algibeiras,
e que me pregava no chão, comprimindo-me
atrozmente. Eu ficára embirrando com papeis, desde
o momento em que, por causa d'elles, fôra expulsa
irrevogavelmente da casa dos meus primeiros donos,
e ai! sem esperança de para lá voltar.
«Mas, ainda que eu não tivesse essa
justificadissima
prevenção
contra a papelada, bastava a attitude aggressiva,
que este caderno tomára para comigo, para eu
ficar odiando mortalmente a sua raça. Debalde eu gritava,
ralhava, resmungava, fazia esforços inauditos para
me desembaraçar do peso que me opprimia, tudo era
inutil. O caderno era inflexivel, e o casaco ainda mais.
Não tive remedio senão resignar-me.
«Vendo-me socegada, o caderno de papel começou
[168]a entabolar umas
taes ou quaes
relações comigo. Percebendo
que, por fim de contas, a melhor resolução,
que eu podia tomar, era corresponder á amabilidade
com que me tratavam, troquei algumas palavras com
elle, primeiro n'um tom bastante sêcco, e a pouco e
pouco mais agradavelmente. Emfim, d'ahi a cinco minutos
estavamos os melhores amigos d'este mundo.
«Foi então que elle me disse que o seu dono era
litterato,
como quem diz, não tinha officio nem beneficio.
Andava sempre abundantemente provido de idéas e de
dividas. As idéas eram sublimes, as dividas eram pasmosas.
Nem por umas nem por outras havia quem désse
dez réis. Tinha por costume confiar ao papel os seus
pensamentos; mas por mais empenhos que o papel almasso
mettesse com o papel de imprensa, nunca tinha
conseguido que este se encarregasse de repartir com
elle as honras da confidencia. Não porque o litterato
não tivesse talento; pelo contrario, asseverava o papel
que tinha muito; mas infelizmente, como ainda não se
descobrira o meio de se começar a escrever pela segunda
obra, e os editores queriam unicamente imprimir
os seus escriptos se elle já fosse conhecido, o homem
estava sériamente ameaçado de nunca os
vêr em
lettra redonda.
«Em compensação, um editor Mecenas, um
protector
das lettras com loja de livros n'uma escada, offerecera-lhe
o honroso logar de traductor dos romances
de Paulo de Kock, e de outros notaveis escriptores francezes,
com o pingue ordenado de tres mil réis por mez.
Este homem era tido pelos seus collegas como um perdulario.
«Outro editor, ainda mais estroina ou mais inexperiente,
[169]concebêra
a atrevida
idéa de tentar fortuna imprimindo
as obras do pobre diabo. Pedira-as para as
vêr, pedido que ia dando com o escriptor em doido...
de alegria, e mostrou-as a um entendedor seu amigo.
Este folheou os
differentes
cadernos por
espaço de cinco
minutos, e devolveu-os ao livreiro, asseverando que o
rapaz tinha uma lettra tão boa, que não podia
chegar a
ser um grande escriptor, o que fez com que o bom do
emprezario de litteratura devolvesse os cadernos a quem
os escrevêra, offerecendo-lhe ao mesmo tempo um logar
de caixeiro.
«O litterato atirára com os cadernos á
cara do editor,
depois com os livros que achou á mão, e
já baloiçava
a cadeira gymnastica para lhe fazer tomar o caminho
que haviam tomado os livros e os papeis, quando
o bom do editor descia os ultimos degraus da escada,
e sacudia o pó das suas sandalias á porta de casa
tão
pouco hospitaleira.
O que o caderno meu visinho me affirmou (e devo
dizer de passagem, que fôra elle um dos
projectís de
que o seu dono se servira, um dos navios encarregados
de operarem um reconhecimento nas costas editoraes),
o que elle me affirmou foi que, se o nosso homem
não sacudisse tão depressa o pó das
suas sandalias,
o escriptor vinha-lhe a sacudir mas era o pó da
sobrecasaca.
«Aqui está em resumo o que me narrou o meu
officioso
visinho.
«Não tentarei descrever a vida que eu passei
durante
dois ou tres mezes em casa d'esse seu collega. Póde
imaginar qual era; repouso completo, enercia absoluta.
Collocada na estante, alli passei todo o tempo, sempre
[170]
socegada, sempre vasia, conversando muito com os lívros
meus visinhos, que me ensinaram tudo quanto eu
sei, e me fizeram adquirir a erudição que tanto o
admirou,
e vendo o meu dono passeiar no quarto, sempre
agitado, e sempre procurando alguma coisa, ou uma
rima, ou um lenço de assoar, ou um editor.
«Rimas encontrava elle quasi sempre, lenços de
assoar
algumas vezes, editores nunca!
«A traça fôra o editor unico d'aquelles
papeis.
«Um dia foi elle tambem procurado por uns sujeitos,
que lhe apresentaram um papel sellado, e que lhe disseram
serem elles os encarregados pelo sr. Bartholomeu
Nunes, de proceder a uma penhora por causa de
não sei quantos mil réis que elle devia ao dito
senhor.
«O meu dono não fez a minima
objecção, pegou no
chapeu e saiu, dizendo:
―«Escolham o que quizerem.
«Coisa que elles não o obrigaram a repetir.
Percorreram
minuciosamente todos os cantos e recantos. Nada
lhes escapou. Tudo inventariaram, tudo levaram. Eu,
já se vê, não escapei ao desastre;
lá fui envolvida com
os livros, e sabe quem eu vi tambem no frete?
«A celebrada cadeira das mesuras. Até isso lhes
servira!
XV
«O meu dono (quinto, segundo vê; eu se
não fosse
tão modesta dizia-lhe que pozesse no titulo, em vez de
Memorias de uma bolsa verde, a
Odysseêa de uma bolsa
verde), o meu novo dono era um usurario amador. Magro,
[171]com umas pernas
que se cançavam antes de chegar
aos pés, a tez biliosa, o nariz adunco e cavalgado
por uns oculos, era perfeitamente o typo que Shakspeare
(que foi meu visinho) attribue á sexta edade do homem,
na celebre comedia intitulada:
As you like
it, titulo que
o leitor póde traduzir
como
quizer. Observando rigorosamente
as regras da economia, não comprando senão
o que lhe era restrictamente necessario, e assim mesmo
inventando para seu uso proprio um
necessario especial,
as riquezas que obtinha, moeda de cobre a moeda
de cobre, serviam-lhe unicamente para as ter enterradas
n'uma burra collocada no seu quarto.
«N'esse ponto tinha elle uma certa
coquetterie. As
libras doiradas, em que transformava os patacos dos
desgraçados, encerrava-as dentro de uma infinidade de
bolsas elegantes e ricas até, que estavam dispostas
symetricamente
por fileiras, no fundo do seu
coffre
fort.
Todas as noites, antes de se ir deitar, abria-o, descerrava
as bolsas, e fazia cair sobre o solo uma chuva de
oiro. Alli, Danae de si mesmo, estirava-se elle, enchendo
as mãos de punhados de libras, e fazendo-as cair no
monte a pouco e pouco, enterrando os dedos n'aquella
eira monetaria, revolvendo-a, fazendo-a rolar, apanhando-a
espiga a espiga, juntando-a, contando-a de novo,
enchendo as bolsas, e tornando-as a collocar dentro da
burra. Tudo isto elle fazia com uma delicia, com uma
soffreguidão taes, que não trocaria de certo este
prazer
pelo melhor divertimento do mundo.
«Quando eu cheguei á porta já elle
estava á nossa
espera. Ajudou a descarregar o frete, procurou os livros,
determinou que os vendessem immediatamente,
e deu um grito de surpreza quando eu appareci.
[172]
«Era uma bolsa que o acaso lhe dera para juntar á
sua collecção. Bem sei que eu estava um tanto
rota,
um pouco esfarrapada, e que os rasgões me adornavam,
apesar de eu ser ainda bem nova. Mas as cicatrizes,
n'um rosto imberbe, dão a esse rosto a magestade da
velhice, e eu, considerada debaixo d'esse ponto de vista,
estava magestosa a mais não ser. De mais a mais, nos
emprestimos que o usurario fizera ao litterato, os juros
tinham absorvido o capital, havia já tanto tempo,
que se podia dizer que toda a mobilia do meu ex-possuidor
vinha a sair de graça ao honesto agiota. E n'esse
caso que importava que eu estivesse rasgada? «A bolsa
dada não se olha á seda.»
«Por conseguinte o bom do velhote magrito, assim
que me viu, fez-me mil caricias, e, depois de ficar só,
foi a uma gavetinha, não sem olhar primeiro para todos
os lados afim de se assegurar se alguem o espreitava,
tirou de dentro um cartucho de libras, despejou-o
dentro de mim, prestando um ouvido encantado ao som
metallico do dinheiro, e, levando-me com toda a cautela
bem apertada na mão, dirigiu-se pé ante
pé para
o seu quarto, abriu a burra que estava ao pé da cama,
e depois de contemplar por um instante as bolsas,
amontoadas umas em cima das outras, deixou-me caír
com um suspiro de satisfação, e fechou o cofre.
«Eu ao principio fiquei completamente atordoada.
Esta passagem repentina da luz para as trevas, do ar
livre para um carcere estreito, produziu em mim uma
impressão terrivel. Comtudo a pouco e pouco fui-me
costumando e resignando. Comecei a distinguir alguns
objectos n'aquella escuridão. Os perfis vagos de umas
coisas informes, que eu percebia estarem junto de mim,
[173]foram gradualmente
fixando os seus contornos, e no fim
de um quarto de hora comprehendi que estava rodeada
de uma chusma de minhas irmãs.
«Agora percebo eu que fui pouco habil na
narração.
Pois não o devia ser; porque na estante do litterato
conversára muitas vezes com uma
collecção da
Presse
e do
Constitutionnel; e os folhetins
romances d'estes
jornaes tinham-me ensinado todos os estratagemas, com
que se tem suspensa a curiosidade do leitor, incitando,
aguilhoando-o com a espora do mysterio, de fórma que
elle percorra a narração, como um cavallo
desenfreado
percorre a planicie, sem se importar com as bellezas
dos accessorios, e desejando só chegar ao fim, que
é
para o cavallo o precipicio em que se despenha, para
o leitor a peripecia ultima, que se póde compôr,
á vontade
do romancista, ou de trinta punhaladas, ou de vinte
casamentos.
«Apesar d'essas lições, vê
se que eu ainda estou
muito inexperiente, e que se os meus companheiros de
estante chegarem a conversar alguma vez com esse papel,
que o meu amigo transformou em confidente das
minhas tribulações, hão de
envergonhar-se da má discipula
que tiveram.
«Com effeito, para que fui eu dizer totalmente ao
leitor que o usurario se debruçára a contemplar
as
bolsas? Privei-me assim de umas poucas de phrases
interrogativas, que produziriam uma optima impressão!
«O que seriam esses objectos informes immoveis no
fundo da caixa? Que mysterio se occultaria n'aquellas
tenebrosas profundezas?» Etc., etc. Ora vejam o que
eu perdi.
«Emfim o mal está feito, e não tenho
remedio senão
[174]
continuar a narração, prescindindo d'esses
auxiliares de
que me lembrei tão tarde.
«Um murmurio confuso se elevou assim que eu cheguei.
Na existencia monotona dos prezos é sempre um
acontecimento importante a chegada de um estranho.
A curiosidade irritada por uma longa abstinencia, procura
saciar-se com frenesi assim que se lhe offerece
occasião para isso. Era destino meu concorrer para matar
a fome, umas vezes de pão, quando eram humanos
os que soffriam, outras vezes de curiosidade quando
eram bolsas.
«Por isso, apenas trocámos os primeiros
comprimentos,
logo caíu sobre mim a chuva de perguntas. Quem
era eu? d'onde vinha? como fôra alli parar? De todos
os cantos do bahú saía uma
interrogação; todas as bolsas
olhavam para mim, as mais distantes punham-se
nos bicos dos pés, para me verem melhor, depois cochichavam
entre si; as novas faziam observações zombeteiras
ácerca das minhas feições, e,
comparando-as
com as suas, concluiam que eu nunca lhes poderia disputar
o pomo da belleza; as que estavam intactas achavam-me
horrenda por causa dos meus rasgões; as que
estavam mais rasgadas do que eu, achavam que me ficava
pessimamente o estar pouco dilacerada; as velhas
só olhavam para mim com complacencia, lembravam-se
do seu tempo, suspiravam, e chamavam-me «filha.»
«Depois de satisfazer, o melhor que pude, a curiosidade
geral, chegou a minha vez. Não foi necessario
que eu rogasse muito, para ser informada da vida das
minhas companheiras, não foi preciso até que eu
dissesse
uma só palavra a esse respeito. Se de alguma
coisa me pude queixar, foi da pressa que ellas tinham
[175]de me contar a sua
historia, o que fazia com que fallassem
todas ao mesmo tempo, havendo na caixa uma
balburdia incomprehensivel. Dir-se-ia que era alli a base
da torre de Babel!
«Ai! meu amigo, que horrendas coisas eu vim a saber!
Que de crimes estavam alli escondidos, d'estes que
escapam á justiça dos homens, mas sobre os quaes
estão
abertos os olhos vigilantes da Providencia! Cada
moeda de oiro accumulada n'aquelle cofre, representava
uma enorme somma de soffrimentos. Aqui uma viuva,
reduzida á miseria! mais adiante uma donzella, pura
como os anjos, lançada no abysmo da devassidão!
Acolá
um orphão defraudado da herança paterna. Sommas
consideraveis representavam vidas e vidas de torturas
incriveis, soffridas pelos vossos pobres irmãos, cujo rosto
o acaso do clima revestiu com um manto luctuoso! Que
horrores jaziam alli escondidos! Que de trevas entravam
na composição do fulgor d'aquelle oiro!
«Era já noite. Sentimos uma chave ranger na
fechadura;
tudo entrou no silencio.
«Abriu-se o cofre, e appareceu-nos o rosto livido, e
a extensa figura do usurario. Estava de barrete de dormir
e de roupão. Trazia um castiçal.
«Collocou-o em cima da meza da cabeceira, sentou-se
no chão, despejou-nos uma a uma, e começou a
revolver
a massa brilhante do oiro.
―«Saltem, saltem, minhas meninas, dizia elle em
voz baixa e roufenha, saltem que bem me custam a ganhar.
Não as crimino por isso; pelo contrario. Que prazer
ha ahi que se compare com o que eu experimento
n'este instante? Como tudo isto deslumbra! Tenho aqui
o sufficiente para comprar Portugal todo, incluindo as
[176]consciencias dos
seus habitantes. Para quê! Puf! Que
me importa a mim com essa canalha, que me chama
usurario, e que me vem lamber os pés. Prazer, ineffavel
prazer é este que vós me daes. Saltem, saltem,
minhas
meninas!
«E sorria-se com um sorriso de hyena, o miseravel!
«Finalmente cançou-se, tornou-nos a encher com
toda
a paciencia, fechou o cofre, e foi-se deitar.
«Caíu tudo em silencio de novo.
«Deu meia noite!
«As pancadas do relogio resoaram lenta e lugubremente
na solidão do quarto.
«E eu senti um frio terror percorrer-me o corpo;
porque um vago e convulso estremecimento agitára no
meu seio as libras silenciosas.
«E o cofre abriu-se como se mão invisivel o
tocasse,
e um vulto melancolico e severo, com azas negras nos
hombros, appareceu em pé junto de nós.
«Era o anjo do remorso! Que magestade n'aquella
fronte sombria, que pungente contracção no seu
labio
severo!
«E elle estendeu a mão com um gesto imperioso, e
eu, gelada de susto, senti as peças de oiro moverem-se
por si mesmas, e adquirirem como que umas azas pequeninas.
«Um vago e sinistro suor lhes percorreu a fronte, e
esse suor era um suor de lagrimas!
«E todas se ergueram; o enxame de sinistras abelhas
saíu em bando da tenebrosa colmeia, e a bulha das
suas azas metallicas produzia não sei que lugubre som!
«E, ao mando do anjo do remorso, foram todas pairar
sobre o leito do avaro.
[177]
«Então vi um terrivel espectaculo; de cada uma
d'essas peças de oiro começaram a escorrer
lagrimas
e sangue, que iam caír gôta a gôta na
livida fronte do
usurario.
«E elle agitava-se na cama, erguia as mãos
supplicantes,
procurava limpar a fronte, debalde! porque a
horrenda chuva cahia incessante, incessante, e alastrava
em nodoa immensa, que parecia o funebre sêllo
da reprovação de Deus.
«E das peças de oiro saía um concerto
dilacerante!
concerto composto de gritos, de soluços, de blasphemias,
e de imprecações!
«Depois, a um signal do anjo, as moedas desappareceram
e transformaram-se em espectros, que vieram
doidejar em torno do leito do meu dono.
«E a punição ainda era mais cruel!
«Uma tomára as fórmas de uma mulher,
joven, bella,
um anjo emfim, mas um anjo caído!
«E approximou-se do usurario, e disse-lhe com voz
rouca:
―«Era virgem, estava só! Protegia-me a dupla
auréola da innocencia e da orphandade! Tu vieste,
especulador infame, arrojaste-me a um abysmo, e
manchaste de lodo a minha candida tunica.
«E outra mudava-se n'um pobre velho, de cabellos
brancos, que arrastava uma grilheta preza no pé:
―«Eu era o symbolo da honra; mas tinha filhos!
Reduziste-me á miseria, e eu roubei!
«E todos os espectros bradavam com voz pavorosa:
―«Sê maldito!
«Era horrivel, horrivel aquella scena!
«E durou até que os primeiros e tenues
clarões da
[178]
madrugada entrassem timidamente pela janella do
quarto.
«Com o primeiro raio da aurora, vi apparecer no
quarto um anjo de brancas azas, com a face luminosa
banhada em pranto.
«Veiu e ajoelhou aos pés do seu terrivel
irmão.
―«Ainda não está satisfeita a tua
vingança?―bradou
elle com uma voz melodiosa, de que é apenas um
frouxo echo o plangente suspiro da harpa éolia.
«Era o anjo da guarda do usurario, que o tinha
abandonado,
chamado pelo Senhor, mas que attrahido pelo
invencivel amor, que nos consagram estes celestes protectores,
vinha na hora do supplicio invocar, para o
seu protegido, a misericordia!
«E o anjo do remorso, vencido pelas preces do seu
candido companheiro, fez um signal, e o tumultuoso
enxame entrou no cofre, que se tornou a fechar.
«Um vago bater de azas denunciou-me que os dois
anjos tinham voltado ao céo levados pelo primeiro raio
do sol da manhã.
XVI
«Isto repetia-se todas as noites. O costume já me
tornára indifferente.
«Passaram-se talvez seis annos, durante os quaes eu
nunca saí da minha prisão, e em que, pelo
contrario,
entraram muitas novas companheiras que vinham augmentar
o volumoso peculio, e, ao bater da meia-noite,
tornar tambem mais numeroso o funebre cortejo dos
phantasmas.
«No fim de seis annos morreu o meu usurario! Morreu
[179]de repente!
Não tivera tempo de fazer testamento,
e, segundo me disseram, iamos passar para as mãos
de uma herdeira, parenta muito afastada do finado.
«Com effeito, poucos dias depois da morte de Bartholomeu
Nunes, vieram uns quatro gallegos para levar
a burra a pau e corda.
«Tivemos a consolação de os derrear!
«Quando chegámos á casa para onde
iamos, os gallegos
escorriam em suor, e praguejavam como uns damnados.
«Uma voz argentina fez-se ouvir junto de nós. Esta
voz não me era desconhecida; mas onde a ouvira eu?
Impossivel lembrar-me!
«Finalmente rangeu a chave na fechadura, e abriu-se
o cofre. Que rosto imagina que me appareceu? O de
Camilla! o da minha creadora!
«Descrever-lhe a alegria que senti é-me
completamente
impossivel.
«Ella primeiro não me conheceu. Espantada de tanta
opulencia, não fazia senão repetir:
―«Como aquelle homem era rico!
«Depois tirou para fóra algumas bolsas. Entre
ellas
ia eu.
«Camilla mirou-me attentamente, e murmurou:
―«Que estranha similhança... É
impossivel!...
Seria extraordinario!
«Era-lhe facil sair d'aquella incerteza. A sua delicada
mãosinha bordára no meu corpo as iniciaes d'ella
e de
seu marido; por conseguinte, podia procurar esse signal.
Foi o que fez.
«As duas letras―
C
E―cá estavam enlaçadas
amorosamente.
[180]
«Camilla deu um grito de alegria. Beijou-me freneticamente,
exclamando:
―«Ó minha gentil bolsinha! Torno a encontrar-te.
Como estás desfigurada! Que te tem acontecido? Ainda
conservas as nossas iniciaes n'um estreito abraço! Symbolo
de um amor que passou, que doce amargura eu
sinto em te vêr!
«Que se passára n'aquella casa? Que acontecimento
motivára as tristes palavras de Camilla?
XVII
«Juro-lhe que n'esse momento tive pena de não ser
um ente possuidor da faculdade do movimento, de vida,
emfim, para poder corresponder aos ternos beijos com
que a minha boa dona me saudava. Infelizmente, tinha
de me contentar com os receber e não podia retribuil-os.
Via-me obrigada a ficar immovel, gelada, na
apparencia indifferente.
«Para lhe poupar o trabalho, que eu tive, de saber
a pouco e pouco o que se passára, eu lh'o digo em
poucas palavras.
«Camilla, como sabe, tinha genio ciumento. Eduardo
era impaciente e teimoso.
«Tinham-se repetido muitas vezes scenas similhantes
áquella que me obrigára a sair pela janella, como
um amante surprehendido. Uma vez, porém, a
discussão
fôra mais agitada, do que era habitual. Eduardo
irritára-se, Camilla teimára, e o rompimento
seguira-se.
Fôra uma especie de divorcio
intra
muros, com consentimento
de ambos. Não havia nem sombra de escandalo.
[181]Muito
amaveis um
para com o outro na sociedade,
em casa viam-se apenas ás horas da comida, fallavam-se
muito cortezmente, e depois cada um partia para o seu
lado.
«Esta intoleravel situação durava, ia
para seis mezes.
E não julgue que o amor dos dois esposos tinha
afrouxado; pelo contrario, amavam-se cada vez mais;
porém o seu genio orgulhoso impedia a cada um d'elles
dar o primeiro passo para a reconciliação.
Soffriam,
e soffriam em silencio.
«Ahi tem a explicação das phrases de
Camilla.
«Estava-me ella ainda beijando, quando bateram á
porta devagarinho.
―«Dá licença?―disse a voz de Eduardo.
«Camilla enxugou os olhos rapidamente, collocou-me
em cima da meza, e respondeu com voz ainda um
pouco tremula:
―«Entre!
«Eduardo entrou. O tempo não alterára a
belleza varonil
do mancebo; só um bonito bigode negro substituira
o ligeiro buço do adolescente.
«Eduardo devia ter vinte e nove annos.
―«Desculpe-me incommodal-a, disse elle, sorrindo;
mas nomeou-me procurador n'este negocio da herança,
e, por conseguinte, vejo-me obrigado a estar sempre a
importunal-a para lhe dar as minhas contas. O ministro
da fazenda deve ter entrada franca junto d'el-rei.
―«Póde vir sempre sem receio de me
importunar.
―«Ah! diga isso á vontade. Eu nunca tomo as
coisas
ao pé da letra. Erro grosseiro, que tanta gente
commette, e d'onde resultam tantos desenganos. É para
mim axiomatico o seguinte principio: Todo o homem
[182]na
conversação deve ser um agiota feroz;
não receber
as palavras sem um desconto de cincoenta por cento.
Eu podia n'este ponto fazer um
calembourg sobre as
palavras e as letras... de cambio; mas sou misericordioso.
Ah! a proposito de agiota; estava dando balanço
aos fundos do seu parente? Já vejo que não podia
chegar
em melhor occasião.
―«Não! enganas-te; estava contemplando as bolsas
em que elle mettia o dinheiro. Tem algumas que não
são feias.
―«Ia jurar que conhecia esta, atalhou Eduardo, erguendo-me
com vivacidade; parece-se tanto com uma...
«Interrompeu-se, passou a mão pela testa, e depois
continuou:
―«Com uma que desappareceu, como tudo o que
ella symbolisava.
―«Recordações?! tornou Camilla,
sorrindo ironicamente.
―«Não, vento de inverno que sacudiu um instante
as cinzas frias de um amor que morreu! Se uma centelha
fulgurou por acaso, desculpe-me.
―«Desculpal-o?!
―«Sim, desculpar-me! Nem todos teem força
sufficiente
para arrancar pela raiz, do jardim do coração,
as ridentes flôres da mocidade. Sobre o tumulo, em
que sepultámos o passado, brotam involuntariamente
rosas. Passa uma aragem ligeira, e lá nos vem um perfume
acariciar de novo. Mas deixe, que hei de decepar
a roseira, ainda que da hastea cortada corra o sangue
em borbotões.
―«Quem foi o culpado d'isso?
―«Quem? Nem eu sei. Sei apenas que esse algoz
[183]desconhecido
retalhou-me bem fundo o coração. Bem
fundo! Como vê, a cicatrização
não foi perfeita, e a ferida
ainda sangra de vez em quando! Que loucura!―continuou
elle mudando de tom, e sentando-se n'uma
cadeira com modos affectadamente joviaes, se não foi
melhor assim! Para fallarmos verdade, Camilla, já nos
iamos tornando ridiculos com o nosso eterno arrulhar!
Que absurdo! Dois pombinhos namorados, atravessando
o mundo, atados um ao outro com o laço côr de
rosa do santissimo matrimonio! O mundo ria-se e tinha
rasão; porque o mundo tem sempre rasão. Agora
é
que estamos bem. Somos uns esposos comedidos; encontramo-nos
tres vezes por dia; eu sou o seu procurador,
v. ex.
a a minha intendente. Eu sou o encarregado
dos negocios estrangeiros, v. ex.
a dos do reino.
Vejam se ha n'este mundo viver melhor! A paz do Senhor
habita comnosco! Ah!―continuou Eduardo animando-se
successivamente, morram as suaves recordações!
Arraze-se o jardim, para fazer brotar a ora das
conveniencias! Morra tudo quanto nos possa recordar
as doces horas do alvorecer do nosso amor, esses arrufos,
chuvas de primavera, os beijos da reconciliação,
iris delicioso! Olhe, dê-me licença que afaste da
nossa
vista tudo quanto possa despertar pensamentos perigosos,
prejudiciaes ao nosso repouso. Morra este ultimo
objecto, que ainda se atreveu a fallar-me em coisas
para sempre esquecidas.
«E, dizendo isto, levantou-se n'um incrivel estado de
agitação, e agarrando em mim com vehemencia, ia a
atirar-me pela segunda vez pela janella fóra. Eu estava
já desesperada pela incrivel tendencia que Eduardo
mostrava para me fazer saltar pela janella, e «E, dizendo
isto, levantou-se n'um incrivel estado de
agitação, e agarrando em mim com vehemencia, ia a
atirar-me pela segunda vez pela janella fóra. Eu estava
já desesperada pela incrivel tendencia que Eduardo
mostrava para me fazer saltar pela janella, e pensando
[184]
na minha triste sorte, que ia atirar comigo ao mar das
aventuras, quando julgava entrar no porto de
salvação.
«Um grito de Camilla foi quem me livrou de travar
de novo conhecimento com o espaço.
―«Eduardo, Eduardo, bradou ella com as lagrimas
nos olhos, vê bem essa bolsa!
«Eduardo contemplou-me, viu as iniciaes, reconheceu-me,
e, voltando-se para Camilla, leu-lhe nos olhos
uma tal expressão de amor, que, sem se poder conter,
caiu-lhe aos pés, banhado em lagrimas deliciosas, em
quanto ella, n'um extase ineffavel, lhe beijava os cabellos.
«Que momento aquelle!
XVIII
«Termina aqui a minha narração. Nas
bolsas como
nas nações, são felizes as que
não tem historia.
«Dir-lhe-hei unicamente que fui conservada em casa
de Camilla e de Eduardo, como uma reliquia preciosa,
que se conservava tal qual eu tinha reapparecido, para
trazer a concordia áquelles dois estouvados.
«Quando Eduardo morreu, fui eu a confidente e a
consoladora de Camilla. Como esta nunca tinha tido filhos,
era comigo que fallava em seu marido, e muitas
vezes me regou com as lagrimas que derramava. A pobre
senhora conservava sempre viva e ardente no
coração
a imagem do seu esposo.
«Morreu a opulentissima viuva. Os herdeiros, tambem
já bastante ricos, quizeram liquidar aquelles immensos
haveres. Venderam tudo, eu fui com a
mobilia
[185]da casa, e alli,
graças ao meu amigo, salvei-me de cair
nas garras de algum segundo Bartholomeu Nunes, que
me tivesse seis annos fechada em cofre.
«Ao menos com o senhor tenho podido tagarellar.
«Aqui ponho ponto.»
XIX
Assim fallou a bolsa, e eu, secretario fiel, fui escrevendo
textualmente o que ella me dictou.
Tiro de cima dos meus hombros toda e qualquer responsabilidade.
A aurora começava a apontar no horisonte. Ao passo
que a deusa dos roseos dedos abria as portas do Oriente,
a bolsa a pouco e pouco ia perdendo a animação
ficticia,
que um poder sobrenatural lhe emprestára, e ia-se
deixando cair em cima da meza.
Eu, ingrato, não me importei com isso. Em quanto
ella ia voltando ao seu estado normal, contemplava satisfeito
o papel inundado de garatujas, cuja perpetração
principal não fôra commettida por mim, e escrevia
no fundo da ultima pagina, as seguintes palavras sacramentaes:
Finis, laus Deo.
Quando Lucio Valença acabou a sua longa leitura, o
visconde da Fragosa resonava maravilhosamente, e o
conselheiro Madureira formava com elle um duetto mais
ou menos parlamentar. Henrique e Leonor applaudiam
[186]
calorosamente; Roberto Soares fazia as suas reservas;
Isaura lançava olhares assassinos ao auctor, que na febre
da vaidade litteraria nem reparava n'essas amaveis
provocações. O doutor Macedo indignou-se.
―O Lucio, bradou elle, saíu fóra do meu
programma.
Inpingiu-nos um romance humoristico debaixo da
bandeira de conto da meia-noite. Lavro um protesto, e
peço que se lance na acta.
―Apoiado! exclamou o visconde da Fragosa, acordando.
―Mas, doutor... acudiu Valença, rindo.
―Qual mas nem meio mas! Então isto é conto
phantastico?
Você nunca leu Hoffman? Você nunca leu Carlos
Dickens? Leu, sim senhor, mas tinha o romance
fechado na sua gaveta, apanhou auditorio benevolo, e
impingiu-o. Quer editor! Não é outra coisa,
minhas
senhoras, quer editor! Então onde ha aqui espectro?
onde ha visão? onde ha os terrores legendarios da
meia-noite?
―Peço a palavra, interrompeu Lucio, rindo.
―Sobre a ordem ou sobre a materia? perguntou
gravemente o visconde da Fragosa.
―Sobre o espirito, redarguiu Lucio.
―Não é parlamentar, tornou o visconde.
―Deixe-o fallar, visconde, deixe-o fallar que eu já o
esmago.
―Veremos, tornou Lucio. Qual era o nosso fim, doutor?
Matar a meia-noite... Matou-se. Tres noites a fio
se contaram coisas medonhas, coisas de arripiar os cabellos,
vieram aqui á praça defunctas que vão
a S. Carlos,
phantasmas da meia edade, egrejas submarinas que
se illuminam mysteriosamente á meia-noite. Algum de
[187]nós
trepidou?
Não; pelo contrario. A meia-noite hoje
passou, e ninguem deu por tal. Queriam que eu abusasse
da victoria? A meia-noite morreu.
Parce
sepultis?
―Sophismas! sophismas vãos!
―Appéllo para o
claro auditorio
meu.
―Ó vaidoso! bradou o doutor Macedo, isso é de
Bocage, sabes tu, profano? ousas comparar-te ao gigante?
―Eu por mim gostei, exclamou Leonor.
―Eu tambem! tornou Henrique, trocando uma vista
d'olhos com a gentil filha dos viscondes da Fragosa,
ainda que me parece que os arrufos de Eduardo e de
Camilla duraram mais do que seria de rasão.
―Tu cheiras-me a noivo, Henrique! disse o doutor.
Exhalas um vago perfume de flôr de larangeira.
―Eu, exclamou logo Isaura, requebrando-se toda,
declaro que ainda aqui não ouvi coisa de que mais gostasse.
―Oh! minha senhora, tornou Lucio, desfazendo-se
em agradecimentos.
―Percam-n'o com as lisonjas, percam, acudiu o doutor
Macedo. E agora deixem-me pronunciar a dissolução
da sociedade
Inimiga da meia-noite.
Está a terminar
o tempo da
villeggiatura. Depois de
ámanha é a
ultima caçada. Está dissolvida a
associação.
―Doutor, antes d'isso tenho que lhe apresentar um
requerimento, disse a doce voz de Leonor.
―Mandar para a meza, emendou o visconde da Fragosa.
―Que requerimento é? perguntou Macedo.
―A Juliasita e o Alvaro tem sabido que se contam
aqui, depois d'elles se deitarem, historias pavorosas,
[188]e
as criadas
vêem-se gregas com elles para os despirem
quando chega a hora de os deitarem, porque não
é senão dizerem que querem ficar a pé
para ouvirem
as historias. Prometti-lhes que uma noite d'estas assistiriam
á entrevista. Como decididamente já ninguem
pensa na meia-noite, como hoje se abriu o exemplo de
não se esperar a hora fatidica, não podiamos
ámanhã,
ao anoitecer, abrir a sessão para os pequenitos assistirem?
―Ora... para quê, Leonor? acudiu a viscondessa,
os teus irmãos caem de somno ás primeiras
palavras.
―De certo, se se lhes não escolher coisa de que elles
gostem. A
Julieta de certo a
não perceberiam, acudiu
Leonor, sorrindo maliciosamente para Henrique.
―Não eram só elles, resmungou Henrique Osorio.
Isaura não ouviu; estava toda embebida n'uma larga
conversação com Lucio Valença.
―Ah! eu me encarrego d'elles; pago ámanhã a
minha
quota, aproveito o precedente de Lucio.
―O quê? o quê? acudiu Lucio, que ouvira pronunciar
o seu nome.
―Falla se por aqui no teu precedente, ou no
teu
predecessor, que é a mesma coisa. Julgavas que o
não
tinhas?
Leonor desatou
a rir, Henrique
fez-se ligeiramente
córado, Isaura não comprehendeu.
―Invocando, pois, o precedente de Lucio, continuou
o doutor, apresentarei ámanhã, em obsequio ao
Alvaro
e a Julia, uma
lenda da meia-noite,
que não será lenda
e que não será á meia-noite, o que
dará a Roberto
Soares assumpto para um estudo intitulado:
De como
degeneram as lendas.
[189]
Dispersou-se a companhia, porque era já tarde, mas
Henrique e Leonor tinham aberto uma janella e conversavam
animadamente.
Ao passar junto d'elles, Isaura, a quem Lucio dava
o braço, não pôde eximir-se a
dizer-lhe:
―Veja se se transforma em espectro essa nova Julieta.
―Minha senhora, acudiu Henrique, transformam-se
em espectros ou em nada, que é a mesma coisa, as
loucas visões que sonha a phantasia enferma. Esses
sonhos, quando se desperta, deixam apenas uma impressão
pesada e morbida. E quando se acorda é que
se percebe que as Julietas nunca foram amadas com o
coração, foram sempre um pretexto para as
divagações
de uma imaginação desnorteada.
―E encontrou a bussola, Henrique? acudiu Lucio,
motejador.
―Encontrei, sim, meu amigo.
―Procurou-a por muito tempo?
―Estava ao meu lado. Somos tão loucos que nunca
pensamos em reparar se nas pedras do nosso jardim
habitualmente não se encontrará alguma que tenha
as
qualidades maravilhosas do magnete, e deixamo nos
attrahir tolamente por umas pedras que brilham, que
julgamos diamantes e que são apenas...
―O quê?
―Pedaços de vidro que brilham ao sol; o fulgor
era do sol e não d'elles.
Os dois companheiros de serão trocavam já olhares
inflammados, e nas suas vozes havia um tom ameaçador.
Isaura assistia olympicamente desdenhosa a esse
torneio de espirito. Leonor, inquieta e magoada, sentia
os olhos marejarem-se-lhe de lagrimas.
[190]
―Se não se vão deitar, apago eu mesmo as luzes,
exclamou o doutor Macedo intervindo de subito e separando
bruscamente os quatro personagens da scena.
Olhem que massadores!
E, emquanto o grupo se dispersava, trocando despedidas
um pouco frias, o doutor Macedo fechava a janella
murmurando:
―
Cherchez la femme.
Na noite seguinte assistiam dois novos ouvintes á
leitura. Eram Alvaro e Julia, os dois filhos mais novos
dos viscondes da Fragosa. As creanças estavam radiantes
de alegria; emquanto Alvaro, loira creança de seis
annos, cravava os grandes olhos azues, com infantil
curiosidade, no doutor Macedo, Julia, uma menina de
nove annos, toda elegante, e que era o retrato de sua
irmã mais velha, ouvia, rindo ás gargalhadas, as
historietas
de Henrique Osorio que a tinha no collo, e que,
prodigalisando-lhe as caricias, esperava assim reconquistar
as boas graças de Leonor, que ficára um pouco
ferida pela scena da vespera, em que lhe parecêra
vêr
um resentimento que mostrava que Isaura não
fóra de
todo esquecida.
―Meus meninos, disse o doutor Macedo desenrolando
o seu manuscripto, é só cá para
nós este conto.
A mana, o Henrique e os outros que riam ou durmam,
se quizerem. Nós cá é que nos vamos
entreter. Este
conto é só para nós, e
intitula-se...
Lucio Valencia, que estava collocado defronte de uma
[191]
janella aberta, interrompeu com um espirro o discurso
de Macedo.
―
Dominus tecum, concluiu o doutor.
―Obrigado, disse Lucio.
―Não é obrigado, é o titulo do conto.
Mas vejam
o que é ser-se litterato. Espirramos, diz-nos alguem
Dominus tecum; é o que
basta, saiu um conto!
Todos desataram a rir, e o doutor, com a sua voz
admiravel, com a rara sciencia de recitação que
possuia,
começou a lêr, no meio de profunda
attenção
das
duas creanças, o seu
Dominus
tecum.
[192]
DOMINUS TECUM...
(CONTO PARA CREANÇAS)
I
Agora que a noite começa a desenrolar o seu manto
azul, onde essas fadas luminosas, que se chamam estrellas,
dançam em torno da sua branca rainha, que
percorre o firmamento no seu argenteo carro, umas
solitarias e pensativas, como a scismadora Venus, outras
formando immensa e jovial choréa como as brancas
estrellinhas da via lactea; agora que principia a
ouvir-se ao longe o grave som das Trindades, perfume
de harmonia que parece exhalar-se das urnas gigantes
dos campanarios, vinde, meus meninos, vinde agrupar-vos
em torno de mim, e ouvir as historias maravilhosas
que eu tenho para vos contar.
Arredae da fronte os loiros anneis dos vossos cabellos,
doirados fios que enreda, teimosa, a brisa folgazã,
como que para vos desafiar para novos brinquedos, e
[193]fitae-me bem com
esses olhos azues, transparentes como
o lago limpido, puros como o céo ridente, que vos quero
povoar os sonhos de imagens luminosas d'esse mundo
loução de fadas e duendes!
Ó sonhos infantis! Quem poderá jámais
saber quanto
esvoaçar de azas brancas, quanto rescender de ignotos
perfumes, quanto desabrochar de lindas flôres, quanto
lampejar de suavissimos clarões nos revela aquelle innocente
sorriso que volteia nos labios da creança adormecida!
Que deliciosos colloquios não haverá entre essa
almazinha
gentil, que aspira ao céo, e os anjos, que se
debruçam meigamente do azulado Empyreo, que a tomam
nos braços, que a embalam e lhe sorriem!
E eis o motivo porque sempre despertaes chorando:
é porque os anjos vos poisam no berço, vos beijam
na
fronte; porque vêdes as suas azas candidas transporem
n'um vôo o espaço, e cerrarem-se com fragor as
doiradas portas do Empyreo.
E só vos aplaca o choro o meigo sorrir das mães;
porque, se ha anjos na terra, onde se abrigariam elles
se não fosse no brando seio maternal?
Onde encontrariam imagem mais perfeita do seu Paraizo?
Mas entre o céo e a terra ha outro mundo de encantos,
onde esvoaçam as fadas travessas, os maliciosos
duendes, que são tambem amigos das creancinhas e as
vão poisar, ás vezes, no purpureo
regaço das rosas, ou
nas rendas prateadas do immenso véo do luar.
De dia dormem escondidas no calice das flôres, ou no
seio dos lagos, ou nas folhas das arvores; mas, quando
soam Trindades, eil-as a esvoaçar no ambiente, e
é o
[194]
bater das suas azas, o chilrear das suas vozes, que produzem
esses ineffaveis murmurios que vos encantam
e que vos fazem até cair, sem saberdes por quê,
n'uma
doce melancolia.
São ellas quem ensinam aos rouxinoes esses maviosos
gorgeios, esses deliciosos trinados, que toda a natureza
escuta embevecida n'um vago extase.
São ellas quem accendem nos pyrilampos, esse phantastico
fulgor que vagueia nos prados, e matiza de oiro
o fundo verdejante da relva.
São ellas quem desentranham do seio das flôres as
nuvens de perfumes, que espalham depois, rindo, na
atmosphera.
É o seu bafo a brisa voluptuosa e leve, que faz correr
um vago estremecimento pelas corollas gentis das
rosas e dos lirios.
Por isso a noite é mais formosa do que o dia; porque
o dia pertence aos homens, e durante a noite imperam
os espiritos subtis.
A natureza vê passar com indifferença, e
até com
odio, o homem que se diz seu rei, e cuja realeza é uma
verdadeira tyrannia.
Porque o homem decepa as arvores frondosas; colhe
as flôres que viçavam alegres, e que
vão finar-se em
ramalhetes; acorda os echos doridos com o estrondear
das suas espingardas; e a toda a parte, onde estabelece
o seu dominio, leva comsigo a destruição e a
morte.
Nunca viram, meus meninos, arder uma floresta? É
horrivel! As arvores contorcem-se na agonia, erguem
ao céo os ramos esbrazeados, soltam gritos de
desesperação.
Não é a vegetação inerte
que se reduz ao
nada, é a vida que fenece em convulsões.
[195]
E quem incendiou a floresta? Quem brandiu o facho
assolador entre a folhagem lustrosa? Foi o rei da natureza!
Foi o monarcha da creação!
As fadas e os duendes não destroem assim esses
mysteriosos sanctuarios, onde se abrigam tantos amores,
tantas vidas, tão incessante trabalho de
renovação!
Tem, pelo contrario, com elles mil desvelos; são ellas
quem descerram a pouco e pouco os verdes botões das
rosas do matto; são ellas que penetram nos troncos, e
fazem girar a vivificante seiva em todos os pontos da
arvore caduca; são quem a ajudam depois a desabrolhar
em pimpolhos, em flôres e em fructos.
Por isso, quando á noite dançam e folgam nos
ares,
toda a natureza se compraz em lhes adornar os festejos;
as brisas volteiam com as suas urnas cheias de aromas;
os rouxinoes descantam as suas arias; a orchestra immensa
dos pinhaes, das carvalheiras e dos salgueiraes
entrega aos arcos invisiveis do vento as frementes cordas
das suas franças, ou deixam que mão ignota
doideje
vagamente nas teclas das suas frondes! E tudo
canta, ri e folga, porque são as fadas que
dançam, as
fadas aéreas, os travêssos duendes.
E o homem entretanto, encerrado nas suas mesquinhas
moradas, respira uma atmosphera corrompida,
sente o suor a borbulhar-lhe na fronte depois de dar
um giro na sala abafadiça, e cerra cuidadosamente as
janellas, para que lhes não chegue nem um murmurio,
nem um effluvio, nem um raio de luz.
E a natureza aproveita a ausencia do rei da
creação,
e canta, e folga, e ri, porque são as fadas que
dançam,
as fadas risonhas, os duendes maliciosos.
[196]
II
Em toda a parte ha fadas, meus meninos; mas, como
podem suppôr, não tem o mesmo genio, a mesma
indole
nos differentes sitios. N'uns pontos persegue-as o
infortunio, n'outros sorri-lhes a ventura.
Na nossa terra abençoada, em que temos o céo de
veludo, aguas de crystal, sol de oiro vivo; onde nos
ares limpidos parecem brotar por encanto musicas suavissimas;
onde viçam flôres com profusão; onde as
brumas
são véo ligeiro que touca as cumiadas dos montes,
e não gélido manto que envolve as planicies,
folgam as
fadas de viver. É este o paiz dos seus sonhos, este e
a Hespanha, e a Italia e a Grecia, onde viveram por
tanto tempo as nymphas, as naiades e as dryades, que
eram as fadas dos pagãos.
Livres no ar, alimentando-se de perfumes que nunca
lhes faltam, abastecendo-se nas madre-silvas e nas magnolias,
aquentando-se nos ninhos das avesitas, viajando
n'um raio da lua, não tendo mais em que cuidar
senão
em pentear os seus lindos cabellos, em mirar-se e em
banhar-se nas aguas transparentes, apenas uma vez por
anno, na bemdita noite de S. João, tem de ser oraculos
das donzellinhas, que lhes vem perguntar qual o
porvir dos seus amores.
Donosa occupação! Sair do asylo da folhagem e
entrar
na alma ingenua da donzella, é apenas mudar de
ninho, e não sei qual será mais suave, mais
macio,
mais delicioso e mais immaculado.
Estava com passarinhos, com passarinhos vae estar!
Pois o que são os amores? E se escutavam deliciosos
[197]gorgeios,
finas
trovas, podiam nunca ser tão mimosos
esses cantares como o poema seductor, cujas estrophes
resoam n'um coração de vinte annos?
Mas ai! nem sempre é assim. Nos frios paizes do
norte, na nevoenta
Inglaterra,
na verde mas tristonha
Irlanda, não encontram as fadas e os duendes as
doçuras
d'estes ares, os esplendores d'estes céos, a suavidade
d'estas brisas. Mal que chega o inverno, gelam-se
as aguas, morrem de frio os passarinhos implumes nos
pobres ninhos devastados pela procella, a neve mata as
flôres, embacia-se o clarão da lua, desmaia a luz
e affrouxa
o almo calor do sol, não ha perfumes nem galas,
e ai de quem intentasse dançar nos ares quando o
graniso cae!
Coitados dos pobres duendes! Coitadas das gentís fadas!
Elles, que adoram a liberdade, vêem-se obrigados
a refugiar-se nos quentes curraes, na cinza do lar, e até
na chaminé! Ah! como os seus irmãos dos paizes do
sul teriam dó d'elles se os vissem com as azas brancas
maculadas de fuligem, a não ser que estejam expostos
ao frio e á neve á porta de casa pouco
hospedeira, onde
não lhes abram sequer uma fisga por onde possam
metter os corpinhos enregelados.
Mas os homens são crueis e egoistas, e não
concedem
um favor sem mirarem a galardão; estão promptos
a acolher os pobresinhos dos espiritos, com a
condição
que estes os hão de servir. E aqui temos os nossos
duendes e as nossas fadas, fieis á sua palavra, a
ordenhar as vaccas, a guardar as ovelhas, a tratal-as
nas doenças, a evitar-lhes o mau-olhado, a proteger os
donos da casa, emfim, a fazer o que dez criados não
fariam.
[198]
Mas, meus meninos, os homens, não contentes com
isso, traçam muitas vezes fazer-lhes mal, livrar-se d'elles,
descumprir a sua palavra, e isso tudo exacerba-os,
e fal-os tambem, ás vezes, maus e vingativos.
Ah! meus meninos, a miseria é a mãe terrivel do
mal, tanto nos homens como nos duendes. A miseria,
e a escravidão, e a ausencia da luz! Ah! quando virdes
um criminoso, não o anathematiseis, mas vêde
primeiro
em que atmosphera viveu, quaes foram as primeiras
idéas que teve, qual o estado da sua intelligencia.
E vereis sempre a miseria, o embrutecimento e as
trevas.
Por isso, quando fôrdes homens, dedicae-vos á
grande
obra da regeneração dos vossos similhantes, ao
seu esclarecimento
e á sua educação moral.
E assim tereis cumprido a vossa missão na terra, assim
tereis cumprido o grande preceito da nossa religião
«a caridade», preceito que encerra em si todos os
outros,
raio de luz que, em se espraiando pelo mundo,
basta para dissipar as sombras mais cerradas.
Mas voltemos aos nossos duendes, de que já nos
iamos afastando tanto.
III
Oiçam pois, meus meninos, esta historia, em que
vereis como os duendes se transformam com a miseria
e com o mau exemplo dos homens.
Aqui tem eterna juventude, lá chegam a envelhecer
e tem uma velhice repugnante; aqui não pensam
senão
nas suas fadas, lá ousam querer raptar as filhas dos
homens.
[199]
Ora pois, havia na Irlanda um camponez chamado
Patricio, que pedira um favor a um duende, offerecendo-se
a recompensal-o; mas, apenas se viu servido,
fiado no caracter bom d'esses genios benevolos, não
pensou mais em similhante galardão.
O duende, que já era velho e rabugento, e moido de
trabalho, enfadou-se com esta falta de palavra, e condemnou
o camponez a servil-o sete annos e um dia.
Sentença dada por duende irritado inscreve-se no livro
do destino, e lá não é possivel
arrancarem-se as folhas,
como se fez em Portugal, nem queimar a casa
onde o livro está, como se fez em França.
O pobre Patricio, que não quizera dar uma pequena
recompensa, viu-se obrigado a servir seu amo sete annos,
sem ao menos ter a esperança que teve Jacob, que
se viu mettido em eguaes danças, como os meus amiguinhos
sabem, mas a quem fôra promettida em premio
a formosa Rachel.
E, ainda assim, Jacob não tinha senão que
pastorear
os rebanhos de Labão, o que, por fim de contas,
não
é uma occupação desagradavel.
Mas o pobre Patricio, esse estava em peiores circumstancias.
Além dos trabalhos habituaes, fazia tambem
de escudeiro de seu amo, e tinha de o acompanhar nas
suas excursões nocturnas, excursões que eram
sempre
feitas a cavallo.
Mas a cavallo em quê? Imaginam que iam montados
em guapos corceis, como esses em que os seus papás
montam, ou em pacatos burrinhos, como esses em que
os meus meninos vão tambem dar os seus passeios?
Pois não; as coudelarias do nosso duende tinham
outra casta de cavalgaduras; eram immensas porque
[200]abrangiam toda a
natureza, e porque, a fallarmos verdade,
os cavallos não occupavam muito espaço. Chegavam,
por exemplo, ao meio de um campo, viam duas
feveras de palha, o duende pegava n'uma, dava outra
a Patricio, e dizia-lhe: «Monta».
Montar era facil de dizer, mas de fazer? Parece-me,
realmente, que o mais perito mestre de equitação
se
havia de vêr seriamente embaraçado.
Patricio arrancava os cabellos, amaldiçoava a sua avareza,
que o levára áquelle misero estado; mas como
arrancando
os cabellos ficava calvo, e não transformava a
palhinha nem em burro nem em corcel, não tinha remedio
senão montar, e lá ia elle por esses ares
fóra
atraz de seu amo, que cavalgava tão ufano como se montasse
no celebre Bucefalo de Alexandre, em que os meus
meninos talvez já ouvissem fallar.
De que elle tinha medo principalmente era que os
seus visinhos o vissem n'aquella figura, mas d'isso não
havia perigo; o duende, sendo invisivel para olhos profanos,
tornava-o invisivel tambem a elle.
Outras vezes não eram feveras de palha, mas juncos
e cannas os corceis escolhidos; o bom do Patricio quiz
vêr se conseguia que seu amo acceitasse dois paus de
vassoura, que sempre seriam, emfim, cavalgaduras mais
commodas; mas, apenas elle abriu a bocca, o duende
respondeu-lhe com tanta dignidade que isso era bom
para as bruxas, que o pobre irlandez não ousou insistir,
e tratou de vêr se aprendia as regras da picaria
aeria, e de escolher a posição mais commoda que
podesse
na tal fevera de palha que o transportava pelos ares.
Ora um dia, ou antes uma noite, o duende chamou
Patricio e disse-lhe com modo benevolo:
[201] ―Meu amigo,
determinei casar. Estou a fazer mil
annos, e parece-me que é tempo de tomar estado e familia.
Escolhi para minha noiva a formosa Jenny, e vamos
esta noite buscal-a.
Patricio bem desejaria responder que os olhos azues,
as tranças loiras, a rosea bocca e as faces nevadas da
formosa Jenny não deviam ser para um velhote como
elle, e que um noivo de mil annos, a querer tomar estado,
devia escolher uma centenaria, e não uma rapariga
na flôr dos seus vinte annos, e que, além d'isso,
rasão de todas a mais forte, Jenny casára n'esse
mesmo
dia, e n'esse instante devia-se estar celebrando a boda
em casa do noivo. Mas Patricio bem sabía que o duende
não gostava de reflexões, e portanto, sem tugir
nem
mugir, montou a cavallo n'uma folha de couve, que era
o corcel de gala, e seguiu seu amo pelos ares fóra.
IV
Tudo era festa e riso em casa de Jenny. Brindes sem
conta soavam a cada instante, as violas desprendiam os
seus alegres epithalamios, e a meza, servida á farta,
ostentava-se com a alvissima toalha no meio da casa.
A noiva era realmente galante a mais não poder ser.
Nos olhos tão azues e tão meigos parecia que se
refugiára
a côr do céo, expellida do firmamento pelas
nuvens,
e com a côr do céo a doçura dos anjos.
Os cabellos tinham o colorido das espigas de trigo;
na bocca pequenina esvoaçava um sorriso de amor,
como borboleta em rosa. As faces eram tão brancas,
tão brancas, que desmaiaria junto d'ellas a neve das
montanhas de Erin; mas n'esse momento incendia-as o
[202]prazer e
tingiam-se de reflexos roseos, como a nivea
toalha dos pincaros, quando o sol a illumina ao descair
no occaso.
O noivo era um rapaz esbelto e varonilmente formoso.
O olhar ardente com que, para assim dizermos,
enlaçava Jenny, mostrava o immenso amor que lhe tinha;
a meiguice dos raios de luz, que emanavam dos
olhos da gentil irlandeza, revelava que a voz d'esse
amor encontrára um echo no coração da
formosa que
o duende cubiçava para noiva.
Os convivas agrupavam-se em torno da meza, e no
logar de honra, campeava o gordo padre prior, que fazia
frente a um magnifico prato de cabeça de porco,
flanqueada de feijões, que lhe levava os olhos, como a
formosa physionomia de Jenny enlevava o enamorado
esposo.
O duende e o seu criado entraram sem ninguem dar
por elles, e foram sentar-se commodamente n'uma das
traves do tecto. Os cavallos haviam ficado no telhado
fóra do alcance das outras cavalgaduras, que seriam
muito capazes de as devorar, sem respeitarem por
fórma alguma a confraternidade que as pobres folhas
de couve allegariam.
Empoleirado alli assim, Patricio estava talvez um
tanto incommodado, principalmente porque lhe chegava
o cheiro dos bons manjares que ufanos campeavam em
cima da meza, e o seu estomago segredava-lhe que seria
muito melhor fartal-o a elle do que fartar os olhos
com as saborosas iguarias.
Mas o bom irlandez bem sabia que o seu duende
nunca lhe consentiria mostrar-se, e, portanto, consolava-se
pensando que talvez a ceia das bodas do seu amo
[203]fosse
ainda melhor
do que essa que o estava namorando.
Depois relanceou os olhos para a noiva, e em seguida
para o seu companheiro da trave, e pensou que
era realmente uma barbaridade ligar assim tão donosa
primavera a tão encarquilhado inverno.
N'isto a noiva espirrou.
Um espirro não é coisa que envergonhe ninguem,
mas o espirro de Jenny fez tanta bulha, que a pobre
menina corou muito, sentindo que todas as vistas se
haviam voltado para ella.
Excepto, ainda assim, as do padre prior; o anafado
sacerdote empunhava o garfo e a faca, e com os olhos
cravados na cabeça de porco, a nada mais dava
attenção.
Era natural, meus meninos, que dissessem á formosa
Jenny o consagrado
Dominus tecum;
ninguem, effectivamente,
queria faltar a esse dever; mas a cortezia ordenava
que se deixasse o padre prior tomar a iniciativa,
e, por conseguinte, todos esperaram.
O padre prior tomava n'esse instante a iniciativa,
mas era de se deitar á cabeça de porco; cravou o
garfo
destramente, vibrou com certeza rara a faca a um bom
tassalho, e transportou-o do prato geral para o seu
prato particular.
Terminada essa difficil operação, o padre prior
poisou
as armas triumphantes ao lado do prato, travou
gravemente da colhér, e, em tres ou quatro viagens,
fez mudar de gasalhado, e erigiu, em enorme acervo,
uma respeitavel quantidade de feijões.
Ninguem ousou advertil-o do seu esquecimento, e,
depois d'esse pequeno incidente, a festa
continuou
com
o mesmo estrondo e enthusiasmo.
[204]
A bulha dos queixos do padre prior superava o tumultuoso
acompanhamento.
Mas o duende é que dava pulos de contente na trave,
e dizia a Patricio:
―Se ella dá mais dois espirros e ninguem lhe diz
Dominus tecum, é minha;
foi isso o que Satanaz me
prometteu.
O pobre Patricio enfiou; decididamente, o nosso irlandez
tinha boa alma: se não fosse a tal avareza...
Emfim, ninguem póde ser perfeito.
D'ahi a instantes Jenny espirrou de novo, mas a pobre
menina ficára tão envergonhada da primeira vez,
que o segundo espirro comprimiu-o por tal fórma, que
ninguem o ouviu, nem mesmo o seu noivo, que se via
obrigado n'esse instante a escutar uma enorme
dissertação
de seu sogro sobre o cultivo da batata.
O padre prior comia.
Por conseguinte, ainda d'essa vez passou o espirro
sem o competente
Dominus tecum.
O duende pulava, dava cabriolas, fazia bulha tal, em
fim, que por mais de uma vez um ou outro conviva
olhou para o tecto, mas, não vendo coisa alguma, julgou
que seriam ratos e continuou a divertir-se.
Patricio scismava; era realmente uma dôr d'alma vêr
tão gentil menina cair em poder d'aquelle espirito
malicioso;
pensava que talvez a podesse salvar, mas lembrava-se
das iras de seu amo, que podiam cair sobre
elle, e abanava a cabeça deixando-se ficar mudo e
quêdo.
Finalmente, soou o terceiro espirro da menina, ainda
mais comprimido que os dois primeiros.
Mas ao mesmo tempo retumbou no tecto um formidavel
[205]Dominus
tecum, que fez
tintinar os vidros e tremer
os convidados.
E logo um corpo humano veiu, aos rebolões pelo
espaço,
baquear em cima da meza, entornando o prato
do padre prior, que soltou um grito de desespero, e
apanhou na batina o naco de cabeça de porco, antes
que um mastim faminto, que andava rondando os pés
das cadeiras, désse com tão boa fatia.
Era Patricio que, vencendo as suas indecisões, reunira
todas as suas forças e coragem, e salvára d'essa
fórma a formosa Jenny.
Ao mesmo tempo ouviu-se uma voz que dizia:
―Despeço-te do meu serviço, mas ahi tens o
ordenado.
Não era mau, effectivamente; o irlandez esteve tres
mezes em lençoes de vinho, e ficou toda a vida com
uma dôr nas costellas.
Mas os dois noivos, a quem elle contára o que estivera
para lhes succeder, foram-lhe eternamente gratos,
ajudaram-n'o muito na sua vida, e, quando envelheceu,
levaram-n'o para casa, onde teve sempre uma boa cadeira,
onde se sentava a apanhar a sua restea de sol,
e onde entretinha os filhos de seus hospedes, contando-lhe
as suas viagens aérias, e a historia dos tres espiritos.
V
Cerrou-se a noite de todo, meus meninos, e o sereno
esplendor da lua branqueia-vos as rosadas faces; desperta
a natureza quando adormece o homem; as flôres
entreabrem o
Cerrou-se a noite de todo, meus meninos, e o sereno
esplendor da lua branqueia-vos as rosadas faces; desperta
a natureza quando adormece o homem; as flôres
entreabrem os seus thuribulos; a fonte desdobra o transparente
[206]crystal das suas
aguas, e as naiades chorosas
entoam os seus lamentos.
Já o somno começa a fazer-vos pender a fronte;
brincastes,
correstes durante o dia á luz do sol, chega a
hora do repouso, depois, quando fôrdes crescidos, gostareis
de ficar, como eu fico, a contemplar o estrellado
docel do firmamento, e a perguntar ás vozes mysteriosas
da natureza qual é o segredo que faz palpitar
tantos mundos na abobada estrellada; gostareis de vêr
os campos onde o luar se espraia, as infindas maravilhas
da creação! mas oh! nunca vereis panoramas
como os que vos sorriem agora nos meigos sonhos da
infancia.
Ide, pois; esperam-vos os anjos escondidos detraz
das cortinas alvas do vosso leitosinho, e, se algum espirito
aéreo se vos entre-mostrar tambem, não tenhaes
medo, porque os habitantes d'estes ares luminosos são
fadas meigas e risonhas, e não duendes malignos.
No dia seguinte áquelle em que o doutor Macedo
contára, com grande gaudio das creanças, a lenda
do
Dominus tecum, uma carruagem parava
á porta do visconde
da Fragosa, e apeiava-se d'ella uma senhora edosa
de nobre aspecto e veneranda physionomia, que pedia
para fallar ao visconde e á viscondessa da Fragosa.
Era a mãe de Henrique Osorio, que vinha pedir para
seu filho a mão de Leonor.
Fez algum reboliço em casa dos viscondes este subito
pedido feito para pessoa que sempre vivera em intimas
[207]relações
com Leonor, e que nunca
até ahi mostrára
desejos de a requestar.
Fallando-se n'isso no grupo dos hospedes, o doutor
Macedo disse:
―É para que saibam que, quando se semeia sempre
se colhe alguma coisa, ainda que não seja aquillo
que se previu. Das nossas lendas da meia-noite saíu
este casamento, o que prova mais uma vez que o casamento
e a mortalha no céo se talha.
―Tanto mais que para Henrique Osorio o casamento
e a mortalha devem estar intimamente ligados...
O homem que ama espectros... O auctor de
Julieta!
N'este momento vieram dizer ao conselheiro Madureira
que a sua carruagem o esperava. Despediram-se
elle e a filha dos viscondes da Fragosa, Isaura deu um
beijo frio em Leonor, e cumprimentou seccamente Henrique
Osorio.
―Espero tornal-o a vêr no Espinho, disse ella com
requintes de amabilidade a Lucio Valença.
―Ah! de certo, minha senhora, respondeu o escriptor.
Quando partiram, Henrique approximou-se de Lucio
e disse-lhe:
―Hontem iamo-nos irritando por frivolidades sem
nome. Sabe comtudo, Lucio, que sou seu amigo, e que
não tenho no que vou dizer-lhe o minimo pensamento
reservado. Não se deixe prender nos laços
d'aquella
formosa mulher, que é uma
coquette sem intelligencia
e sem alma.
―Meu amigo, tornou Lucio, rindo, eu estou-a vendo
hoje pelo prisma que você me legou. Hei de dizer mal
[208]
d'elle talvez d'aqui a algum tempo. Agora não ha remedio;
tenho-o encaixado nos olhos.
Henrique encolheu os hombros.
―Pois meus amigos, disse o doutor Macedo, que
vira Leonor entrar a dirigir-se para o seu noivo, tem
a
lenda da meia-noite uma
conclusão inesperada; mas
isso foi bom para que tivesse alguma.
―Effectivamente, disse Lucio Valença, o nosso fim,
confessamol-o, não se conseguiu. As pessoas nervosas,
quando estiverem sósinhas á meia-noite n'um
quarto de
lugubre aspecto, hão de continuar a tremer de espectros.
Affrontal-os em boa companhia não torna aguerrido
ninguem.
―Eu não posso dizer coisa alguma; na
lenda
da
meia-noite encontrei eu, disse Henrique, a ventura da
minha vida.
―E ainda que outra coisa não se alcançasse,
logrou-se
passarem-se algumas noites agradavelmente.
―Assim seja! concluiu o doutor Macedo.
Possam dizer o mesmo os leitores d'este despretencioso
livro.
FIM
Collecção ANTONIO MARIA PEREIRA
VULGARISAÇÃO
DOS MELHORES LIVROS
DAS
LITTERATURAS PORTUGUEZA E ESTRANGEIRAS
Romances, Contos, Viagens, Historia, etc., etc.
Volumes publicados
1― |
Tristezas
á
beira-mar, por
Pinheiro Chagas. |
|
47― |
Ninho
de guincho, por Alberto
Pimentel. |
2― |
Contos
ao luar, por Julio
Cesar Machado. |
48― |
Vasco,
por A. Lobo d'Avila. |
3― |
Carmen,
trad. de M. Level. |
49― |
Leituras
ao serão, por A.
X. Rodrigues Cordeiro. |
4― |
A
Feira de Paris, por
Iriel. |
50― |
Luz
coada por ferros, por
D. Anna A. Placido. |
5― |
O
direito dos filhos, por
George Ohnet. |
51― |
Esgotado. |
6― |
John
Bull e a sua
ilha,
trad. de P. Chagas. |
52― |
Relampagos,
por Armando
Ribeiro. |
7― |
Esgotado. |
53― |
Historias
rusticas, por Virgilio
Varzea. |
8― |
A
lenda da meia
noite, por
M. Pinheiro Chagas. |
54― |
Figuras
humanas, por Alberto
Pimentel. |
9― |
A
joia do vice-rei,
por P.
Chagas. |
55― |
Dolorosa,
por Francisco
Acebal, trad. de Caïel. |
10― |
Vinte
annos de vida
litteraria,
por A. Pimentel. |
56― |
Memorias
de um fura-vidas,
por A. de Mesquita. |
11― |
Honra
d'artista,
trad. de P.
Chagas. |
57― |
Dramas
da côrte, por Alberto
de Castro. |
12― |
Esgotado. |
58― |
Os
mosqueteiros d'Africa,
por Mendes Leal. |
13_e_14― |
A
aventura d'um
polaco,
trad. de Maria A. Vaz
de Carvalho. |
59― |
A
divorciada, por José
Augusto Vieira. |
15― |
Os
contos do Tio
Joaquim,
por R. Paganino.
|
60― |
Phototypias
do Minho, por
J. Augusto Vieira. |
16― |
Esgotado. |
61― |
Insulares,
por Moniz de
Bettencourt. |
17― |
Noites
de Cintra, por
Alberto
Pimentel. |
62_e_63― |
Historia
da
civilisação
na Europa, trad. do
Marquez de Sousa Holstein. |
18_e_19― |
Esgotado. |
64― |
Triplice
alliança, de Raul
de Azevedo. |
20_e_21― |
A
irmã da
caridade,
por Emilio Castellar, trad.
de L. Q. Chaves. |
65― |
Retalhos
de verdade, por
Caïel. |
22― |
Migalhas
de historia portugueza,
por P. Chagas. |
66― |
A
pasta d'um jornalista,
pelo Visconde de S. Boaventura. |
23― |
Esgotado. |
67― |
Os
argonautas, por Virgilio
Varzea. |
24― |
Contos,
por Affonso
Botelho. |
68― |
Fitas
de animatographo,
por Alberto Pimentel. |
25― |
Esgotado. |
69_e_70― |
Poesias
do Abbade de
Jazente, annotadas por Julio
de Castilho. |
26― |
Esgotado. |
71― |
Aspectos
e sensações, de
Raul d'Azevedo. |
27― |
O
naufragio de
Vicente Sodré,
por Pinheiro Chagas. |
72― |
Contos
e narrativas, por P.
W. de Brito Aranha.
|
28― |
Vida
airada, por
Alfredo
Mesquita. |
73― |
Quadros
e letras, historias
e romancetes, por Sanches
de Frias. |
29― |
O
bacharel Ramires,
por
Candido de Figueiredo. |
74― |
Individualidades,
por Henrique
das Neves. |
30_e_31― |
Esgotado. |
75― |
Alfacinhas,
por Alfredo de
Mesquita. |
32― |
As
netas do Padre Eterno,
por A. Pimentel.
|
76― |
Patria
amada, pelo Visconde
de S. Boaventura. |
33― |
Contos, por Pedro Ivo. |
77― |
Historias
e romancêtes, por
Sanches de Frias. |
34― |
O
correio de Lyão, por
Pierre Zaccone. |
78― |
Esbocetos
individuaes, por
Henrique das Neves. |
35― |
Vida
de Lisboa, por Alberto
Pimentel. |
79― |
Recordações
da mocidade,
por Adolpho Loureiro. |
36― |
Historias
de frades, por
Lino d'Assumpção. |
80― |
Sorrisos,
novellas e chronicas,
por A. Campos. |
37― |
Obras primas, por
Chateaubriand. |
81― |
Lucta
de sentimentos, por
Maria O'Neill. |
38― |
O
exilado, por Mauricia C.
de Figueiredo. |
82― |
Do
Rocio ao Chiado, por P.
de Vasconcellos. |
39― |
Poema
da Mocidade, por
Pinheiro Chagas. |
83― |
A
dança do destino, por
Luthgarda de Caires. |
40_e_41― |
A
vida em Lisboa,
por Julio Cesar Machado. |
84― |
Um
drama de ciume, por
Maria O'Neill.
|
42_e_43― |
Espelho
de portuguêses,
por Alberto Pimentel. |
85_e_86― |
Resumo
da origem de
todos os cultos, por C. F.
Dupuís. |
44― |
A
fada d'Auteuil, trad. de
Pinheiro Chagas |
87― |
Vencido,
romance por F. A.
M. de Faria e Maia. |
45― |
A
volta do Chiado, por E.
de Barros Lobo. |
88― |
Elogio
da loucura, critica
de costumes, por Erasmo. |
46― |
Séca
e Méca, por Lino
d'Assumpção. |
|
|
OUTRAS OBRAS
Azevedo (Domingos de)
Diccionario (Grande)
contemporaneo francez-portuguez
e v. v. 2.ª
edição, muito correcta e
extremamente
augmentada.
Grammatica da
lingua franceza.
Grammatica
Nacional, para aprender
portuguez sem mestre.
Lições
praticas de conversação
franceza.
Ollendorff
aperfeiçoado para aprender francez sem mestre,
(2 vol.).
Carvalho (D. Maria
Amalia
Vaz de)
Ao correr do
tempo.
Arte de viver na
sociedade.
Aventura de um
polaco, (2 volumes).
Cerebros e
corações.
Chronicas de
Valentina.
Coisas d'agora.
Contos e
phantasias.
Em Portugal e no
estrangeiro.
Figuras de hoje e
de hontem.
Heroismo do clero.
Impressões de historia.
No meu cantinho.
Nossas filhas.
Pelo mundo
fóra.
Raphael, trad. de
Lamartine,
(ed. de luxo).
|
|
Pinto (Silva)
(Collecção
d'algibeira)
A queimar cartuchos.
A torto e a direito.
Ao correr do pello.
Entre nós.
Frente a frente.
Moral de João Braz.
Mundo (O) furta-côres.
Na Procella.
Na travessia.
N'este valle de lagrimas.
No colyseu.
No mar morto.
Para o fim.
Philosophia de João Braz.
Por este mundo.
Riso amarello.
Rompendo o fogo.
Velha historia.
Queiroz (Dr.
Teixeira de)
Amores... amores...
Arvoredos.
Cantadeira (A).
Caridade (A) em Lisboa (2 vols.).
Cartas d'amor.
D. Agostinho.
Morte de D. Agostinho.
Noivos (Os) (2 vol.).
Nossa (A) gente.
Sallustio Nogueira (2 vol.).
Amor Divino.
Famoso Galrão.
Ao sol e á chuva.
Grande (A) Chimera. |
Notas
[1]
Não é da auctora a idéa
inicial d'esta lenda. Encontrou-a de
certo n'um magnifico livro do conde de Résie, intitulado
«
Historia
e tratado das sciencias occultas.»
O livro em que fallo é um optimo archivo de todas as
tradições
européas. Ha alli thesouros de poesia! Traduzo litteralmente
o periodo,
que me suggeriu a idéa d'este conto. É o
seguinte:
«Nas costas do Baltico estava outr'ora situada uma egreja,
que
alguns impios profanaram um dia, e que com elles se sepultou no
mar. Quando está socegada a noite, ouvem-se ainda esses
desgraçados
cantar soluçando os psalmos da penitencia; e
vêem-se brilhar
atravez das ondas tranquillas os cyrios que accendem no altar,
junto do qual estão condemnados a chorar até ao
fim do
mundo.»
E nada mais.
Como vêem, estava tudo por fazer. Mas a idéa era
extremamente
poetica e prestava-se a um grande desenvolvimento. Pena
foi que a não deparassem escriptores como o auctor das
Lendas
e Narrativas, ou como esse poeta da prosa portugueza,
que soube
dar tão esplendido colorido á
Lenda do castello de Santa-Olaia.
Emfim o conto ahi está, bom ou mau; e com esta nota fica em
repouso
a minha consciencia litteraria.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
A
indicação da primeira
secção da lenda "Memorias d'uma bolsa verde"
foi adicionada, uma vez que existia referência a uma segunda
secção.
Todos os n
e u trocados,
encontrados no texto, foram rectificados.
Os hífens "supostamente" em falta não foram
adicionados.