*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 69353 *** OBRAS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO Edição popular das suas principaes obras em 80 volumes in-8.º, de 200 a 300 paginas impressa em bom papel, typo elzevir [Illustração] 1--Coisas espantosas. 2--As tres irmans. 3--A engeitada. 4--Doze casamentos felizes. 5--O esqueleto. 6--O bem e o mal. 7--o senhor do Paço de Ninães. 8--Anathema. 9--A mulher fatal. 10--Cavar em ruinas. 11 e 12--Correspondencia epistolar. 13--Divindade de Jesus. 14--A doida do Candal. 15--Duas horas de leitura. 16--Fanny. 17, 18 e 19--Novellas do Minho. 20 e 21--Horas de paz. 22--Agulha em palheiro. 23--O olho de vidro. 24--Annos de prosa. 25--Os brilhantes do brasileiro. 26--A bruxa do Monte-Cordova. 27--Carlota Angela. 28--Quatro horas innocentes. 29--As virtudes antigas. 30--A filha do Doutor Negro. 31--Estrellas propicias. 32--A filha do regicida. 33 e 34--O demonio do ouro. 35--O regicida. 36--A filha do arcediago. 37--A neta do arcediago. 38--Delictos da mocidade. 39--Onde está a felicidade? 40--Um homem de brios. 41--Memorias de Guilherme do Amaral. 42, 43 e 44--Mysterios de Lisboa. 45 e 46--Livro negro de padre Diniz. 47 e 48--O judeu. 49--Duas épocas da vida. 50--Estrellas funestas. 51--Lagrimas abençoadas. 52--Lucta de gigantes. 53 e 54--Memorias do carcere. 55--Mysterios de Fafe. 56--Coração, cabeça e estomago. 57--O que fazem mulheres. 58--O retrato de Ricardina. 59--O sangue. 60--O santo da montanha. 61--Vingança. 62--Vinte horas de liteira. 63--A queda d’um anjo. 64--Scenas da Foz. 65--Scenas contemporaneas. 66--O romance d’um rapaz pobre. 67--Aventuras de Bazilio Fernandes Enxertado. 68--Noites de Lamego. 69--Scenas innocentes da comedia humana. 70 e 71--Os Martyres. 72--Um livro. 73--A Sereia. 74--Esboços de apreciações litterarias. 75--Cousas leves e pesadas. 76--THEATRO: I--Agostinho de Ceuta.--O marquez de Torres-Novas. 77--THEATRO: II--Poesia ou dinheiro?--Justiça.--Espinhos e flôres.--Purgatorio e Paraizo. 78--THEATRO: III--O Morgado de Fafe em Lisboa.--O Morgado de Fafe amoroso.--O ultimo acto.--Abençoadas lagrimas! 79--THEATRO: IV--O condemnado.--Como os anjos se vingam.--Entre a flauta e a viola. 80--THEATRO: V--O Lobis-Homem.--A Morgadinha de Val-d’Amores. CAMILLIANA =Camillo Castello Branco=--_Notas á margem em varios livros da sua biblioteca_, recolhidas por Alvaro Neves.--1 vol. br. 600 rs.; enc. 1$000. =Camillo Castello Branco=--_Tipos e episodios da sua galeria_, por Sergio de Castro.--3 vols., contendo inumeras transcrições da obra de Camillo, br. 1$800 rs.; enc. 2$800 rs. =Poesias dispersas de Camillo Castello Branco=--1 vol. de 247 pag. em papel de linho nacional. Tiragem 48 ex., br. 6$000 rs. =Hosanna!= Por Camillo Castello Branco. Fiel reprodução zincografica da 1.ª edição de 1852, hoje rarissima. Tiragem 60 ex., br. 2$500 rs. =Os pundonores desagravados=, por Camillo Castello Branco. Reprodução como acima da 1.ª edição de 1845. Tambem rarissima. Tiragem 60 ex., br. 1$000. =Prefacio da 1.ª edição do Diccionario de Azevedo=, por Camillo Castello Branco.--Fl. 1$000. COLLECÇÃO ECONOMICA Volumes in-16.º de 240 a 320 paginas ROMANCES DOS MELHORES AUCTORES VOLUMES PUBLICADOS 1--Aventuras prodigiosas de Tartarin de Tarascon, seguidas de Tartarin nos Alpes, por A. Daudet. 2--Esgotado. 3--Sergio Panine, por Jorge Ohnet. 4--Esgotado. 5--Soror Philomena, por Edmond e J. Goncourt. 6--Esgotado. 7--Os milhões vergonhosos, por Heitor Malot. 8--Esgotado. 9--Esgotado. 10--Esgotado. 11--Esgotado. 12--Esgotado. 13--Um coração de mulher, por Paul Bourget. 14--Esgotado. 15--Esgotado. 16--Esgotado. 17--Esgotado. 18--O ultimo amor, por Ohnet. 19--Um bulgaro, por Ivan Tourgueneffe. 20--Memorias d’um suicida, por Maxime du Camp. 21--Esgotado. 22--Esgotado. 23--Camilla, por G. Ginisty. 24--Trahida, por Maxime Paz. 25--Sua Magestade o Amor, por A. Belot. 26--Esgotado. 27--Os reis no exilio, por A. Daudet. 28--Esgotado. 29--Mentiras, por Paul Bourget. 30--Marinheiro, por Pierre Loti. 31--Esgotado. 32--A Evangelista, por Daudet. 33--Aranha vermelha, por R. de Pent Jest. 34 e 35--Esgotado. 36--Parisienses!... por H. Davenel. 37--Ao entardecer!... por Iveling Rambaud. 38--A confissão de Carolina, trad. de J. Sarmento. 39--Esgotado. 40--Esgotado. 41--O abbade de Faviéres, por J. Ohnet. 42--Esgotado. 43--Esgotado. 44--A nihilista, por C. Mendés. 45--Esgotado. 46--Morta de amor, por Delpit. 47--João Sbogar, por C. Nadier. 48--Viagem sentimental, por Sterne. 49--O milhão do tio Raclot, por Emile Richebourg. 50--A confissão de um rapaz do seculo, por Musset. 51--Esgotado. 52--O castello de Lourps, por J. K. Huysmans. 53--Amor de Miss, por J. Blain. 54--A sogra, por Laforest. 55--Colomba, por P. Merimée. 56--Katia, por L. Tolstoï. 57--Alma simples, por Dostoiewsky. 58--Duplo amor, por Rosny. 59--Contos fantasticos, por Hoffmann. 60--A princeza Maria, por Lermontoff. 61--Rosa de maio, por Armand Silvestre. 62--Esgotado. 63--O romance do homem amarello, pelo general Tcheng-Ki-Tong. 64--A dama das violetas, por F. Guimarães Fonseca. 65 & 66--Nemrod & C.ª, por Jorge Ohnet. 67--Prisma de amor, por Paul Bonhomme. 68--Historia d’uma mulher, por Guy de Maupassant. 69 & 70--Educação sentimental, por G. Flaubert. 71--Depois do amor, por Ohnet. 72--A fava de Santo Ignacio, por Alexandre Pothey. 73 & 74--O herdeiro de Redclyffe, por Mrs. Yongue. 75--Uma ondina, por Theuriet. 76--A familia Laroche, por Marguerite Sevray. 77--As grandes lendas da humanidade, por d’Humive. 78 & 79--A filha do Dr. Jaufre, por Marcel Prevost. 80--A dama das camelias, por A. Dumas, Filho. 81--Dezeseis annos..., por F. C. Philips. 82 & 83--O Desthronado, por A. Ribeiro. 84--Ninho d’amor, por A. Campos. 85--Bodas Negras, por Almachio Diniz. 86--Do amor ao crime, por Alphonse Karr. 87--A ilha revoltada, por Ed. Lockroy. [Illustração] COLLECÇÃO ANTONIO MARIA PEREIRA--51.º Volume A FLOR SECCA COLLECÇÃO ANTONIO MARIA PEREIRA A FLOR SECCA ROMANCE POR M. PINHEIRO CHAGAS SEGUNDA EDIÇÃO LISBOA PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA LIVRARIA-EDITORA _Rua Augusta, 50, 52 e 54_ 1904 LISBOA OFFICINAS TYPOGRAPHICA E DE ENCADERNAÇÃO Movidas a vapor DA Parceria Antonio Maria Pereira _Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1.º_ 1904 A JULIO CESAR MACHADO MEU CARO JULIO Aqui vem collocar-se debaixo da tua protecção um livro que te é offerecido por aquelle timido rapaz, que te foi procurar ha tres annos, para te ler uns versos, que tu acolheste tão benevolamente, e a quem fizeste n’um dos teus deliciosos folhetins uns prognosticos tão lisongeiros. Não sei se a tua prophecia está em caminho de se realisar; sei que o teu protegido entrou na carreira litteraria, cujas portas lhe abriste doirando-lh’as com a luz já então prestigiosa da tua gloria, enflorando-lh’as com as grinaldas sempre viçosas do teu talento; sei que seguiu essa estrella fatal, a cuja influencia não póde eximir-se mais quem se deixou arrastar pelo seu magnetico fulgor; sei que, desejando mostrar-te a sincera amizade que te votou, e a gratidão que sente pelo benevolo acolhimento que outr’ora lhe fizeste, e pelas provas de constante estima que lhe tens dado, vem dedicar-te um dos pobres livros que é agora destino seu arrojar á voragem da publicidade. Acolhe-o bem. Elle pouco vale. Sei que te poderia e deveria talvez offerecer flor mais fragrante do que esta pobre _Flor Secca_, secca e sem perfume como a phantasia as produz emquanto a mão insaciavel do jornalismo as arranca sem descançar da hastea. Mas grassa actualmente na nossa litteratura uma tal epidemia de odiosinhos e invejas, de cumprimentos feitos cara a cara compensados por insultos escondidos na sombra, que tive pressa de te dizer bem alto deante de amigos e inimigos que me ufano de prestar publicamente homenagem ao teu talento, um dos mais sympathicos da nossa terra, e ao teu caracter, um dos mais nobres e leaes que tenho encontrado na minha carreira litteraria. PINHEIRO CHAGAS. I Tinha eu dezoito annos. Estava uma noite n’um baile em casa do conde de C... Acabara de valsar, e, toda offegante, vermelha e risonha, sentara-me na primeira cadeira que se me deparara, compondo o cabello, que se desarranjara no rapido voltear, quando meu pae se approximou de mim, acompanhado por um rapaz de vinte e cinco para vinte e seis annos. --Margarida, disse-me elle, estendendo a mão para o seu companheiro, que se curvou gravemente deante de mim, tenho a honra de te apresentar o senhor Claudio da Cunha, proprietario e meu amigo. Claudio da Cunha fez-me de novo um grave cumprimento. --Senhor Claudio da Cunha, continuou meu pae, voltando-se para elle, e indicando-me com o gesto, apresento-lhe minha filha, D. Margarida da Silveira. Estendi-lhe com desembaraço a mão encerrada na luva de pellica branca, e disse-lhe: --Estimo immenso conhecel-o; os amigos de meu pae teem sempre direito á minha affeição. --Travem n’esse caso conhecimento mais intimo, acudiu meu pae, sorrindo-se mysteriosamente e affastando-se. Havia ao meu lado uma cadeira vaga. O meu novo conhecido desviou-a um pouco, porque estava perfeitamente unida á minha cadeira, e sentou-se n’ella. Emquanto fazia tudo isto grave e pausadamente, relanceei os olhos para elle, e com esta rapidez de observação, que Deus concedeu ás pessoas do nosso sexo, pude n’esse instante formar tão perfeita idéa d’elle como se o houvera comtemplado e analysado duas horas. Claudio era, o que se póde chamar, um bonito homem. Alto, branco, de feições extremamente regulares, de olhos rasgados e azues, mas de um azul frio e sem expressão. Não tinham nem o brilho vivo e intenso d’esses olhos de um azul faiscante, se assim me posso exprimir, cuja côr parece o azulado reflexo que scintilla na plumagem negra do corvo, nem a meiga e melancholica limpidez do colorido dos lagos, que espelham no seu cristal o azul do firmamento. Tinha os olhos azues, porque as leis da optica exigem implacavelmente que os olhos tenham uma côr qualquer, e o acaso fizera que o azul competisse aos de Claudio da Cunha. Se fosse possivel dispensar-se condição por tal fórma essencial, estou convencida que aproveitariam com avidez essa isenção, e ficariam sem côr, como já estavam sem brilho. Haviamos apenas trocado algumas banalidades preliminares, quando romperam na orchestra os primeiros compassos de uma polka ingleza. A tal convite nunca eu soubera resistir. Olhei para Claudio, indicando-lhe claramente n’esse olhar que esperava que me tirasse para seu par na polka. O meu visinho não mostrou comprehender a intenção, que se lia nos meus olhos. --Não dança? aventurei-me eu a dizer, vendo a sua immobilidade. --Não, minha senhora, respondeu elle gravemente. Encolhi imperceptivelmente os hombros; uma creatura humana, e de mais a mais na flor da idade, que não dançava, era para mim uma d’estas monstruosidades incomprehensiveis, que a Providencia ás vezes phantasia n’uma das suas horas de mau humor. Por isso acolhi com jubilo um dos mais infatigaveis dançadores do baile, que veiu, com o sorriso nos labios, e com o rosto ainda humido do suor da valsa, convidar-me para uma polka ingleza. Levantei-me, puz-lhe logo a mão no hombro, esperei, batendo o compasso com o meu sapatinho de setim, que a musica nos désse occasião para nos arrojarmos ao vortice delicioso, e, leve como um passarinho, segura na cinta pela mão do meu par, comecei a descrever á roda da sala um d’esses airosos giros que tanto me enlevavam. Confesso que nunca mais pensei em Claudio da Cunha. Ás contradanças succederam as polkas, ás polkas as valsas, e, toda entregue a tão fervente prazer, esqueci essa especie de visão da prosa, que interrompera por instantes a delirante poesia do meu baile. O que não impediu que, ás tres horas da manhã, depois da mamã me ter feito signal que se retirava, quando, ao estarmos pondo as capas, veio Claudio da Cunha pedir as nossas ordens, e sollicitar licença para ir no dia seguinte a nossa casa apresentar-nos os seus cumprimentos, o que não impediu, repito, que o recebesse com um sorriso muito amavel, e lhe apertasse francamente a mão, que elle me estendeu com a sua habitual gravidade. --Que tal te pareceu Claudio da Cunha? perguntou minha mãe sorrindo-se, quando íamos descendo as escadas do palacio. --Pareceu-me bem, respondi eu, porque? --É o noivo que te destinâmos, tornou minha mãe, inclinando-se um pouco para o meu ouvido. --Ah! redargui eu distraidamente. Foi assim, entre uma polka e uma valsa, que travei conhecimento com meu marido. II Esse _Ah_ indifferente, com que eu acolhi uma noticia tão importante, merece e vae ter uma explicação. Chegára aos dezoito annos, e ainda não conhecera o amor, nem procurara conhecel-o. Frieza de organisação? perguntam-me. Pelo contrario, demasiado ardor. Imaginem uma creança, cuja phantasia devaneava sempre sonhos de ouro, terras encantadas das _Mil e uma noites_, choréas de brancas fadas, vultos ideaes e vaporosos, ignotas melodias, ineffaveis extasis, anjos de azas candidas, romances impossiveis, poemas maravilhosos. Imaginem essa creança, educada, rigida, severa, prosaicamente, por um pae, que franzia o sobr’olho sempre que me via disposta a soltar as rédeas á imaginação, por uma mãe, que me fazia sentar junto de si, e me dizia: «Filha, é preciso resignares-te a abandonar essas idéas romanticas, se quizeres viver tranquilla e feliz. O mundo não é como tu o vês atravez do prisma da tua infantil imaginação. Os sonhos da phantasia, filha, são como as andorinhas: só vivem bem entre os effluvios de uma eterna primavera. A tua idade é a doce primavera da existencia; por ora, podes acariciar, e reter com roseos laços as andorinhas gentis, que se te aninharam no coração, todo perfumado de innocencia. Mas é preciso que te vás costumando a deixal-as partir. Querias entrar com ellas no frio inverno da sociedade tal como ella é, e não tal como tu a suppões? Não; bem vês que morreriam geladas, e nem tu sabes o soffrimento que te causaria então a sua morte. Deixa-as voar, deixa-as ir procurar outro ninho, tão doce e tão quente como o suave ninho do teu coração de creança, e tu, filha, prepara-te para affrontares serenamente as tristezas e amarguras da realidade!» Estes conselhos, constantemente repetidos, dados por essa voz, que eu respeitava, produziram em mim um effeito extravagante. Sceptica e enthusiastica a um tempo, acreditava firmemente que a poesia fugira do mundo como a Themis do paganismo, e fôra refugiar-se no ceu, aonde os meus sonhos a iam procurar, e d’onde voltavam com as azas impregnadas nas balsamicas fragrancias, que rescendia a casta divindade. Considerava o mundo real como um inferno de prosa, onde me via obrigada a viver, sem comtudo poder abstrahir d’essas visões poeticas e dulcissimas, cujo desapparecimento me tornaria insupportavel a existencia. Transigi então. Agradara-me a figura, de que minha mãe se servira para me rogar que não entrasse na vida real com idéas romanescas. Jurei que não exporia as minhas pobres andorinhas a serem mortas pelos gelos da realidade; mas jurei tambem que lhes havia de conservar n’um canto do coração, sanctuario bem mysterioso e bem recatado, a eterna primavera que lhes era indispensavel. Depois de ter affrontado impavida e forte a prosa da realidade, iria refugiar-me, com prazer e enthusiasmo, no meu tabernaculo santo, nas minhas Charmettes encantadoras, onde podia banhar á vontade a minha alma, sequiosa d’esses gosos, no limpido e sereno lago da poesia, na pura e transparente atmosphera do ideal: atmosphera onde voejavam as andorinhas gentis dos meus devaneios, lago onde vogavam os candidos cysnes dos meus sonhos; e assim, repartindo a minha vida entre as obrigações enfadonhas da sociedade, e as enthusiasticas devoções do meu templosinho secreto, julgava poder atravessar a existencia, serena e immaculada, suspensa entre ceu e terra, como o caixão de Mahomet. Com estas disposições é facil de imaginar que me havia de seduzir a arte, e que estava predestinada a consagrar-lhe um amor ferventissimo. A arte era a chave de oiro do meu palacio de fadas, o «Abre-te, Sesame» da caverna d’Ali-Baba, onde estavam encerrados os thesoiros da minha imaginação. A arte era o manto de Mephistopheles, sobre o qual eu podia viajar livremente pelas queridas regiões da phantasia. Seduziu-me essa gentil feiticeira, que me podia transportar n’um vôo para longe do mundo que me cercava, e interpôr a mim e á sociedade a cortina magica, por detraz da qual começava para o meu espirito a região dos encantamentos, dos extasis e das delicias. A melodia, que os meus dedos despertavam nas teclas de um piano, era como o fumo odorifero de que se rodeia o turco, ao entregar-se ás perigosas delicias do hatchich. Por isso eu adorava a musica, e tinha um verdadeiro amor ao meu piano. Devorava-o com os olhos, quando me via obrigada a fechal-o ou para receber visitas, ou para obedecer ás ordens de meus paes. Se era o cofre das minhas riquesas, o corpo que encerrava uma alma irmã da minha, que só despertava ao evocal-a eu, e que eu bem sabia que ficava adormecida quando alguem ousava pôr mãos profanadoras nas teclas do instrumento! Quando eu tocava, todos me applaudiam com frenesi; gabavam o meu talento, a assiduidade do meu estudo, e diziam que, se quizesse apparecer em publico, offuscaria as glorias dos mais celebres pianistas. Eu nem lhes ouvia os applausos. Enlevada nas mysteriosas conversações com a fadasinha do piano, tudo o mais me era indifferente. Que me importava tocar deante de duas pessoas, ou deante de duas mil? Entre mim e ellas caía sempre a bemfadada cortina, e o meu espirito, enlaçado com o espirito da melodia, franqueava as portas d’oiro do mundo do ideal. Por isso tambem adorava a dança, e a valsa principalmente. Apenas rompiam na orchestra os primeiros compassos da vertiginosa musica, ahi voava nos braços do meu par, louca, inebriada por esse filtro ignoto, que distillam as flores, as luzes, as melodias do baile. Os meus pés mal tocavam no chão; como que a pouco e pouco sentia emplumarem-se-me os hombros com as azas niveas dos anjos ou das fadas; via n’essa atmosphera, saturada de férvidas emanações, voejarem as minhas andorinhas, que me chamavam para a sua região encantada, e tudo esquecia: o salão, o meu par, a gente que me cercava, para me arrojar para o mundo dos devaneios, para entrar no casto gyneceu das minhas formosas visões. Com estas idéas, como podia eu procurar o amor? Pensava muito n’elle, é verdade, mas nem por sombras me lembrava de o buscar na vida real. O amor, e a realidade eram para mim duas palavras completamente incompativeis. Quem se lembra de pedir nectar n’um banquete dos homens? Que mahometano encommenda a um negociante d’escravas que lhe traga uma huri da Circassia? Julgaria até uma profanação collocar um idolo n’esse altar erguido na minha alma, como altar atheniense, ao _deus desconhecido_. Os suavissimos aromas, que essa palavra rescendia, não havia flôr da terra que os exhalasse. Mas estas idéas, que eu alimentava, nunca pensára em revelal-as. Não se esqueçam os leitores da minha dupla existencia: uma toda sujeita ás leis sociaes, e não tentando por forma alguma rebellar-se contra ellas, outra completamente fóra do mundo da realidade; existencias diversas, com as fronteiras escrupulosamente traçadas, e que nunca se invadiam mutuamente. Portanto, o casamento era para mim uma d’essas leis, a que eu estava prompta a obedecer, comtanto que me ficasse plena liberdade de me esquivar para a região das andorinhas; liberdade inalienavel como facilmente se imagina. Não pedindo ao casamento o amor, qualquer marido me era indifferente. Bastava-me a amizade, porque ouvira dizer a minha mãe, que no matrimonio é indispensavel esse sentimento. Claudio da Cunha não me inspirava repugnancia; por conseguinte estava perfeitamente disposta a obedecer ás ordens de meus paes. Ouvi a noticia e não pensei mais em tal. Casar-me tinha para mim tanta importancia como pagar ou receber uma visita; cumpria uma lei imposta pela sociedade. Tal noticia merecia mais do que o _Ah_ distrahido com que eu a acolhera? III Confessemos que seria difficil a descripção da nossa vida nos tres ou quatro mezes que precederam o meu casamento com Claudio da Cunha. Póde excitar interesse a mulher, que nem caminha para o altar como victima sacrificada, nem como noiva feliz de ver coroados pelo hymeneu os votos formados pelo amor para adoptar a linguagem dos venturosos tempos da Arcadia? Póde chamar a attenção um noivo cortez, vestido irreprehensivelmente, frio, grave, que vem apresentar-me os seus cumprimentos sempre á mesma hora sem differença de um minuto, que me ouve tocar piano, mostrando-se attento quanto baste para satisfazer as conveniencias, que me applaude depois com as suas mãos enluvadas, de modo que não faça estalar nem uma costura das luvas preciosas, que em seguida elogia a minha habilidade e a perfeição do meu methodo, que tudo isto repete todos os dias, sem alteração de uma syllaba, de um gesto, de um segundo? Comtudo eu não tinha razão de queixa. Claudio era o marido, que convinha a quem executava fria e indifferentemente um dever, contraindo os laços do matrimonio. Galanteador, incommodar-me-hia de certo: menos delicado e exacto, offenderia não a mim, que não repararia em tal, mas a meus paes. D’este modo tudo caminhava ás mil maravilhas. O papá extasiava-se perante o comedimento, e as maneiras polidas de Claudio; a mamã folgava de ver o escrupuloso aceio e esmero do seu trajar, o cuidado que tomava sempre em evitar uma nodoa que lhe maculasse o lustre irreprehensivel da casaca e do chapeu; eu dava-me perfeitamente com o seu, raras vezes interrompido, silencio, porque me deixava divagar á vontade e escutar desafogadamente o chilrear das «minhas andorinhas». Chegou emfim o dia do casamento. Foi esse para mim um dia de verdadeiro jubilo, e de extasi sem igual. Porque? perguntam-me. Transformou-se o caracter de Claudio, e algum vulcão, fervendo longo espaço de tempo por baixo dos gelos exteriores, irrompeu e incendiou tambem com as subitas chammas esse coração tão despresador da vida real, e que se dizia d’amianto para as prosaicas labaredas do mundo terreno? Folgou por acaso de se ver senhora, e de se transformar a doce grinalda da virgindade no diadema de rainha, esplendido mas pungente, que cinge a fronte das esposas? Não, nada de tudo isso. O motivo do meu jubilo era apenas o poder cingir o meu veu branco, e a corôa de flores de larangeira, emblemas nupciaes. Oh! como eu contemplei mil vezes ao espelho os graciosos adornos, que tanto me enlevavam, como deixei cair em torno de mim as graciosas pregas do meu veu de gase! Como me revi na grinalda de brancas flôres, que me poisava elegantemente na cabeça, dando um vivo realce aos meus cabellos castanhos claros! Como olvidei, sósinha, no meu toucador, o mundo presente, a realidade semsabor, os padrinhos de casaca preta, os parabens dos convidados, a cerimonia nupcial! Não era Margarida da Silveira que alli estava mirando-se vaidosamente n’um espelho de moldura doirada; era a fada Margarita contemplando a sua imagem no cristal da sua fonte! Rompia a manhã, a fresca manhã de S. João; as pobres alcachofras queimadas esperavam que o bento orvalho reverdecesse a corolla crestada, as bilhas d’agua esperavam o encantamento, os ovos suspensos nos copos esperavam a metamorphose. A brisa matinal fluctuava em torno a mim, infunando-me ao de leve as prégas do meu veu. A luz nascente mal fazia desabrochar rosas desmaiadas no horisonte. Eu erguia-me e o meu debil pésinho, ainda mais leve do que na valsa, corria sobre a relva sem a fazer vergar sequer! o meu passo mysterioso fazia brotar rosas e lyrios no seu tapete de veludo! Agitava na mão a varinha branca, a varinha das feiticeiras! Tocava na triste alcachofra carbonisada, e, por entre o negrume das suas pobres folhinhas, renascia a rôxa pétala que ía encher de contentamento um coração virginal! Soprava nos fios tenues do ovo suspenso n’agua, e os fios, como se os tecesse mão mysteriosa, bordavam por si mesmos um matiz delicioso! «Oh! fada Margarita! dizia eu para o meu espelho, como és linda e como és boa!» Depois, não era já a fada, mas sim a muito alta e muito poderosa senhora D. Margarida, filha do castellão, rico-homem de pendão e caldeira, senhor de baraço e cutello! Caminhava a furto para a entrevista aprazada! o coração arfava-me deliciosamente! Eis-me chegada emfim junto da cruz da ermida, onde me espera o gentil cavalleiro, que vae para a Palestina! Os loiros cabellos fluctuam-lhe sobre a couraça brunida; poisa-lhe ao lado o elmo, com as plumas azues ondeantes a capricho da viração! Troca-se um adeus sentido, derramam-se lagrimas, fazem-se promessas de amor eterno! Então, desprendo o veu branco, e dou-lh’o como penhor do meu affecto! Será a protectora charpa do meu noivo, o talisman que o ha de resguardar dos alfanges dos infieis! Elle beija mil vezes o candido veu, monta o corcel, que o espera impaciente, e parte. Sigo-o com os olhos arrasados d’agua até o perder de vista, e... E abre-se a porta e apparece meu pae de luva branca, bota de polimento, e casaca preta, e atraz d’elle, mas timidamente, como quem receia ser indiscreto, Claudio da Cunha, de casaca preta, bota de polimento, e luva branca! Adeus! Adeus! Andorinhas gentis! Como sempre, baixei, sem protestar, ás regiões da realidade. Acolhi com um beijo meu pae, com um sorriso o meu noivo, que me pedia mil desculpas, por ter ousado chegar á porta do meu santuario, mas que fôra arrastado pelo seu querido sogro, etc.; e, depois de ter acceitado e dado todas as desculpas, desci para me metter na carruagem, que me devia conduzir á igreja. D’ahi a duas horas, era eu a legitima esposa de Claudio da Cunha, e tomava posse da casa de meu marido, situada na Cruz das Almas. Franqueara estas columnas de Hercules da vida das senhoras, passara do brando e azul Mediterraneo das solteiras para o verde e tempestuoso Oceano do matrimonio, e confesso que não sentia o minimo frémito agitar as brancas velas do baixel do meu destino. Se eu tencionava sentar-me, como até ahi, na proa da nau, e indifferente aos furacões que me rugissem em torno, ás vagas irritadas que fervessem e se empinassem contra mim, fitar os olhos no cantinho do ceu azul, onde havia de continuar a brilhar, estava d’isso convencida, a formosa e radiante constellação dos meus devaneios! IV Compunha-se de duas pessoas a minha nova familia: meu marido e uma tia d’elle, mais velha apenas doze ou quatorze annos, e caminhando rapidamente, mas com desespero, para o Maelstrom dos quarenta, que sorve implacavelmente as ultimas esperanças matrimoniaes. Vou tentar descrever em rapido bosquejo os companheiros da peregrinação, que eu ia principiar. Claudio da Cunha era um homem de um caracter indeciso e fraco, temendo duas coisas, e respeitando uma. As que temia eram o ridiculo e a lucta, a que respeitava era sua tia. O ridiculo combatia-o com as frias e graves exterioridades que eu já fiz notar; á lucta, esquivava-se sempre a todo o custo, obedecia a sua tia escrupulosamente, mordendo constrangido o freio, mas não ousando sacudil-o. Sua tia D. Antonia possuia um coração, talvez outr’ora bom, mas que se fôra enchendo de fel, fel que trasbordava sempre na sua conversação constantemente aggressiva. Seria perigosa manejando a arma do epigramma, se o seu espirito, descultivado e estreito, lhe permittisse açacalar as frechas que despedia ao acaso, que feriam ao de leve, mas que se tornavam incommodas pela quantidade. Então o adversario, que ella escolhera, devolvia-lhe uma ou outra com mais certeira mão, e o golpe, que lhe calava bem fundo na alma, fazia-a ter ataques de nervos, que chamavam logo a sollicitude do sobrinho, o qual vinha escutar com ouvido attento os seus queixumes ridiculos, e enxugar com mão piedosa as lagrimas de despeito. A sua vaidade era tanto mais insupportavel quanto mais procurava disfarçar-se. Quando fallava em geral, dizia sempre com louvavel modestia que era feia, que os meus encantos a offuscavam completamente, que não aspirava sequer a rivalisar comigo; mas o terreno, que perdia na generalidade, ia-o sempre recuperando passo a passo nas particularidades. Quando tinha a minha idade haviam de lhe ficar larguissimas as minhas botinhas, e agora mesmo, se não quizesse andar a seu gosto, e se não estivesse já curada d’essas vaidades, estava certa que lhe haviam de servir maravilhosamente. «Uma coisa que eu sempre tive foi o pé muito pequeno, concluia ella. Fulano dizia...» E vinha logo um madrigal, que, pela fórma _moyen-âge_, revelava um adorador dos bons tempos dos _trovadores_ das _Ellas_, revelação que restabelecia a verdadeira data da sua certidão de baptismo. Não podia comprehender, dizia ella, como eu me apertava tanto sem temer as consequencias funestas d’essa imprudencia. Por mais que lhe jurasse e lhe mostrasse que não succedia semelhante coisa, continuava sempre protestando que estava fazendo uma loucura, que ella nunca andara assim, o que não impedia que tivesse tido uma cinturinha de sylphide, que duas mãos unidas podiam facilmente abranger. Todos estes ridiculos eram medianamente supportaveis, e de certo nem os citaria, se não fossem parte essencial de um caracter sêcco, vaidoso e azedado pelas decepções que a sua vaidade soffrera no campo das salas. Pouco depois do meu casamento, essas raivas secretas, esses furores devorados em silencio começaram a traduzir-se na attitude hostil que tomou para comigo, attitude acobertada por um manto d’amizade protectora. Usava, dizia ella, do seu privilegio de _velha_, e carregava intencionalmente no termo, para me dar conselhos, e para me preservar dos perigos, em que o meu estouvamento juvenil me poderia fazer cair. Com este admiravel pretexto, houve por bem arvorar-se em censora constante das minhas acções. Se eu por acaso mostrava uma ou outra vez o meu enfado, então lançava-me um olhar ferino, e dizia, adoçando o som de voz tanto quanto aguçava os raios das pupillas: «Ai! infelizmente, ninguem gosta de ouvir as verdades,» como se n’aquella mente acanhada e cheia de pequeninos sentimentos se abrigasse a resposta ao eterno problema, que a esphinge dos seculos tem proposto á humanidade, e cuja resolução só Pilatos ouviu da bôca de Jesus. Então passava eu a estar na berlinda, perseguida pela voz melliflua, e pelos epigrammas embotados de D. Antonia. Á mesa do jantar, onde todos tres nos reuniamos, choviam sobre mim as allusões ás senhoras que preferem o piano ao governo da sua casa, ás senhoras casadas que dançam nos bailes, quando seus maridos não dançam, á corrupção do seculo, aos maus costumes que importamos de França, á leitura perniciosa dos romances, tudo isto precedido do inevitavel «Hoje em dia...» _ultima ratio_ da sua argumentação. Escuso de dizer que as gerações anteriores á que presenceou a invasão de Junot sumiam-se para ella nas brumas legendarias da idade de oiro. Que havia eu de fazer contra aquella guerra pequenina e intoleravel? A friesa, que existia entre mim e meu marido, fazia com que o não pudesse contar como defensor. Bem via que os toscos epigrammas de D. Antonia o incommodavam tambem, e o irritavam; mas o seu desejo de manter a paz domestica, a obediencia tradicional que votara a sua tia, obrigavam-no a conservar-se silencioso em presença da audaz iniciativa da minha adversaria. Demais, eu achava tão mesquinha, tão indigna de mim esta guerra de palavras, esta escaramuça miseravel, estava tão fóra dos meus habitos este pelejar quotidiano, que nem sabia, nem podia, nem queria defender-me. Calada, immovel, fitando olhos espantados, ora em D. Antonia, ora em meu marido, uma só coisa me fazia scismar, era haver gente que se occupasse em tão miseraveis coisas, que expuzesse theorias tão insipidamente banaes, e o ser eu escolhida para victima expiatoria de crimes que nem sequer chegava a perceber. Contra estas amarguras da vida real não me prevenira eu. Julgava-me invulneravel, e, como o Achilles da _Iliada_, tinha o calcanhar accessivel a tiros tão rasteiros! Esta queda espantava-me mais do que outra qualquer. Previra todas as desillusões, todas as torturas da realidade, vinha prompta para luctar com as serpentes do odio, com as viboras da calumnia, e por fim de contas succumbia ferida pelo ferrão d’essa formiga negra e imperceptivel, que se chama mexirico! Todas as consolações me faltavam. As minhas andorinhas tinham fugido para não mais voltarem! Se eu não as podia chamar, atordoada, como sempre estava, pelas recriminações disfarçadas, pelos epigrammas adocicados, pelos discursos sem fim da minha implacavel inimiga! Se lhe não respondia, ia queixar-se brandamente a meu marido, dizendo que a desprezava do alto do meu orgulho, e insinuando arteiramente que preferia a conversação dos homens. Se lhe respondia irritada e fatigada, vinham os espasmos e os ataques nervosos. Se me refugiava no meu quarto sósinha com o meu piano, ahi vinha ella, allegando que gostava muito de musica, e perguntando se os seus ouvidos eram indignos de me escutarem. Então a minha occupação predilecta transformava-se em tortura insupportavel. Esmagava freneticamente as teclas, as minhas boas e antigas amigas, todas espantadas do inesperado tratamento. Se ás doces horas do crepusculo ia sósinha sentar-me junto da minha janella, e contemplar o melancolico horisonte dos campos, para me engolphar no mundo da phantasia, tinha-a a meu lado d’ahi a instantes, dizendo, que tambem ella possuia um genio muito triste, e que, no tempo em que tivera um namoro, gostava muito de estar áquellas horas a pensar n’elle. Depois accrescentava invariavelmente que julgava que as senhoras casadas eram inacessiveis a essas tristezas e que junto de seu marido é que deviam estar, em vez de se entregarem sósinhas a pensamentos talvez perigosos. Aquella mulher tinha um genio de inquisidor. Se acreditasse na metempsychose, diria que o espirito de Torquemada fôra, atravessando os seculos, aninhar-se finalmente no coração de D. Antonia da Cunha. Ah! e quando uma solteirona, de quarenta para cincoenta annos, vinha visital-a, e trazer-lhe o auxilio da sua indole mordaz, e da sua hypocrisia beata, então é que se entoava um _duetto_, que desbancava a aria de D. Basilio. Como se entendiam bem a meias palavras! Que plangentes queixumes não soltava D. Antonia, indicando-me com o olhar á sua boa amiga D. Simôa dos Anjos, emquanto ambas trabalhavam n’um enxoval para creanças pobres, trabalho santo, que fôra apregoado em todos os tons na freguezia e nas parochias visinhas! Que olhares de compaixão, com que a outra lhe respondia! Que theorias de implacavel austeridade! Que lamentações! Que moções d’ordem d’uma, acolhidas pelos apoiados da outra! E quando passavam das generalidades á especialidade, ah! como as agulhas cosiam e as linguas descosiam! Com que delicioso tempero de reputações esfaqueadas se apimentava a obra caritativa do enxoval! Que signaes de piedosa compuncção! Que devotos sarcasmos se não cuspiam sobre as peccadoras, fulminadas por aquelle augusto areopago! E a que horrenda verrina me não expunha, quando, cançada, enojada de tão peçonhenta hypocrisia, exprimia a indignação que já não podia conter. --Quem defende gente assim, expõe-se ás mesmas accusações, dizia uma das Lucrecias, principiando com a mão direita, sem a esquerda o saber, uma costura caridosa. --Ah! tornava a outra debruando os coeiros da sua beneficencia, essas é que são felizes! Os homens não querem outra coisa, e, para vergonha nossa, até no nosso sexo acham advogadas! Eu levantava-me com impeto e saía; mas aquellas duas vozes resoavam sempre ao meu ouvido, e não deixavam que eu tomasse gosto em nenhuma das minhas outr’ora tão queridas occupações. V Assim passei a primavera, o estio e o outono do meu primeiro anno de casada. Claudio envolvera-se na politica, mais para se distrair do seu _spleen_ incuravel, do que por gosto ou ambição. Principiara eu a perceber que a frieza apparente de meu marido provinha de uma educação acanhada, como o espirito de sua tia, que lhe infligia o respeito das leis d’aquelle mundo mesquinho, em que ella tanto folgava de viver, e dos constantes obstaculos, que se tinham opposto ao desenvolvimento livre e desaffogado do seu espirito. Mostrava-se affectuoso para comigo, mas affectuoso sem expansão. Aquella mulher interpunha-se constantemente a nós ambos. Se uma ou outra vez, n’algum dia em que o sol da primavera despertava dentro em mim os passarinhos mudos, e aviventava as flôres desbotadas da minha phantasia tentava desabafar e elevar-me ás regiões serenas, onde desejara viver; se Claudio, arrastado pelo contagio do meu enthusiasmo, principiava a entrar nas minhas idéas, vinha logo sua tia, soltando altos gritos, e dizendo que essas farofias de romance e de musica é que perdiam metade da humanidade feminina. Claudio retraia-se, e eu ficava de novo sósinha e desarmada em face d’aquelle demonio do lar, que empolgava o hyssope furtado n’alguma igreja, e me aspergia de agua benta para me livrar da influencia diabolica da arte, e dos artistas. Chegou o inverno, o inverno, outr’ora para mim a estação querida dos bailes, de que tambem agora me via privada. Pois como podia eu apparecer nas salas com aquelle _chaperon_ sempre a meu lado, que me expunha ás vezes a scenas desagradaveis com as suas phrases acres, cuja insolencia a muito custo se disfarçava? Depois, as scenas que se passavam na volta para casa! As insinuações sobre a corrupção dos homens que procuram de preferencia as senhoras casadas, e sobre a corrupção das senhoras casadas, que acceitam os rendimentos d’esses monstros de luvas brancas, e que levam a impudencia a ponto de polkarem e de valsarem com homens, que visivelmente as preferem ás tias de quarenta annos! Estas insinuações calavam mais ou menos no animo de meu marido, e, apezar de elle se retirar sempre que principiavam os discursos de D. Antonia, via-se pela inquietação, que mostrava, que o veneno produzia o seu effeito. Cançada já, abatida por esta lucta ingloria, resolvi encerrar-me em casa, e abandonar completamente a sociedade. Novos gritos! novas reclamações! Claramente se via que o meu desejo era prival-a de todos os divertimentos, etc.; mas resisti intrepidamente, e, apezar dos clamores, mantive a minha resolução. Uma vez tinhamos nós acabado de jantar quasi ao anoitecer. Comtudo, não se haviam ainda accendido as luzes. O ceu estava nebuloso, e uma chuva fina começava a bater nas vidraças. Meu marido ficara á mesa tomando café, D. Antonia baloiçava-se na cadeira, ruminando algum dito azedo. Eu fôra-me sentar junto da janella, e contemplava os arabescos que a chuva desenhava nos vidros com as gotinhas que deslisavam lentamente ao longo da limpida superficie. Embuçara-me n’uma capa, e toda conchegada no meu cantinho, saboreava aquelle momento de socego, tão raro na minha vida mesquinhamente agitada. Os arabescos da chuva despertavam em mim a um tempo deliciosos e tristes pensamentos, lembravam-me os sonhos, que eu phantasiaria um anno antes com essas singelas perolas do pranto das nuvens, e lastimava com amargura o desprezo que votara á realidade, que se vingava cruelmente de mim. Percebi então que não bastam os sonhos para constituirem a ventura, e que o espirito, que se alimenta só com esses devaneios, acha-se sem forças para combater os mais despreziveis inimigos. Isolara-me no meu orgulho, e via agora quanto precisava ter um coração que pulsasse junto com o meu, e quão robusta me sentira, se o amor me envolvesse na sua tunica luminosa! O amor! E, não sei porque, duas lagrimas desprenderam-se-me dos olhos, e deslisaram-me vagarosamente pelas faces. N’este momento tocaram a campainha com força. Olhámos uns para os outros, como que perguntando quem se affoitaria a affrontar a chuva, que principiava a cair em torrentes, para vir fazer-nos uma visita. N’isto abriu-se a porta e appareceu no limiar um vulto de homem. --Claudio! _amice!_ onde estás tu? Vem dar-me um abraço... metaphorico, porque, se t’o dou na realidade, encharco-te. --Alberto! exclamou meu marido levantando-se e correndo para elle de braços abertos. --Sim, eu mesmo, meu velho condiscipulo. Desembarquei hoje. Saí de Napoles n’um dia de chuva, que ameaçava muito sériamente apagar o Vesuvio. Não quiz assistir a tamanho desastre, e fugi. A unidade italiana está matando o _lazzarone_, a chuva mais dia menos dia dá cabo do Vesuvio, e uma companhia de accionistas inglezes improvisa um vulcão artificial, com meia duzia de chaminés de Birmingham, transportadas a bordo de um _steamer_. Fiz a viagem sem apanhar chuva; chego ao Terreiro do Paço, zás, uma pancada d’agua a ensopar-nos a mim e ás venerandas bochechas do marquez de Pombal, que se sorria ironicamente com ar de quem dizia: «Não me quizeram acreditar!» No tempo do grande marquez não chovia, meu amigo. --Alberto, deixa-me... --Não chovia não, digo-t’o eu. Quem inventou a chuva foram os inglezes, só para darem extracção ás galochas de borracha, e aos casacos de Mackintosh. Ah! o marquez de Pombal bem o sabia, por isso elle nos fez guerra. Pois que cuidas tu! Sebastião José de Carvalho e Mello foi o defensor da serenidade metereologica do paiz das larangeiras, e da inviolabilidade do nosso ceu azul. Curva-te perante o grande homem, Claudio! --Consente, Alberto, que... --Foram os inglezes, repito. Em Napoles era desconhecida a chuva, antes de lord Nelson entrar n’aquella maravilhosa bahia. A chuva portugueza devemol-a ao Beresford... N’este momento entrou um criado com luz. Alberto interrompeu-se ao divisar-nos a mim e a D. Antonia. --Oh!... senhoras... e tu não me dizias coisa alguma, e deixavas-me palrar como um idiota que sou... --Mas, meu amigo, tornou Claudio rindo, desde que entraste ainda não fiz senão querer-te apresentar minha mulher, e tu a fallares em Nelson e no marquez de Pombal... Margarida, continuou elle, dirigindo-se a mim, tenho a honra de te apresentar o meu bom amigo Alberto Mascarenhas Corte-Real, que chega, como acabas de ouvir, de uma viagem da Italia. --É uma dupla recommendação valiosa, disse eu sorrindo e comprimentando-o amavelmente; amigo de meu marido e viajante recemchegado da terra dos prodigios, como não ha de ser recebido cordial e curiosamente? Alberto balbuciou algumas palavras, que eu não percebi, mostrando-se visivelmente enleiado, talvez por causa da sua palradora entrada, e voltando-se logo para D. Antonia, apertou-lhe a mão, dizendo-lhe: --Ah! é, v. ex.ª! Desculpe, minha senhora, o não a ter reconhecido. Mas ha de confessar que na escuridão era difficil... --Ora, das _velhas_ nunca os senhores fazem caso. --Ah! tornou Alberto rindo, já pediu a sua reforma? Pois olhe, parece-me que a neve, que lhe vejo alvejar nos cabellos, é a neve perfumada da laranjeira. Vamos, seja sincera. Quando é o casamento? --Nunca! Se eu chegava a esta idade sem me casar, para commetter agora uma loucura d’essas. Os homens... --São uns monstros, bem sei. Ainda se não emendaram? E eu que fui á Italia de proposito para pedir ao Papa a canonisação em massa de todo o sexo masculino! Mas, segundo vejo, os maganões são incorrigiveis. --Olhe, sr. Corte-Real, hoje em dia bem tolo é quem se casa. Os homens são estouvados, e as senhoras seguem-lhe o exemplo. É moda que veiu agora de França. --Veiu? Ah! e eu que me esqueci de ver os figurinos! --Vamos para a sala, Alberto, interrompeu meu marido, que via a conversação tomar o caminho costumado. Lá podes-te enxugar melhor. Levantámo-nos e fomos para a sala. Estava o fogão acceso, e o lume derramava no aposento um suave calor. O guarda luz do candieiro, concentrando o fulgor todo na mesa, á roda da qual nos sentámos, deixava ficar na penumbra o resto do quarto. A chuva batia nas vidraças, e o vento zunia com violencia, engolphando-se pelo tubo do fogão. --Ah! disse Alberto, sentando-se n’uma cadeira á Voltaire, venham-me agora fallar nos prazeres das viagens! Não conheço nada melhor do que esta deliciosa sensação, que se apodera de nós, n’uma noite bem fria e bem invernal, ao sentarmo-nos n’uma cadeira macia, junto do bom fogo, entre duas ou tres pessoas que nos estimem, sentindo o vento sibilar, e a chuva bater nos vidros. E pensar-se que a estas horas anda um barco ao longe, no alto mar, affrontando a tempestade, que lhe descose as pranchas, e lhe açoita a vela, em quanto o pescador, vendo as ondas embravecidas a rugirem morte por todos os lados, vae scismando como Victor Hugo, _Au vieux anneau de fer du quai plein de soleil!_ --Safa, que egoista! exclamou Claudio. --Egoista sim. Meu amigo, não ha prazer algum n’este mundo, em que não entrem tres quartas partes de egoismo. É um prazer egoista? Bem sei: já Lucrecio o disse antes de ti n’uns versos que não cito por duas razões: a primeira porque são em latim... --E a segunda? perguntei eu. --Porque nunca li Lucrecio, minha senhora. Desatei a rir. --Mas, então, continuei, como é possivel que viajasse tanto, detestando por essa fórma as viagens? --Detestar as viagens! eu, minha senhora! pelo contrario, adoro-as! --Mas, parece-me... --Perdão. Entendâmo-nos, minha senhora; este prazer, que eu estou sentindo agora, tambem ás viagens o devo. É o contraste que lhe dá este sabor tão agradavel e picante. Hontem, sósinho no convez do paquete, via a solidão immensa dos mares, ouvia os melancholicos lamentos das ondas, contemplava o ceu toldado, que se desenrolava sobre a minha cabeça como plumbeo manto; hoje aperto a mão a um amigo de infancia, tenho a ventura de estar conversando com senhoras amaveis e espirituosas, sinto-me envolvido por uma atmosphera tepida, perfumada das fragrancias da terra natal, e, recostando-me voluptuosamente n’esta cadeira, vendo ali chispar um fogo delicioso na moldura do fogão, mirando as figuras do guarda-luz do seu candieiro, esfrego as mãos, como um egoista, e digo: «Como deve estar o mar a estas horas?» Baloiço-me aqui indolentemente, e continuo: «Como os navios dançam fóra da barra ao som d’essa valsa tocada pela orchestra das vagas, e composta por esse Strauss maravilhoso, que se chama Deus!» Este prazer sou aqui eu só quem o saboreia; digam-me lá se sentem o mesmo que sente o viajante recem-chegado? --Não, acudiu meu marido, mas sinto eu, pelo menos, o prazer tambem delicioso de tornar a ver um amigo ha dois annos ausente. --Meu bom Claudio! respondeu Alberto, pegando na mão de meu marido, e apertando-lh’a com affecto. Mas, continuou, ainda ha outro prazer, que eu não mencionava, e que não deixa de ser, comtudo, digno de citar-se. --Qual é? perguntou Claudio. --O de dizer mal das viagens! Fallar a gente a um amigo sedentario, que nos tem inveja, e exclamar: «Oh! tu não comprehendes o quanto és feliz! Não ha tortura maior do que a do Ashaverus da lenda! Percorrer o mundo, só, vendo-se isolado no meio de uma sociedade differente da nossa, passando por terras, onde ninguem nos espera, onde não deixamos nem sequer uma saudade; e a mão da fatalidade a impellir-nos sempre, e a voz do destino a dizer-nos: «Caminha». E assim atravessamos o mundo, andorinhas sem ninho, poisando ora no cume inflammado do Vesuvio, ora na austera cupula de S. Pedro, ora na torre pendida de Pisa, ora na bronzea juba dos leões de Veneza! Ah! bem louco é quem deixa os lares para procurar estas commoções de um instante, pagas por amarguras infinitas.» E o amigo comtempla com certo respeito o homem que falla com tanto despreso n’essas maravilhas, cujo magico panorama lhe povôa os sonhos, lhe perturba a existencia. Oh! dizer mal das viagens, depois de ter viajado muito, não ha prazer que se lhe compare, não acha, sr.ª D. Antonia? --O que? --Dizer mal... que é um grande prazer. --Não se diz mal senão d’aquillo que merece as nossas censuras, por exemplo... --Immensas coisas... Não me falle n’isso! O mundo vae cada vez peior. O Anti-Christo não tarda. É pelo menos esse o parecer da sua caridosa amiga, D. Simôa dos Anjos. É verdade, como está ella? --Olhe! essa é que se póde dizer uma santa. --Pois não! Santa Bazilia! é uma das santas mais veneradas pela igreja contemporanea. --Bazilia!... --Sim, mulher de D. Bazilio. --Qual D. Bazilio? --Ora, qual D. Bazilio! um santo velhote, que floresceu alli pelos fins do seculo passado, filho de um sujeito chamado Beaumarchais, e adoptado depois por outro chamado Rossini! --Mas então esse homem, se vive, deve estar decrepito. --Como se engana, minha senhora! Está cada vez mais novo! Descobriu a agua de Juvencio. --Alberto! interrompeu Claudio n’um tom meio offendido. Seguiu-se um instante de silencio. Eu sorria-me imperceptivelmente, e saboreava, devo confessal-o, o prazer da vingança. Claudio estava sombrio. Alberto fitára em mim os olhos por um instante, e caira depois n’um melancholico scismar. D. Antonia percebera finalmente que tinha sido _mystificada_, perdoem o gallicismo, e mordia os labios de raivosa. --Não nos contas algum incidente das tuas viagens? perguntou meu marido, para dizer alguma coisa. --Que queres que te conte? respondeu Alberto, sacudindo a melancholia que o envolvera. Imaginas por acaso que ainda existe o pittoresco? Morreu, morreu de todo! Mataram-no os caminhos de ferro, e os inglezes principalmente. Os _lazzaroni_ andam de chapeu alto, e o Vesuvio mais dia menos dia arvora um guarda-chuva. Não se dá um passo em Pompeia, que se não encontre um inglez passeando no vestibulo da casa de Demetrio, ou entrando familiarmente no tribunal do edil Pansa. Queres que te descreva uma Italia prosaica e semsabor, o Colyseu povoado de casacas pretas, e no castello de Santo Angelo um capitão de zuavos no sitio onde Benvenuto Cellini apontou, com a mão que fazia brotar prodigios, a espingarda que dizimava as fileiras hespanholas? --Oh! acudi com certa exaltação, não seria eu quem desanimaria tão facilmente! Nem os zuavos, nem os inglezes conseguiriam despoetisar a minha Italia, o meu Lacio formoso, a minha Campania feliz. Derribaram as pedras, sumiram o Mediterraneo, impuzeram silencio ás brisas, desfloriram as larangeiras? Não! Pois bem; a minha phantasia se encarregava de povoar essas ruinas solitarias, de evocar as gerações extinctas, de traduzir a linguagem melodiosa da viração! Eu, se fosse á Italia, havia de vel-a com os olhos d’alma, ainda mais do que com os do corpo! Que me importava a prosa moderna, se me fosse dado passear nas ruas de Pompeia? A mão dos homens levantou a mortalha em que o Vesuvio a envolvera, a minha phantasia levantaria a mortalha com que a cingiram os seculos! Doire o sol ainda o marmore branco dos palacios de Genova, e a sua luz ha de illuminar para mim o mundo risonho da cidade dos doges, ouvirei as musicas suaves que se espraiavam outr’ora por sobre as ondas azues do Mediterraneo, a quem ensinavam essa dulcissima melodia que ainda hoje enleva os ouvidos do viajante! Não a olvidaram de certo os eccos da _strada Balbi_. Levem-me á Italia, e eu atravessarei a peninsula sem ver nem zuavos, nem inglezes, percorrerei á vontade ou a Italia pagã ou a Italia da Renascença, verei Raphael pintando o maravilhoso retrato da sua Fornarina, debruçar-me-hei sobre o hombro de Guido, quando o seu pincel esplendido fizer brotar da tela as feições encantadoras da desgraçada Beatriz. A Italia tem habitantes? Não sei, nem quero sabel-o; tem cardeaes, tem _bersaglieri_? não sei, não sei. Sei apenas que tem os quadros de Raphael, as estatuas de Miguel Angelo, as portas de Ghiberti, e os claustros de Bramante. Quero engolphar-me n’esse pélago de maravilhas, quero percorrer esse mundo mysterioso, encerrar-me n’essa Pompeia gigante, e depois quando voltar á superficie do mundo actual, vire, pallida, mas trazendo na fronte, não, como o mergulhador de Schiller, a sombra triste projectada pelos invisiveis horrores do oceano, mas um reflexo d’esse immenso fulgor, que ha de emanar das perolas e dos diamantes d’essa Golconda da arte! --Oh! tem mil vezes razão, tornou Alberto levantando-se com enthusiasmo, cuida que não senti isso mesmo? Cuida que não tive muita vez essas visões do passado? Por baixo do palimpsesto banal das modernas idades sentia eu pullularem as letras de fogo do poema da velha Italia! Á noite, principalmente, quando se extinguem os vãos ruidos mundanos, e a meiga fada vem mais uma vez cingir a sua Italia querida, a voluptuosa Aphrodita dos dois mares, na sua tunica bordada de estrellas, e perfumada de ignotas fragrancias, então é que se escutam essas vozes mysteriosas, que não são mais do que a vaga conversação das grandiosas gerações, que desappareceram umas após outras da face d’aquella terra abençoada! A mythologia antiga suppunha que eram os titães soterrados quem abalava as montanhas ao revirarem-se no seu leito de chammas. Não se enganava; prophetisava! Por baixo d’aquelle solo sagrado arquejam as gerações de gigantes, que povoaram o velho Lacio dos Cesares e a Roma dos Raphaeis! Á noite erguem-se todos esses brancos phantasmas e passam, agitando as azas, na atmosphera transparente. Oh! quantas vezes não tive eu d’essas visões extaticas, em Roma! Quantas vezes, passeando, embarcado, por uma noite de luar, na suave bahia de Napoles, não vi como que em sonhos perpassarem as galeras romanas, todas illuminadas e deixando apoz si um sulco a um tempo fulgido e melodioso, como se a ardentia se houvesse transformado em musica! E quando os meus barqueiros deixavam cair indolentemente os remos na agua, que lhes respondia com um vago suspiro harmonioso, como uma nota de Cimarosa ou de Bellini, em quanto as estrellas deviam fulgir n’essas noites delirantes das saturnaes em quanto a lua illuminava ao longe as casas brancas de Ischia, de Procida, ou de Capri, eu sentia passar nos meus cabellos a lasciva brisa de Baia, e via surgirem no horisonte esses vultos candidos de mulheres, cujos nomes passaram atravez dos seculos envoltos na purpura, que lhes atirou a realeza do genio, a Lesbia de Catullo, a Cynthia de Propercio, a Corinna de Ovidio, a Lydia de Horacio e a Delia de Tibullo. Alberto calou-se por um instante, e depois continuou: --Outra vez estava eu em Veneza; a minha gondola sulcava silenciosamente o grande canal. A antiga cidade dos doges parecia uma cidade morta, e a lua a lampada immensa, suspensa sobre esse maravilhoso tumulo; nem um murmurio se exhalava do seio da formosa captiva, apenas de vez em quando o sino da igreja de S. Marcos soltava lugubremente a voz, como que para entoar o epicedio da grandeza da republica; mas logo os brados gutturaes das sentinellas austriacas vinham como que protestar contra o timido queixume do anjo do campanario. As ondas do Adriatico gemiam brandamente, espantadas de ouvirem aquella voz allemã quebrar o silencio da natureza italiana. A pouco e pouco tinha cahido n’uma profunda melancholia, e comparava involuntariamente a decadencia nobre de Veneza com o misero esphacelamento da minha patria. Veneza é um gigante, que desceu ao tumulo, envolto na sua armadura de marmore, e perante aquella maravilhosa campa descobre-se o mundo com respeito: Portugal, tambem gigante, mais gigante ainda, arrojou-se á valla commum, e as nações desviam os olhos com tedio d’esse cadaver putrefacto, coberto de vermes que o devoram. Subito, d’um d’esses palacios, que miram nas aguas do canal as suas marmoreas escadarias, jorrou em ondas de melodia a deliciosa serenata do _Marino Faliero_ de Donizetti. Como por mysteriosa evocação, tudo se illuminou a meus olhos. Illuminaram-se os palacios, povoaram-se os canaes de gondolas cheias de mascaras; os fogos de Bengala tingiram de azul e côr de rosa as fachadas de marmore branco. Avultou-me ao longe o _Bucentauro_, com o seu magestoso cortejo de galeotas. Povoaram-se-me os caes de fidalgos venezianos, em cujo trajar doirado e bordado scintillava a luz projectada pelos fachos. Desappareceram os austriacos, e a Veneza antiga, a Veneza de Ticiano, a Veneza do carnaval, surgiu-me de novo das ondas, como a borboleta da chrysalida, como a Venus da espuma! --O que! ouviu em Veneza a serenata do _Marino Faliero_? acudi eu com jubilo infantil. E, correndo ao piano, fiz brotar das teclas a maviosa melodia. Havia muito que as teclas me não respondiam tão suavemente. Aquella doce musica, que suspira brandamente como a brisa nos roseiraes, vago preludio do rouxinol, harmonia d’anjo, que parece expandir-se do carro argenteo de Phebe ao rolar no firmamento azul, exhalou-se do teclado, como um perfume do calice d’uma flor. Enlevada n’esse encantamento que os meus dedos operavam, transportei-me brandamente ao seio d’uma noite luminosa como essa em que fallava a letra da canção. Vi-me em Veneza, reclinada n’uma gondola, cortando as aguas do canal. Involuntariamente os meus dedos foram affrouxando, até que mal já pesavam nas teclas. O canto quasi não se ouvia, e parecia apenas um suave murmurio, como o de harpa eolia suspensa nas franças de pinheiral distante. Afinal a harmonia esmoreceu, e esvaiu-se de todo debaixo dos meus dedos; deixei descair os braços no collo, e fiquei engolfada no meu scismar. A chuva batia com mais furia nas vidraças, e o vento soprava rijo, fazendo gemer os postigos. Mas eu não ouvia nem vento nem chuva. Esvaíra-se havia muito o ultimo suspiro da tecla abandonada, e eu escutava ainda o prolongamento d’essa nota melodiosa, como se ella se repercutisse n’uma atmosphera de crystal. Por deante dos olhos passava-me lentamente, como em magico panorama, a luminosa visão das cidades italianas: Veneza com as suas gondolas, Genova com os seus palacios, Florença com as suas galerias, Roma com as suas ruinas, Napoles com o seu golpho! E n’essa atmosphera encantada, n’esse mar limpido e voluptuoso fluctuavam as minhas andorinhas, vogavam os meus cysnes, doces devaneios que tinham fugido havia muito com a aza branca magoada! Quando levantei a cabeça, estavam todos á roda de mim, D. Antonia com um sorriso ironico, Claudio triste e inquieto, Alberto como que entregue a um delicioso extasi. --Oh! mais! mais! disse elle pondo as mãos com ar supplicante; mais alguns minutos d’esse goso infindo! Que mysteriosa intuição de artista lhe revelou Veneza? É esse o bater da agua nos degraus das escadarias! são esses os murmurios que fluctuam n’aquella atmosphera abrazadora! são essas as melodias que deviam resoar n’essas noites ferventes, em que o mundo inteiro, saindo das brumas da idade-media, não fazia senão balbuciar, pela voz dos seus poetas, pelos marmoreos labios das suas estatuas, a palavra «amor» que ia esculpir até nos rendilhados portaes, nos voluptuosos columnelos dos templos da Divindade! amor sensual, pagão, lascivo, se quizerem; mas amor immenso e vivificante como o que os raios do sol entornam no seio da gleba italiana, como as ondas do Mediterraneo descantam ás plagas sonoras da Ausonia e da Grecia! --Ah! tambem sente o mesmo? tornei eu infantilmente, acha tambem que a musica tem o magico dom de evocar um mundo desconhecido? --Se tem! A musica abre-nos de par em par as portas do ideal! S. Pedro foi destronisado. Os porteiros do céo são Bellini e Donizetti; a _Lucia_ e a _Norma_ são as duas chaves do Paraizo. --E Meyerbeer? perguntei eu, rindo. --Oh! esse é o porteiro do inferno. Ia protestar, mas elle interrompeu-me, e continuou: --Descance, de um inferno onde o ranger dos dentes é harmonioso, e onde os humanos, criminosos durante a vida terrestre, são condemnados a darem eternamente o _dó_ do peito. Pois onde queria que eu collocasse o author do _Roberto do Diabo_? No céo de certo que não. Meyerbeer é o Satanaz da melodia, é o anjo caido; mas o anjo caido de Milton, e não o diabo das lendas. Aquelle homem abre-nos um mundo mysterioso e terrivel, d’onde refugimos com terror, mas para onde nos attrae depois uma indisivel voluptuosidade. Toda a musica do _Roberto_ é a pavorosa traducção em notas da apostrophe de Satanaz ao sol no poema do Homero britannico. Mas d’esse cahos de harmonias tremendas brota ás vezes um canto d’uma doçura infinita, como o do papel d’Alice, por exemplo. São as recordações da patria celestial, são as tristezas do Archanjo soberbo no meio do seu tenebroso exilio. E as notas isoladas da abertura do _Propheta_! Que vaga melancholia, que tristeza sobrehumana! Saudade tão profunda só a podem inspirar os campos das eternas delicias, o Elysio resplandecente, a habitação dos anjos! N’este momento entrava o creado com a bandeja do chá. Fomos para a mesa, e a conversação prolongou-se até á uma hora da manhã. A chuva cessara, e a noite puzera-se fria mas serena. Alberto despediu-se, e saiu. VI Quando Alberto saiu pareceu que me caia de chofre um peso no peito. Imaginem Sisypho, a victima infeliz do inferno mythologico, podendo ver de relance uma nesga dos Elysios, e, quando está enlevado n’esse delicioso panorama, sentindo de subito rolar pela escarpa da montanha, e desabar-lhe em cima o rochedo do supplicio! Tal era a minha situação. Tivera um momento de liberdade; o meu espirito, constrangido, torturado, voara em extasi para a região luminosa dos meus sonhos, engolphara-se nos seus fulgores, nadara em pleno ether, ouvira as harmonias desconhecidas do vulgo; mas as trevas cerravam-se-me de novo, e as grades da minha gaiola appareciam-me em toda a sua negra hediondez. Claudio, pouco depois de sair o seu amigo, pretextou achar-se fatigado, e retirou-se. Ficámos sós, eu e D. Antonia. De bom grado me teria tambem retirado; mas o somno esquivava-se-me ás palpebras, que em vão o chamavam. Tinha a cabeça cheia de melodias, pulsava-me nas veias a febre da arte. Decididamente não podia dormir; levantei-me e approximei-me da janella. O vento da meia noite dissipara as nuvens, e descobrira a lua; o céo estava de uma limpidez magnifica, as poças da agua brilhavam como diamantes enormes. Deu-me uma tentação de banhar a cabeça escandescente n’essa athmosphera gelada, e abri a janella. --Que capricho tão romanesco, minha sobrinha, acudiu logo D. Antonia. Demais a mais é escusado! olhe que já o não vê. --Já não vejo quem? tornei eu voltando-me espantada. --Ora, quem! provavelmente quem saiu d’aqui. --Quem saiu d’aqui! repeti eu sem perceber ainda. --Ih! Jesus! não se faça desentendida! o senhor Alberto Mascarenhas. Ferveu-me nos labios uma resposta indignada; mas, lembrando-me da discussão que ia provocar, encolhi os hombros, fechei a janella e fui me sentar ao pé da mesa. Seguiu-se um silencio. Mas D. Antonia não era pessoa que assim abandonasse o campo de batalha. --Eu gosto de ver estas senhoras, que tanto gostam de conversar com estranhos. Seu marido e a tia de seu marido, segundo parece, não são dignos de fallarem com s. ex.ª. Pois olhe, se assim pensava, era melhor que não casasse. Mas estas senhoras afrancezadas querem ter um marido para gosarem toda a liberdade, e para serem um objecto de escandalo para as pessoas virtuosas e tementes a Deus. E não desejam conversação de senhoras, isso não lhes agrada. Não estão satisfeitas senão quando conversam com homens, e todas se embebem nas suas fallas, sem nem sequer deitarem uma vista de olhos para o esposo que receberam aos pés do altar. Com estas doidas é que os homens se entendem bem. Ah! mundo! mundo! --Isso refere-se a mim, senhora D. Antonia? perguntei eu, affectando socego, mas ralada pela indignação que me fervia no peito. --Ah! parece que lhe serve a carapuça? tornou ella, rindo-se com um riso sarcastico. --Eu não entendo muito bem d’essa questão de carapuças; mas, se teve intenção de me insultar, dir-lhe-hei que meu marido não ha de ficar satisfeito, sabendo a que improperios estou todos os dias exposta n’esta casa, que devia ser para mim abrigo inviolavel contra as injurias de qualquer, muito mais partindo ellas de uma pessoa da sua familia. --Injurias! já se vê! estava á espera d’isso mesmo! Chamam-se injurias as verdades! --As verdades! mas que verdades? tornei eu impaciente! --As que devia ouvir com mais attenção, quando lh’as diz uma pessoa, que só quer o seu bem. Que idéa iria formando o Alberto Mascarenhas d’uma mulher que esteve, toda a noite, dando-lhe só attenção a elle, e não dirigindo uma palavra só nem a seu marido, nem a tia de seu marido? --Mas eu podia obrigal-os a fallar? tenho porventura culpa se nem uma vez só entraram na conversação? --Ora essa! Pois que havia eu de dizer, n’uma palestra, em que não ouvia senão heresias! Que S. Pedro não era porteiro do céo, e não sei que mais! Estava-me causando pasmo vêl-os fallarem com tanto sangue-frio no demonio. Ah! se eu fosse o Claudio! D’esta vez não pude deixar de me rir, o que, como é facil de suppor, ainda mais augmentou a indignação de D. Antonia. --Ria-se, pois não! é o que deve fazer! É o pago que recebemos dos bons conselhos, que lhes desejamos dar! Mangam comnosco, e entram affoitamente no caminho da perdição! Ver eu, com estes olhos, uma senhora, que, para desgraça da nossa familia, é esposa de meu sobrinho, toda enlevada e requebrada a dar attenção a um petimetre na minha presença, e em presença de seu homem! É aonde póde chegar o descaramento. --Isto é demais, exclamei eu, erguendo-me com os olhos arrazados de agua; vejo-me condemnada aqui a ouvir uma linguagem, a que nunca me acostumaram, e a defender-me de accusações que o meu procedimento nunca authorisou. Só o ridiculo do insulto póde attenuar a insolencia d’elle. --Sim, diga que é ridiculo!... Como logo hoje abriu o piano! como correu pressurosa para o tocar! Puz as mãos na cabeça. Nunca imaginara tal. Ver o pudor esquecido áquelle ponto! --Mas que idéa forma então de mim? tornei eu com voz tremente, em que palpitavam os soluços abafados; se me julga capaz de provocar galanteios de um homem, que vejo pela primeira vez, e que tem delicadeza bastante para nem por sombras dar mostra de que me deseja requestar? --Ah! já o defende! Descance que ninguem o attaca. E, depois, se o viu pela primeira vez, é o que resta saber. Hoje em dia as meninas educadas á moda franceza são capazes do enganar os velhos mais experientes! Os planos são bem combinados! Commette-se uma _imprudencia_, e depois apparece um moço inexperto, a quem se acceita por marido, sem ao menos sequer se lhe dar tempo de fazer a côrte! Esses preliminares são escusados para se chegar ao fim a que se aspira! Depois, um bello dia, apparece um moço, _a quem se vê pela primeira vez_, e o moço que se vê pela primeira vez encontra a imprudencia remediada. --Oh! isto é horrivel! respondi, não podendo já suster as lagrimas e debulhando-me em prantos. D. Antonia olhou para mim com um sorriso de triumpho; estava vingada dos sarcasmos de Alberto, do seu silencio forçado de tres horas. Estavam suavisadas com esse balsamo das minhas lagrimas as feridas da sua vaidade, as mordeduras do demonio da inveja. Ergueu-se, e lançando-me um ultimo olhar, saiu vagarosamente da sala. VII Admiro-me ás vezes agora das torturas que me causavam aquellas accusações, tão despreziveis e tão absurdas. Mas eu era uma creança, e não podia conceber que o azedume e o despeito levassem uma mulher, que vivera toda a sua vida engolphada n’aquellas intrigas pequeninas, a torturar por divertimento e só por divertimento. Revoltava-me o absurdo, em vez de me fazer rir, e pungia-me principalmente o proposito firme que eu vira que D. Antonia formara de contrariar todas as minhas predilecções, de me obrigar a descer áquella esphera, em que ella vivia deliciosamente. Parecia-lhe impossivel até que houvesse alguem que se occupasse em outras coisas, ou que n’outras coisas pensasse. Quando expunha alguma das suas frivolas theorias, queria que todos as acceitassem com muita reverencia, e, se não manifestavam logo a sua adhesão, recebiam uma chuva d’epigrammas, porque eram consideradas do partido opposto ao seu, não podendo D. Antonia perceber que o verdadeiro motivo do silencio, em que todos ficavam quando ella fallava, era a perfeita indifferença que inspiravam as suas insipidas e dogmaticas banalidades. Se eu fosse capaz de comprehender aquella indole essencialmente mexeriqueira, teria logo despresado os seus ataques, por mais insolente que fosse a forma. Mas eu nunca estudara essa variedade da raça humana; era D. Antonia o primeiro especimen que me apparecia, e só muito depois vim a conhecer a fundo os usos e costumes d’aquella familia zoologica, olvidada por Linneu da sua classificação. E demais, qual é o espirito, por mais energico, por mais elevado que seja, que possa affrontar serenamente estas torturas pequenas do lar domestico? Direi mais, quanto mais elevado e mais energico fôr, mais accessivel é tambem a estas feridas de alfinete. Todos os inimigos são previstos, menos este, que é o mais despresivel e o mais terrivel tambem. O leão da fabula despresava o mosquito, e foi o mosquito quem o venceu. Depois via-me só! só n’aquelle pelejar incessante, sem ter um peito amigo que me fosse anteparo, sem ter um coração em que me abrigasse. Queria a soledade, e a soledade fugia-me! O eterno zumbir d’aquella vespa afugentava as abelhas dos meus sonhos, que eu julgava que podiam libar tão doce mel no calice das flores da phantasia! A pouco e pouco fôra abandonando as minhas relações; apoderara-se de mim uma especie de _spleen_, e era-me insupportavel a sociedade, porque estava sempre n’ella constrangida, exposta como me via a algum escandalo produzido pela extravasão da bilis de D. Antonia. Nas salas, onde uma ou outra vez entrava, sentia constantemente aquella espada de Damocles suspensa sobre a minha cabeça, e bastava isso para envenenar todo o jubilo que eu poderia ter. As minhas amigas de infancia espantavam-se de me verem tão arredia, e arrastadas tambem pelas suas preoccupações de solteiras, nem se lembravam de virem visitar a pobre exilada. «Temiam, diziam-me ellas rindo, quando me encontravam, ser indiscretas, vindo bater á porta do meu santuario.» E eu sorria-me tambem--que remedio!--sentindo ao meu lado, como sentia sempre, o genio mau que se adorava n’aquelle templo domestico. Um dia o acaso fizera-me ter um momento de desafogo, de expansão, de contentamento! Essa curta alegria havia de ter inevitavelmente a sua expiação: teve-a, e logo em seguida. Essa suave convivencia que eu esperava que se estabelecesse entre mim e Alberto, essas conversações que viessem de vez em quando, como os oasis no deserto, offerecer-me um instante de frescura, dessedentar-me por um pouco, tudo isso era maculado, ainda antes de nascer, pela baba peçonhenta do reptil que me perseguia! Parecia que um instincto infernal lhe segredava os meios de me torturar; havia um demonio invisivel que volteava em torno d’ella, e que lhe indicava os pontos vulneraveis da minha epiderme; vinha logo a envenenada setta cravar-se, arrojada por mão certeira, no sitio doloroso. Oh! quem fará um dia o poema d’estas agonias mysteriosas, tanto mais tristes, tanto mais pavorosas quanto menos lastimadas são quando se revelam! Este lento padecer nas trevas mais recatadas do lar da familia não tem a poesia augusta dos martyrios, que são bem visiveis, e que todos podem facilmente avaliar? Pois estas é que são as dores terriveis, porque não matam, mas empeçonham a vida, estiolam-na, desenfeitam-na de tudo quanto a poderia tornar agradavel, e quando o anjo da morte venha, depois de longos annos d’uma existencia, que mão paciente foi descolorindo, colher no seu regaço a nossa alma, encontra-a mais gelada, mais fria, mais inerte do que o cadaver, que o tumulo reclama. VIII Passou-se o resto do inverno, sem que successo algum notavel viesse perturbar a triste monotonia da minha existencia. Augmentavam a cada instante a sombria taciturnidade de meu marido, o intoleravel despotismo de D. Antonia. Alberto vinha de quando em quando visitar-nos, e os poucos momentos, que elle passava comnosco, eram para mim de ineffavel jubilo. A sua indole viva e amena, a sua conversação sempre colorida e pittoresca, a sua palavra eloquente exerciam em mim uma salutar influencia. As suas visitas eram como as de um raio de sol ao preso encerrado n’um carcere tenebroso. A nossa ligação, por maior que fosse o desejo que D. Antonia tivesse de a envenenar, não lhe dava para isso o minimo pretexto. Era a ligação de dois condiscipulos, que se sentem attraidos um para o outro pela uniformidade das suas idéas, pela commum predilecção consagrada aos mesmos estudos. O franco e aberto sorriso, com que eu o acolhia, O amigavel _shake-hands_ que trocavamos á despedida, não explicavam senão sincera e cordial sympathia mutua. Finalmente chegou a primavera. Alberto partira antes de terminar o inverno, para a Ericeira, onde tinha parentes que o chamavam. Claudio propoz-me irmos passar a primavera e o estio n’umas terras que possuia na aldeia de ***, junto de Bellas. Aceitei, e aceitei com enthusiasmo. Quando já estava determinada a partida, e tudo preparado, subitos e imprevistos negocios obrigaram meu marido a demorar-se em Lisboa. Não quiz elle de modo algum que por causa d’isso transtornassemos a viagem projectada. Despediu-se de mim affectuosamente, prometteu-nos, que, assim que se pudesse desembaraçar, iria ter comnosco; depois viu-nos entrar na carruagem, e esteve á janella até nos sumirmos saindo as portas da cidade. Estava um d’estes dias do principio da primavera, em que sopra ainda a brisa aguda invernal, e em que o horisonte se cobre com um denso veu de neblina. Caía uma chuva miudissima, e a baixa de Campolide apparecia emvolta n’um manto de tristeza. O vulto do aqueducto desenhava ao fundo os seus arcos magestosos e sombrios. Envolvi-me na minha capa de viagem, e concheguei-me no fundo do _coupé_. O movimento da carruagem era suave bastante, e proprio, a mais não poder ser, para acalentar os meus sonhos. Primeiro quiz sustentar a palestra com o auxilio de algumas banalidades; mas pouco a pouco a minha imaginação não se poude conter, engolphou-se na região dos devaneios, emquanto ao meu ouvido, que as sentia vagamente, resoavam as palavras de D. Antonia, que me ía recitando, segundo creio, a lista dos nossos visinhos do campo. Eu, entretanto, contemplava a paizagem, que apresentava aspectos diversos e pittorescos. De vez em quando um frouxo raio de sol rasgava o manto de nevoas, e vinha dar uma certa animação ás campinas. Espairecia o firmamento, e a magestosa curva do grande arco do aqueducto moldurava ao longe uma vasta nesga de tela azul. A luz amarellada do sol doirava os campos, que se apresentavam já cobertos com o seu vistoso tapete de malmequeres. Depois corria-se de novo o panno, e o scenario desapparecia com os seus explendores de um momento, com o seu instantaneo colorido. Involuntariamente comparei a minha vida monotona, e tendo apenas breves intermittencias de luz, com aquella paizagem da primavera invernosa. A imagem de Alberto fluctuou-me por instantes na phantasia. Sorri-me ao lembrar-me do que diria a minha companheira de viagem, se soubesse que vulto eu vira n’aquelle instante com os olhos d’alma. Esse sorriso, por mais rapido que fosse, não escapara á vista perspicaz de D. Antonia. --De que se ri? perguntou logo. Como que acordei sobresaltada. --De nada, retruquei. --De nada? Só a pessoas que não teem todo o juizo, acontece semelhante coisa. É verdade que talvez agora se dê esse caso, accrescentou por entre os dentes. Encolhi os hombros. --Pois olhe, continuou ella, que o que eu lhe estava dizendo era muito sério. Provavelmente nem sabe o que foi. --Confesso, respondi eu fazendo-me vermelha, que não percebi bem. --Ah! não percebeu? Pois olhe, não era difficil. Por onde andará o seu pensamento? Não percebe o que eu digo e não sabe de que se ri! Isso ha de ser nervoso. Talvez precise de tomar banhos de mar... na Ericeira. Começara o tiroteio. Já me admirava de que a trégua durasse tanto. Conforme o costume, deixei passar a tempestade dos epigrammas, fazendo porque o meu espirito se isolasse completamente d’este mundo, e voasse para bem longe d’aquella atmosphera turvada. Tinhamos já passado para deante da ponte do Carenque, e entravamos n’essa estrada arida, núa, monotona, que põe em communicação entre si Lisboa, a formosa rainha do Tejo, Cintra, a mimosa camponeza das serras. O sol, proximo do occaso, conseguiu alfim romper a nebulosa cortina que o cercava. Como a lampada moribunda projecta, nas vascas da agonia, mais intenso clarão, assim o rei dos astros, antes de apagar no horisonte a sua corôa de fogo, quiz inundar o céo com vividos reflexos. Então o cerrado esquadrão das nuvens como que se revestiu de luminosas couraças. Como captivo soberano, a quem a fortuna restitue o throno, e que vê passar por deante de si humildes e curvados os seus proprios carcereiros, assim as nuvens desfilavam, impellidas pelo vento, por deante do sol, immovel no horisonte purpurado, como em vasto solio de chammas. Aqui semelhavam corceis phantasticos, de arreios de ouro e xaireis de escarlata, que voavam n’um insano galope; mais além nuvens distantes, que se tingem de reflexos arroxados, passavam lentamente, como graves magistrados envoltos nas suas bécas. A illusão chegou a ponto, que a minha phantasia, começando, segundo o costume, a tomar gosto n’esses devaneios, deu a cada nuvem um papel, e chegou a vêr bem vivos, bem claros os vultos que imaginava. Este cortejo de nuvens bojudas, que avançava magestosamente, representava a meus olhos a camara municipal. Ouvia-lhes os discursos, que o vento vinha indiscretamente segredar ao meu ouvido. Aquell’outras que se conservavam fluctuando em torno do sol, e que mais brilhantes se mostravam com as suas vestes de purpura recamadas de oiro, eram os cortezãos que cercavam o regio throno. As arvores, que fugiam, á medida que ia passando a carruagem, affiguravam-se-me a plebe, que saudavam com enthusiasmo a cerimonia celestial. O vento agitava-lhes os braços, que pareciam menear na atmosphera invisiveis chapeus; dir-se-ia que os murmurios, que se exhalavam das suas ramas, eram o bramir longinquo e indiscreto dos vivas de um povo inteiro. Era tão comica a attenção que eu prestava a estas cerimonias phantasiadas, que involuntariamente, caindo em mim, desatei a rir. D. Antonia olhou-me com espanto. --Estará maluca, minha sobrinha? perguntou ella. Eu olhei-a com um embaraço infantil, e balbuciei algumas palavras inintelligiveis. --Em vez de conversar comsigo mesma, teria sido melhor se me communicasse os seus pensamentos. Não teria d’essa fórma commettido a indelicadeza de quasi me não dar palavra todo o caminho... porque estamos em Bellas. Tinha razão, e eu não pude fazer mais do que acceitar a reprimenda e confessar a mim mesma que as imprudencias da minha phantasia de creança, que estava prompta sempre a lançar mão da _clef de champs_, eram causa muitas vezes dos meus dissabores. Estavamos em Bellas effectivamente. O sol sumira-se de todo, mas o céo parecia querer-se conservar limpo, e prometter uma noite boa. A carruagem parou no largo para onde deita a porta da quinta do conde de Pombeiro. O cocheiro tomou informações, e soube que as chuvas dos ultimos dias tinham transformado as estradas em atoleiros. Veio ter comnosco, e disse-nos que nos levava, se quizessemos, á aldeia de ***, mas que nos arriscavamos a fazer uma viagem demorada, ou a ficar atascadas no meio do campo. Como a noite promettia estar serena, e a aldeia não era muito distante, resolvemos, eu e D. Antonia, ir a cavallo. Por conseguinte despedimos o cocheiro, depois d’elle nos ter ido alugar uns burros, e, sentadas no dorso dos pacificos animaes, tomámos o caminho da casa de campo. Pouco teriamos andado, quando o céo se principiou a toldar de novo. Caía a noite, e as nuvens, carregando o firmamento, apagavam os faroes das estrellas, e desdobravam por cima das nossas cabeças um manto negro e funebre. O rapaz, que tocava os jumentos, mirou o céo e abanou a cabeça dizendo: --Temos ahi chuva em barda. É irmos mais depressa, minhas senhoras. Mas isso era mais facil de se dizer do que de se fazer. As informações do cocheiro tinham sido exactas, e as estradas eram verdadeiramente uns lamaçaes quasi impossiveis de atravessar. A chuva já principiara a cair, o vento zunia com violencia, e os pobres animaesinhos curvavam a cabeça, e amainavam as longas orelhas, como o barqueiro amaina a vela quando sopra o temporal furioso. Era necessario avançarmos com muita cautela, para não tomarmos algum banho n’essas poças que abundavam no caminho, e que um ou outro relampago, que principiava a fuzilar, nos mostrava, cercando-nos por todos os lados, como uma rede de paúes. Finalmente retumbou um trovão magestoso, e uma tremenda pancada d’agua desabou em cima de nós. --Santa Barbara, e S. Jeronymo nos accudam, murmurou o burriqueiro, que noite que vamos ter! --Ainda fica muito longe a aldeia? perguntei eu. --Ainda é um bom pedaço, respondeu o rapaz, atirando uma verdascada ao jumento para lhe apressar o passo vagaroso. --E não ha por aqui alguma aldeia mais proxima? --Agora vamos nós atravessar uma. --Então, senhora D. Antonia, acudi voltando-me para ella, não acha que seria melhor recolhermo-nos em alguma casa, emquanto não passa o temporal? --Entrar em casa de um saloio! Deus me livre! A minha sobrinha não sabe como esta gente é bruta, e porca principalmente. Eu, se me visse obrigada, por não ter outro remedio, a descançar n’uma casa d’essas, assim que me visse no palacete, despia-me toda! Captiva! Isto era dito em voz bem alta, deante do rapaz que nos acompanhava. Elle naturalmente não se importou com isso; mas a mim é que se me confrangeu o coração: nem gosto de humilhar, nem de ver humilhar, os humildes; impressiona-me sempre desagradavelmente ver alguem, collocado pela fortuna n’uma posição mais ou menos elevada, fazer sentir á gente das classes inferiores a distancia que as leis antigamente e agora os habitos mantém entre os pobres e os ricos, os humildes e os soberbos. Por isso, para remediar quanto em mim coubesse a falta de delicadesa de D. Antonia, dirigi amigavelmente a palavra ao nosso companheiro saloio. D. Antonia nem em tal reparou. Aquellas coisas fazia-as ella naturalmente, e sem ser por mal. Não tivera intenção de offender o rapaz, e ficaria espantadissima se soubesse que um saloio podia ter susceptibilidade e sentimento da dignidade humana. Nunca se constrangia para fallar deante d’essa gente; no mais não a tratava nem melhor nem peior do que os outros, e estava convencida que podia ser considerada como um modelo de affabilidade quando correspondia ao cumprimento de um homem de baixa esphera, e lhe dizia: --Como está _você_? Sua mulher e seus filhos vão bem? Muito estimo! Beba um copo de vinho á minha saude. Aqui não; vá para a cosinha. Olhe, lá me sujou a casa com os tamancos! Esta gente não póde entrar em parte alguma. Emquanto eu fazia taes reflexões, não findara a chuva; mas os jumentos, incitados pela voz e pelas verdascadas do burriqueiro, e por um certo instincto que lhes dizia que estavam quasi chegados ao termo da sua jornada, haviam tomado uma andadura mais rapida, de fórma que d’ahi a um quarto de hora pudemos ver uma casa de boa apparencia, singela, com pavimento rente do chão, e andar nobre, que D. Antonia me disse ser a nossa residencia. O burriqueiro deitou a correr para ir bater ao portão; quando lá chegámos, tinham-se já corrido os ferrolhos e destrancado a porta, e uma criada velha, entre-abrindo-a cautellosamente, apparecia com um candieiro de tres bicos na mão, e exclamava, ao conhecer D. Antonia: --Valha-nos Deus! A Virgem Maria nos acuda! É a senhora D. Antonia! Ai! a minha santinha, como ha de vir molhada! Ó Zé Caneira! olha que é a senhora. Ó Annica! Ó mulher, tu não appareces? Diabos te... quero dizer: Valha-te Deus, rapariga, que tão mollenga me saiste! IX Era perfeitamente uma d’aquellas phantasticas velhas dos contos de Hoffmann essa que nos viera abrir as portas. Nariz adunco, barba revirada, cabellos grisalhos, despenteados e fluctuando como que em desordenadas estrigas sobre a testa proeminente, que abrigava, como uma especie de pala natural, os olhinhos pequenos, pardos, e encovados! A luz mortiça do candieiro projectava no seu rosto uns vagos reflexos, que ainda lhe davam um mais estranho realce. Era baixa, um tanto curvada para diante, e vestia uma especie de casabeque immundo, apertado na cintura, com umas abas curtas, que cobriam uma pequena porção da saia de baeta vermelha, que lhe ia poisar em cima dos sapatos rotos. A boa da velha não se fartava de nos fazer mesuras, em quanto vinham surgindo de differentes portas os creados, que ella chamara, e que traziam um supplemento de illuminação. --Adeus, Maria do Rosario, disse D. Antonia, ao apear-se da cavalgadura, como está você? --Ai! minha senhora, graças a Deus! antes assim que peior! cá vou arrastando estes pobres ossos por este mundo de Christo, até Deus querer... até Deus querer! Ai! minha querida senhora D. Antoninha, está cada vez mais moça! bonita, guapa! ai! Senhor! quantas meninas de quinze annos a não hão de invejar? --Isso é dos seus olhos, Maria do Rosario, tornou D. Antonia, rindo-se com certa complacencia, já estou velha e bem velha. O tempo de agora está para estas, continuou, apontando para mim; olhe, é a mulher de meu sobrinho. Maria do Rosario fez-me uma mesura, a que eu respondi com um sorriso. --Ai! Santo Deus! é mesmo uma flor! Deus a fade bem, e lhe dê o juizo da tia, como lhe deu a belleza d’ella! com que então, é esta a mulher do seu Claudiosinho? Quem havia de dizer, senhora D. Antonia, quando nós andavamos com o Claudio ao collo... --Andavamos! interrompeu D. Antonia, um tanto espinhada, andaria você, eu era uma creancinha n’esse tempo! --Ora esta! acudiu apressadamente Maria do Rosario, emendando a mão como boa cortezã que logo vi que ella era, onde teria eu a cabeça? É verdade que a senhora D. Antonia, desde creança, foi tão espigadinha, tão airosa! Ai! minha senhora... como é a sua graça? --Margarida, respondi, tiritando de frio, porque estava com o fato ensopado, e ainda não tinhamos passado do fundo da escada, tal era o enlevo com que D. Antonia escutava a sua lisongeira. --Margarida! que bonito nome, benza-a Deus! Pois, senhora D. Margarida, não póde imaginar que linda creança era aqui a senhora D. Antonia. Branca de neve, alta, muito rosada! Era mesmo um anjinho do céo! --Não diga tal, Maria do Rosario, tornou D. Antonia rindo, eu nunca fui bonita; era muito branca, isso sim! por esse lado todos me gabavam! alta sempre fui tambem, e apezar d’isso, tinha um pé tão pequeno, tão pequeno que todos diziam que parecia impossivel como podia suster o corpo... mas não é d’isso que se trata agora; estamos ambas ensopadas, e queremos mudar de fato. Já cá estão as bagagens? --As bagagens? não, minha senhora, não estão; nós até nem suspeitavamos que as senhoras viessem hoje... Ora! valha-me Deus! --Pois as bagagens ainda cá não estão!? tornou D. Antonia, desesperada. E o que havemos de fazer? --Que transtorno! que transtorno! mas as senhoras hão de vir cançadas, e talvez o melhor seja deitarem-se, a não ser que prefiram aquecer-se aqui ao fogo da lareira! Mas isso não é... --O que! ir para a cosinha? Você não está em si, Maria do Rosario. --Desculpem, minhas senhoras, isto era por dizer. --E eu aproveito a idéa, tornei sorrindo-me; não tenho somno; e o fogo da lareira está-me convidando. --Faça o que quizer, acudiu D. Antonia seccamente. E subiu a escada com toda a magestade, seguida por Maria do Rosario, que lá ia resmungando a continuação do seu panegyrico. --Para onde é a cosinha, meus amigos? perguntei eu voltando-me para os criados, que haviam assistido mudos á precedente scena. --P’ra aqui, p’ra aqui, minha senhora, acudiram todos á uma, apressando-se a mostrarem-me o caminho. Desci uns tres degraus que me ficavam á direita, segui um corredor, e achei-me na cosinha. A tempestade redobrara de violencia; sentia-se a chuva bater nos postigos; de vez em quando uma lufada de vento engolphava-se gemendo por alguma janella que se abriu com fragor, e uma chapada d’agua inundava o chão lageado; ao mesmo tempo os aterrados aldeãos viram as arvores estorcerem lá fóra as suas ramas ainda mal cobertas de folhas nascentes, benziam-se tres vezes, se um relampago, incendendo a ramaria no seu clarão azulado, a transformava nos phosphorescentes braços dos espectros. A cosinha era vasta, e o bom fogo que ardia na lareira, e cujos avermelhados reflexos doidejavam mirando-se nos espelhentos cobres da bateria culinaria, espalhavam em todos elles não sei que doce encanto, que suavissima alegria, e que idéas de tranquillidade e conforto que me fizeram acudir aos labios um jubiloso sorriso. A lareira era quasi rente do chão, como todas as lareiras, e á roda d’ella uns poucos de saloios, em cujas physionomias astuciosas batia em cheio o clarão do brazido, escutavam attentamente uma boa velha, a qual, sentada n’uma d’estas cadeiras d’espaldar, forradas de coiro e cravejadas de pregaria amarella, velhos ornamentos das salas dos palacios, desterrados agora pelos _fauteuils_, pelos sophás, e pelas _causeuses_ para as regiões infimas da cosinha, fiava a sua rocada e contava uma historia qualquer, a que todos prestavam a maior attenção. Do outro lado da lareira uma outra cadeira d’espaldar fazia symetria com esta, e mostrava que fôra occupada, instantes antes talvez, pela Maria do Rosario, que nos viera receber. Em torno de uma vasta mesa de pedra, situada ao meio da cosinha, reuniam-se uns tres ou quatro saloios, entre os quaes descortinei o burriqueiro, que estava saboreando as delicias da nossa hospitalidade, traduzida n’uma respeitavel malga de feijões, e n’um amplo cangirão de vinho. Foi em presença d’este digno congresso que eu appareci, brandamente impellida pelos meus guias, que me traziam quasi em triumpho, e que já de longe annunciavam que era eu a nova senhora, a muito alta e muito poderosa D. Margarida, Castellã de Solar de *** nas proximidades de Bellas. Quando cheguei á porta, estaquei, enlevada n’esse quadro de tão rustica e pittoresca simplicidade. Ficava-me defronte a lareira, de fórma que a sua luz dava-me no rosto, scintillava-me nos cabellos, que chispavam doirados reflexos, e cercava-me emfim de uma certa auréola sobrenatural, que incutiu, segundo penso, um vago respeito n’aquella boa e ingenua gente, porque todos se levantaram a um tempo, e murmuraram ao ouvido uns dos outros: --É uma imagem! Parece a Nossa Senhora do altar da ermida. --Salve-os Deus, meus amigos, disse eu alegremente, e entrando com desembaraço pela cosinha, dão-me ahi um cantinho á lareira para me enxugar? --Guarde-a Deus, minha boa senhora, respondeu a velha cortejando-me respeitosamente, e entrem n’esta casa no seu regaço todas as felicidades, porque espero em Deus que seja tão bondosa, como é linda, e tão verdade como ser Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado para nos remir do peccado original, nunca os meus olhos viram tal perfeição. --Muito obrigada, boa tia, respondi eu affectuosamente, forçando a pobre mulher a sentar-se, e sentando-me tambem na outra cadeira que logo todos chegaram para ao pé do lume; vejo que entrei n’esta casa com bem maus agoiros. Que tempestuosa noite! Os creados e as criadas, que me tinham guiado, sentaram-se no chão á roda da minha cadeira e prestaram ouvido attento á palestra, que se principiara a travar entre a boa Quiteria, oraculo d’aquella tribu, e a recem-chegada Lisboeta. O vento gemia rijo lá fóra, a lenha do lar crepitava, ouvia-se o monotono canto do grillo, e o fuso sirandava, sirandava nas mãos ligeiras da velha. Reinava silencio profundo. Eu sentia coar-se-me nas veias aquelle indizivel bem-estar, que em moderado calor influe no corpo gelado pelo vento e pela chuva. Passeei a vista com benevolencia pela assembléa, e não vi senão rostos pasmados e olhos fitos em mim. --Que calada de coelhos! murmurou uma creadita que estava ao meu lado, ao ouvido de um rapaz seu visinho. --Então porque não fallam? respondi com um sorriso. Vamos! em que se conversava quando eu entrei? --Ora, se a senhora soubesse, ria-se de certo, tornou a creada abaixando os olhos negros e travessos. --Que estás tu a dizer, Annica? interrompeu a velha, levando aos labios, para o molhar, o fio da estriga, tu julgas então que uma pessoa de juizo se possa rir de um caso que é asseverado por gente de sabedoria, que lê de fio a pavio todos os livros das estantes? --Eu não digo isso, tia Quiteria, mas... --Mas és uma tola, Annica; ha alguem que duvide que apparece uma alma do outro mundo na capella do senhor conde de Pombeiro, em Bellas? A velha Quiteria proferiu estas palavras, relanceando em torno de si um olhar de desafio. Correu um vago frémito no auditorio, e todos se chegaram mais uns para os outros, ouvindo com inquietação estalar lá fóra a trovoada. --O que a tia Quiteria diz é muito verdade, accudiu o burriqueiro com a boca cheia; em Bellas não ha cão nem gato que o não saiba. --Não é bom fallar n’estas coisas em noites de temporal, interrompeu um trabalhador velho meneando a cabeça coroada de cabellos brancos. Os finados sáem do tumulo, quando o trovão os acorda, e vagueiam pelos campos, penando os seus peccados. Nós ouvimol-os gemer, e dizemos que é o sussurrar do vento; não é, não é, é o suspirar dos mortos. Um lufada de ventania zuniu tristemente, e veio, coando-se pelas fisgas das portas, fazer vacillar a chamma da lareira. Não sei que sombras phantasticas se projectaram no chão lageado da cosinha. O burriqueiro olhou em torno de si um tanto inquieto, e não se julgando já em segurança, destacado como estava, do grupo principal, veiu, chegando-se a pouco e pouco, accrescentar a roda. --E que penas que elles penam ás vezes! tornou a boa da velha abaixando a voz, e parando por um instante de trabalhar. Lembram-se do padre fr. João? --Lembramos, lembramos! santo homem! Morreu, ha pouco, em Bellas, responderam todos com voz unisona. --Pois eu conheci aquelle reverendo, que foi pequeno da minha creação, e que fez por aqui muitas travessuras, quando o pae inda era vivo. O motivo, porque elle se metteu frade, é um motivo estranho. --Conte, conte, tia Quiteria, bradaram todos a uma voz. --Se a nossa ama dá licença... --Falle, falle, minha boa tia, estou morrendo pela ouvir. --Pois o pae de fr. João era aqui um lavrador da terra, que foi pouco a pouco augmentando as suas fazendas á custa dos visinhos, que, sendo mais pobres, não o podiam demandar. Todos os annos ia elle chegando o marco das terras mais para deante, a ponto que um dos seus visinhos ficou reduzido á miseria. Morreu o usurario, e o pobre filho, que não sabia d’estas coisas, começou a disfructar socegadamente os bens que seu pae lhe legara. Alguns boatos lhe tinham chegado aos ouvidos, mas elle sempre suspeitara que tudo eram calumnias e invejas. «A final chegou o tempo das sementeiras, e o nosso João, que morava em Bellas habitualmente, mas que tinha uma casita terrea nas suas fazendas, veiu residir aqui para vigiar os trabalhadores. «Quando elle chegou encontrou-os a todos enfiados de susto. Disseram-lhe á uma que não tinham tido um momento de descanço, porque todas as noites se ouvia um arrastar de cadeias, uns gemidos que cortavam o coração; e finalmente que um d’elles, mais affoito, que ousara espreitar para saber qual era a causa d’esse barulho nocturno, quasi desmaiara de pavor, quando vira o finado, envolto na mortalha branca, arrastando o marco por todo o campo, e soltando gemidos lugubres, a que respondia ao longe o funebre piar do mocho...» --Credo! murmuraram os assistentes. «O João todo se desesperou, e disse que desancaria quem se atrevesse a repetir semelhantes mentiras, e que, para provar o seu dito, havia de passar toda a noite sósinho em casa, e que veria se ousava alguem perturbar-lhe o repouso. «Se bem o disse, melhor o fez. Era no verão; mas apezar d’isso estava tempestuosa a noite como esta de hoje. O trovão ribombava nos ares, e os relampagos illuminavam os campos inundados de agua. O vento acamava as espigas de trigo, e fazia-as sussurrar lugubremente. «João metteu-se em casa e esperou que soasse a hora fatal. Não direi que não estivesse um tanto pallido e trémulo, mas continha o receio involuntario, e estava prompto para affrontar o perigo intrepidamente. «Um relogio velho, que elle tinha em casa, fez ouvir aquelle barulho que precede nos antigos relogios de parede o bater das horas, e logo depois deu meia noite. A tempestade pareceu suspender-se para escutar o signal dado pela voz mysteriosa do tempo, mas, apenas vibrou a ultima pancada, o furor da procella, por um instante refreado, redobrou de intensidade, e o vento, a chuva e os trovões bramiram com tal violencia, que tremeu toda a casa como se a sacudissem as garras de invisiveis demonios. Logo, por entre os rugidos confusos da procella, sibilar do vento, roncar dos trovões, tintinar da chuva, começou João a ouvir uns flebeis gemidos, que se prolongavam indefinidamente, um arrastar de algemas, que de cada vez se approximava mais. «João sentiu um calafrio correr-lhe pelas veias; mas tomou animo, e levantou-se da cadeira onde estivera. Não teve porém tempo de dar um passo. Abriu-se a porta e...» N’este momento abriu-se com estrondo a porta da cosinha. --Jesus! bradaram os circumstantes. X Todos sentimos como que uma commoção electrica; eu mesma confesso que estremeci ao dar por tão notavel coincidencia. Mas o nosso susto mudou-se em espanto, quando vimos apparecer á porta D. Antonia, envolta n’um chale antiquissimo, que provavelmente descobrira n’algum dos velhos bahus da residencia. --Então aqui não se trata da ceia? perguntou ella, cruzando os braços. Toca a palrar e a contar historias, e eu e a Maria do Rosario que nos aguentemos com o trabalho! Fóra mandriões; Annica já, já fazer as camas; Quiteria veja se nos arranja alguma coisa para cearmos. Nunca se viu uma coisa assim! Os servos aqui muito bem refestellados, e as donas da casa tendo de fazer o trabalho se o quizerem ver feito. A pobre Maria do Rosario é que havia de acudir a tudo. Vamos, minha sobrinha, venha d’ahi, não se costume a dar confiança a esta gente, senão está perdida. O rubor da vergonha, e da colera subiu-me ás faces e affogueou-m’as. O que! pois não era eu a dona da casa, não era eu só quem podia dar essas ordens e essas reprehensões? Mas que havia de fazer? Travar uma discussão em presença dos criados? Impossivel; a minha indole negava-se completamente a essas coisas. E por esta fórma conseguia sempre D. Antonia as victorias, que lhe assegurava a sua impudente iniciativa. As criadas andavam já todas azafamadas. Eu ergui-me e saí; passei por diante de D. Antonia, e vi a Maria do Rosario escondida na sombra. Percebi que tinha uma nova inimiga. Chamei-a, e disse-lhe que me indicasse o meu quarto. Ella veiu logo, fazendo muitas mesuras, e, pegando no candieiro, caminhou adeante de mim. Voltei-me e dei as boas noites a D. Antonia. --Não ceia, minha sobrinha? perguntou ella. --Não, minha senhora, respondi; sinto-me cançada, e prefiro deitar-me. Não me respondeu, e limitou-se a encolher os hombros. Eu subi a escada, seguindo a Maria do Rosario. O meu quarto ficava situado n’um dos angulos do edificio. Era vasto e frio. Duas janellas de peito, com bambinellas, rasgavam-se n’uma das paredes. Um leito de cortinas vermelhas, formidavel, macisso, abrangia uma grande porção da parede fronteira. O quarto fôra forrado de papel, havia pouco, e o mau gosto de quem presidira a esses arranjos escolhera o papel entre estes de linhas em zig-zag, parallelas e muito unidas, que impressionam a vista, e tomam fórmas phantasticas quando a luz vacillante d’uma vella as faz ondearem e confundirem-se de um modo aterrador. Duas ou tres cadeiras de espaldar e pregaria e uma commoda antiquissima completavam a mobilia d’este quarto lugubre. A atmosphera frigida d’aquelle aposento, regelando-me os membros, opprimiu-me o coração. Pareceu-me que entrava n’um sepulchro. Em cima da commoda havia dois castiçaes com vellas de stearina. Maria do Rosario accendeu-as, e perguntou-me se precisava de mais alguma coisa. --De nada, respondi eu seccamente. Mas, quando ella se ia a retirar, chamei-a. --Aqui n’esta casa não ha alguma livraria? perguntei eu. --Ha, sim, minha senhora, respondeu ella. Aqui esta porta deita para um corredor, que vae ter á casa dos livros. Se a senhora quizer, as portas estão abertas. --Obrigada, tornei eu. Maria do Rosario saiu. Senti-a fechar a porta, e depois descer a escada de vagar, até que esmoreceu ao longe o ecco dos seus passos. Caiu tudo em silencio. Em silencio, não; porque a tempestade não se aplacara. O vento gemia com mais tristeza, açoitando os postigos das janellas. De quando em quando ouvia-se a voz magestosa do trovão. A aza doida da procella batia com furor nos vidros. Sentei-me com desalento n’uma cadeira, e deixei pender a cabeça nas mãos. Senti quanto é horrorosa a soledade quando se tem vinte annos e um coração ardente. N’essas noites de temporal, em que é tão suave a reunião familiar, via-me eu só, abandonada, entregue a todos os pavores que a solidão inspira, n’um aposento, que mais parecia tumulo de mortos que habitação de vivos. Era esse quarto o symbolo da minha existencia, tal como o destino m’a fizera, carcere sombrio e lugubre onde eu tinha que encerrar todas as aspirações da minha juventude, todo o fogo vital que me incendia o sangue. Ergui a cabeça para respirar desafogadamente, porque esses pensamentos haviam-me opprimido o coração, e dei um grito de terror. Defronte de mim um vulto pallido mirava-me como que atterrado. Lagrimas silenciosas deslisavam-lhe pelas faces. Era a minha imagem que se reflectia n’um espelho em que eu ainda não reparara. Sorri-me do engano; ergui-me e dirigi-me ao espelho. «Pois és tu, Margarida, exclamei eu, és tu a creança descuidosa, que ha pouco dançavas nos bailes com tão mimoso colorido nas faces? És tu a flor das salas? Como estás desbotada, rosa das valsas! Definhas á sombra; mas que sol te poderia reanimar?» «O amor!» suspirou uma voz intima, e o quarto illuminou-se com vagos e ignotos clarões, e a tempestade como que se acalmou por incanto, e a sua voz expirante balbuciou aos meus ouvidos: «O amor!» E as linhas do papel arredondaram-se tambem em graciosas curvas, e murmuraram: «Amor! amor! amor!» Voejaram no quarto invisiveis pombinhas candidas, e eu ouvia-lhes o harmonioso bater d’azas. O rosto, reflectido no espelho, desfranziu-se n’um sorriso, e expulsou as nuvens que lhe toldavam a fronte. --Que loucuras! balbuciei. E levantei-me, peguei n’um castiçal, e dirigi-me á bibliotheca a procurar um livro, que me distrahisse o espirito d’estes perigosos devaneios. A livraria era uma casa pequena, toda cercada de estantes, que vergavam ao peso de formidaveis _infolio_. Tirei ao acaso o primeiro volume que se me deparou. Era o segundo tomo dos _Trabalhos de Jesus_. Isso exactamente eu desejava. O titulo promettia-me um admiravel exorcista contra o demonio côr de rosa que ameaçava perseguir-me. Voltei pé ante pé, e entrei no quarto. Colloquei o pesado alfarrabio á cabeceira do meu leito, e principiei a despir-me. Já não ouvia gemer o vento, nem estalar a trovoada. Tive curiosidade de ver o aspecto da atmosphéra e, meio despida, corri á janella e entreabri um postigo. A janella deitava para o jardim. Cessara de chover, e a lua, filtrando os seus raios por entre as nuvens, banhava os canteiros no seu magico fulgor. O vento abrandara, e transformara-se n’uma brisa suave, que agitava as folhas nascentes das arvores. Parecia-me assistir á transição do inverno para a primavera, e cheguei a pensar que esse momento era o momento exacto em que findava o reinado dos gelos, e principiava o das flôres. A natureza, cançada da lucta, deixava-se embalar no regaço da primavera, que surgia coroada de estrellas, e scintillante de poesia e de amor! Amor, sim; essa doce palavra vi-a claramente escripta no vidro em letras de prata por um raio luminoso, que se desprendeu languidamente do seio da namorada Phebe. Cerrei a janella, e corri para o leito. Ao passar por diante do espelho, relanceei para elle a vista, e divisei um rosto que me sorria com os olhos banhados em vaga languidez. Involuntariamente escondi o seio com os braços cruzados, e, toda tremula e risonha, metti-me na cama, lançando logo a mão ao ponderoso volume de fr. Thomé de Jesus. Abri ao acaso e li: «Ó amor divino, como prendes, quando na alma te accendes; como captivas, quando á alma descobres alguma parte da formosura de tua face divina! Sem te ver claramente a alma peregrina, só pelo que de ti da vida sente, e póde com tua graça experimentar, como fica livre de si e das prisões da terra, e captiva de ti, e presa de teu amor! Estas tuas amorosas e suaves prisões tanto a atam e possuem, que até dos corporaes sentidos lhe mudas o gosto em ti, porque tudo lhe trazes sujeito á tua mão, e obediencia do teu amor. Se quer dormir, tu a acordas, se quer descançar, a aguilhôas, se quer comer, lhe tiras o sabor, se quer conversar, a apartas; toda a prendes, toda a queres, tudo lhe defendes; sempre amigo, sempre cioso; porque todo te dás, e toda a tomas; todo te entregas, e toda a prendes.» Deixei descair o livro, cujas paginas rescendiam não sei que namorados effluvios; sentia volitarem em torno de mim sylphos e fadas, que pareciam, occultos na sombra, segredar uns aos outros dulcissimas harmonias. O clarão suave da vella parecia oscillar brandamente ao meigo e perfumado sopro d’esses habitantes dos ares. As letras do livro eram outras tantas teclas, que suspiravam melodiosamente as mais voluptuosas arias de Bellini e de Rossini com letra de fr. Thomé de Jesus. Fui cerrando os olhos, como se o fluido magnetico, que enchia o quarto, me opprimisse as palpebras. A vela estava quasi expirando, e, nas vascas da agonia, projectava clarões phantasticos nas cortinas vermelhas do meu leito. Suspirei brandamente, e fui-me deixando adormecer, murmurando a palavra: «Amor!... Amor!» XI Entrava já o sol claro e alegre pela janella aberta, quando despertei. Esfreguei os olhos, ainda estonteada, e, levantando-me na cama, dei com a Maria do Rosario, que andava limpando o pó. --Que horas são? perguntei eu. --Então como passou a noite, senhora D. Margarida? Ai! cala-te, boca, não queiras tirar a Deus Nosso Senhor o que a Deus é devido; deixa a tua ama rezar primeiro as suas orações, e não queiras desvial-a do caminho da salvação, tentando-a a fallar em coisas d’este mundo. Reze, reze, senhora D. Margarida. --Ó mulher, eu perguntei-lhe que horas eram. --Ai! credo! Santo nome de Jesus! Virgem benta! Senhora Nossa! Estas meninas de agora nada respeitam! Não ha senão hereges! A senhora D. Margarida não queira ir arder para as labaredas do inferno, e dar triumphos ao inimigo. Santo Deus! Tome o exemplo da Senhora D. Antonia e da senhora condessa de *** que ha de cá vir esta noite. --Ó senhora! diga-me que horas são, e vá-se embora. --Eu já me retiro, minha senhora, que eu não quero perder a minha alma, tornou ella com voz esganiçada. Graças a Deus, toda a minha vida tenho feito figas ao demonio. Fui menina e moça, solteira e casada, e sou agora viuva, e nunca arredei pé do caminho do céo. São nove horas, minha senhora; soube sempre cumprir os deveres do Santissimo Sacramento do matrimonio. A senhora D. Antonia já está á sua espera para almoçar. Cruzes, inimigo; agora que sou velha não me venhas tentar. As bagagens já chegaram. Ó nossa Senhora do Rosario, minha protectora, livra a tua fiel serva das unhas de Berzabum. As suas malas estão ao pé da commoda. E resmungando, e esconjurando, foi-se approximando da porta e deitou a correr pela escada abaixo. Eu acordara com optimas disposições, de fórma que a insolencia d’essa mulher não conseguiu turvar-me o espirito. O ridente sol dos fins de março inundava o quarto com os seus vividos raios, e enchia-o d’essa luminosa poeira, que tanto espairece a vista. Saltei para baixo da cama, vesti-me e abri a janella. Inebriou-me a bafagem balsamica, que respirei na brisa que doidejava pelo jardim, e que me saudou com as suas vivificantes emanações. O jardim era vasto, no gosto do seculo passado, mas inculto. A natureza, entregue a esta bemaventurada negligencia dos jardineiros, remediara o risco absurdo do jardim. Os canteiros pautados e regrados escondiam-se por detraz de espessas moitas de buxo, que viçara á vontade e livre da tosquiadora thesoura. Os tanques sem agua cobriam-se com esverdeado musgo, e as estatuas desgraciosas envolviam a sua nudez n’um manto d’hera, que emendava, com as suas elegantes ondulações, a rigidez das linhas traçadas na pedra pelo inhabil cinzel do rustico esculptor. A relva molhada verdejava de um modo deslumbrante, e os passarinhos, escondidos da ramaria das arvores, cantavam alegremente o hymno da nova primavera. Estive alguns instantes contemplando esse delicioso espectaculo, até que ouvi a campainha, que nos chamava para o almoço. Desci, encontrei Anna, a creadita d’olhos pretos, que me foi ensinar onde era a casa de jantar; entrei, e vi D. Antonia magestosamente recostada n’uma cadeira de braços, em palestra muito animada com Maria do Rosario. Quando appareci, calou-se; fallei-lhe e sentámo-nos á meza, onde nos esperava o almoço. Comtudo, eu via pelo olhar odiento, que D. Antonia me lançava, que se estava preparando alguma tempestade. Effectivamente, depois de ter mandado embora a creada, D. Antonia voltou-se para mim, e disse-me, adoçando hypocritamente a voz: --Minha sobrinha. É preciso que tenha mais prudencia. Não sei qual foi a educação que recebeu, mas sei que em casa de seu marido sempre reinou o temor de Deus, e o respeito pela religião christã. Não seja para as creadas um objecto d’escandalo, queira cumprir os seus deveres religiosos. Desculpe-me estas observações, accrescentou ella, mas, na ausencia de seu marido, compete-me dirigir a sua inexperiencia, e dar-lhe os conselhos que uma velha sabe dar. --Agradeço tanta bondade, respondi com alguma ironia; mas rogo-lhe que não authorise as creadas a intervirem nas minhas acções. Queira pensar tambem, que apesar de ser nova e inexperiente, sou eu a unica dona da casa, e que não posso consentir que as pessoas que estão ao meu serviço me faltem ao respeito que me devem. E completei este discurso, fazendo uma profunda mesura, e retirando-me. D. Antonia fez-se fula de raiva, e tão irada ficou, que não pôde articular uma palavra. Lançou-me um olhar indignado, e só pôde dizer-me, quando eu já chegava á porta: --Aviso-a que recebemos hoje a visita das nossas visinhas de campo, a senhora condessa de *** e a senhora baroneza de ***; note que são senhoras piedosas e de muitas virtudes. Veja o que faz. Não lhe respondi e saí do quarto. N’essa noite, apenas deram sete horas, appareceu logo D. Antonia, vestida esplendidamente para receber as nossas aristocraticas visitas. O meu fato singelissimo contrastava com o seu luxo deslumbrante. Por isso Maria do Rosario não fez senão extasiar-se perante as fitas vermelhas, e as pulseiras e broches d’oiro da minha mortal inimiga. Ás oito horas sentiu-se parar á porta um churrião puchado a bois. Era esse o vehiculo que transportava as duas muito nobres senhoras, nossas visinhas de campo, que moravam a um quarto de legua de distancia. D. Antonia correu á porta, e chegou a tempo de receber as fidalgas visitantes. Eu fiquei na sala, junto da mesa, folheando distraidamente um livro de devoção ornado de lindas imagens. Levantei-me da cadeira e dei dois passos para a porta, quando vi assomarem a ella os vultos das duas senhoras. Cumprimentei-as então respeitosamente. Uma d’ellas era alta, elegante, de physionomia austera e altiva fronte. Devia de ter sido formosa na sua juventude; mas a sua formosura por força tivera sempre um caracter inflexivel de orgulho indomavel. A outra era uma senhora quasi decrepita, em cujas feições meio apagadas se não podia ler outra expressão, que não fosse a d’esse ascetismo pavido, proprio dos espiritos acanhados, quando os gelos da edade, accumulando-se-lhes na fronte, lhes phantasiam, para além do tumulo, já proximo, as chammas atterradoras do inferno. A primeira d’estas duas senhoras, que eu soube depois que era a condessa, cumprimentou-me tambem; e levando a luneta aos olhos, mirou-me alguns instantes com gélida seriedade. Depois voltou-se para D. Antonia, e dirigiu-lhe um olhar, que parecia querer dizer: «É esta a pessoa em quem fallámos?» e D. Antonia respondeu-lhe com um movimento de cabeça, que significava: É sim, minha senhora, infelizmente.» A condessa veio então para mim, e disse com voz secca e vibrante: --Folgo muito de conhecel-a, minha senhora. Sou antiga amiga da familia de seu marido. Estimarei poder consagrar-lhe o mesmo affecto. --Se conseguir merecer a affeição de v. ex.ª, respondi inclinando-me, será isso para mim altissima honra, minha senhora. A condessa cumprimentou-me de novo, e foi sentar-se no canapé. A baroneza, que esbrugava um rosario e resmungava umas orações, sentou-se ao pé da mesa de jogo, embrulhou-se toda em pelles e tapetes, que a Maria do Rosario lhe trouxe com a maior promptidão, e ficou immovel, com os olhos fitos no vago, com os labios em continuado movimento. A luz do candieiro, batendo-lhe em cheio no rosto escaveirado e livido, fazia-a parecer uma d’essas figuras dos quadros asceticos da escola hespanhola, que tivesse descido da tela, obrigada por magica evocação. --É muito bonita sua sobrinha, D. Antonia, disse a condessa. Deus queira que essa bellesa não seja arma que Satanaz queira empregar contra a salvação da sua alma. --Não será, não, minha senhora, se Christo Senhor Nosso ouvir as orações que todos os dias lhe dirijo fervorosamente. Eu, senhora condessa, desde que meu sobrinho casou, ainda não tive um só pensamento, que não fosse para o bem d’esta menina. Assim ella m’o reconhecesse. E suspirou. --Bem sei, bem sei que a D. Antonia tem sido sempre um anjo de caridade. Ponha os olhos em Deus, filha, e não faça caso das ingratidões do mundo. N’este seculo de impiedade a nossa cruz é bem pesada. Tomemos o exemplo do Salvador. --Amen, concluiu devotamente D. Antonia. Eu bem diligencias faço para que esta ovelha se me não estramalhe do aprisco, mas é difficil a minha tarefa. Se eu pudesse ter o auxilio de v. ex.ª... --Ai! filha! tambem tenho de cumprir a minha missão. E juro-lhe que ás vezes desfallecia, se não tivesse os olhos fitos na recompensa do céo. --É verdade, é verdade. A senhora condessa entra vestida e calçada no paraizo. E como vae a sua santa obra? --Eu não descanço; mas este anno tem provado mal. Debaixo dos meus auspicios tem-se feito apenas oito casamentos; é verdade que todos difficeis. Quatro foram de creadas minhas, que andavam de namoro com uns valdevinos do sitio; mandei-os chamar e obriguei-os a casarem. Ellas não queriam de fórma alguma. Tinham tomado informações, e sabiam que os taes rapazes eram uns bebedos, outros jogadores, outros vadios. «Porque não indagaram isso antes de os namorarem? disse-lhes eu. Ou fazerem o que lhes digo; ou sairem de minha casa. Não quero escandalos das minhas portas a dentro. Quem namora deve ter em vista o sacramento do matrimonio.» Houve uma que teimou, e saíu da casa; mas não encontrando arrimo em parte alguma, porque todos sabiam que tinha sido posta fóra por mal comportada. Andou por ahi a morrer de fome, até que não teve remedio senão fazer o que eu quiz. Mas custou-me. --Que santa! meu Deus! que santa! bradou D. Antonia em extasi, levantando para o tecto os olhos e os braços. Pessoas como a senhora condessa são raras n’este seculo. E a sua prima, a senhora marqueza, o que é feito d’ella? --Está em Roma a santinha! Foi beijar o pé a sua santidade! Escreveu-me de lá. Está louca de contentamento. Já viu tres vezes o vigario de Christo, e tem conversado com doze cardeaes. Ah! deve ser uma grande consolação para o padre santo, no meio das amarguras que a impiedade dos italianos lhe está causando todos os dias, ver que ainda ha fieis que tem por elle tanto respeito e amor. Esta edificante palestra foi interrompida por um grito da senhora baroneza. Levantou-se, como se obedecesse a um impulso de molas, e bradou com voz sepulchral: --Arreda-te, inimigo... Cruzes, Satanaz... Não me tentas, não, não me tentas... Sim, meu doce Jesus, sim, bem vos vejo... Chamais a vossa serva... Ahi vou, ahi vou... Esperai um instante, meu salvador... Não desvieis a vossa face... Foge, Belzebuth, Asmodeu, Astaroth e Moloch... Ai! que eu já vejo o inferno... Senhor Jesus, acudi-me! --Rezemos, rezemos, exclamou a condessa, caindo de joelhos; são visões que assaltam aquelle espirito bem-aventurado. É preciso que estejamos em oração, para que aquella santa vença o inimigo que a tenta. D. Antonia caíu de joelhos, e a Maria do Rosario, que apparecera á porta, fez o mesmo, dando grandes murros no peito. Eu olhava estupefacta para aquella scena burlesca. Não querendo fazer-me reparada, affastei-me um pouco, e simulei que ajoelhava. Afinal a baroneza caiu prostrada no canapé. Viera-lhe a espuma aos cantos da boca, como succedia ás pythonisas pagãs. A condessa levantou-se e disse a D. Antonia: --Mande-lhe dar um caldo, que é sempre o que ella toma, depois d’estes extasis. --Um caldo para a senhora baroneza, exclamou D. Antonia, voltando-se para Maria do Rosario. E a Maria do Rosario repetiu, correndo pela escada abaixo: --Um caldo para a senhora baroneza, que tem _bisões_. D’ahi a pouco voltava trazendo uma chavena de caldo, e dirigia-se á baroneza. --Beba, minha santinha, disse ella, beba, que lhe ha de fazer bem. A baroneza levou machinalmente a chavena aos labios, bebeu dois ou tres golos; mas de repente estacou, perguntando: --De que é este caldo? --De gallinha, senhora baroneza, de gallinha. Matou-se hoje a mais gorda da capoeira. --De gallinha! repetiu a baroneza. E deixou cair a chavena em cima dos pés da Maria do Rosario, entornando o seu contheudo, e escaldando a creada. --Má raios... principiou esta. Mas logo atalhou, mastigando em secco: --Seja pelo divino amor de Deus! um caldinho tão bom, que os anjos o podiam beber. --De gallinha! continuava a baroneza, plangentemente, e hoje é sexta-feira! Vão chamar o senhor padre prior. --Elle não deve tardar, minha senhora, acudiu D. Antonia, ficou de vir jogar uma partida de voltarete. --Ah! sim! o voltarete! repetiu a baroneza extasiada, n’um tom de ineffavel jubilo. E julguei que ia ter outra visão a proposito do basto e da espadilha. Seguiram-se alguns instantes de um silencio, que foi interrompido pelo tropear de um cavallo na estrada. --Ahi vem o senhor padre prior, exclamaram a um tempo D. Antonia e a condessa. D’ahi a pouco, sentiram-se na escada passos pesados, e logo depois appareceu á porta um homem alto e reforçado, de bota de montar, e casaco até ao joelho. --_Pax Domini!_ exclamou elle ao entrar. --É Deus quem o envia, senhor padre prior, acudiu a baroneza. Commetti um grande peccado, meu padre; venha ouvir-me de confissão. --Minhas senhoras, tenho a honra de as cumprimentar. Como está a senhora condessa? Senhora D. Antonia, Deus a tenha em sua guarda. Viva, minha menina. Guapa moça! accrescentou voltando-se para a condessa, que se sorriu com agrado. --Senhor padre prior, acuda-me, bradou a baroneza, que já sinto as garras de Belzebuth. --Então que é isso, minha santinha? Então que é isso? disse a final o padre prior, dirigindo-se para ella, e fazendo tremer a casa a cada passada que dava. Então que peccado temos? Sentou-se, e a baroneza, inclinando-se-lhe ao ouvido, disse-lhe a culpa que lhe pesava na consciencia. --Hum! hum! resmungou o padre, quando ella acabou. Isso não é nada. Reze duas corôas a Nossa Senhora, e temos tudo acabado. Depois, levantando-se e dirigindo-se a D. Antonia, continuou: --Então esta é que é a mulher de seu sobrinho? --Sim, senhor, respondeu ella. O padre fez-me uma festinha na cara, e disse: --Estimo conhecel-a! Ande lá que o Claudio não a merecia a Deus. --Então, senhor padre José, acudiu a condessa brandamente, não esteja affagando a vaidade feminil; bem sabe que é essa a mais terrivel arma de que o demonio dispõe. O padre olhou para ella com tão comico espanto, que eu não pude deixar de desatar a rir. O sacerdote olhou-me, sorrindo-se com benevolencia, e offereceu-me uma pitada. Como eu recusei, foi offerecendo á roda, e depois, mettendo os dedos na caixa, tirou um monte de rapé que sorveu com delicias. --Pois aqui onde me vêem, disse elle, por um triz que não parti inda agora as costellas. --Como? acudiu logo o terceto, assustado. --É verdade; é a primeira vez que monto no cavallo, que comprei em Lisboa. Por isso, como não lhe conhecia as manhas, vinha com cautella, e foi o que me valeu. Aqui ao pé, o demonio assusta-se com um tronco de arvore, que o vendaval de hontem á noite partira, e deu-me tamanho galão que eu ia perdendo os estribos. Ora, se a senhora condessa visse! Prégo-lhe as esporas na barriga, e obriguei-o a vir n’uma galopada até aqui á porta; assim é que eu os ensino. --Graças a Deus, não se magoou? --Eu! levava-o a breca, se me megoasse. --É verdade, senhor padre José, tornou a condessa, não tem por lá medalhinhas da Virgem para dar aqui á D. Antonia? --Ora, se tenho; é o que por lá falta! Quer algumas? Não faça cerimonia! E a proposito, não se joga o voltarete? --Está-se á espera do _senhor_ Theodoro Leite, acudiu a condessa. Sempre se ha de fazer esperar. Bem mostra que é herege. --Oh! se é, tornou o padre; está já a arder no inferno, o maldito! Pois então não me deu hontem dois codilhos em casa do escrivão... É verdade, a mulher do administrador lá offereceu um manto riquissimo á Senhora das Dores. Nos olhos da condessa fuzilou um raio de colera. --Offereceu?! logo vi. A filha de um dos meus caseiros, que enriqueceu, sabe Deus como,--quer saber, D. Antonia? não está agora ao desafio comigo? A que tempo chegámos, meu Deus! Se eu offereço um resplendor ao menino Jesus, dá ella um manto de seda a Nossa Senhora. Já se viu uma coisa assim? Eu sempre queria saber aonde ella vae buscar o dinheiro! --Que desaforo! acudiu D. Antonia indignada, e o senhor padre prior consente semelhante coisa! --Então que lhe hei de eu fazer?... N’este momento abriu-se a porta, e um homem velho, magro, mal enroupado, mas de meiga e sympathica physionomia, entrou timidamente. Cumprimentou-nos a todos com acanhamento, e só de mim recebeu uma cortezia amavel. A condessa tratou-o friamente; a baroneza nem deu pela sua entrada; D. Antonia cumprimentou-o com seccura, dizendo-lhe: «Julgavamos que não vinha», e o padre prior acolheu-o com brados de indignação. O pobre Theodoro Leite curvou a cabeça, para deixar passar a procella, e foi, como que arrastado pelo parocho, sentar-se á mesa do voltarete. Formamo-nos então em dois grupos distinctos: o prior, a baroneza e Theodoro entregaram-se ás delicias dos codilhos e das licenças, emquanto eu, D. Antonia e a condessa ficamos no canapé, conversando e costurando, duas occupações que me desagradavam bastante. Procurei vencer a minha repugnancia; mas, apezar dos meus esforços, só de quando em quando soltava uma palavra, e a agulha ociosa descaía muitas vezes no meu collo, emquanto o meu pensamento voava para muito longe do sitio onde estavamos. Ainda não acabara o desfilar das pessoas, que nos honravam n’essa noite com a sua visita. Seriam nove horas, quando se abriu a porta da sala para dar entrada a dois novos personagens. Um homem ainda novo, e uma senhora tambem na flôr da idade foram os dois actores que entraram em scena. O personagem masculino tinha as mais visiveis tendencias para uma obesidade precoce, e no seu rosto cheio, bochechudo, de alvura deslavada, scintillavam dois olhos pequenos, mas vivos e inquietos, que denunciavam... intelligencia? intelligencia, de certo; mas uma d’estas intelligencias _praticas_, a que não escapa uma especulação proveitosa, e para a qual são enigmas abstrusos as aspirações grandiosas do espirito, e pomo vedado ainda o fructo da arvore da sciencia. A senhora, que o acompanhava, não se podia chamar bonita, porque as suas feições irregulares protestariam contra a denominação; mas os seus olhos negros e rasgados tinham um scintillar tão malicioso, tão provocador, que lhe illuminavam a physionomia, e lhe prestavam, senão belleza, pelo menos uma certa animação, e um indisivel encanto. Estas duas pessoas foram recebidas de um modo que contrastava bastante com o acolhimento feito a Theodoro Leite. D’esta vez houve apresentação em regra. A condessa radiante pediu-me licença para me apresentar a sua afilhada D. Carolina «que ella, condessa, se presava de ter educado nos principios da mais severa religião e da mais sã moral» e o marido da sua afilhada «moço de muito merito e virtudes, que (gloriosa excepção no meio da mocidade depravada e impia do nosso tempo) era um modelo de devoção, um exemplar de caridade, e um poço de sapiencia ainda por cima para coroar esta assombrosa pyramide de predicados.» --Muito folgarei de as ver amigas, concluiu a condessa, accentuando cada palavra. Posso dizer sem orgulho, que uma menina da sua idade, senhora D. Margarida, e da sua educação, permitta-me que accrescente, lucra muito com o trato intimo de uma senhora de juizo, como é Carolina, posso affoitamente dizel-o. A elogiada Carolina achou modo de conciliar um modesto descer de palpebras, que lhe serviu para agradecer o retumbante panegyrico, declamado por sua madrinha, com um olhar malicioso, gaiato, com que me brindou ao trocarmos o beijo e o abraço fraternaes. Jeronymo Freitas, seu esposo, cumprimentou-me, e logo depois, sentando-se, encetou com a madrinha de sua mulher uma conversação, que parecia um fogo de vistas, em que estalavam todos os nomes aristocraticos do partido devoto, e que tinha a dupla vantagem de incantar a condessa, e de deslumbrar D. Antonia. Eu não tinha a minima idéa de uma coisa assim. Aquelle homem era ao mesmo tempo um vulcão, uma torrente, um moinho, e um _Almanach de Gotha_ em folio, mas um _Almanach de Gotha_, que uma causa desconhecida puzesse em ebullição, e que arrojasse á atmosphera, como bolhas d’ar, os nomes de quantos marquezes, condes, duques, principes, reis e imperadores existem por esse mundo. «E estive com a senhora condessa de tal, e a senhora marqueza disse-me isto, e á volta encontrei a senhora baroneza, que accrescentou aquell’outro, e a senhora duqueza recebeu uma carta de sua santidade, e o senhor marquez, que é um santo, disse-me: «Ó caro Freitas, você não sabe...?» e sua eminencia o cardeal sicrano communicou-me confidencialmente as suas afflicções» e... eu sei, estava atordoada com aquella volubilidade incessante, inexgotavel, incançavel, que apenas se interrompia uma ou outra vez para deixar passar uma trovoada de imprecações com que o padre prior fulminava o pobre Theodoro Leite, que fizera as _cinco primeiras_, provocando por essa fórma os raios da excommunhão suspensos havia muito sobre a sua calva heretica. D. Antonia estava extasiada, jubilosa como os gaiatos, que andam apanhando as cannas dos foguetes, em dias de festividade nacional. Assim ella tambem corria esfalfada atraz da verbosidade do Jeronymo, para apanhar de relance um nome, que depois de ter estalado nos ares, e produzido o seu effeito, caía magestosamente, levantal-o, e perguntar logo: «Pois o senhor Freitas conhece o duque de tal?» Não posso calcular até que ponto estariam os meus nervos á prova de semelhante palestra, porque D. Carolina, que olhara por vezes para mim sorrindo-se, levantou-se, approximou-se da minha cadeira, e disse-me: --Dá-me licença que dê um giro no jardim, e quer-me conceder a honra da sua companhia? --Com todo o gosto, minha senhora, respondi eu, erguendo-me logo, e acompanhando-a para fóra da sala. Descemos ao jardim: a noite estava clara e linda como uma verdadeira noite de primavera; só a brisa, ainda frigida bastante, lembrava a proximidade do inverno. Carolina passou-me o braço á roda da cintura, e, dando-me um beijo affectuoso, disse-me, sorrindo: --Sabe, minha querida D. Margaridinha, que me estava mettendo compaixão! --Eu! respondi sorrindo-me tambem; porque? --Porque vi o tédio que lhe causava aquella conversação hypocrita e fastidiosa. Pobre creança, não está ainda habituada á estranha sociedade, no meio da qual o accaso a collocou. Tudo aqui é frivolo, minha querida, e tudo toma uma apparencia grave e pedante, como um alfarrabio theologico; tudo é immoral; e tudo toma ares austeros. Mascara, mascara e mascara; nada mais. Se estou bem informada, um dos artigos do regulamento dos bailes publicos prohibe as mascaras religiosas, mas não ha lei alguma, que me conste, que as prohiba na sociedade, onde existem com abundancia, ha-de-se costumar tambem, minha filha, ha de fazer o que eu faço, envergar um dominó da confraria, e rir-se dos outros, por baixo da mascara como elles se riem de nós. --Nunca, respondi eu com impetuosidade; se a hypocrisia é em todos os casos um vicio odioso, que proporções não assume quando macula com o seu bafo pestifero o sentimento mais nobre que existe no coração do homem, o sentimento da religião! --Ai! ai! tornou Carolina desatando a rir, d’onde trouxe essas idéas, minha querida? de que planeta desconhecido? de que paraiso terrestre, onde esteja ainda intacta a arvore do bem e do mal? Innocencia digna da edade de ouro! Virtude bucolica, mais propria para habitar na choupana classica de Philemon e Baucis, do que n’uma quinta dos arredores de Bellas! Ah! mas diga-me, a D. Antonia afinal calumniou-a? --Não sei o que D. Antonia diria a meu respeito, respondi eu com certa reserva; mas tenho as minhas razões para suppôr que não entoou o meu panegyrico. --Carolina parou e olhou para mim, franzindo levemente a sobrancelha. --Ah! não quer ter franqueza comigo! Está-se mostrando estrategica habil! Esconde-me o jogo; pois olhe, para lhe provar que póde depositar plena confiança em mim, vou pôr as minhas cartas em cima da mesa; queimo os navios, e veremos depois se estará disposta a assignar comigo um tratado de alliança offensiva e defensiva. --Oh! minha querida senhora D. Carolina, tornei eu rindo, estou prompta já a assignal-o, e affianço-lhe que é injusta, desconfiando da minha franqueza. Mas o que deseja que eu lhe diga? Nos mais reconditos refolhos do meu coração não se esconde um pensamento, que eu não possa confiar-lhe. --_Le jour n’est pas plus pur que le fond de mon cœur!_ tornou Carolina com seriedade comica, já conheço o estribilho. Como prova das boas relações em que vamos estar, principiemos largando o tratamento cerimonioso que temos empregado. Queres, Margarida? --Com todo o gosto, Carolina. --Bom! estamos alliadas! E agora diz-me: que idéa fórmas tu de minha madrinha, e de meu marido? --Como quer... --Como quer? repetiu ella, ameaçando-me com um dos dedos levantado. --Perdão: como queres que eu tenha uma opinião formada sobre duas pessoas que vi esta noite pela primeira vez? --Ou estes olhos mysteriosos, de um azul tão profundo como o do céo em noite de verão, me enganam muito, ou a esta cabecinha gentil nem tanto tempo é necessario para avaliar uma pessoa. Eu mesma vou apostar em como já estou julgada e condemnada talvez no teu tribunal intimo. --Fazes demasiada honra á minha intelligencia, tornei eu rindo, affirmo-te... --Nada affirmes; acceitarei as tuas phrases como versiculos do Evangelho, e passarei desde já a dizer-te, para poupar trabalho á tua imaginação, qual é o caracter d’esses dois personagens, com quem me vejo obrigada a estar sempre em scena n’esta comedia da vida. --Falla! Sentámo-nos n’um dos bancos do jardim; Carolina alisou com a mão os cabellos, que a brisa enredara um pouco, e, depois de relancear, com certa ironia, os negros olhos para a janella da sala, em cujos vidros illuminados se estampava de vez em quando o vulto quasi dobrado ao meio de Maria do Rosario, que andava no seu serviço, voltou-se para mim, e disse: --Principiemos por minha madrinha. Aquella senhora austera, que alli vês, que préga moral rispida, e que é inflexivel em pontos de pundonor, que, se vivesse no tempo de Jesus, e fosse discipula sua, duas vezes, pelo menos, o renegaria, a primeira quando elle perdoou á mulher adultera, a segunda quando enxugou com um raio do seu amor divino as lagrimas de Magdalena, aquella senhora teve uma juventude tempestuosa. Não julgues por isso que arredou pé nem uma vez só do caminho da salvação. Habil como aqueles heroes das lendas antigas, que aproveitavam os serviços do diabo, e que o logravam depois quando chegava a occasião do pagamento, fixada no pacto infernal, a condessa começou desde muito nova a fazer os mais proveitosos enxertos de ramaria profanissima na arvore divina. Encerrada no templo, curvando o joelho ao altar, e transformando em alcova a sachristia, zombou das tolas que peccavam em plena rua, e sobre as quaes os seus labios, ainda frementes de lascivia, arrojavam com impudencia o sacrilego anathema. Não julgues comtudo que era a condessa uma excepção no meio da aristocracia feliz, que pôde receber... nas suas salas a brilhante juventude monastica. Ai! minha filha, as aventuras fradescas não são puras invenções dos Rabelais populares, que nol-as transmittiram. O frade representou um grande papel na chronica escandalosa das gerações que nos precederam. O devoto habito pendurado á porta de um palacio era escudo contra a maledicencia, e Cupido, como se dizia n’esse tempo, podia folgar affoitamente resguardado das vistas curiosas pela cogulla santa. Cythera chamava-se Thebaida, Paphos era Cartuxo, Gnido um sagrado mosteiro. Ah! se tu soubesses tudo quanto me revelou a chronica familiar do palacio, a tradição oral da creadagem! É divertido e instructivo. Carolina calou-se por um instante, e continuou depois, levantando-se e ficando em pé defronte de mim: --Admiras-te provavelmente, como todas nos admiramos, da singular seducção que a actriz da voga, que a cantora afamada exercem em muitos homens. Infelizmente, não temos direito de nos admirar. O que a actriz e a cantora são para elles, foram-n’o os moços prégadores de fama para as senhoras, que julgariam peccado horrendo entrar no camarote de um theatro. Oh! quereria poder contar-te o profano ardor com que as devotas peccadoras corriam a atulhar a egreja do convento no dia em que subia ao pulpito o Richelieu tonsurado, o monastico Lauzun d’aquella sociedade licenciosa e beata, quereria poder narrar-te a mystica voluptuosidade com que muitos olhos fulgurantes se fitavam no rosto imberbe do homem de Deus. Podia citar-te anecdotas, podia apontar-te o nome do garrido frade de pé pequeno, que, se fosse como o José da Biblia, teria de fazer uma despeza enorme em capas; não era. Podia citar-te os caprichos de alguma senhora, que, rival em extravagancia da imperatriz Catharina, substituia os granadeiros da amante de Potemkin, pelos fradalhões mais nojentos dos innumeraveis conventos de Lisboa. Não cito; dir-te-hei unicamente que a austera condessa foi uma das heroinas d’esse poema licencioso; e por uma estranha aberração dos principios de moralidade contempla hoje sem remorso o seu passado viver, e julga-se com pleno direito de fulminar com o anathema sobre as peccadoras da actualidade. Carolina estava n’esse momento realmente bella; os olhos faiscavam-lhe, palpitavam-lhe convulsos os labios descorados. Eu mirava-a com espanto. --Aqui tens o que é minha madrinha, continuou a minha interlocutora, sem me deixar sequer interrompel-a. Meu marido avaliaste-o de certo pelo que lhe ouviste. Homem sem principios nem crenças, tudo tem sacrificado ás suas conveniencias e á satisfação da sua balofa vaidade. Fez-se devoto, quando o meu dote se lhe deparou como facil conquista para que soubesse conciliar a affeição de minha madrinha, que era tambem minha tutora desde a morte de meus paes. Seria sceptico ferino, se a condessa fosse discipula do senhor de Voltaire. Além d’isso o seu ridiculo amor-proprio satisfazia-se com a idéa de ver descerrarem-se-lhe as portas das salas aristocraticas, onde campeiava essa sociedade que outr’ora insultara com vehemencia republicana, quando a julgara tão longe de si e tão alto como as celebradas uvas estavam na parreira longe da raposa da fabula. Ahi tens quem é meu marido. --Traçaste esses retratos com mão de mestra, mas suspeito que os fizeste demasiadamente carregados, accudi eu... --Não, tornou ella, encolhendo os hombros, disse-te a verdade francamente, porque soubeste captivar-me as sympathias, e desejo ter-te por amiga. Desejava tambem explicar-te o meu caracter, que tem duas faces, a que viste na sala, e a que vês aqui; a complacencia hypocrita, e a revolta aberta. Aprendi com elles a arte da dissimulação, vi dos bastidores a comedia que elles representavam, ouvi de boccas indiscretas os mysterios do camarim emquanto o publico applaudia e coroava as actrizes e os actores. Convenci-me de que tudo era hypocrisia; e, passado o primeiro momento de repugnancia, entendi que devia tambem representar o meu papel n’essa immensa farça. Gosar foi a minha divisa, lograr esses logradores encartados o meu programma. Ahi tens o que eu sou. Vamos agora ao que importa. Teu marido é um parvo, e tu és uma linda e intelligente rapariga. Quem é esse Alberto em quem a D. Antonia falla com tão devota compuncção? Olhei para ella com assombro. --Pois já a tia de meu marido, accudi eu, teve tempo de me rodear, de me enlear com as suas calumnias? Por amor de Deus, senhora D. Carolina, preste-me justiça maior. --É essa a recompensa da minha franqueza, redarguiu ella, sentando-se ao meu lado; e em vez de uma alliada tenho em ti uma inimiga? Diriges-me assim uma indirecta reprehensão? --Deus me defenda, tornei eu um tanto constrangida, como hei de arvorar-me em juiz das acções dos outros? O teu procedimento foi-te dictado por motivos que eu não tenho... desculpas que eu... não poderia allegar... --Não te embaraces mais, tornou ella com certo azedume, só te digo que fazes mal em ir por esse caminho. És inexperiente, e precisas de quem te guie na escabrosa estrada da tua rebellião. --Mas se eu não tento revoltar-me! --Queres persuadir-me que amas teu marido? Não respondi. --E, não o amando, affirmas que não teem o minimo fundamento as bisbilhotices d’essa tola da D. Antonia? --Juro-o; acudi eu, levantando-me de um impeto; ainda que o amor não exista na minha ligação com um homem bom e honrado, basta o sentimento do dever para me impedir de deshonrar o nome, que voluntaria ainda que irreflectidamente acceitei. Póde acredital-o. --Agradeço a lição, tornou Carolina com amarga ironia, e não quero ficar-lh’a devendo; dar-lhe-hei outra. Saiba pois, pomba innocente que se julga tão forte, que ha de chegar um momento, em que, perseguida pela calumnia incessante, abandonada por um esposo indifferente ou cego, sentindo referver-lhe nas veias o sangue da mocidade, inebriada pelas tentações que a hão de rodear, se despenhe e macule as azas brancas n’esse tremedal que despreza. Então ha de lastimar amargamente o ter repellido a alliança que lhe offereço. Voltemos para a sala. --Sinto, senhora D. Carolina, tornei eu gravemente, haver-lhe desagradado. Mas acredite que, se a fatalidade me levar a esse aviltamento, não sentirei senão o remorso de ter praticado uma acção indigna. --Veremos, respondeu ella erguendo-se. Voltámos para a sala, e pouco depois todas as visitas se retiraram. XII Succederam-se com regularidade estes serões do voltarete. Fomos procuradas pelas notabilidades dos arredores, recebemos e pagamos visitas, mas o congresso da primeira noite foi que se estabeleceu na nossa sala de um modo definitivo. De todas essas pessoas a que me inspirava sympathia verdadeira era o Theodoro Leite, o despresado, o tolerado apenas. Gostava de contemplar aquella meiga physionomia de velho timida como a de uma creança. Sentada com o meu bordado, olhava de relance para elle, e via-o muitas vezes distraido das preoccupações banaes do jogo, com os olhos como que fitos n’um mundo para nós invisivel. Se uma imprecação do padre prior o avisava de que havia commettido alguma falta ao voltarete, Theodoro estremecia, e o seu rosto de novo tomava a expressão de timida deferencia, que habitualmente o caracterisava. Mas na sua triste fronte via eu distinctamente o reflexo dos orbes luminosos, em cuja contemplação se embevecera. A sua vida era um poema de sacrificios e de infortunios. Entrara na sociedade com uma instrucção litteraria desenvolvidissima, e por conseguinte inutil em Portugal... e em toda a parte, parece-me. Quizera continuar a estudar, haviam-lhe faltado os meios; quizera ensinar o que já sabia, e por essa forma grangear alguns recursos, vira-se repellido de toda a parte, porque o seu caracter recto e firme não lhe permittia que falsificasse a historia, e que deixasse de estampar na fronte da facção clerical o estygma que ella merece. Por amor da verdade, e não por paixão partidaria, quiz luctar com a serpente, cujas roscas geladas tentam de novo cingir e abafar o mundo, e a serpente ergueu-se contra elle e suffocou-o. Vencido e exhausto, já de cabellos brancos, tomou o seu bordão de peregrino, e voltou para Bellas, sua terra natal, d’onde partira, rico de esperanças, de mocidade e de enthusiasmo; onde entrava opulento de cãs, de desgostos e de fadigas... pobre de tudo o mais. Na casa paterna encontrou sua velha irmã entrevada, que lhe pedia pão. O austero apostolo da verdade, que sacrificara futuro, tranquillidade e o pão da sua velhice ao seu nobre orgulho, sacrificou isso mesmo, que era só o que lhe restava, ao bem estar de sua irmã.--Elle, o firme combatente, o luctador incançavel, foi ajoelhar humilde perante os implacaveis adversarios. A condessa e outras senhoras do sitio eram protectoras de uma escola de creanças pobres, fundada na aldeia de ***; Theodoro Leite foi pedir o logar de professor. A condessa divertiu-se em lhe fazer sentir bem a humilhação, a que a desgraça o obrigara; e afinal, movida pela _caridade christã_, concedeu-lhe o que elle pedia. A verdade era que estavam em grandes embaraços, porque não encontravam um unico professor capaz, que se quizesse sujeitar a receber o ordenado fabulosamente exiguo, que a sua economica beneficencia se prestava generosamente a conceder. Theodoro Leite sympathisara comigo, e comigo só fallava desafogadamente. Nas rapidas palestras, que tinhamos tido, pude reconhecer a sua vasta erudição, e a bondade quasi angelica do seu caracter. Estavamos uma noite reunidos, segundo o costume: Theodoro, a baroneza, e o prior no seu eterno voltarete, eu e os outros junto do canapé. A palestra versara sobre os infortunios do papa. Subito a condessa tira da algibeira um papel, e diz: --Lembrou-me abrir aqui uma subscripção para o dinheiro de S. Pedro. Estou que ninguem recusará tomar parte n’uma obra tão meritoria. Reservei para a senhora D. Margarida a honra de abrir a lista dos subscriptores. Todos os olhos se voltaram para mim, com curiosidade. Theodoro Leite desviou a attenção do jogo, e mirou-me anciosamente. Foi no meio de um profundo silencio que eu respondi: --Aprecio infinitamente a honra que v. ex.ª me faz; é mais uma prova da sua benevolencia e da sua amizade. Comtudo permitta-me a senhora condessa que lhe faça algumas observações. Se eu fosse nimiamente rica, não teria duvida em dar ao Summo Pontifice essa prova do meu respeito; mas, não tendo riqueza tanta que me permitta esbanjar assim os meus rendimentos, prefiro poisar na mão do pobre a esmola destinada ao erario pontifical. Estou que será por essa forma duplamente agradavel a Deus e ao vigario de Christo. Esse pouco de oiro, que se sumiria, parcella minima, no golphão do luxuoso Vaticano, pode só por si fazer brotar a alegria na misera choupana. Portanto, se v. ex.ª m’o permitte, darei a minha quota aos pobres; bem sabe que é o mesmo que emprestal-a a Deus. --Muito bem, muito bem! exclamou Theodoro Leite irreflectidamente. O pobre homem, deixando-se levar do primeiro impeto, de tudo se esquecera; mas logo caiu em si, e fez-se pallido como um defuncto. A condessa aproveitou o ensejo para desabafar, e fulminou Theodoro com o peso da sua indignação. --Muito bem, o que? exclamou ella. A senhora D. Margarida, tendo aquellas idéas, só prejudica a salvação da sua alma, porém o senhor Theodoro é responsavel para comigo das almas dos meus orphãosinhos. Como quer que eu conserve na minha escola um homem que tão abertamente professa doutrinas impias e sacrilegas? Eu voltara ao meu bordado, e olhava ás furtadellas para o pobre Theodoro que por minha causa padecia. A desgraça abatera completamente a alma varonil. Creio que de relance viu a imagem de sua pobre irmã supplicando-lhe que a não abandonasse, e as gottas de um suor de agonia aljofraram-lhe a fronte. Então respondeu n’um tom aflicto, que me faria rir immenso, se aquelle mesmo ridiculo não fosse tanto para commover. --Mas, minha senhora... eu não applaudo as idéas... foi apenas a... a... a disposição grammatical do discurso da senhora D. Margarida. Perfeitamente bem construido... a regencia irreprehensivel... a syntaxe... --A syntaxe o que? interrompeu a condessa lentamente, esmagando-o com o seu olhar ferino. O pobre Theodoro estava cada vez mais pallido; era o naufrago, que vê fugir-lhe das mãos a derradeira taboa, e que ouve o rugido feroz das ondas, parecendo motejar do seu infortunio. --Dizia eu, minha senhora, que o estylo era muito acceitavel: mas... (e Theodoro lançou-me um olhar em que implorava a minha indulgencia), mas só o estylo; as idéas regeito-as. --Ah! o estylo! continuava a condessa, implacavel. Eu sentia o rubor da indignação na fronte. Era infame aquelle zombetear, aquelle brincar do tigre com a victima. A condessa curvou-se então para o lado de Theodoro, e disse-lhe algumas palavras em voz baixa. Suspeito que o demittira do seu logar de professor, porque vi duas lagrimas brilharem nos olhos melancholicos do pobre velho. O que veria elle n’esse tremendo lance? Que sinistras visões lhe povoariam a mente? O edificio da sua velhice, a tanto custo construido, e derrubado n’um instante, o pão de sua irmã com tantas lagrimas amassado, faltando-lhe de subito! O velho pendeu a cabeça, relanceou um triste olhar para todos os lados, e suspirou. Comtudo ainda não havia terminado a tortura; não estava acabada a partida, e interrompel-a seria conciliar para sempre a adimadversão de todos. Theodoro resignou-se, sentou-se outra vez na cadeira, d’onde se levantara, e continuou a jogar. «Outro martyrio, disse eu comigo, que não tem o prestigio da poesia, e que ninguem se lembraria de lastimar.» Comtudo reinava um certo constrangimento na sala, e tornava-se impossivel prolongar muito o serão. Antes que saissem as visitas, entendi que devia, ainda que não fosse senão por descargo de consciencia, tentar alguma coisa a favor de Theodoro Leite. Baldada tentativa! A condessa respondeu-me com hypocrita doçura, mas com inabalavel firmeza. Tambem a advogada era mal escolhida. A devota senhora, que já pouco sympatisava comigo, ficou sendo desde essa noite minha inimiga declarada. Declarava-se o _triumfeminato_ adverso: a condessa, D. Antonia, D. Carolina. Ao despedirem-se, vi Theodoro Leite principiar a fazer manobras, cujo fim não podia adivinhar, approximava-se lentamente da janella, mirava a a paisagem nocturna, depois encaminhava-se para a mesa, junto da qual eu estava. Afinal, quando viu todos distraidos, travou-me subito da mão, e apertou-m’a com viveza e enthusiasmo. E, dada esta prova de coragem, saiu quasi a correr. XIII No dia seguinte, ás tres horas da tarde, saía eu sósinha, e punha-me a caminho da casa de Theodoro Leite. A Annica dera-me as explicações topographicas mais minuciosas para que me não perdesse. Mas a Annica não contara com as distracções da minha phantasia, não pensara na influencia d’uma formosa tarde de primavera, nas tentações de respirar em liberdade esse ar dos campos, tão puro, tão são, tão fragrante! Sentir-me só, livre de todo o constrangimento, de todas as perseguições, só com a natureza e com Deus, engolphar-me de novo em pleno ambiente de poesia, depois de me ter encravado até aos joelhos na lama vil da mais repugnante prosa, tudo isso me enlevava tanto, me rejubilava por tal forma, que me parecia renascer para a vida, como eu quizera, como eu comprehendera, para a vida do sonho, para a vida do ideal. Sósinha! Como eu trepava ao cimo da mais pequena elevação de terreno para descobrir mais largo horisonte, como eu ficava embebida em jubilo infantil, a contemplar os malmequeres, sobre os quaes a brisa fluctuava de manso, acamando-os levemente, como se milhões de invisiveis borboletas poisassem de subito na graciosa cabecinha da flor campestre! Tanto me enlevei, tanto me extasiei, tanto me deliciei que afinal perdi-me. Já cançada e offegante, via o sol pender cada vez mais para o horisonte, e não sabia ainda o caminho que havia de tomar. Valeu-me um saloio venerando, que encontrei, e que me foi conduzir até á porta de Theodoro Leite, acceitando, apesar da sua physionomia patriarchal, com mostras de muito jubilo, a remuneração em dinheiro que lhe offereci. A casa do mestre de meninos era modesta, mas aceiada. A sua fachada branca atapetava-se graciosamente com plantas trepadeiras, que lhe emolduravam as janellas, em cujos vidros scintillavam os raios do sol poente. Respirava toda ella pobresa, mas serenidade. Bati á porta. Appareceu-me logo Theodoro com um livro na mão. Soltou uma exclamação de jubilo assim que me viu. --Foi a minha casa eleita pelo Senhor? Visitam-me os anjos, como visitaram outr’ora os patriarchas hebreus? Bemvinda seja a esta choupana, minha filha! Entre e illumine com o seu meigo sorriso as trevas precursoras de sepulchro em que estes dois velhos vivem. --Que de galanteios, senhor Theodoro! disse eu, entrando alegremente. Velho que sabe dizer tantas finezas é mais perigoso que um rapaz. --_O gioventú, primavera della vita!_ tornou elle, mirando-me com terno sorriso. Doce estação da existencia, cujo reflexo até o inverno aclara. Aqui tens, Josephina, o anjo em que tantas vezes te fallei, continuou voltando-se para sua irmã, palida creatura que jazia n’uma pobre cama. Approximei-me d’ella com o respeito, que o infortunio inspira. Josephina poisou-me na cabeça a mão quasi transparente, murmurando: --Pobre creança! Deus te fade bem, e mude os abrolhos da estrada que trilhas em flores suavissimas, o leito de espinhos em leito de rosas, as agruras do caminho em aveludado tapete. Curvei-me respeitosamente, recebendo esta benção maternal. --Sabes, Josephina, acudiu Theodoro, que difficil seria encontrar um quadro mais delicioso do que esse que estão agora ambas formando? Os teus cabellos brancos de neve confundem-se com as tranças levemente aloiradas de D. Margarida. Aqui, do sitio onde estou, vejo desenhar-se em graciosa curva o corpo esbelto, ou antes a haste gentil d’esse lyrio, que se debruça para o teu leito a perfumal-o de fragrancias, a perfumar-te de juventude. Ha um raio do sol poente, que entra pela janella, e vae semear de palhetas d’oiro os cabellos d’essa formosa menina, e a ti purpureia-te levemente a fronte de marfim. Onde ha espectaculo que se possa comparar a este que disfructo agora? Duas vidas que se entrelaçam, uma tão pura no seu occaso como a outra na sua aurora, duas auréolas, cujos raios de luz se confundem, auréolas que não sei dizer qual seja a mais explendente, se a que se fórma de infortunio, se a que se compõe de innocencia! --Poeta! poeta! disse Josephina, e continuou, voltando-se para mim; foi sempre o defeito d’este meu irmão; não sei se elle perpetrou alguns versos... --Nunca, Josephina; rima nenhuma tenho a pezar-me na consciencia. --É o mesmo, ou antes é peior. Não desabafa em rimas, entretem-se em devaneios, é o que lhe tem feito mal. Era melhor que tu te lembrasses de offerecer alguma coisa de comer a esta menina, cujo appetite havia de ter sido despertado pela caminhada. --Queres que lhe offereça os alimentos frugaes da nossa Thebaida? Pão secco... --E laranjas, desmemoriado. Pois já te esqueceste das que te trouxe o pae d’um dos teus discipulos? --Não, não, acudi eu apressadamente, não tenho vontade. As minhas recusas de nada valeram. D’ahi a pouco apparecia Theodoro com um açafate de laranjas magnificas. --Madame de Maintenon, disse elle, quando não tinha assado para dar aos hospedes do seu primeiro marido, Scarron, contava-lhes uma historia. Aqui, senhora D. Margarida, tem de passar sem assado e sem historia. --Dispenso o primeiro, tornei eu, mas não dispenso a segunda. A sua vida passada não contará muitos factos d’util lição para quem entra, como eu entro, na estrada da existencia? A sua vida presente não está cheia tambem de modesto mas proveitoso ensinamento? Theodoro abanou a cabeça com melancholia. --O meu passado, filha, é um passado tristemente banal. Ferventes illusões, desenganos profundos, n’isso apenas se cifra. Julguei que o meu paiz caminhava com o resto da humanidade, e que podia tambem eu accender o meu facho modesto para o ajudar a dissipar as sombras. Enganei-me. Eram as trevas as vencedoras. Encaneceram-me os cabellos n’essa lucta ingloria. Tarde, bem tarde, percebi que, se o meu paiz regeitava o meu auxilio, reclamava-o a minha familia. Voltei para o lar, como o filho prodigo. Cumpro agora os meus deveres como posso, e infelizmente posso pouco. A minha vida presente, senhora D. Margarida, tem o seu lado luminoso e o seu lado sombrio. Quando, ao pé do leito de minha irmã, contemplo o sol que illumina além o horisonte com as derradeiras chammas, quando vejo n’este vasto sanctuario da natureza espelhar-se a idéa de Deus, tão clara e tão harmoniosa como a vejo obscura e contradictoria na egreja profanada pelos que se dizem seus sacerdotes, então sinto-me feliz, e agradeço á Providencia estes breves instantes de suave repouso que me concede antes de me abrir as portas do tumulo. Outras vezes, quando vejo minha pobre irmã soffrer, sem eu lhe poder dar o conforto que o seu estado reclama, sinto as ondas da amargura invadirem-me o coração. Sinto o remorso pungir-me... --Theodoro! exclamou a irmã. --Sim, Josephina, o remorso, porque foi o demonio da ambição quem me arrastou para longe da familia. Cubiçei o papel de missionario da idéa, quando me devia restringir ao dever mil vezes mais santo de consolador, de esteio dos que Deus confiou á minha protecção immediata. Pela _humanidade_ trabalham muitos, querem todos pôr a mão n’esse trabalho glorioso, e esquecem o _homem_, o homem com os seus affectos, com os seus deveres modestos, mas augustos, deveres que se resumem no acanhado circulo da familia. Acanhado, acanhado como é acanhada a cellula da abelha, mas a cellula á cellula se liga, e o seu conjuncto fórma a colmeia. O conjuncto das familias, devemos pensal-o, é a humanidade. Eu ouvia-o com respeito, e contemplava enternecida aquella fronte limpida, onde se revia tão doce serenidade, aquelle homem apodado de impio, que professava tão nobres principios, emquanto os que se presavam de religiosos tinham apenas (e demais a mais só em palavras) uma desamoravel e falsa moralidade. Já vinha caindo a noite, e era tempo de me retirar. Eu fabricara em casa uma historia muito complicada, que me authorisasse a soccorrer aquella infeliz familia, que ficara ao desamparo por minha causa. Mas o nobre vulto de Theodoro por tal fórma me enliara, que não pude conseguir dizer duas palavras com algum nexo. Lembra-me que se tratava d’um parente meu, que desejava editar traducções do latim, e um mistiforio tal, que logo estaquei, fazendo-me muito córada, e só pude dizer, pondo as mãos em attitude de supplica: --Por quem é, senhor Theodoro Leite, consinta que eu tome parte no tratamento de sua irmã. Theodoro Leite ouvira a minha historia com um benevolo sorriso; mas afinal duas lagrimas lhe marejaram nos olhos, e travando-me das mãos, e beijando m’as, disse: --Consinto, sim, filha. Acceito sem vergonha a esmola, que as suas mãos santificaram. Quem não acceitaria o orvalho celeste, que as brancas azas d’um anjo lhe chovessem sobre a fronte! Que orgulho tão mal entendido seria o meu! Deus lhe pague, filha, esse oiro bemdito, em rosas no Empyreo, e em venturas na terra. E as duas lagrimas, que lhe humedeciam os olhos, deslisaram-lhe lentamente pelas faces venerandas. A custo me despedi da pobre entrevadinha. Sentia-me tão bem n’aquella humilde casa! Theodoro quiz por força acompanhar-me. O sol desapparecera já no horisonte; as roxas côres do crepusculo iam-se destingindo a pouco e pouco, e o azul longinquo das montanhas ia-se esfumando cada vez mais. Augmentava o fulgor das estrellas, e a lua, ainda desmaiada, apparecia no Oriente. Puzemo-nos a caminho. Eu dei-lhe o braço, e fomos conversando e rindo, calando-nos a espaços para escutarmos o ultimo echo dos ruidos expirantes do dia e os primeiros murmurios nocturnos. Separarámo-nos no principio da lameda, que ia ter a minha casa. Entrei jubilosa e satisfeita. Estava já n’essa noite a reunião completa, e logo todos repararam na expressão da minha physionomia. --Sabe o que diz o vulgo n’estes casos, minha querida senhora D. Margarida? acudiu maliciosamente Carolina, diz assim: «Viu passarinho novo!» --Pois olhe, tornei eu rindo, venho de uma gaiola onde não ha senão passaros velhos. Venho de casa de Theodoro Leite. Vi a irmã; pobre entrevadinha. A senhora condessa por força ha de ter soccorrido aquelle infortunio, continuei eu maliciosamente. --Minha filha, respondeu a condessa, não me quero oppôr aos juizos de Deus. A minha caridade estende-se a todos os christãos; mas animar os impios não entra nos meus principios. --Se Jesus aqui estivesse, minha senhora, acudi eu sorrindo-me, parece-me que teria ensejo para repetir a parabola do Samaritano. --Está muito forte em theologia, tornou a condessa. --Não, minha senhora, não sou theologa; mas gosto de ler o Evangelho. --Longe de mim a idéa, redarguiu a devota fidalga, de contestar o merecimento dos livros sagrados; mas deixe-me avisal-a que não é bom lel-os e commental-os sem ter um guia espiritual. Sabe a que isso nos conduz? Ao protestantismo. --Quem diz a vossa excellencia, interrompeu Carolina, que a senhora D. Margarida não tenha um guia espiritual? As suas excursões por estes campos, tão, desprovidos de attractivos, não podem ter outro fim senão o de procurar um... confessor. --Eu bem lhe disse, acudiu D. Antonia com azedume, que não era bonito andar sósinha. Podia isso dar logar a mil interpretações, falsas decerto, mas que não deixariam de lhe ser desfavoraveis. Não me quiz ouvir. --Infelizmente, D. Antonia, exclamou a condessa, é esse o grande defeito da mocidade contemporanea. Independencia individual, eis o seu _desideratum_. Liberdade de pensamento... para o mal, e liberdade de acção, que tambem no mal vae parar. Lerem sós e andarem sós. Pois olhe, D. Antonia, quando uma menina lê algum livro muito recatada, e sem querer que lh’o expliquem, póde contar que ao seu lado se debruça sobre a pagina a cabeça de Satanaz, e quando quer andar só, não será Lucifer o companheiro, mas olhe que vem a dar na mesma. Ia eu a responder indignada a estas malevolas insinuações, porque decididamente não me fadara Deus para este genero de luctas, onde perdia logo o sangue frio, quando sentimos na estrada o tropear de um cavallo, depois passos de homem na escada; e afinal abriu-se a porta, e appareceu no humbral um sujeito moço, de figura esbelta, e amavel physionomia. Soltei um grito ao vel-o, e D. Antonia levantou-se com um risinho de escarneo. Esse homem, que surgira á porta, era Alberto Mascarenhas. XIV Alberto ficou um pouco enleado, ao reparar na impressão que produzira, mas logo recuperou o seu habitual desembaraço, e depois de cumprimentar todas as pessoas presentes, dirigiu-se para mim e para D. Antonia, dizendo: --Desculpem, minhas senhoras, se venho por esta forma surprehendel-as. Imaginem vossas excellencias que me vejo obrigado a estabelecer-me em Bellas por causa dos negocios de um tio meu, que, sob pretexto de que hei de ser o seu herdeiro, houve por bem, emquanto não me lega os seus haveres, fazer de mim uma especie de intendente d’elles. Meu tio, segundo vêem, é um profundo philosopho, tem feito estudos comparativos sobre a probidade dos intendentes considerada debaixo do ponto de vista da natureza humana, e concluiu que o melhor gerente de quaesquer bens é aquelle que os deve herdar. Debalde protestei contra a theoria; fui obrigado a vir até Bellas, onde tenho passado já uns tres dias divertidissimos, enterrado até ás orelhas em massos de titulos pulverulentos, e embaraçado por todos os Talleyrands saloios, que a natureza espalhou com mão prodiga por este sitio. Mas de repente lembrou-me que me dissera Claudio que tencionava passar a primavera e o verão n’esta sua casa de campo, e resolvi vir ter com elle. Chego, dizem-me que ainda está em Lisboa, mas que vossas excellencias estão cá; subo e tenho a honra de lhes apresentar os meus respeitos. --É sempre bem vindo, senhor Alberto Mascarenhas, observou D. Antonia. Ao ouvirem este nome, Carolina sorriu-se com ar malicioso, Jeronimo fez um commentario em voz baixa ao ouvido da condessa, e esta franziu o sobr’olho. --Nós quasi que o esperavamos, continuou D. Antonia. --A mim? perguntou Alberto. Isso é caso de revelação sobrenatural; porque eu posso-lhe jurar que ha tres horas não pensava ainda em vir aqui. --São presentimentos, acudiu ironicamente a tia de meu marido. --Extremamente lisongeiros para este seu adorador, tornou Alberto rindo; poderei por acaso alimentar esperanças? --Póde... pois não, continuou ella trocando uma vista d’olhos com as suas devotas companheiras, póde tel-as e muito bem fundadas. Alberto ficou um pouco enleado, reparando n’estes mysterios da conversação. Eu já os percebia, por isso procurei mudar logo de palestra. --Então aborreceu-se muito na Ericeira? perguntei. --Não minha senhora, respondeu Alberto com a facilidade que o seu espirito privilegiado tinha em seguir todas as direcções da conversação. Eu sou d’aquelles que consagram ao oceano um amor desinteressado. Ha immensa gente que diz: «Gosto do mar, mas do mar em tempo de banhos» assim como dizem tambem: «Gosto de Cintra, mas de Cintra na estação em que a sociedade elegante procura as suas frescas sombras e os seus ridentes panoramas.» Eu não; gosto do mar e gosto de Cintra sem segunda intenção; do mar no inverno, e de Cintra na primavera, do mar sem barracas na praia, de Cintra com Seteais deserto. Já vê por conseguinte vossa excellencia que tive este anno o supremo goso, que podem ter todos os namorados, o de estarem sós com o objecto da sua affeição. Eu e as vagas conversámos sem testemunhas, ellas contaram-me historias tão maravilhosas, eu confiei-lhe poemas admiraveis, e tanto mais admiraveis quanto eram ineditos, e tanto mais ineditos quanto nem chegavam a formular-se em palavras. Quando vier o tempo do amor official pelas praias ouvirá o pobre oceano tantas apostrophes de poetas, que não tive animo de o torturar antecipadamente; pois ainda assim, entendemo-nos e separámo-nos saudosos um do outro. Eu estava prestando attenção ao frivolo palrar de Alberto, sem por isso deixar de ouvir a palestra em voz baixa, que se travara entre as pessoas presentes. --É uma entrevista em fórma, dizia a condessa. --E que cynismo! accrescentava Jeronymo. --Que falta de habilidade! murmurava Carolina. --Que escandalo! rematava D. Antonia. O padre prior tomava pitadas. --Desculpe-me, D. Antonia, tornava a condessa, mas não posso continuar a ser testemunha de uma scena d’estas. --Tem razão, senhora condessa, dizia a minha inimiga intima, não imagina como estou afflicta. Não tenho remedio senão avisar meu sobrinho. Todos se levantaram. --Vou-me retirando, disse a condessa em voz alta. --Nós tambem, continuou Jeronymo. Não achas, Carolina? --Sem duvida, redarguiu esta. --Está tão bonita a noite, continuou D. Antonia fitando os olhos em mim e em Alberto, e accentuando muito cada palavra, que me resolvo a acompanhal-as um pedaço. Era o mesmo que despedir Alberto. Percebi a intenção, e fiz-me vermelha de colera. Alberto levantou-se e foi para pegar no chapeu. A condessa e Jeronymo cumprimentaram-me friamente. Eu sentia referver-me no peito a indignação, que ia lavrando pouco a pouco, e estava quasi chegando ao seu paroxismo. Carolina veio beijar-me e disse-me ao ouvido: --Tens bom gosto, mas sempre são ambos uns tontinhos! Alberto ia a dirigir-se a mim para me cumprimentar; mas eu, sem ter já bem a consciencia do que fazia e cedendo só ao irresistivel desejo de reagir contra essa authoridade, que todos se arrogavam em minha casa, e na minha presença, exclamei: --Perdão, senhor Alberto Mascarenhas, rogo-lhe que fique! XV Todos olharam para mim com espanto, e Alberto principalmente com assombro. Comtudo inclinou-se sem responder, e foi pôr o chapeu no sitio d’onde o tirara. A condessa encolheu os hombros com despreso, Carolina riu-se, D. Antonia lançou-me um olhar indignado, e o padre prior tomou uma pitada. Depois sairam todos. Ficamos sós, eu e Alberto. Fui á janella e abri-a. Estava uma noite linda, a lua campeava serena e placida n’um céo d’um azul purissimo, onde se espraiava sem obstaculo a candida luz, que lhe fluctuava em torno, como véo de noiva. A brisa suspirava brandamente na ramaria das arvores. Vi sairem as nossas visitas, D. Antonia, e o creado que a devia acompanhar na volta. Nem ergueram os olhos para a janella, onde eu estava. Afastaram-se vagarosamente, conversando e rindo. A pouco e pouco foi esmorecendo ao longe o echo dos seus passos e das suas vozes, afinal esvaiu-se de todo, e outra vez reinou em torno de mim essa placidez fremente, se assim me posso exprimir, das lindas noites de primavera, noites em cujo magico silencio palpitam os canticos mysteriosos das fadas, o leve ruido da flôr que desabrocha, o murmurio da seiva, que circula no coração da arvore. Eu sentia o passear agitado de Alberto na sala. A nossa posição era tão embaraçosa, que nenhum de nós se atrevia a romper o silencio. Emfim Alberto parou, e disse-me, tocando-me no hombro, e fazendo assim com que eu me voltasse para elle: --O que se passa aqui? --Nada, meu bom amigo, respondi sorrindo-me; ou antes, passa-se uma lucta mesquinha, cujas peripecias lhe causariam tedio. --Em que o meu nome entra d’algum modo? --Não, respondi hesitando. Pois que lhe havia de dizer? Havia de lhe narrar as absurdas insinuações de D. Antonia? Alberto fitou os seus olhos nos meus, depois abanou a cabeça com ar de duvida. Eu larguei a janella, e fui-me sentar ao meu piano, que me chegara de Lisboa n’esse mesmo dia. Abri-o, e deixei correr vagamente os dedos pelo teclado. Alberto foi-se encostar ao peitoril da janella. O seu nobre e pallido perfil, banhado pelos raios da lua, tomava não sei que vaga expressão austera e melancholica. A doce influencia da musica banira do meu espirito as impressões desagradaveis, que a scena antecedente me deixara. As azas brancas da melodia arrastavam-me suavemente para os campos ethereos do ideal. Pouco a pouco as notas que eu fazia brotar ao acaso do teclado foram tomando uma fórma determinada, e, quasi sem eu ter consciencia d’isso, os meus dedos despertaram no seu leito de marfim a serenata do _Marino Faliero_. Estremeci ouvindo o seu canto, ou antes o seu murmurio erguer-se timidamente, e embalar-se na sua cadencia com tanta brandura, como as aguas do Adriatico podem embalar no seu dorso uma gondola veneziana. Cedi ao encanto, e o meu pensamento, que fluctuava incerto, entregou-se ás voluptuosas caricias d’essa languida melodia. Depois a musica expirou como havia começado: sem motivo, sem razão, _comme un oiseau se pose_, diz Victor Hugo. Alberto ouvira a serenata com a cabeça firmada n’uma das mãos. Quando a ultima nota se esvaiu no espaço, ergueu a fronte, e dirigiu-se para mim. Lampejava-lhe nos olhos um fulgor estranho. --Minha senhora, disse-me elle encostando-se ao piano, sabe quem foi o objecto do meu primeiro amor? --Não, redargui espantada da pergunta. --Foi vossa excellencia. --Eu! tornei estupefacta e levantando-me. --Socegue, minha senhora, vossa excellencia tem-me honrado com a sua estima, e sabe que nem por sombras sou capaz de a offender. Mas vejo, presinto que se está elaborando n’esta casa alguma intriga mysteriosa, de que vossa excellencia é victima, e onde me fazem desempenhar um papel, seja elle qual fôr. Devo-lhe por conseguinte plena e inteira franqueza. Vou-lhe submetter um caso de consciencia. Depois de lhe ter feito uma confissão completa e sincera, vossa excellencia dirá se devo ou não tornar a pôr os pés n’esta casa. Alberto calou-se por um instante, passou a mão pela testa, como para avivar a memoria do passado, e principiou depois em voz baixa e agitada: --Foi ha tres ou quatro annos, supponho. Entrava eu na vida, e relanceava os olhos em torno de mim com a ingenua curiosidade de quem tudo vê envolto nos véos seductores do mysterio, e tomando o aspecto de risonho enigma de tentadora resolução. Entre todas essas miragens de que a nossa vista se namora, quando pomos o pé na orla d’este deserto da existencia é a do amor a mais luminosa. As outras visões apparecem-nos como simples oasis; esta surge-nos como paiz de fadas. As outras serão sombras e frescura; esta, flores e fragrancias. Como a todos, foi a canção amorosa a que primeiro despertou no meu peito, vago canto sem assumpto, melodia sem letra, que me extasiava como o trovar de passarinho invisivel emboscado na ramaria. Uma vez encontrei-a a vossa excellencia com sua familia n’uma das quintas de Bemfica. Obedecendo ao inexplicavel condão da formosura, os meus olhos seguiram, ainda meio distraidos, o seu vulto airoso, que se sumia ao longe nos meandros das lamedas. Momentos depois, tornei a encontral-a, e a impressão fugitiva, que me produzira, avivou-se e recresceu de intensidade quando me achei preso na esphera de fascinação magnetica, que os seus olhos sempre possuiram. Vi-a então bem! Que formosa e fina cabecinha a sua! Que primoroso oval o do seu rosto! E o aveludado da sua tez, e o seu pisar tão gracioso, e mais que tudo a suprema elegancia, a suavidade como que aerea das linhas do seu perfil e dos contornos do seu corpo, tudo isso me enlevou, me deslumbrou por tal forma, que não pensei mais senão em seguil-a e miral-a de longe, com medo que essa visão do céo me fugisse de novo, e tornasse, despregando as azas brancas, ao Empyreo, d’onde viera. --Senhor Alberto Mascarenhas! interrompi eu, devéras enleada. --Perdão, minha senhora, tornou elle com certa melancholia; não julgue que estou evocando o passado, de proposito para lhe fazer uma especie de declaração retrospectiva. Prometti-lhe ser franco, e para o ser abri o livro da minha memoria, e reli-lhe as paginas taes como as escrevera n’esse tempo. Desculpe-me se se encontra n’ellas alguma phrase, que fira a sua susceptibilidade. --Continue, murmurei eu com voz que mal se ouvia. --D’esse momento em deante, minha senhora, continuou Alberto, consagrei-lhe um amor mysterioso, que me deu infindas alegrias. Povoou-se a minha solidão com uma imagem, em que todos os meus sonhos se incarnavam. O encontral-a era para mim um prazer immenso; mirar a janella cerrada do seu quarto causava-me não sei que doce commoção; divisal-a a vossa excellencia encostada ao peitoril, ou devaneando vagamente, ou lendo algum livro, era um extasi indisivel. Fugia para o meu quarto, levando como thesouro precioso uma das fragrancias, em que a flor se desata, um dos raios de luz que a estrella desprende da sua fulgida corôa, sem que estrella nem flor tenham consciencia do jubilo que inspiram. Encerrava-me sósinho, evocava o seu vulto, via-a debruçar-se para mim, sentia-lhe os cabellos roçarem-me ao de leve pela fronte, e estremecia como se a impressão ficticia do meu devaneio fosse uma impressão verdadeira. Olhe, quer que lhe diga? Tenho saudades d’essa loucura, e voltando os olhos para o meu passado, não encontro n’elle horas mais suaves do que essas, em que, a sós com uma sombra, fui lendo, estrophe a estrophe, o mais lindo poema de amor que nunca se escreveu. Aberto, extraordinariamente agitado, deu um passeio na sala, e foi a final encostar-se de novo ao peitoril da janella. Os effluvios da primavera adejavam no ambiente, por onde os espalhava a doida brisa sacudindo as azas impregnadas n’essas fragrancias. Os raios da lua vinham já espraiar-se no chão do aposento. Eu, inclinada para o piano, pensava n’esse mundo novo, que se me apresentava, n’esses novos horisontes, que se rasgavam deante da minha phantasia. Esse amor mysterioso que acompanhara, sem que eu o visse, o meu passado esplendido e risonho, illuminava-me agora as trévas do presente com um raio d’esse fulgor extincto, como a lua, que, invisivel em quanto o sol campeia no firmamento, surge mal assoma a noite, e vem pratear as sombras com um reflexo ao clarão diurno. --Se soubesse, tornou Alberto voltando para mim, como a sua imagem me acompanhava sempre! como o seu nome, que eu logo soubera, me acudia constantemente aos labios! como eu gostava de o pronunciar! como eu devorava os romances em que esse nome apparecia! como eu o associava a todas as minhas commoções! Se ouvia uma opera predilecta, quando a musica me elevava ás regiões do extasi, era o seu nome como a chave de oiro que me abria as portas d’esse mundo ideal! «Margarida, amo-te,» balbuciava eu, quando Desdemona suspirava a aria do _Salgueiro_; quando Violeta gemia o seu adeus ao mundo; quando escutava esse cantico sublime de amor e tristeza, que se chama _Lucia_. E se por acaso tinha a felicidade de a ver no theatro, como os meus olhos se cravavam no seu rosto querido, como eu seguia a impressão que a musica produzia na sua alma, e que se espelhava nos seus olhos! A noite continuava serena, perfumada, voluptuosa, e os raios da lua vinham esmorecer languidamente no chão do aposento. Eu ouvia essas confidencias com um sentimento inexprimivel; doce, quando me deixava embalar pela melodia d’essas magicas palavras que dizem amor e mocidade; amargo quando pensava na vida tal como o acaso m’a fizera, e nas graves consequencias que podia ter para mim essa declaração intempestiva. --Durou esse sonho pouco tempo, como todos os sonhos, tornou Alberto; mas deixou-me para sempre uma recordação indelevel. Lembro-me, como se fôra hoje, da ultima vez que a vi, antes de me ausentar de Lisboa. Encontrei-a em casa de um dos velhos amigos do meu pae, o visconde de ***, passeava vossa excellencia no jardim, quando eu entrei. Acompanhavam-na sua mãe e a viscondessa. Meu pae, o visconde, o pae de vossa excellencia e outros amigos estavam tomando café n’um dos kiosques. Era em junho, e ao pôr do sol. Succedera a frescura do crepusculo ás calmas abrasadoras do dia. Reinava em terra e céo perfeita serenidade. O firmamento d’um azul purissimo. O Tejo, ao longe, doirado pelos ultimos raios do sol, que se sumiam no occaso. Um d’esses raios ficara tambem como preso ás arvores do jardim. Vossa excellencia passeava de cabeça descoberta, e a mansa brisa, que se erguera, fazia-lhe arfar os cabellos castanhos claros em vagasinhas d’oiro, quando o raio de sol alcançava beijal-os. O seu passear vagaroso e indolente, as suaves ondulações do seu corpo, o fulgor um tanto amortecido dos seus olhos, o frémito dos seus labios, que aspiravam a aragem embalsamada, tudo se casava tão bem com a languida voluptuosidade da tarde expirante!... Fiquei como deslumbrado por tanta formosura, palpitou-me com violencia o coração, e nem tive animo nem força para me approximar de vossa excellencia. Infelizmente ou felizmente (eu sei?) estava para se retirar. O visconde foi-se despedir de vossa excellencia e de sua mamã, e a viscondessa acompanhou-as. Vossa excellencia colhera uma rosa, que beijava distrahida, ao aspirar-lhe o perfume; affastou-se, fui-a seguindo com os olhos, vi-a subir vagarosamente os degraus da escadaria, e quando chegou ao terraço para onde deitavam as portas do palacio, vi-a encostar-se á balaustrada, e fitar vagamente os olhos no horisonte affogueado, no rio onde o oiro se ia transformando em purpura, e nas montanhas cujos pincaros se azulavam com a distancia. O seu vulto, estampando-se por essa forma na atmosphera transparente, com a fronte cingida por uma vaga auréola, tendo por traz de si um foco de chammas em cada vidro, que os ultimos raios de sol incendiavam, tomava como que o aspecto phantastico de uma d’essas fadas do Rheno, que apparecem ao pôr do sol, com a harpa de oiro ao lado, sentadas nos fraguedos do rio. Distrahidamente deixou cahir a rosa que tinha na mão; depois desviou-se do parapeito, e desappareceu no interior do palacio. --Que memoria a sua! disse-lhe eu, sorrindo-me. --Hesitei um instante, continuou elle sem parecer que reparava na minha interrupção; antes de ir levantal-a: depois não me pude conter, e fui-me approximando como que distrahidamente do sitio onde estava a flor cubiçada. Apanhei-a n’um relance, beijei-a, e guardei-a no peito... Nunca mais me separei d’ella, continuou com voz abafada; essa visão da minha adolescencia esvaiu-se como se esvaem os sonhos, esse louco amor extinguiu-se como era natural, mas a flor secca nunca mais me deixou; é o meu talisman, que serve para evocar ás vezes esse periodo luminoso da minha vida, esses doces annos que se sumiram para sempre no abysmo do passado. E, tirando do peito uma rosa murcha e amarellecida, passou-a para as minhas mãos. Deslisou-me dos olhos uma lagrima e foi cair nas petalas sem viço da pobre flor, sem que esse amargo orvalho lograsse reverdecel-a. Assim tambem os meus prantos não poderiam restituir-me alegria descuidosa que perdera. Alberto viu a lagrima, e disse-me: --Comprehendo-a; essa flor, deixada cahir distrahidamente quando não havia ainda saudades na sua vida, exerce no seu espirito a mesma fascinação que no meu exercia. Guarde-a, dou-lhe n’isso a prova de que para sempre quebrei com o meu passado. --Não era necessario, disse eu; aprecio tanto o seu nobre caracter, que nem por um instante duvido de que me não teria feito essa confidencia, se não consagrasse simplesmente um affecto de irmão á esposa do seu amigo. --Ah! isso juro-lh’o, tornou Alberto pondo a mão no peito, se não me sentisse completamente livre, e desassombrado, se o meu coração me désse inda rebates d’amor, que se devia extinguir, não teria entrado n’esta casa. Teria vergonha de mim mesmo, se não pudesse agora fitar os meus olhos nos seus com purissima serenidade. Mas se julga que apesar d’isso, não devo tornar a vir aqui; se julga que esta memoria d’um amor passado, é uma offensa para vossa excellencia, e um acto de deslealdade para com o meu amigo, se julga que uma recordação involuntaria, espelhando-se no meu rosto, póde dar uma arma aos calumniadores, diga uma palavra e estou prompto a retirar-me. --Seria uma vileza aos meus proprios olhos, respondi eu serenamente, o rebaixar-me a ponto de transigir com a calumnia. Esta casa está sempre aberta ao amigo de meu marido, ao homem leal de quem agora aperto a mão. E estendi-lhe a minha que apertou commovido. --Bem, disse-me elle rindo, tirou-me um grande peso de cima do peito. Agora peço as ordens de vossa excellencia. Foi pegar no chapéo; e depois, voltando para mim, e apertando-me de novo a mão continuou: --Desculpa-me o ter-lhe dito tantas loucuras? --Desculpal-o, porque? redargui eu sorrindo-me. Leu-me um bonito romance, ouvi-o com attenção; agora fechamos o livro, e voltamos á realidade. Alberto ficou suspenso por instantes, depois respondeu: --É isso mesmo. Tem vossa excellencia muita razão. E saíu. Eu fiquei algum tempo pensativa junto do piano; depois levantei-me, soltei um suspiro d’allivio, peguei n’um castiçal e dirigi-me para o meu quarto. Dava meia noite. XVI Foi só no dia seguinte que reflecti bem no que se passara na vespera. Foi então que me espantei de D. Antonia não ter tornado a apparecer na sala. Um passeio a pé, por mais que o prolongasse, não podia ter durado tanto tempo. Demais lembrou-me então que a tinha sentido voltar meia hora ou tres quartos de hora depois de ter saido. Por que motivo não viera para a sala? Havia n’isso o projecto de alguma infernal armadilha? Ia dentro em pouco sabel-o. D. Antonia não me deu palavra durante esse dia todo, coisa com que eu folgava bastante; mas no outro dia, sem me ter prevenido da sua chegada, appareceu meu marido, visivelmente agitado sob a sua mascara de gelo. Acolhi-o com jubilo. Sentia um certo contentamento intimo por ter cumprido o meu dever. Estava satisfeita comigo mesma, o que já concorre muito para se estar satisfeito com os outros. Meu marido fallou-me com bastante frieza. Logo depois encerrou-se com D. Antonia, e teve com ella uma larga conferencia. Depois appareceu ainda mais agitado, passeou algum tempo, pegou no chapéo e saiu. D’ahi a pouco, voltou, sempre agitado, e fechou-se no seu quarto. Á noite appareceram as visitas do costume, coisa que me espantou sobremaneira, porque julgava que não voltariam tão breve. Comtudo a condessa deu bem a entender que vinha a nossa casa em attenção a Claudio, e só em attenção a elle. Pouco me importava; o jubilo da minha consciencia dava-me novas forças para luctar com intrepidez. Alberto appareceu pouco depois. A sua entrada produziu sensação. Claudio recebeu-o com uns modos meio frios, meio cordiaes. A condessa mostrou-se distraida, D. Antonia ligeiramente motejadora, Carolina extremamente amavel. Alberto esteve perfeitamente senhor de si. Não o traiu o seu espirito brilhante e jovial. Esteve desembaraçado no meio de todos aquelles constrangimentos. Eu, que tambem não tinha motivo algum para estar constrangida, auxiliei-o; a conversação animou-se. A condessa não tomou parte n’ella; Claudio muito pouca; D. Antonia aventurou umas poucas de insinuações, em que não reparamos; Carolina entrou na palestra com finas observações, que se resentiam da sua indole essencialmente sarcastica. Assim se passou uma noite muito agradavel. Claudio que ao principio se mostrara nimiamente reservado, foi-se pouco a pouco tornando mais expansivo. Mas, no dia seguinte uma influencia severa agglomerava-lhe de novo na fronte as nuvens, que se haviam por instantes dissipado. Comtudo comecei a notar uma grande differença no procedimento de D. Antonia, a meu respeito. Tantos tinham sido os cuidados, que tivera até ahi para que eu não estivesse um instante só com Alberto, quanto era o desejo que parecia ter agora de nos proporcionar os mais prolongados _tête-à-tête_. Pedia-lhe a elle muitas vezes que nos acompanhasse n’algumas excursões que faziamos pelos arredores. Depois aproveitava um pretexto qualquer e eclipsava-se. Ao cabo de uma longa hora de passeio, apparecia-nos de subito meu marido, pallido, com o olhar sombrio, com a fronte annuviada. A cordialidade serena, o jubilo até com que o acolhiamos dissipavam logo todas as nuvens, e voltavamos todos tres para casa, rindo e conversando como bons amigos. Alberto era realmente admiravel. No meio d’aquella rede de intrigas, que eu sentia confusamente, caminhava tão desassombrado como se não estivesse pisando um terreno perfido, onde o mais leve descuido podia perder a sua lealdade, e a minha reputação. Não se ausentava porque via perfeitamente que a sua retirada daria á calumnia o pretexto que ella anciosamente procurava: mas acceitava tão desconstrangidamente o papel falsissimo que esta situação lhe impunha, que parecia não ter o minimo conhecimento do trabalho subterraneo, emprehendido pela devota sociedade de D. Antonia e companhia. Eu mesma me espantava d’essa tranquilidade inalteravel, e suppunha que fôra um sonho a scena que se passara n’essa noite, que tão profunda impressão me causara. Precisava de admirar a rosa murcha, que trazia no seio, para de novo me convencer da realidade de tudo isso. Alberto nem parecia reparar na posição em que o tinham collocado, e que devia dar em resultado maior intimidade. Era o que fôra sempre: um conversador amavel, elegantemente frivolo, que tomava comigo o tom d’uma respeitosa familiaridade. Um dia, obedecendo a essa irresistivel attracção, que nos obriga a chegarmo-nos á beira do precipicio, e debruçarmo-nos para elle, ainda que saibamos que um momento de vertigem nos póde arrojar ao despenhadeiro, ousei alludir á historia do seu passado. É inconcebivel, mas é certo. Luctei tres dias com a tentação, afinal não pude resistir, e aventurei a pergunta. --Acredita na transmigração das almas? disse Alberto, em vez de responder. --Porque? tornei eu espantada. --Porque, se acredita, ha de perceber perfeitamente a minha historia. Isso em que me falla succedeu, se me não engano, a um Alberto, que vivia no tempo de Noé. Depois, como sabe, veiu o diluvio. Affogou-se nas grandes aguas o corpo e a memoria. A alma, desprovida d’essa faculdade, transmigrou para este corpo, nado e creado em pleno seculo XIX. Mas como ha de lembrar-se a coitada dos acontecimentos ante-diluvianos? Eu desatei a rir, mas devo confessar que senti um certo despeito. É inexplicavel, não é? É inverosimil? Bem sei. Propuz o enigma, não intentei resolvel-o. Um dia Theodoro Leite mandou-me dizer que me desejava fallar, e com muita urgencia. Fui a casa d’elle. Theodoro e a entrevadinha receberam-me com o jubilo habitual. Depois Theodoro acompanhou-me á volta, e pelo caminho foi-me contando o que o obrigara a mandar-me chamar. --A Quiteria, disse-me elle, que lhe ficou muito affeiçoada desde a primeira noite em que a viu, e em que a minha querida filha (permitta-me que lhe dê esse nome) se mostrou tão boa, tão amavel com ella e com os outros creados, sentando-se junto d’elles na cosinha, conversando com elles, ouvindo-lhes as historias, procedimento esse que d’um modo tão notavel contrastava com o orgulho da tia de seu marido, a Quiteria, pois, veiu ter comigo, e pediu-me que a avisasse, coisa que ella não podia fazer, porque a minha filha está sendo a toda a hora espionada pela Maria do Rosario. Disse-me ella que se anda tramando lá por casa uma intriga terrivel, que tem unicamente por fim promover uma separação entre Claudio e a minha querida menina, separação que hão de fazer escandalosa, e cuja vergonha ha de recair toda sobre a sua innocente cabeça. Eu ouvia espantada esta revelação incomprehensivel para mim, porque não podia adivinhar que mal teria eu feito áquella gente, para que me tivessem declarado uma guerra tão encarniçada. Foi isso mesmo o que eu disse a Theodoro, que me respondeu, sorrindo-se: --Que mal lhes fez? Pobre innocente! Um crime imperdoavel, o de ter vinte annos, uma formosura esplendida, uma indole boa e sympathica, uma alma enthusiastica, e de juntar a tudo isto uma virtude immaculada. Que mal fez a rosa ao caracol, para que este lhe entorne nas petalas a repugnante baba? A luz, minha filha, não attrae unicamente as borboletas, tambem attrae os morcegos, estes para de despeito a apagarem, aquellas para se queimarem na chamma, que as enleva. Satanaz, ao sair das trevas, vae insultar o sol. Quer viver socegada? Não brilhe. Não quer que a mordam no calcanhar? Arraste-se como as serpentes. Mas não; soffra antes, e levante a fronte acima d’essa turba vil. Tenha sobretudo confiança em seu marido. É um espirito fraco, mas um nobre coração. D. Antonia domina-o, porque a minha querida menina ainda não tentou rebater-lhe a influencia. Tente-o, combata, seja forte. Não permaneça na inacção, desça á liça para onde a chamam, e calque aos pés a sua mesquinha adversaria. A sua indifferença anima-a, a sua energia dissipar-lhe-ha os brios. --Mas combatel-a, como, de que maneira? perguntei eu. --Olhe, tornou Theodoro meigamente, eu lhe explico o mysterio da sua vida. Claudio é um homem timido, acanhado, que precisa que lhe estendam a mão para sair da sua habitual reserva; consagrou-lhe um profundo amor, e viu coroados os seus votos d’um modo completamente inesperado. A minha querida menina, creança que nada comprehende da vida, acceitou das mãos de seus paes um marido, como acceitaria um vestido novo. Nenhum dos dois deu o primeiro passo para essa intimidade conjugal, que funde n’uma só duas almas, duas vontades, dois pensamentos: elle porque não ousava, a minha querida menina porque não sabia. D. Antonia apossou-se com habilidade d’esse espirito fluctuante, que julgara por um momento que lhe escaparia indo-se prender n’outros laços. Animada por essa primeira victoria, quiz levar a cabo o seu triumpho. N’aquelle coração angustiado e hesitante semeou a duvida; transformou em calculo o que era ignorancia da vida. Disse-lhe que a facilidade com que a minha filha acceitara o casamento com um homem a quem não amava era resultado da corrupção prematura, que despresava os deveres do matrimonio. Aproveitou as mais leves circumstancias, desenvolveu com uma sagacidade infernal os mais subtis indicios. A entrada em scena de Alberto veiu dar-lhe um optimo pretexto. Seu marido resiste ás suggestões continuas de D. Antonia, mas ha de chegar um instante em que succumba. D. Antonia, combinada tacitamente com as suas boas amigas, quer apressar o desenlace, espera que um momento de fraquesa leve a minha querida menina a dar um passo errado, que se ha de logo aproveitar. Espiam-na constantemente; em casa não faz um movimento só, que a Maria do Rosario lh’o não espreite; no campo, nos seus passeios com Alberto Mascarenhas, póde estar certa de que por traz de cada sebe ha um ouvido á escuta. Seu marido está n’uma posição intoleravel; o coração reage-lhe contra a evidencia apparente, que D. Antonia lhe mostra; mas, atormentado por uma duvida incessante, vagueia como o espectro do ciume procurando uma certesa material, que, ainda que o fulmine, o livre d’aquelle estado. Tudo isto eu deduzo facilmente do que a boa Quiteria me disse; porque a pobre velha tem praticado por sua conta um systema de contra-mina, e, emquanto a Maria do Rosario está com o ouvido collado á porta do seu quarto, vae ella escutar as palestras de Claudio e de D. Antonia. Desculpe-a, coitada. O que a impelle a proceder assim, é a amisade que lhe tem. --E o que me aconselha então? acudi eu baixando a cabeça, que me vergava ao peso d’aquellas revelações. --O que lhe aconselho, minha filha? A lealdade e a franquesa. Deixe essa gentalha extraviar-se pelos atalhos, e caminhe desassombradamente pela estrada real, inunde de luz as suas intrigas tenebrosas, e vêl-as-ha fugirem como demonios nocturnos, surprehendidos pela alvorada. Entre na intimidade de seu marido, não se envergonhe de tomar a iniciativa, conte-lhe com franqueza a historia de todas essas intrigas, que a perseguem, faça-o ler na sua purissima consciencia, porque assim a tem, não é verdade? --Oh! sim! tornei eu com exaltação. Mas depois não sei que pensamento importuno me acudiu ao espirito, e me incendeu as faces em vivo rubor. --Vamos; seja forte! acudiu Theodoro beijando-me com ternura na fronte. Não vacille nem um instante, não vergue ao peso da cruz. --Descance, meu amigo, tornei eu melancholicamente. Não me assusta o soffrimento. E despedi-me d’elle, mais animada do que nunca até ahi estivera. Havia alguns dias que uns devaneios indefiniveis me atormentavam. Sentia um vago e doloroso prazer em aspirar a brisa embalsamada das noites de maio. Os effluvios do jardim coavam-me nas veias não sei que ardor incomprehensivel. O meu coração pulsava com violencia quando os raios da lua, infiltrando-se voluptuosamente na minha alcova, me vinham fallar de ignotos mysterios. Ao cair da noite sentava-me ao piano, e, deixando correr os dedos pelas teclas, escutava em extasi a suave e mansissima harmonia, que despertava então. Surprehendia-me a mim mesma contemplando a flôr secca, a rosa murcha, que me abrazava o seio. Que symptomas funestos eram estes? Receava adivinhal-o. Mas o passo aconselhado por Theodoro ia livrar-me de tão importunos pensamentos. Tudo quanto elle me dissera ácerca do caracter de Claudio achava-o eu extremamente verdadeiro, agora que reflectia em muitas circumstancias, que primeiro me tinham passado despercebidas. Não duvidava do bom exito do plano do meu velho amigo. Assim tudo se conciliava, e o futuro afinal apparecia-me desassombrado. Ia entrar finalmente no porto, depois de tantas tempestades. Ia encontrar no amor de meu marido um escudo contra as perseguições mesquinhas de D. Antonia, e um asylo contra os estranhos pensamentos, que me perseguiam. Ia ser feliz emfim! Pareceu-me que me tiravam de cima do peito um peso enorme, e respirei com desaffogo. Estava ao pé de casa. Subi a escada com pé ligeiro, cheguei á porta da sala, e abri-a alegremente. Mas, assim que entrei, estaquei de subito e senti no peito uma dor aguda, como se um ferro m’o atravessasse. No vão d’uma janella um homem e uma senhora conversavam intimamente, e com tanta animação que nem deram pela minha chegada, nem ouviram a bulha, que eu fizera abrindo a porta. Pallida como uma defuncta, fui-me aproximando a pouco e pouco, e só quando cheguei a dois passos da janella é que elles repararam em mim. A senhora soltou um grito, o homem fez-se levemente corado. Eram Alberto e Carolina. XVII Ficámos todos tres por um instante enleados; Alberto foi quem primeiro tomou a palavra, com o seu desembaraço habitual; não tardou Carolina a imital-o; mas, por maiores que fossem os meus esforços, negaram-se-me os labios a articular um som. Percebia que, se tentasse fallar, os soluços brotariam d’envolta com as palavras. Afinal consegui pretextar um ligeiro incommodo, e fugi para o meu quarto. Alli chorei á vontade, desabafei. Quando esta dôr inexplicavel se acalmou um pouco, perguntei á minha consciencia o motivo d’esses prantos. «Assim, murmurava eu comigo mesma, é Alberto um homem como todos; o amor profundo que disse consagrar-me não deixou o mais leve rasto na sua memoria. Aquella alma que eu julgava um sanctuario, é um prostibulo, aquelle coração tem a porta franca para quaesquer imagens. «Mas, tornava eu, que me importa isso tudo? Que direito me deu elle para fiscalisar as suas acções? Não me disse, não me affirmou, não me jurou até que esse amor antigo se dissipara como um devaneio de juventude, como um relampago de estio, que brilha e morre no firmamento azul? E não me devo eu até rejubilar com este acontecimento que me prova a verdade do que elle me dizia? Não contribue isto mesmo para dar nova paz á minha consciencia, nova tranquilidade á minha alma? Não posso eu agora erguer a fronte bem altiva acima das calumnias de D. Antonia e da condessa? «Não, acudia eu de novo; o motivo da minha afflicção é a amisade fraternal, que a Alberto consagrei, é a estima que votei a esse espirito nobre! Custa-me o desengano, custa-me o ver descida do seu pedestal a alma que eu julgara quasi superior á humanidade. O amor de Carolina macula um homem. E demais aquillo não é amor, é um capricho dos sentidos, é uma ligação banal e repugnante. O amor não brota assim d’um instante para o outro, não viça com tanta facilidade nas cinzas d’um affecto extincto. «Oh! cala-te, cala-te, murmurava a minha consciencia, não queiras disfarçar com o vão nome de amisade o sentimento culpado, que se te apoderou do coração. Amal-o, infeliz! Amal-o, e para cumulo de vergonha, elle nem pensa em ti, para maior opprobrio teu, és tu só a culpada; não podes allegar a influencia magnetica de um amor constante e vehemente, que actuasse a teu pesar no teu espirito e no teu coração. Elle affasta-se de ti, respeita-te, e não mereces ser respeitada, porque moralmente já trahiste os teus deveres de esposa, já falseaste a fé conjugal.» E nova torrente de prantos me brotou dos olhos, e me inundou as faces. Quando desci do meu quarto para a sala notaram todos a minha agitação. Alberto mirou-me inquieto, Carolina com um modo de ironia tal, que me deu forças para reagir contra o meu vergonhoso tormento. Queria soffrer, sim, mas soffrer com dignidade, e sem dar ás minhas inimigas motivo para folgarem e triumpharem. Esta serenidade ficticia tranquilisou Alberto, que tornou a mostrar-se todo attencioso e galanteador com a afilhada da condessa. «Oh! meu Deus, dizia eu, entre mim, tão irresistivel é essa paixão, que nem elle tem forças para m’a occultar, e para a occultar aos outros. Não se lembra que D. Carolina de Freitas não é uma senhora solteira, a quem se possa affoitamente render homenagens? «Jeronymo, e a condessa e D. Antonia, tão escrupulosos, tão inquisidores comigo, estão cegos, ou fingem-se cegos, que não vêem ou não querem ver o escandalo, que se está praticando n’esta sala? Que é feito da austera moralidade d’esta gente? Onde se aninharam as suas severidades?...» Ai! e não via eu, pobre louquinha, que estava sendo involuntariamente mais culpada do que elles? Não via eu que estes assomos de austeridade tinham a sua origem n’um sentimento, que devia reprimir com todas as forças da minha alma? Era a fatalilade que me impellia. Tranquilla vira entrar Alberto em minha casa, sem pensar em o distinguir dos outros homens. Accusando-me de um crime, de que nem sequer tivera o pensamento, obrigam-me a occupar-me d’elle, collocam sempre a sua imagem deante dos meus olhos, fazem com que eu involuntariamente o compare ás outras pessoas, que me rodeiam, comparação que não póde deixar de lhe ser favoravel, e firmando-me na minha innocencia, caminho com desassombro n’essa estrada semeada de perfidias, não vejo o abysmo que a pouco e pouco se me vae rasgando aos pés, que cada um dos meus passos alarga insensivelmente, abysmo por onde vou resvalando, e em que afinal baqueio. Fui castigada no meu orgulho; desci a uma esphera mil vezes mais baixa do que essa onde vivem as minhas accusadoras. A calumnia tinha rasão, os calumniadores prophetisavam. Triumphae, hypocritas, folgae, Messalinas de sachristia! conseguistes o vosso fim. Enxovalhei-me na lama, que tão obstinadamente me arrojastes ás faces! Polluí a corôa da innocencia, de que tanto me ufanava; sou adultera no pensamento, e isso basta para me julgar mais vil aos meus proprios olhos do que essa que alardeava a sua deshonra como um acto de habilidade, e que está agora impudentemente demonstrando á minha vista a veracidade das suas doutrinas. «Oh! continuava eu fallando comigo mesma, ao menos não hei de transpor os limites que ainda me separam d’uma vergonha completa. Esse amor fatal, que me devora, hei de abrigal-o no meu seio, como a áspide que me ha de matar, sem que o meu rosto revele os meus tormentos. Deixando de parte o mundo da realidade, cujo contacto me foi tão doloroso, voarei para as regiões da phantasia, e ahi viverei enlaçada n’um casto amor com a sombra pura de Alberto, tal como elle se me afigurou, e não tal como eu o vejo agora. Possuil-o-hei a elle mais do que elle a si proprio se possue, porque é minha essa flôr secca, symbolo da sua poetica existencia, ao passo que elle, afastando-se cada vez mais d’esse puro sanctuario, se vae embrenhando nos jardins da torpe Armida, que soube, com um olhar provocador, transformar uma alma tão nobre n’um espirito vulgar.» E soffria, soffria como nem eu o posso dizer, soffria e tinha vergonha do meu soffrimento, e não ousava erguer os olhos para Claudio, cujo rosto sombrio se ia desannuviando e alegrando ao ver Alberto enlevado nos seus novos amores. Os homens são estupidos! Desde então, a nossa vida tomou um outro aspecto, que inspirava grande espanto a D. Antonia. Por mais que ella tentasse renovar as suas manobras com o fim de nos deixar sós, rarissimas vezes o conseguia. Alberto sempre se lhe esquivava, e Carolina auxiliava-o n’isso, reclamando-o a cada instante, ora para a acompanhar n’um passeio a cavallo, ora para a ajudar a ler uma nova e difficil musica, que lhe chegara de Lisboa; e eu, afflicta, mas valorosa, desviava-me tambem de prompto, e entregava-me a longos passeios solitarios, onde me comprazia, vagueando pelas aridas planicies d’aquelles sitios, a avivar a memoria dos meus passeios e das minhas conversações com Alberto, que se me debuxavam na phantasia, sem me esquecer uma só particularidade, uma palavra só. Triste voluptuosidade de quem alarga a ferida com as proprias mãos, de quem está saboreando a triaga fatal! Os meus passeios dirigiam-se quasi sempre para o lado da casa de Theodoro Leite. N’aquelle doce asylo, aonde não chegava nem um ecco das paixões mundanas, que haviamos transportado comnosco da cidade para o campo, n’aquelle sanctuario do infortunio alegremente supportado, n’aquelle templo da familia, recuperava eu novas forças para o combate, que travara. N’esse ambiente são e perfumado de virtudes hauria as emanações do balsamo celeste, que guarece as feridas envenenadas. Um beijo da entrevadinha na minha fronte como que a cingia de novo da auréola da innocencia; um meigo olhar de Theodoro, calando-me no intimo da alma, expulsava a imagem que se obstinava a povoar-m’a. Voltava sempre d’essa pobre casa mais em paz com a minha consciencia; mas o encontro de Carolina com Alberto, encontro que era inevitavel, outra vez m’a turvava, e soltava as tempestades por um instante enfreadas. Claudio quizera aproveitar esse estado da minha alma, que elle não saberia definir, mas que instinctivamente adivinhava, para se aproximar de mim, e subtrahir-se ao mesmo tempo ao jugo de D. Antonia. Mas as suas timidas tentativas não me encontravam n’essa occasião disposta a animal-as. A minha consciencia dizia-me que não podia receber essa especie de homenagem, que já me não era devida, acceitar uma penitencia, que eu me devia impôr a mim mesma. E, por mais que tentasse levantar-me, uma força fatal me impellia cada vez mais rapidamente para o abysmo! Mas emfim, as forças não me trahiam, e quando, saindo do meu quarto, onde me ficava muitas vezes depois de jantar, contemplando o horisonte purpureado, os effeitos da luz moribunda e das sombras recrescentes nas ruas e nas moitas do jardim, as estatuas banhadas pelos ultimos raios do sol, que lhes doiravam o manto verde com que o musgo as revestia, e que, ao vir do crepusculo, pareciam tremer de frio, e aconchegar bem as pregas d’essa tunica ao seu pobre marmore nú; ouvindo os vagos murmurios do campo, o melancolico suspirar das fontes, e deixando os meus sonhos esvoaçarem livremente n’essa atmosphera de poesia e de saudade; quando, saindo pois do meu quarto, e baixando d’essas regiões phantasiosas ao mundo real, me via cara a cara com uma atroz desillusão, conservava-se-me o rosto impassivel, e nem o mais leve franzir dos labios, nem uma só ruga da face denunciavam os tormentos, que vinham saltear-me. Alberto não mostrava perante mim o minimo embaraço. Espantava-me esta quasi indelicadesa n’um homem tão delicado. Bem sei que elle não tinha nem sequer obrigação moral de submetter á minha opinião o seu procedimento. Bem sei que, não tendo commettido culpa alguma para comigo, não tinha que se embaraçar em minha presença... mas emfim... ha certos escrupulos... exagerados talvez... pontos d’honra nimiamente requintados... não digo o contrario... o vulgo, ainda o mais escrupuloso rir-se-hia d’esta minha pretenção... mas eu julgava Alberto por tal fórma differente do vulgo... achava-o tão capaz de comprehender estas coisas...! Como viram, não era a primeira vez que me illudia nos juizos formados a respeito de Alberto. Uma tarde, mal acabamos de jantar, fomos dar um passeio a cavallo, eu, D. Antonia, Carolina, e Jeronymo. Alberto não apparecera; por isso, com visivel contrariedade da afilhada da condessa, fomos sem elle. Comtudo Carolina teve a habilidade de dirigir o passeio de fórma, que pudessemos encontrar Alberto no caminho. Propoz que fossemos até Bellas, para aproveitarmos o resto da tarde, passeando na quinta do conde de Pombeiro. D. Antonia concordou. Jeronymo disse que lhe era indifferente ir para um ou para outro lado, e eu, que formava a minoria, não tive remedio senão acceder. Partimos. Sairam errados os calculos de Carolina. Não encontramos Alberto. O calor do dia (um dos primeiros de junho) dissipara-se um pouco, sem desapparecer de todo. As frescas sombras da quinta do Senhor da Serra estavam-nos convidando a irmos deliciar-nos com ellas. Apeamo-nos, entregamos os cavallos ao creado, e entramos na quinta. Carolina estava visivelmente preoccupada, e afastava-se a cada instante de nós, para ir espreitar as lamedas transversaes, como se esperasse que o acaso a favorecesse mais do que o seu calculo. D. Antonia dera o braço a Jeronymo, e conversava com elle. Eu ficara isolada, e, procurando completa solidão, fui affrouxando a pouco e pouco o passo, até que perdi de vista os meus companheiros. Estava só. Sempre gostei immenso d’essas lamedas sombrias d’arvores seculares, que se encontram n’alguns dos nossos velhos parques. Em Cintra abandonava as garridas quintas modernas para passear nas melancholicas devesas da Penha Verde, ou nas ruas graves e aristocraticas do Ramalhão. No outono principalmente, quando as folhas seccas rangem debaixo dos pés dos passeantes, quando os ramos, despojados do seu verde ornato, cruzando-se-nos por cima da cabeça, deixam ver o céo pesado e triste, não conheço goso comparavel ao de passear e scismar por entre esses longos renques d’arvores centenarias, que meneiam, ao sopro da brisa, as suas frontes calvas. Mas não estavamos então no outono, e a ramaria, toda folhuda e verdejante, formava sobre mim uma copada abobada, cujo verde se esmaltava com o oiro dos raios do sol, que a muito custo se lhe coavam pelos intersticios. N’esses estrados de folhagem poisavam-se bandos e bandos de passarinhos, cujo alegre chilrear povoava a espessura de harmonias, docemente acompanhadas pelo melodioso murmurio da agua das fontes. Expirava aquella solidão não sei que vagos effluvios de tranquilidade e remanso. Cedi ao inexprimivel encanto, e fui-me embebendo n’uma suave melancholia, que me enliava os sentidos e m’os absorvia todos no goso de devaneios, que purificava. Caminhando vagarosamente na extensa rua, haurindo os perfumes fortes que o arvoredo exhalava, enlevando-me no canto das aves, tirei a flôr secca do peito, e contemplei-a com ternura. Creio até que a estava beijando, quando subito, n’um dos meandros da lameda, dei de cara com Carolina. Escondi a flôr com precipitação, e fiz-me toda vermelha. --Oh! temos segredinhos, disse ella desatando a rir, que flôr era essa que beijava tão devotamente? Se estivesse fallando com um cavalheiro, adivinharia logo que essa rosa caira das tranças da dama dos seus pensamentos; mas, fallando com uma senhora, torna-se o caso mais difficil de averiguar. Não me ajuda? --Permitta-me que não escolha confidente, respondi eu com frieza. Costumo guardar os meus segredos, mesmo quando, como este, nada têem de melindroso. --Quem suspeita o contrario? Mas já vê, continuou Carolina, que se me não faz confidencias, não é porque não tenha assumpto para ellas; apanhei-a em flagrante delicto de diplomacia. Oh! não me zango com isso; sempre tive muita consideração pelas pessoas que sabem esconder bem o seu jogo. Mas ao mesmo tempo que presto justiça á sua habilidade diplomatica, deixe-me tambem prestar justiça á sua veracidade. Eram erroneas as minhas supposições ácerca de Alberto Mascarenhas, e verdadeiras as suas negativas. --Já o sabe? tornei eu com ironia. --Oh! tenho optimas rasões para o saber, respondeu ella impudentemente. Appareciam n’este momento D. Antonia, e Jeronymo Freitas. --Já vae caindo o crepusculo, disse a tia de meu marido, e bom será que voltemos para casa. Não desejo apanhar n’esta quinta o frio da tarde. Saimos; o creado estava á nossa espera ao portão. Montamos a cavallo, e seguimos pelo caminho da nossa aldeia. Eu tomara a deanteira, mettendo o cavallo a trote. A agitação, que por instantes se acalmara, refervia-me de novo na mente, excitada pelas palavras de Carolina. Esta veio collocar-se-me ao lado, e, obrigando-me a moderar o passo do cavallo, continuou a conversação principiada na quinta. --Ora, mas diga-me com sinceridade, tem ciumes? --Ciumes de que? redargui eu, franzindo ligeiramente o sobr’olho. --Da intimidade que existe agora entre mim e Alberto. --Isso assemelha-se a um insulto, minha senhora, respondi, insulto que demais a mais não comprehendo, depois do que me disse ainda ha pouco. --Oh! meu Deus, não se zangue; quem lhe falla em amor? A amisade não inspira tambem zelos? --A mim não, decerto; estimo até que os meus amigos se liguem com pessoas _dignas do seu affecto_. E involuntariamente accentuei estas ultimas palavras. --O que quer dizer, tornou Carolina serenamente, que me acha completamente indigna d’essas affeições. Oh! minha querida, sou perfeitamente da sua opinião. Infelizmente Alberto não está de accordo comnosco sobre esse ponto importante. Que quer que eu lhe faça? Não lhe respondi. Caminhamos alguns instantes em silencio. --Alberto, tornou Carolina no tom mais placido d’este mundo, é realmente um dos rapazes mais amaveis que tenho encontrado. Associa ao caracter nobre espirito a um tempo reflexivo e prompto, e coração ardente; raro conjuncto de predicados. A sua voz insinuante exerce sobre quem o escuta um dominio incomprehensivel, o seu olhar meigo e ardente captiva e abrasa. É um poeta na linguagem, um principe nas maneiras, um anjo no sentir. É a realisação d’esse marido ideal, que todas nós devaneamos aos quinze annos, antes de descermos á prosa do mundo para casarmos com os Jeronymos Freitas, e com os Claudios da Cunha. --Tudo isso é amisade? --Não; é amor, bem sei, continuou Carolina no mesmo tom sereno. Olhe, eu não sou diplomata senão com a tola da condessa, e com a sua beata roda. Mas fico sempre tão fatigada do papel que me vejo obrigada a desempenhar todos os dias, que, mal entro nos bastidores, não tenho forças para pôr outra vez a mascara, e voltar de novo á scena. Por isso lhe fallo tão francamente. Sim; liga-me a Alberto um amor profundo. É abominavel? Ora se é! Immoral? d’um modo aterrador. Mas, filha, tenciono consagrar a minha velhice a um longo arrependimento. Hei de ir a Roma, hei de fundar um convento, dois asylos, tres hospitaes, proteger orphãs e fazer meias de lã para as creanças indigentes, obras pias de que seria dispensada, se não passasse a minha mocidade a commetter alguns peccaditos, que exijam penitencia. Já vê que lucra com isto a beneficencia publica. Tive a fraqueza de amar Alberto. Não a teria, se suspeitasse que o ia tirar do lanço á minha boa amiga. Mas não; soube que era falso tudo quanto a D. Antonia dissera, soube que se não amavam, e ficou-me a consciencia tranquilla. Disse-m’o elle mesmo. A minha querida Margaridinha, que sabe quanto é poderosa a influencia da poesia, pode comprehender o modo como eu cedi aos protestos d’amor d’esse gentil moço. Era por uma tarde tão linda como esta; estavamos ambos sós na sala, contemplando o horisonte dos campos. Alberto murmurava-me ao ouvido essas palavras deliciosas, que sempre eccoam n’um coração feminino. A belleza do céu, as harmonias campestres, o doce murmurio da sua voz, a poetica auréola com que o sol moribundo lhe cingia a fronte, a solidão da sala, tudo conspirava contra mim. Senti-o aproximar-se... --Oh! basta! basta! exclamei eu, completamente louca e desvairada, n’um paroxismo de dor, sem saber o que dizia, nem o que fazia, não quero ouvir mais as suas infames e mentirosas confidencias. E, fustigando o cavallo com o chicote, parti n’um galope desenfreado, soluçando a um tempo de dor, de raiva e de vergonha. A viração da tarde trouxe-me ainda ao ouvido uma gargalhada de Carolina, e estas palavras, que proferia ironicamente: --E não o amava? XVIII N’um momento cheguei a casa. Apeei-me, atirei as redeas para cima do pescoço do cavallo, e subi a escada impetuosamente. Ia lavada em lagrimas; que me importava que me vissem? Estava consummada a minha vergonha. Abri a porta da sala e entrei. Não estava ermo o aposento. Ouvindo a bulha dos meus passos, alguem, que se encostava ao peitoril d’uma janella, voltou-se para a porta. Era Alberto. Eu perdera completamente o imperio sobre mim mesma. Corri para elle, travei-lhe das mãos, e disse-lhe com a voz entre-cortada pelos soluços: --Não é verdade? Não é verdade que a não ama? Aquella mulher mentiu? --O que é isto, minha senhora? tornou Alberto, no auge da inquietação, o que quer isto dizer? Que inexplicavel infortunio...? --Oh! mas diga-me, diga-me que a não ama, tornava eu chorosa e supplicante, diga-me que não ama Carolina. --Oh! respondeu elle n’um impeto, e fazendo um gesto de energica repugnancia, oh! juro-lh’o. --Obrigada! obrigada! murmurei eu; bem sei que sou uma doida, que me estou perdendo, que sou uma mulher vil, indigna da sua estima; porém não pude, soffri muito, quando ella me disse que se amavam:--a dôr foi... incomportavel. --Soffreu! respondia Alberto com voz tremula, e apertando-me as mãos com impeto febril, soffreu, mas então... mas n’esse caso... --Amo-o; não é isso que quer dizer? tornava eu como louca; sim, é a verdade, a verdade terrivel, fatal, ignominiosa. --Ama-me! exclamou Alberto. E, soltando as mãos, levou-as á fronte, como se temesse que lhe rebentasse ao impulso da lava, que lhe refervia lá dentro. E, voltando a travar-me das mãos, com os olhos incendidos n’um fulgor estranho, como se os houvesse abrazado a chamma de loucura que ardia nos meus: --Ama-me! Oh! não me falle! não me falle! deixe-me ouvir os eccos innumeraveis que essa palavra magica me desperta no coração! Oh! não me acorde d’este sonho! peço-lh’o, deixe-me aqui morrer com os olhos enlevados n’esta visão beatifica... --Sonhemos, dizia-lhe eu debulhada em lagrimas, oh! sonhemos depressa, porque o despertar vem cedo, e o despertar é o opprobrio. E caí prostrada n’uma cadeira; elle ajoelhou aos meus pés, beijando-me convulso as mãos. --Que importa? E cuidas que este momento de felicidade não paga de sobejo todas as amarguras d’uma longa vida? Julgas que esta auréola d’amor que nos circunda a fronte, não tenha luz bastante para derrotar a sombra do estygma que o mundo nos inflige? --E a consciencia... tornava eu. --Depois, depois, dizia-me elle, não pensemos n’isso agora. Apaguemos da nossa vida por um instante só esses longos annos que separaram o meu sonho d’adolescente d’esta ineffavel realidade. Por um instante só, Margarida... Margarida, Margarida, deixa-me saborear o prazer louco de te repetir mil vezes syllaba a syllaba, lettra a lettra, esse nome querido, que tantas vezes balbuciei sósinho no segredo do meu quarto. Deixa-me impregnar cada uma das suas melodias no amor immenso, que represei no coração, e que trasborda afinal. Filha, bem vês, peço-te um só instante para me pagar de tantos annos de angustias, de seculos de tormentos. Não é muito, não; concedes-m’o? Oh! meu Deus! mas eu tenho tanto que te dizer! não posso, não sei, adivinha, sim? Fita os teus olhos nos meus, lê n’elles, estrophe a estrophe, o louco poema, que uma voz ignota me canta no coração. E lembrar-me eu que pude suspeitar um instante que deixara de te amar, e uma palavra tua perturbava-me, e um sorriso teu enlouquecia-me, e uma attracção indizivel chamava-me para aqui. E pude fingir que fazia a côrte a Carolina, só para ter um pretexto de ficar junto de ti, o pretexto de te livrar das suspeitas calumniosas! E fingi corresponder ás suas impudentes provocações, para te ver sempre, sempre; porque és tu a minha vida, a minha mocidade, a estrella da minha noite, a flor do meu deserto, perola do meu sombrio occeano, a lampada do meu ermo sanctuario. --Oh! tenha dó de mim, Alberto, salve-me d’esta vergonha, livre-me d’esta vertigem; não vê que as suas palavras augmentam cada vez mais a incrivel fascinação que me arrasta para o abysmo? E eu não quero aviltar-me; ame-me, já que a fatalidade assim o quer, mas com um amor de irmão. --Sim, Margarida, sim, de irmão. Não vês como te adoro! Ordena o impossivel, e pratical-o-hei. Oh! mas estas louras tranças, que ondeiam por deante dos meus labios, deixa-me beijal-as, são estas mesmas as que o sol doirava, quando te vi, aéria fada, como que fluctuar entre as primeiras sombras do crepusculo. Beijo as minhas recordações. E beijava-me os cabellos espargidos no collo; mas eu, repellindo-o, disse-lhe brandamente: --Alberto! Elle parou e fitou em mim um olhar submisso. --Deixe-me, continuei eu; saia, que já ouço o tropear dos cavallos. Alberto travou-me das mãos, contemplou-me um instante, beijou-as com fervor, e saiu, dizendo: --Amo-te! XIX Fiquei longo espaço com o rosto escondido nas mãos; quando ergui a cabeça, estava D. Antonia deante de mim. Fluctuava-lhe nos labios um sorriso de triumpho; lampejava-lhe nos olhos um fulgor infernal. Vencera, conseguira o seu fim, colhera o fructo dos seus longos esforços; e eu despenhara-me dos pincaros do meu orgulho no abysmo para onde me tinham impellido. Sempre aquelle vulto me apparecia nas horas em que me sentia resvalar para a vergonha. Dir-se-hia a imagem de Satanaz, procurando occasião propria para me roubar a alma, e levar-m’a para o Barathro. E não era um sorriso diabolico o seu? Senti correr-me um calafrio pelas veias. Mas depois reagi contra esta primeira fraqueza, e, colhendo na minha propria exaltação energia bastante para affrontar aquella mulher infernal, ergui-me e fitei n’ella os olhos scintillantes. --Está tão agitada! exclamou D. Antonia com ironia. Já principia o remorso? --Já! disse-lhe eu com intimativa. Está satisfeita? Reveja-se na sua obra. --Na minha obra! tornou ella, pondo as mãos, e erguendo-as ao céu! Só isto me faltava! Diga antes que se realisa o que eu prophetisei sempre! Não querem ouvir as verdades, e aqui está o que succede! Não attendeu aos meus conselhos, deixou-se antes levar pelas suggestões do demonio, e o resultado foi perder-se sem remissão. Lavo d’ahi as minhas mãos; eu avisei-os a todos. Injuriaram-me, criminaram-me, e a final voltam-se contra mim. Já estou costumada a isto. Deus m’o levará em conta. --Mas o que succede? tornei eu indignada. Que supposição está formando? --Oh! tornou ella rindo; não é difficil adivinhal-o. Se já o não tivesse sabido por outro lado, a sua agitação tudo me diria. Compete-me agora avisar meu sobrinho do perigo em que a sua honra está. --Avise-o, tornei eu; mas diga-lhe tambem que está mais em segurança confiada a mim do que se estivesse nas mãos d’uma d’essas hypocritas beatas, que tão impudentemente infringem a moral que professam. --Como quer que eu lhe diga semelhante coisa? respondeu ella; quer que o illuda ainda, quer que lhe aperte bem a venda que a minha sobrinha com tanta habilidade lhe poz nos olhos? Engana-se; não sou para esse papel. Julgar-me-hia sua cumplice se assim procedesse. A desculpa do vicio é um ultrage á virtude. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pelle. Deseja ver-me protectora d’essa vergonhosa ligação, que me confessou tão descaradamente? Engana-se, minha Philis. Procure outras para esse cargo. Ora não ha, hei-de-lhe arrancar a mascara. --Não a tenho, bem vê; mas fite bem os seus olhos no meu rosto, e verá que não córo. --Porque não tem vergonha. --Porque não tenho de que me envergonhar, logo que as accusações que me são dirigidas tomam esse caracter offensivo. Se uma fatalidade inexoravel despertou no meu peito um sentimento que não pude dominar, póde estar certa que nunca lhe sacrificarei o meu dever. Combatel-o-hei com energia, e hei de arrancar do meu coração essa planta funesta, que tanto a meu pesar viçou e cresceu n’este jardim, que se obstinavam em conservar deserto. O calice de amargura bebel-o-hei até ás fezes, sem que os outros o cheguem sequer aos labios. Soffrerei em silencio, e com dignidade. Que mais podem exigir de mim? --Isso é muito poetico effectivamente, respondeu D. Antonia com ironia, estou que outros mais justos a adorariam como uma santa, mas duvido que o meu sobrinho esteja disposto a admirar e a apreciar estas subtilesas com que se disfarça um adulterio parecido com todos os adulterios. Eu de mim confesso que não percebo essas bonitas phrases. Uma mulher casada não deve pensar senão em seu marido, e tratar da sua casa. Foi isto o que toda a vida me ensinaram. Essas frandulagens de romance são boas para enganar os parvos. Era melhor que tratasse de cumprir fielmente as suas obrigações de esposa e de christã. --Oh! isso é de mais, respondi eu altiva. Exigem de mim o cumprimento de um dever, esse dever tenho-o eu cumprido, e hei de cumpril-o sempre com inabalavel intrepidez. Sacrificar-lhe-hei a minha vida inteira, deixarei fenecer n’essa atmosphera gelada a flor da minha juventude. Mas o sanctuario recondito da minha alma não consentirei que m’o invadam. N’esse domino eu só, n’esse abrigo os affectos intimos, a que presto culto no segredo da minha consciencia. D’essa região sagrada defenderei até a morte a inviolabilidade. É o ninho dos meus sonhos, a urna do balsamo, que me allivia um pouco as dores lancinantes do meu viver atroz. Não lhe toquem, não a profanem. Tudo o mais lhes cedo, tudo o mais sujeito á sua despiedosa fiscalisação. Persigam-me, atormentem-me, analysem cada um dos meus actos, interpretem-n’os favoravel ou desfavoravelmente; estou a isso resignada. Mas quando a final, depois de haverem saciado o seu odio implacavel, me deixarem tranquilla por um instante, não queiram violar o meu asylo, não queiram perturbar a paz do meu espirito, não queiram envenenar com o seu halito impuro essa atmosphera serena, onde fluctua, não queiram macular com a sua baba asquerosa as rosas, em cujo calice se baloiçam as minhas brancas borboletas. Esse direito sagrado, essa liberdade inalienavel do pensamento serão defendidas por mim ate á morte. Só o amor conhece as palavras mysteriosas que descerram as portas d’esse tabernaculo; o dever, gélido, frio, insensivel, não póde ultrapassar os limites da vida exterior, que está unicamente debaixo da sua alçada. Diga isto mesmo a Claudio, já que meu marido prefere relacionar-se comigo por via de emissarios a appellar para a minha franqueza. A minha vida, as minhas acções pertencem-lhe; não lhe pertencem nem o meu coração nem os meus pensamentos. Estampe na minha fronte o ferrete da infamia, se alguma vez eu lhe der direito a que suspeite que trahi a fé conjugal, e puz em perigo a honra do seu nome. Mas se ainda assim tentar arrogar-se sobre mim um direito, que nem os mais despoticos tyrannos têem podido reivindicar; se intentar algum acto escandaloso, que me deshonre aos olhos do mundo, lembre-se que toda a vergonha e toda a responsabilidade cairão sobre a sua cabeça, e que os mais severos moralistas não ousarão justificar o procedimento de um homem, que, deixando sua esposa entregue a todas as tentações da mocidade e a todos os vituperios da calumnia, se acha com direito de exigir mais do que o escrupuloso respeito dos deveres do matrimonio, e persegue no mais intimo arcano de um coração feminil os timidos devaneios de um amor que elle nunca se deu ao trabalho de requestar. E, deixando ficar D. Antonia estupefacta com a vehemencia do meu discurso, saí da sala precipitadamente, e fui-me refugiar no meu quarto. XX Comtudo era impossivel que esta situação falsissima se prolongasse por muito tempo. Estavamos todos embaraçados e constrangidos. Alberto, passado o primeiro momento de extasi, caira n’um abatimento visivel. Acudia-lhe o rubor ás faces sempre que apertava a mão a Claudio; e este, inquieto e sombrio, estendia-lhe a mão com repugnancia, e mostrava-lhe uma frieza quasi insultante. A partida de Alberto era a unica solução possivel; sentia-o elle e não tinha animo para se apartar de mim; sentia-o eu tambem e não tinha forças para lhe pedir que o fizesse. Certa da victoria, D. Antonia excitava Claudio a dar um golpe decisivo; Carolina, furiosa por se ver burlada quando imaginara burlar-me, juntara-se francamente aos meus inimigos, e, fazendo côro com sua madrinha e seu marido, bradava que um tal escandalo, se continuasse, era capaz de corromper a atmosphera de Bellas por tal fórma, que nenhuma senhora honesta se resignaria a habitar n’aquelles arredores, com medo de aspirar, nos haustos de um ar até ahi tão puro, pensamentos adulteros e criminosas tentações. O padre prior, que não percebia nada do que lhe diziam, apoiava tudo, confirmando os appoiados com estrepitosas pitadas, disfarçando tambem d’essa fórma os remorsos que sentia por abandonar assim a causa de Alberto, com quem sympathisava desde que este, com generosa abnegação, se prestara a substituir uma ou outra vez o proscripto Theodoro Leite na mesa do voltarete. Comtudo, eu e Alberto andavamos sempre arredios um do outro, e não davamos o minimo pretexto para que este mysterioso drama tivesse o desenlace que os nossos inimigos desejavam. Esta obstinação em não favorecermos os seus planos irritava D. Antonia, e fazia-a commetter erros de toda a especie. Mostrava-se umas vezes indignada com a hypocrisia das pessoas, que sabem disfarçar aos olhos do mundo o crime que descaradamente confessam em particular; outras vezes, pelo contrario, mostrava-se amabilissima comigo e com Alberto, e por tal fórma nos incitava a que passeassemos juntos, que esta insistencia chegava a dar-lhe ares de desempenhar um papel pouco em harmonia com a dignidade _meticulosa_ de que tanto blasonava. Só emmudecia quando o sobr’olho fransido de Claudio, o meio sorriso de Alberto, e os multiplicados signaes de Carolina lhe faziam perceber que a sua impaciencia a fizera entrar n’um mau caminho. Principiou então a adoptar um melhor systema; fingiu que se havia esquecido de todo das suas suspeitas, e das minhas revelações; fingiu confiar plenamente no que lhe eu dissera, e não querer por forma alguma intervir no desenlace de tão penosa situação. Cuidou talvez que, desassombrada da sua continua vigilancia, e do constante «álerta» com que as suas provocações espertavam as minhas suspeitas e me tinham sempre preparada para o combate, cederia á fascinação e me deixaria indolentemente resvalar para o abysmo. Enganava-se julgando que a lucta em mim era apenas filha do capricho e da necessidade de disfarçar aos olhos de meu marido as minhas criminosas relações. Não podia ella comprehender que o amor e a honra se combatessem lealmente no meu peito, e que o meu espirito encontrasse sempre novas forças no sentimento da propria dignidade para reter as perfidas suggestões do coração. Mas esse pelejar incessante prostrava-me e desfallecia-me. Minguava-me não o valor, mas o alento physico para supportar as consequencias da victoria. Eram terriveis para mim essas formosas e breves noites de estio, passadas a velar na minha alcova solitaria, a ver a lua espraiar-se no chão do jardim, e a voluptuosa penumbra a aninhar-se nos recantos. Surprehendia-me a alvorada immovel na minha janella, assistindo ao esvair da minha mocidade, fada cada vez mais pallida, entre os primeiros clarões do horisonte matinal. E esses fugitivos poemas, que me tinham consumido as horas nocturnas, murchavam-me a flôr da juventude, que toda se desfazia em fragrancias, com que se perfumavam essas vagas estrophes, que me voavam nem eu sei para onde, nas azas da viração. Assim passou uma semana. Jantaram um dia em nossa casa Carolina e Jeronymo. Quando acabamos de jantar, fomos tomar café para a sala. Começava a cair o crepusculo, um d’esses crepusculos de estio, serenos e harmoniosos. As janellas abertas deixavam entrar os longiquos murmurios do campo, o melancholico mugido do boi, que volta para o curral, o grito prolongado do pastor, o som grave e religioso do sino das Ave-Marias, e d’envolta com estas campestres melodias vinham tambem os vagos aromas que as flores das noites rescendem n’essa hora mysteriosa. Entrou Alberto, quando eu me fôra sentar ao piano, a pedido de Carolina, que instava comigo para que tocasse um trecho da _Luiza Miller_, muito da sua predilecção. Era uma das mais suaves e mais melancholicas romanzas de tenor, uma das mais mimosas perolas d’esse collar de melodias, que, n’uma hora de inspiração, Verdi desfiou sobre o publico dilettante. O crepusculo já déra logar ás sombras da noite; não havia ainda luar, mas estava tão estrellado o céu, e era tão suave aquella penumbra que ninguem se lembrou de pedir luz. Agruparam-se todos em torno do piano, e estava eu preludiando, quando entrou Alberto, como já disse. Interrompi-me á sua chegada, mas elle, apenas fallou ás pessoas presentes, disse logo: --Oh! minha senhora, teria eu remorso eterno, se por minha causa ficassem os rouxinoes do seu jardim privados d’uma nota só d’esse cantico delicioso, que lhes ha de ensinar a celebrarem ainda melhor do que celebram os encantos d’uma noite estrellada. Continue vossa excellencia. --Chegou muito a proposito, senhor Alberto Mascarenhas, acudiu Carolina; ia-se tocar a romanza do tenor; commettiamos um sacrilegio confiando a um piano, ainda que tocado admiravelmente, o cantico sublime, digno só de ser entoado pela voz humana. Valha-nos pois, cante-nos a romanza. --Por Deus, senhora D. Carolina, o que diriam os rouxinoes? Excommungavam-me de certo, e encarregavam os mochos e as corujas de executarem a sentença, poisando todas as noites no tecto da minha hospedaria. Posso affiançar a vossa excellencia, que nas pontas dos dedos da senhora D. Margarida está escondido um Mongini, que lhe vae cantar admiravelmente a aria que me pede. --Não, não, respondi eu rindo, engana-se. Mongini rasgou a escriptura, de fórma que os meus dedos declaram positivamente que só estão disponiveis para acompanhamentos. --Bem, por minha causa não quero que se feche o theatro. Estou prompto a obedecer ás ordens de vossas excellencias. Alberto possuia uma bonita voz de tenor, pequena sim, mas dramatica, se me permittem o termo. Reproduzia admiravelmente cada inflexão da melodia, cada intenção do maestro. Identificava-se com a musica, e perfumava-se de suave tristeza, ou irrompia em gritos de paixão, ou tomava o tom elegante do galanteio frivolo, conforme cantava, ou o _Ah! perché non posso odiar-ti_ da _Somnambula_, ou o _Mentré contemplo_ das _Vesperas Sicilianas_, ou o _Questa o quella_ do _Rigoletto_. Corri os dedos pelo teclado, e preludiei depois, fazendo brotar das teclas as notas graves da introducção. A extrema luz crepuscular illuminava escassamente o pallido azul do céo, onde palpitavam as estrellas. A placidez da noite proxima, a serenidade da atmosphera, o profundo silencio que reinava no aposento, silencio quebrado apenas pelos frouxos e derradeiros murmurios do dia, predispunham a alma para esse embevecimento mudo e extatico, melancholico e religioso, que esse canto grave, simples, e vago como uma melodia exhalada espontaneamente da harpa gigante da natureza, é tão proprio para inspirar. A voz de Alberto ergueu-se pura, limpida, mas levemente commovida. Creio que todos sentimos um inexprimivel encanto ao ouvirmos as primeiras notas suaves e serenas, que tão bem se casavam pelo tom e pela letra com o espectaculo que nos rodeava: _Quando le sere, al placido Chiarore d’un ciel stellato_ O canto espraiava-se pela planicie, ia expirar ao longe em languido murmurio, e acordava milhares de eccos mysteriosos. Os campos, adormecidos no voluptuoso regaço d’essa hora magica, despertavam ao ouvirem essa harmonia, synthese admiravel das suas vozes confusas. Eu estava profundamente commovida, sentia que Alberto cantava para mim só, que era para mim que elle deixava expandir-se a sua alma em cada uma das notas d’esse cantico. A sua voz era apenas um frémito, quando, n’essa doce lingua italiana, recordava as meigas horas em que, de mãos enlaçadas, fitavamos o céu onde esmoreciam os ultimos raios do sol. Porque eu chegara a convencer-me que tudo aquillo era verdade e não ficção, que era eu a heroina da opera, elle o meu apaixonado, e quando, todo embevecido n’essas recordações, Alberto, como que esquecendo-se do presente, concentrou toda a sua alma, toda a sua paixão n’aquelle grito immenso de amor e de jubilo: _Allor parea l’Empireo Aprir-se all’alma mia_ não pude conter mais os sentimentos, que me trasbordavam do peito, e deixando cair os braços e interrompendo o acompanhamento, contive a custo os soluços e deixei as lagrimas silenciosas golpharem-me dos olhos e inundarem-me as faces. Alberto calou-se de subito, os ouvintes levantaram-se dizendo: «O que é isto?» Meu marido approximou-se logo de mim, relanceando para Alberto um olhar cheio de odio, e perguntando-me rudemente: «O que tem?» --Nada, nada, respondi eu com voz bastante firme; uma dor violenta que me surprehendeu, mas que já me passou. --No coração? perguntou D. Antonia com fingida ingenuidade. --Sim, no coração, respondi eu com altivez; mas comprimi-a já. --Essas dores são muito más, tornou ella, vem quando menos se esperam. --Mas não vencem apesar d’isso, continuei eu. Claudio ouvia este dialogo com modo sombrio. --A senhora D. Margarida, acudiu Carolina, é muito nervosa, e as pessoas nervosas facilmente se deixam impressionar pela musica. Demais a mais o senhor Alberto Mascarenhas cantou com tanto ardor, tanto de coração, que não admira que produzisse este effeito. --Engana-se, minha senhora, respondi eu; nada tem com este incommodo passageiro o canto e a musica; vou-me deitar em cima da minha cama um instante, e voltarei restabelecida. --Vá, vá, tornou D. Carolina cariciosamente. Desabafe que lhe ha de fazer bem. Não lhe repliquei, e saí. Quando cheguei ao meu quarto, foram-me allivio as lagrimas. Entre a minha afflicção, comtudo, avultava uma idéa fixa. «Não, dizia eu comigo mesma, isto não póde durar. Vejo dois caminhos abertos deante de mim, o do amor e da perdição, e o da salvação e do martyrio. Ou entregar-me á paixão fatal, que me domina, fazer a vontade a esta gente e procurar no amor de Alberto consolações, que me abafem os remorsos, ou fazer cessar esta lucta perigosa, dizendo a Alberto que parta, encerrando as lagrimas no peito, e engolphando-me brutalmente n’esta existencia mesquinha, que me ha de assegurar a consideração da condessa, a estima de D. Antonia e a tranquillidade talvez. A tranquillidade? Palavra d’ora em deante sem sentido para mim! Se conquisto a paz exterior, as tempestades nem por isso deixarão de me bramir no coração. Mas que importa? O cumprimento de um dever nunca deixa de ser acompanhado por intima satisfação, e será esse o magico talisman que abrandará o soffrimento, a que a minha vida vae ser condemnada. É preciso, é indispensavel que Alberto se ausente. Ausentae-vos com elle, sonhos tentadores, perigosos devaneios, frémitos da juventude, que se revolta contra o cilicio, aspirações do meu espirito para o mundo luminoso, d’onde o dever o repelle.» Armando-me de coragem, desci á sala, decidida a pedir a Alberto uma entrevista, para lhe explicar francamente a minha situação, e rogar-lhe que me facilitasse o sair d’ella. Já lá estavam a condessa, o padre prior e a baroneza. Como a tactica de D. Antonia consistia em me deixar a maior liberdade, julguei que poderia facilmente fallar de relance a Alberto. Mas o ciume de Carolina parece que fôra excitado pela scena do piano, de forma que não fez senão interpor-se constantemente a nós ambos, e não nos deixou sós nem um instante. Já perdera as esperanças de lhe fallar, e até já me despedira d’elle e das outras visitas que se retiravam, quando, ao atravessar a saleta para subir para o meu quarto, encontrei Alberto, que subia de novo para buscar alguma coisa, que lhe esquecera. Travei-lhe da mão, e disse-lhe apressadamente: --Preciso muito de lhe fallar: ámanhã, ás duas horas da noite, venha ter comigo ao jardim. Enviar-lhe-hei a chave. Alberto ficou mudo d’assombro. Eu nem lhe dei tempo a responder-me. Saí precipitadamente, e, ao abrir a porta, esbarrei n’um vulto. Era a Maria do Rosario. --Que estava aqui a fazer? perguntei eu com indignação. --Nada, minha senhora, respondeu ella com toda a naturalidade; vinha apagar as luzes. E entrou effectivamente para a sala. Era possivel que fosse essa a verdade, e, se o não fosse, que me importava? Denunciasse-me embora; eu ia jogar a ultima carta, e estava disposta a confiar-me cegamente ao destino. Comtudo, até para dar esse passo, que me devia salvar da vergonha, precisava de humilhar o meu orgulho aos pés de uma creada; é verdade que essa creada, antes amiga, era a boa Quiteria, a pobre velha, que tão desinteressadamente se dedicara a mim. Só d’ella me podia valer para conseguir que fosse entregue a Alberto a chave, que era indispensavel para a nossa ultima entrevista. Portanto, no dia seguinte chamei-a ao meu quarto, e como ligava muito mais apreço á opinião da boa e pobre Quiteria do que á da altiva D. Antonia, e da virtuosa condessa, contei-lhe pela rama a historia das minhas relações com Alberto, não lhe fallei em subtilesas de coração, mas disse-lhe que, vendo-me calumniada por causa d’aquelle homem, queria ter uma conferencia com elle para lhe pedir que se retirasse e não me expuzesse mais, ainda que involuntariamente, aos juizos desfavoraveis das pessoas com quem estava condemnada a viver. Terminei rogando-lhe que se encarregasse da missão que eu desejava confiar-lhe. --Minha boa menina, respondeu-me a Quiteria, tenho dado fé das intrigas, que a cercam, e sei perfeitamente que a senhora D. Margarida está innocentinha como um anjo do céu. Dá-me vontade ás vezes de esganar os seus perseguidores! Já não fallo no senhor Claudio, que esse no fundo é muito boa pessoa, assim elle soubesse ser dono da sua casa. Mas a senhora D. Antonia, Deus me perdôe, parece mesmo que tem o demonio ao lado que lhe está aconselhando a maldade. E a Maria do Rosario? Ai! que boa peça! Anda sempre, como o outro que diz, com o santo nome de Deus na boca, e o diabo no coração. Aquillo até chega a ser heresia. Por isso todos lhe teem raiva, e se não fosse por minha causa, o meu Simão já lhe tinha quebrado os ossos, quando a pilhava a espreital-a, e a ir metter no bico da senhora D. Antonia tudo quanto a menina faz! Mas eu que sou muito sua amiga, porque vejo que é boa com a gente pobre, e que não se contenta em lhes dar uma fatia de pão, com modos de quem dá uma facada, como fazem essas beatas fingidas; mas que é meiga, affavel com elles, que os trata bem, e não lhes faz sentir a sua humildade e a sua dependencia, que não ha coisa mais triste, santo nome de Jesus. Andar uma pessoa a comer as sopas d’outrem... --Mas o que é que ia a dizer, tia Quiteria? interrompi eu, porque a via disposta a amontuar incidentes sobre incidentes, e a perder o fio da oração principal. --Ah! é verdade, já me esquecia... Tenha paciencia, minha boa senhora, que isto de velhas gostam muito de dar á lingua, e, em ellas começando, não ha fazel-as parar. Misturam alhos com bugalhos, e nunca chegam ao fim, como succedeu na noite em que a menina chegou, que me enredei por tal fórma, que não acabei de contar a historia do fr. João. Que elle sempre viu a alma do pae... --Mas vossemecê estava a dizer outra coisa, tornei eu, já impaciente. --Ah! é verdade. Isso é o que importa agora, e não o saber-se que o pae de João lhe confessou que fôra a pouco e pouco mudando os marcos das terras dos visinhos, e que não teria a sua alma descanço e andaria penando por este mundo em quanto essa justiça não fosse reparada. --Sim, sim, tia Quiteria, mas vossemecê dizia... --Ah! é verdade, voltando cá á boa alma de Maria do Rosario, que me parece que já está a arder no inferno pelas mexeriquices que tem feito, e as desgraças que póde crusar, sempre lhe direi, minha menina, que o demonio da mulher ouviu-a hontem dizer ao senhor Alberto que fosse ao jardim, e, segundo o seu costume, foi logo dizer tudo á senhora D. Antonia. Ouvi-a eu com estes ouvidos, que eu não sou surda, graças a Deus, a vista é que se me vae debilitando alguma coisa, e os dentes esses viste’-los? Nem eu. Pois ouvi-a estar a contar tudo isso, e ouvi tambem a senhora D. Antonia dizer assim: «Ora graças a Deus! vejâmos agora se meu sobrinho ainda acha algum pretexto para se esquivar a fazer o que deve, e se, depois de ter visto com os seus proprios olhos, ainda estiver pouco disposto para isso, nós arranjaremos as coisas de maneira que elle não tenha outra saída. O caso é não se ter vossemecê enganado nas horas.»--«Não enganei, não, minha senhora, respondia a voz de falsete da Maria do Rosario, ás duas horas no jardim.» Mais nada ouvi porque senti passos aproximarem-se da porta, e não tive tempo senão de me safar. Ora agora veja a menina se não será melhor adiar a entrevista para outra occasião. Olhe que ellas estão prevenidas, e fazem-lhe alguma. Reflecti alguns momentos antes de dar uma resposta. Os sentimentos do meu coração, vencidos pela idéa do dever, não tinham ficado completamente domados, e protestavam ainda contra a oppressão, a que os votara. Fugia d’esse vedado paraiso do amor, mas, fugindo, relanceava para elle os olhos, como a chorosa Eva ao sair do Eden, se voltava a contemplal-o, com o peito a arquejar de saudades. Sorria-me tentadora a idéa fatal de esquecer nos braços de Alberto a vida e as suas obrigações, o mundo e as suas amarguras, de fugir com elle para algum eremiterio arredado do bulicio social, ufanando-me do estygma, aceitando o escandalo para conquistar o amor, como se aceita o martyrio para se conquistar a palma. Bem sei que seria de pouca dura essa felicidade criminosa, que o remorso seria o meu algoz, e o enfado, que algumas vezes me entreluzisse nos olhos do meu amante, pugentissimo castigo; mas o que era tudo isso em comparação da longa vida de estiolamento que eu ia passar n’esse carcere domestico? Lembrei-me dos amores de D. Branca e de Aben-Afan. Horas breves de felicidade compradas por uma vida inteira de horrido desgosto; e o que destruira esses amores tão violentos? Um gesto de fastio do moiro wali, saudoso das suas pelejas e do seu poder. Teria eu maior condão que D. Branca, Alberto mais desprendimento do mundo, do que Aben-Afan? Não lhe leria nunca nos olhos o desgosto de se ter prendido em laços, não authorisados pela sociedade, e de se ver privado dos gosos mundanos? Mas isso que importava? Se a gentil abbadessa, depois de ter visto e amado o arabe formoso, se houvesse sepultado logo no gélido mosteiro, não seria ainda maior a sua tristeza? Não seria a sua vida uma longa noite, em que nem sequer luziria um raio do sol extincto sim, mas que por instantes brilhara no horisonte? Longa noite sem o luar d’uma recordação? Não seria então que o poeta podia deveras exclamar: .... Mas é vida Esse viver que se alimenta em lagrimas? Agitada por estes encontrados pensamentos, persisti na idéa de deixar ir o batel do nosso destino ao som da agua, para onde o impellisse a corrente do acaso, ou antes, o que era mais christão na forma, senão no fundo, entreguei á Providencia o cuidado de reger o leme, e confiei-me cegamente ás ordens do Divino Piloto. Cumpriria o que resolvera, iria pedir a Alberto que se affastasse de mim, porém, se a fatalidade interviesse de novo, se a mão implacavel dos que me tinham collocado á beira do abysmo me despenhasse n’elle, não opporia a minima resistencia, e deixar-me-hia cair nos braços que me recebessem. Era esta a ultima prova e a mais fatal das indecisões do meu caracter, tão pouco proprio para as luctas da existencia. Por isso respondi á boa mulher: --Embora, tia Quiteria; cumpra-se o meu destino: o que resolvi está resolvido. São puras as minhas intenções, mas já não tenho forças para luctar com as minhas perseguidoras. Quanto mais depressa isto acabar, melhor. Estou anciosa pelo descanço, ainda que seja o repouso do tumulo, ou o do opprobrio. --Ah! a minha menina que se deita a perder! tornou a Quiteria com modos supplicantes. Pois quer dar essa gloria ás suas inimigas? Não faça tal. E demais, continuou ella, desatando a chorar, isso é tentar a Deus, é, como quem diz, dar cabo de si com as proprias mãos. Travei, commovida, das mãos de Quiteria, e disse-lhe: --Obrigada, minha boa amiga, obrigada por essas lagrimas. Ah! se as pessoas que a desprezam do alto da sua soberba, tivessem o seu coração!... Mas, tia Quiteria, bem vê que uma vida assim não pode continuar. Estou cançada, estou prostrada por esta lucta sem treguas nem fim. Acarinhada, mimosa em casa de meus paes, vim para esta casa, nunca mais tive nem socego nem alegria. As pessoas do meu trato quotidiano só tinham para mim rostos severos ou frios. Não tive affeições, não tive familia. E, não contentes com isso, isolaram-me do mundo, e cercaram-me com uma gélida barreira de desconfianças, de suspeitas, e de calumnias. Esforcei-me, luctei por sair d’este circulo de ferro; não pude. Já me sinto sem forças nem alento. No tumulo talvez me deixem tranquilla, ou, se me expulsarem d’esta casa, talvez encontre descanço ahi no fundo de alguma choça abandonada. Não é melhor assim? E as minhas lagrimas confundiram-se com o pranto da minha humilde amiga. --Pobre senhora! pobre senhora! dizia ella, soluçando; pobre pombinha sem ninho! antes Deus a tivesse feito nascer n’uma choupana! viveria socegada, e todos a haviam de estimar, como merece. --Antes, antes, Quiteria, respondi eu melancholica, bastantes vezes, no silencio da noite, lancei a Deus esse grito de revolta contra o martyrio sem causa. --Mas, minha menina, continuou a velhinha limpando as lagrimas, que ainda lhe banhavam as faces, se por força quer fallar esta noite ao senhor Alberto, ao menos faça-me uma coisa. --Qual é? --Mude a hora da entrevista; mande dizer ao senhor Alberto que venha á meia noite. --Á meia-noite, tia Quiteria! Quasi a essa hora se vão as visitas. --Então o que tem? O senhor Alberto que espere. Olhe, a senhora D. Antonia, o que deseja é ver se a apanha lá, e por conseguinte esteja a minha menina certa que lhe não ha de pôr obstaculos. --Oh! isso sei eu. --Então está combinado? --Pois sim! tornei eu com a indifferença do fatalismo. --Ora bem! disse a Quiteria muito satisfeita. Assim talvez ainda as possamos lograr! Deus está por nós. Elle nos ajudará. Fique a menina descançada que d’aqui a duas horas está o senhor Alberto avisado. E, despedindo-se de mim, dirigiu-se para a porta; mas, quando ia a levantar o fecho, parou, como se lhe houvesse esquecido alguma coisa, e disse: --Ah! já me não lembrava!... --O que é, tia Quiteria? perguntei eu com interesse. --O João... --Qual João? tornei a perguntar, porque já nem pensava na historia do frade. --Ora, qual João! o que viu a alma do pae... --Ah! é verdade, interrompi eu rindo, então o que lhe succedeu? --No dia seguinte restituiu as terras furtadas aos seus donos, as outras vendeu-as, e foi-se metter n’um convento. E aqui está como fr. João vestiu o habito de frade, e foi sempre um homem exemplar. E muito satisfeita por ter afinal contado a sua historia toda, a tia Quiteria abriu a porta e saíu. XXI Pareceram-me seculos as horas, que decorreram até o cair da noite, e comtudo, quando as primeiras sombras do crepusculo principiaram a invadir o céu, desejei que retrocedesse o tempo, e tremi de ver tão proximo o instante em que se ia decidir a minha sorte. Chegaram, segundo o costume, as visitas; D. Antonia mostrara-se todo o dia affabilissima comigo, tambem a condessa houve por bem mimosear-me com alguns dos seus mais amaveis sorrisos, e Carolina abraçou-me e beijou-me com extraordinaria affeição. A tudo correspondi com sereno e melancholico aspecto: causava-me asco esse corrilho de Judas. Ás dez e meia retiraram-se todos; D. Antonia disse estar incommodada, e foi-se metter no seu quarto; Claudio apparecera na sala e demorara-se instantes apenas, mostrando-se visivelmente inquieto; depois saira. Á meia noite em ponto, desci do quarto; pulsava-me o coração com extraordinaria vehemencia; ia dando um grito, e deixando cair o castiçal, que levava na mão, ao deparar-se-me um vulto immovel no fundo da escada. Felizmente logo o conheci: era Quiteria. --Começa o enredo, disse-me ella em voz baixa; a condessa e a D. Carolina entraram agora mesmo. --Estão cá? perguntei eu. --Estão; fingiram que se iam embora; mas foram passear, voltaram, e metteram-se no quarto de D. Antonia. Lá está tambem a Maria do Rosario. --O que farão ellas? --Não sei, mas não tema. Aproveite este momento, que é favoravel. Deus a proteja, filha. Abri a porta do jardim, e saí. Ainda não campeava no horisonte a lua, mas aproximava-se a hora em que havia de surgir o meigo astro. A folhagem das arvores meneava-se brandamente ao sopro suave da brisa, e por entre a ramaria scintillavam as estrellas. Atravessei ligeiramente a rua principal do jardim, dirigindo-me á porta que deitava para a estrada. Quando cheguei a uma espessa moita de buxo não tosquiado, que se erguia a grande altura, ouvi uma voz que murmurava muito de manso: --Margarida! Voltei-me, e vi Alberto. Parei, e comprimi com a mão o violento arfar do peito. Alberto pegou-me na outra mão, e levou-a respeitosamente aos labios. --O que pensou de mim, senhor Mascarenhas, disse-lhe eu, ao receber o estranho recado que lhe enviei? --Pensei que vossa excellencia tinha que me dar uma ordem, que eu tinha a ventura de poder executar um mandado seu, e vim. --Disposto a obedecer-me? --Em tudo. Calei-me embaraçada; não sabia como havia de dar o primeiro passo n’esse terreno escorregadio. Tinha os olhos baixos, mas como que sentia o olhar de Alberto fito no meu rosto com inexprimivel anciedade. As nossas respirações oppressas confundiam-se n’um murmurio, que se casava com o sussurrar da brisa languida nas folhas do arvoredo. Formava o buxo uma espessa parede, que nos abrigava do lado de casa; corria-lhe fronteiro o muro do jardim, mas a porta ficava-nos distante. Um pecegueiro, ainda em flor, estendia por cima de nós a copa como um docel perfumado. Uma estatua pagã, meio escondida no buxo, espreitava-nos maliciosamente da sua verde alcova. --Senhor Alberto Mascarenhas, disse-lhe eu com voz profundamente commovida, poz-nos o acaso n’uma situação falsissima. N’um momento de exaltação passageira trocámos palavras fataes, que ainda hoje me soam aos ouvidos como um remorso. Justificámos a calumnia, demos rasão aos calumniadores. Esse crime só se resgata com a separação. É o allivio para os nossos espiritos, a tranquilidade para as nossas consciencias. Não podemos viver assim com a recordação d’essa tarde a interpor-se constantemente a nós ambos, a pungir-nos sempre como espinho de rosa, que nasceu amaldiçoada. Chamei-o aqui para implorar da sua honra, do seu cavalheirismo, da sua amisade, do seu amor emfim, se me é permittido proferir tal palavra, a esmola de um pouco de socego. Parta, rogo-lh’o, ausente-se d’esta casa, d’este sitio, rompa completamente as suas relações com a minha familia; só assim poderei recuperar a paz, por que almejo tanto, que a acceito, ainda que seja o repouso do tumulo, ou a atonia do desespero. --Minha senhora, respondeu Alberto com mal fingida firmesa, obedeço a esta ordem de vossa excellencia, como a todas obedeceria. E demais vejo, percebo tambem, que é intoleravel a nossa situação. Amigo de seu marido, estou representando um papel em que a minha lealdade soffre. Não sei se esta consideração bastaria para me arrancar d’aqui; as leis da honra ás vezes são frageis diques contra as torrentes de alguns affectos. Mas não devo pensar em mim, devo pensar no anjo puro, cuja etherea serenidade perturbei, no anjo, em cujo céu immaculado tive a audacia de fazer reboar um echo das paixões vis da terra. Possa o meu sacrificio restituir-lhe o repouso. Calou-se um instante, e depois, emquanto eu, sem forças para lhe responder, e mal podendo suster-me em pé, me encostava ao pedestal da estatua, continuou com voz triste, ainda que serena: --Adeus, Margarida. E estendeu-me a mão, que eu apertei. --Adeus, Alberto, disse com egual simplicidade e tristeza. E ficamos assim, com as mãos enlaçadas, e os olhos de um cravados nos olhos do outro. A brisa sussurrava no arvoredo, e o primeiro raio da lua nascente coava-se a furto por entre os ramos do pecegueiro. --Que sonho tão breve, Margarida! murmurou elle. --Como todos os sonhos, Alberto! respondi eu. --Sim, como todos os sonhos, que descem das regiões da phantasia para o mundo da realidade. Dizem as lendas allemãs que os espiritos do ar e das aguas podem, pela magia do amor, tomar humana forma e alma tambem humana, mas qualquer desgosto os fina, e perdem então de todo a immortalidade. Quer-me parecer que os sonhos são como os sylphos e as ondinas. --Louco de quem lhes magôa as azas candidas com os attritos da vida! --Bem louco!... Que irresistivel tentação, que absurdo escrupulo me impelliu a revelar-lhe n’aquella noite fatal a historia dos meus amores! Soltei as avesinhas captivas, julgando que as poderia fazer voltar ao ninho... --E ellas foram despertar com os seus cantos as irmãs adormecidas na minha alma. Era natural, bem vê. --Como virem os gelos, e matarem-nas. Embora, continuou Alberto um tanto exaltado, gosei um instante de suprema ventura. Oh! antes de nos separarmos para sempre, diga, Margarida, diga-me que esse momento, em que se vae absorver e resumir todo o meu passado, ha de brilhar tambem como um ponto luminoso na sua vida. --Sim, digo, tornei eu palpitante de commoção, e não me pejo de o dizer, porque vou expiar longamente esse prazer tão rapido. Entrevi de relance as doçuras de um vedado paraiso. Bebi com delicia criminosa o feiticeiro philtro das suas palavras. Não tardaram as amarguras. Estado tão inebriante era como esse mundo de crystal, que a phantasia de não sei que romancista povoou de ignotos encantamentos, de esplendidos prodigios; mas um bafo annuviava o ridente quadro, qualquer attrito o partia. Vivemos instantes no crystal, Alberto; o nosso mundo despedaçou-se, e os fragmentos ahi jazem dispersos. Mas crêa: sempre que os espinhos da realidade me ferirem em demasia, hei de volver os olhos enlevados para a região das fadas, onde enlaçados poisámos. --Oh! não murmure ao meu ouvido, tornou Alberto, essas magicas palavras! Quer que nos separemos, e está entrançando de ouro e seda o laço, que me ha de reter captivo? A melodia da sua voz é canto de sereia, que me arrasta para o abysmo. Sinto que a minha alma se prende n’essa ineffavel seducção. Separarmo-nos! separarmo-nos agora, repetia elle exaltado, bem vê que é impossivel! Essa palavra destôa dos murmurios amorosos d’este jardim, das meigas notas da sua voz. Não a profira, não me quebre o encanto, deixe-me viver no crystal, como dizia, no crystal onde sinto repercutir-se em eccos deliciosos cada uma das estrophes do meu encantador poema. Não, não, não posso. --Alberto, exclamei eu, o que intenta fazer? Lembre-se do que me prometteu, lembre-se das desgraças, de que póde ser causa este infausto amor. --Sim, Margarida, respondeu elle apertando-me convulso as mãos, lembro-me de tudo, e tudo cumprirei. Mas hoje é a ultima noite que me resta para te ver. Lembra-te que vou, navegador infeliz, vaguear de novo pelo oceano sombrio da existencia, sósinho, sem uma esperança, sem uma estrella no céu tenebroso, ludibrio das vagas e das tempestades. E quando o vendaval agudo me açoitar alta noite, quando não bruxulear para mim no horisonte outro fanal que não seja a triste lampada do tumulo, não queres que eu conserve ao menos uma lembrança do radiante porto, da afortunada ilha onde pude repoisar por instantes a fronte queimada pelo sopro das procellas? Não queres que se me aclarem um momento as sombras, e que entre os fulgores da aurora me surja o teu vulto angelico, meigo e saudoso como na hora em que para sempre nos apartámos? E a lua, alta no céu, illuminava-lhe o rosto pallido, e incendia-lhe vivissimos lampejos nos olhos marejados de lagrimas. A aragem meneava a copa do pecegueiro, e desprendia-lhe as flores, que caíam em torno de nós em chuva de perfumes. Esse murmurio vago das noites de estio expirava ao nosso ouvido em voluptuosa melodia. Lancei a cabeça para traz, para fugir á magnetica seducção do olhar de Alberto. Soltou-se-me então uma trança, que a brisa trouxe logo a beijar-me o collo, como essas _boucles folles_ em que os francezes fallam. --Mas o que quer? o que exige de mim? disse eu com voz tremula. Oh! Alberto, porque se não ausentou já? --Nada quero nada, senão que se deixe estar assim, formosa incarnação do meu sonho mais bello! Oh! se um esculptor grego a visse, tomal-a-hia pela deusa da caça, nas horas em que desce ao seio dos bosques a procurar Endymião. Ha na sua attitude um mixto indizivel de languidez e de pudor, um não sei que de casta voluptuosidade, que lhe namoraria os olhos, como a mim m’os namora, captivando-me o espirito. És linda, Margarida! --Alberto! interrompi eu, escondendo a fronte ruborisada nas mãos trementes. Elle cingiu-me com um braço, e puxando-me para si, e obrigando-me ao mesmo tempo com dôce violencia a reclinar o rosto, de fórma que a lua m’o illuminava em cheio, continuou: --És linda! és linda! quero gravar bem no coração a tua imagem, as linhas do teu semblante, a luz do teu olhar! Quereria até poder captivar e reter na urna do meu peito esse perfume inebriante e impalpavel, que se exhala dos teus cabellos! E vou perder-te para sempre... para sempre... não ver-te mais, senão em sonhos. E hei de assim abandonar a ventura, quando a tenho nos meus braços, hei de eu mesmo precipitar-me das alturas do céu nas profundesas do inferno? Que tortura, não é? --E a minha, Alberto? --A tua ha de ser o desgosto que sentimos ao ver desfazer-se o devaneio de um instante, o desgosto da creança, quando desapparece o globo de agua de sabão, todo iriado e matisado de brilhantes côres pelos raios de sol, globo que um sopro creou e um sopro mata. Mas eu!... Este sonho formava parte integrante da minha existencia. Ainda que o julgasse irrealisavel, sempre uma vaga esperança me vinha segredar ao ouvido ineffaveis consolações. Mas agora, filha, agora nem isso me é permittido! morreu para sempre, morreu o pobre sonho, o meu constante companheiro, o meigo irmão da minha alma! E apertava-me convulso ao peito, e embebia nos meus os seus olhos desvairados. Afastava-me os cabellos da fronte com os dedos tremulos, e o seu bafo acariciava-me os labios, dôce e casto como o beijo de um anjo. --E podia comtudo ser feliz, Margarida! Se calcasse aos pés as leis do mundo e as da honra, se te pedisse que fugissemos d’aqui para um recanto ignorado do mundo, onde houvesse luar, canticos e aromas! Para a Italia, para Napoles, á beira d’esse formoso golpho, por baixo d’esse céu azul, n’esse solo ardente, requeimado pela lava do Vesuvio, como o meu peito pela fervente lava d’este amor. Alli de todos nos esqueceriamos; alli podiamos prolongar infinitamente estes rapidos instantes. Margarida! tu não podes viver n’esta atmosphera de gelo, n’esta casa maldita; o teu destino é o meu, são eguaes os nossos fados. Vem, vem comigo, arrojemo-nos cégamente para este pelago de paixões, unico elemento onde póde viver o nosso espirito férvido. Vem, devoremos em Napoles em alguns annos uma existencia de seculos, até que morrâmos juntos sobre o tumulo do poeta de Dido, ou na praia sonora, onde nasceu o vate de Armida. E arrastava-me com impeto febril. E eu dizia-lhe: --Alberto, não queiras macular o nosso tão casto sonho. Estes devaneios, que fórmas, bastantes vezes me acariciaram, mas repelli-os sempre, mas quero ainda hoje repelli-os. Amo-te, amo-te loucamente, hei de amar-te sempre: leva esta confissão minha para consolo dos teus dias attribulados. Mas a flor secca, Alberto, a flor que guardo no meu seio é o symbolo do nosso amor. Não tentemos dar-lhe novo perfume, e viço novo, á custa de um sacrilegio. O tufão da desgraça merecida dispersar-lhe-hia as folhas, e que dôr, que immensa dôr não seria-a nossa! Amo-te, Alberto, mas deixa-me fugir-te. --Não! não! tornava elle, basta de vãs loucuras, de sacrificios vãos! És minha, só minha. Dá-me o amor sobre ti direitos inalienaveis. Se o remorso nos saltear, morreremos, mas morreremos juntos. Que importa? Morreremos enlaçados, na flôr dos annos. É esse o destino d’aquelles a quem ama a céu. --Alberto! Alberto, o teu amor é o louco amor inspirado pelo paganismo, e não o que se purifica nas aras de Jesus. O amor, que triumpha sobre as ruinas do dever e da honra, não póde ser abençoado por Deus. --Deus! se existe, não póde separar os que se amam. --E o dever, e a amisade que te ligam a Claudio, e a consciencia? Oh! se cedesses a esta impia tentação, o teu anjo da guarda velaria com as mãos o rosto indignado. --O meu anjo da guarda, Margarida! O meu anjo da guarda és tu! --Não, Alberto, é o espirito de tua mãe! Elle parou, e soltando as mãos que me cingiam o corpo, levou-as aos olhos, d’onde lhe irrompia o pranto; depois, voltando a mim, e tomando-me a cabeça nas mãos, beijou-me os labios, dizendo-me: --E tu és o anjo do sacrificio. Adeus. Adeus para sempre! E fugiu. Eu caí prostrada e soluçando aos pés da estatua. Quando levantei a fronte, vi deante de mim um vulto, cujo rosto estava mais pallido do que o marmore, que eu regara com as minhas lagrimas. Era Claudio. XXII Esta apparição, que n’outro momento me impressionaria immenso, não conseguiu tirar-me da lethargia, em que me prostrara a terrivel scena, que houvera entre mim e Alberto. Fitei um olhar estupido no rosto de meu marido. Annuviava-lhe a fronte uma profunda tristeza, mas nos seus olhos, d’onde desapparecera a vaga desconfiança que era a sua expressão habitual, transluzia não sei que meiga bondade, e que suavissima ternura. Curvou-se brandamente para mim, e disse-me com voz cheia de lagrimas: --Quando me perdoará, Margarida? Eu olhei para elle com indizivel espanto, e murmurei: --Perdoar-lhe eu? --Oh! bem sei que sou indigno de perdão; mas quando souber quanto eu soffri, quando souber que diversos e innumeros golpes me alancearam por tão longo espaço! quando comprehender bem o meu caracter fraco, incerto, impellido por cada sopro extranho, cedendo machinalmente a qualquer influencia, talvez me desprese, mas absolva. E depois, muito depois, é possivel que um raio de affecto venha doirar a compaixão, que eu lhe inspire. --Affecto! exclamei no auge da exaltação, mas não sabe que mesmo agora, ha um instante apenas, votei a outro homem um amor immenso e eterno? Não sabe que a minha alma voou para bem longe d’aqui, nos labios d’esse homem que m’a colheu n’um beijo? não sabe que sou uma mulher adultera, indigna de perdão, porque me ufano do meu crime? Um soluço doloroso, afogado na garganta fez arfar com violencia o peito de Claudio. Lagrimas como punhos saltaram-lhe dos olhos, e rolaram-lhe pelas faces lividas. Estendeu a mão como para me pedir que não continuasse, e esteve um instante sem poder fallar. --Sei; disse por fim, sei tudo. Avisado por minha tia de que se havia de realisar esta entrevista, tive a fraqueza de os vir espiar. A inquietação e o desasocego fizeram com que me adeantasse ás horas marcadas. Esse caso fatal ou feliz proporcionou-me ensejo de assistir a uma scena que me fez soffrer o duplo tormento do ciume e do remorso. Pude apreciar, n’esta hora de grande provação para o seu espirito, a nobreza do seu caracter, de que tão indigno me tenho mostrado. Porque, devo confessar-lh’o, amo-a com um amor, bem que menos poetico, pelo menos tão grande ou maior do que a paixão, que Alberto lhe consagrou. --Quem o havia de dizer? murmurei eu com dolorosa ironia. --Tem rasão, tem, tornou elle sem reprimir as lagrimas. Esmague-me com o peso do seu odio, mas ouça-me: Educado severamente no seio d’uma familia de idéas acanhadas, cedo me costumei a esconder no mais recondito do peito os meus sentimentos, porque, se os manifestava, ia excitar tempestades, que me obrigavam a retratar-me de novo. Todos me dominavam; meus paes, e meus tios. Consideravam-me como uma creança, cujos maus instinctos deviam ser reprimidos, e as minhas aspirações para um mundo mais elevado eram castigadas como crime. Depois da morte de meus paes, minha tia, ainda que mais velha do que eu em poucos annos, continuou a exercer sobre mim um dominio indisputado. Só uma vez me rebellei: foi quando se tratou do meu casamento. O amor que me inspirara, foi mais poderoso do que o habito. Casei contra vontade d’ella. Vingou-se cruelmente. Preciso de lhe contar as insinuações, as calumnias, com que D. Antonia tentou semear a sizania entre nós ambos? Não, porque era repetir-lhe a dolorosa historia dos seus e dos meus tormentos. A timidez selvagem da minha indole impedia-me de provocar uma explicação, que podia pôr termo a este penoso estado. A desconfiança augmentava a minha reserva; a sua indifferença excitava-a ainda mais. Foi-se envenenando a ferida com as apparencias, cada vez mais illusorias. Suppuz que um outro amor lhe vendava os olhos, que não viam sob a minha frieza exterior o fogo da paixão. Transformou-se em realidade esta minha suspeita. Recresceu a minha dôr, e principalmente o meu desalento. Sentia-me culpado, não podia criminar a pomba, a quem estramalham o ninho, e que vôa tonta pelos ares e tonta vae poisar n’um ramo de arvore estranha. Mas apesar d’isso, uma sombria tristeza se apoderara de mim; torturava-me a duvida. «Serão culpados, pensava eu, ou resistem ao sentimento, que se lhes está apossando dos corações?» Ora pensava que o despeito e o desgosto a teriam levado a esse estado, ora acreditava que era esse um amor antigo que habilmente me disfarçara. Taes suspeitas alimentava-as minha tia, fazendo sobresair a indifferença evidente, com que me aceitara por marido. --E não suspeitava, tornei amargamente, que essa indifferença, não era mais do que a despreoccupação da creança, que ainda não sentiu o amor, e cuja alma immaculada é como livro branco, prompto a receber as primeiras estrophes, que lhe queiram traçar nas folhas! Sempre a supposição mais injuriosa! --Oh! perdôe-me, Margarida. Isso que me diz entreluziu-me vagamente, como clarão d’aurora por entre as sombras da noite. Pensei no encanto que teria para mim esse amor, que fosse brotando a pouco e pouco entre as doçuras da intimidade, cada vez mais estreita; mas as insinuações de D. Antonia mataram-me o devaneio, e na constrangida ligação que tivemos, não encontrei nunca animação para a empreza. Que funestas consequencias teve esse engano, em que ambos laboravamos! Os nossos dois corações, que talvez voassem um para o outro, assim se conservaram isolados, e hoje... Interrompeu-se tapando com as mãos o rosto inundado de lagrimas. Commoveu-me a dôr d’esse homem, que fôra a causa do meu infortunio, mas cuja falta era tão nobremente resgatada pela inexcedivel generosidade do seu procedimento. --Hoje é tarde, Claudio, disse-lhe eu tomando-lhe as mãos e apertando-lh’as brandamente; a ferida do meu coração é muito profunda, e receio que nunca cicatrise. Mas descance que o não hei de torturar com o espectaculo dos meus tormentos. Viu que tive força bastante para lhe salvar a honra, tel-a-hei para lhe não perturbar a tranquillidade. Não lhe prometto amor, que seria enganal-o, mas affecto d’irmã, esse já m’o conquistou. Bem sei que é estranho este modo de fallar d’uma mulher a seu marido, mas á sua franqueza com igual franqueza correspondo. Se o destino não consentiu que se formasse entre nós uma ligação mais doce, vinguemo-nos dos seus golpes unindo-nos em fraternal alliança. Juntos resistiremos melhor aos ataques da vibora, que nos envenenou a existencia, e o nosso sanctuario, onde habitarão a paz e a amisade, não será ao menos profanado pela intriga e pela calumnia. Acceita esta alliança? --Se acceito, Margarida! É esse o meu ideal agora, e não sou tão insano que faça voar mais alto a minha ambição. Está feito o mal, e se não tem remedio, tenha pelo menos allivio. Que balsamo mais doce podia eu desejar do que a sua amisade, e uma esperança... louca talvez, mas que lhe imploro que me deixe! Sorri-me tristemente, e não lhe respondi. --Oh! exclamou elle, dando mostras da mais violenta afflicção, o castigo é horrivel, mas é justo. Essa esperança bem vejo que é uma loucura; offendi-a cruelmente, e consenti que a offendessem. Deixei que lançasse profundas raizes essa planta, que hoje me rouba toda a sua vida, todo o seu coração. A lucta é impossivel com um rival, cujo prestigio a ausencia augmenta e eternisa. Essa estranha fidelidade a um amor impossivel é digna da sua alma, e, fazendo-me soffrer, inspira-me admiração! Agora é que eu avalio o thesouro, que perdi, e que perdi por minha culpa. --Claudio, meu amigo, dizia-lhe eu embaraçada e tentando acalmar a violencia da sua dor, não se afflija assim. É uma desgraça irremediavel, e... quem sabe, (se o meu amor tem tanto apreço aos seus olhos) quem sabe as mudanças, que o tempo pode produzir? Orgulhosa seria se me julgasse isenta de todas as fraquezas da humanidade! Talvez eu seja como tantas outras, talvez o que julgo eterno será passageiro. A custo proferia estas palavras que me saíam dos labios, não do coração. Eram uma impiedade, uma blasphemia, mas tambem eu não podia deixar soffrer um homem que já tanto soffrera por minha causa, e que eu via alli prostrado, desalentado, matando-lhe desapiedadamente a mais ligeira esperança, negando-lhe a mais innocente consolação. --Pois bem, disse-me elle erguendo a cabeça, só uma coisa lhe peço, e espero que m’a conceda: sei que possue uma flor secca, memoria querida d’esse amor que tão animosamente sacrificou. Bem sei que não tenho direito de lh’a pedir, mas prometta-me que, no dia em que sentir um affecto mais suave succeder á amisade que tão cordealmente me offerece, me ha de entregar essa flor. Quando eu a receber saberei que estão coroados os meus votos, realisados os meus sonhos. Promette fazer o que lhe peço? --Prometto, respondi, estendendo-lhe a mão; mas, meu pobre amigo, parece-me que a pobre flor se ha de desfolhar sobre o meu tumulo. --Sobre os nossos tumulos, diga antes. Depois de ter alimentado esta esperança, o dia em que ella se desvanecer será o da minha morte. Emmudeci. Elle cingiu-me, para assim dizer, com um longo, terno e doloroso olhar, e depois, sacudindo a cabeça, como para expulsar os pensamentos que na mente lhe referviam, tirou o relogio da algibeira, e viu ao luar as horas. --Duas! disse elle. Se me não engano, vamos ter novidade. Pelo que deduzi de algumas palavras soltas, que minha tia e a condessa trocaram esta noite, do facto de terem a condessa e D. Carolina voltado em segredo depois de haverem saido ostensivamente, e de vagas ameaças que minha tia me fez, quando me deu o ultimo aviso, no caso de eu não cumprir o grande desejo d’ella, pareceu-me que essas dignissimas pessoas conceberam o projecto de apparecerem de subito no jardim, para produzirem um escandalo, que tornasse inevitavel a nossa separação. E effectivamente, continuou pondo o ouvido á escuta, creio que ouço passos abafados como de quem toma precauções para que o não sintam. Apurei tambem o ouvido, e percebi com effeito, vagos rumores que mal se distinguiam do murmurio da brisa; mas, affastando levemente a cortina de buxo, vi scintillarem nas ruas do jardim frouxos clarões, como lanternas de furtafogo. --Dê-me o braço, disse-me meu marido, em voz baixa. Encostei-me ao braço d’elle, e ambos nos dirigimos vagarosamente para uma das extremidades da rua, como se andassemos saboreando placidamente a frescura da noite. Tinhamos dado apenas alguns passos, quando subito, e, como se fosse a um signal convencionado, appareceram luzes por todas as bandas, e os vultos de D. Antonia, de D. Carolina, da condessa e de Maria do Rozario surgiram magestosamente, trazendo cada um d’esses quatro personagens um candieiro ou um castiçal na mão. As luzes, que tinham resguardado por baixo das capas ou dos chales, inundaram de fulgor a rua escassamente allumiada pelo luar, e, batendo em cheio na estatua, cingiram-na com esplendido manto. Um passarinho, adormecido na espessura, despertou saudando esta ficticia aurora. Eu e Claudio parámos tranquillamente relanceando os olhos com espanto comico para os quatro actores, que tinham entrado em scena, e que nos miravam estupefactos. --O que é isto? perguntou Claudio desfechando uma sonora gargalhada. Temos scena final de melodrama? Abre-se a porta do fundo, e apparece o tyranno, rodeado de soldados e de luzes? --Caso de grande monta deve ser, acudi eu logo, porque vejo aqui a senhora condessa e a senhora D. Carolina, que a estas horas julgava que dormiam muito socegadas nas suas camas! Ellas não diziam palavra, mas voltavam os olhos pasmados, ora umas para outras, ora para nós. Era tão comico o seu desapontamento que eu desatei a rir. A D. Antonia parece que trazia o discurso estudado, porque não o quiz perder de todo, e ainda principiou: --Minha sobrinha... aqui... a estas horas... --A passear comigo, acudio Claudio, então que tem? A tia parece-me somnambula! --E estão sós? exclamou levianamente a condessa. --Pois com quem haviamos de estar? continuou elle. Vossa excellencia esperava aqui alguem, ou alguem lhe prometteu vir aqui esperal-a? Nada, estamos sós, e devemos confessar que não contavamos ser surprehendidos. Andavamo-nos deliciando com as frescas emanações de uma noite de estio. N’estas noites foge-nos o somno das palpebras, e reconhece-se a verdade do que diz um poeta francez: _On ne dort qu’à demi d’un sommeil transparent_ D’esta vez todas nós olhámos estupefactas para Claudio; nunca o tinhamos visto tão expansivo. Parecia que o jubilo, innundando-lhe o coração, lhe trasbordava em torrentes de palavras. O meu amor proprio não podia deixar de ser affagado um pouco pela idéa de que só uma levissima esperança pudera transformar o caracter de meu marido. Comtudo a posição estava sendo ridicula para os quatro conspiradores. Era preciso sairem d’ella a todo o custo. Encarregou-se de preparar uma retirada airosa a fertil imaginação de Carolina. Improvisou uma historia de ladrões, que as tinham assustado ao irem para suas casas, motivo por que tinham voltado para traz: explicou a sua visita ao jardim pelo desejo de lhe explorarem os meandros a fim de se certificarem que não havia homens escondidos n’algum canto. Ouvi esta historia com um sorriso nos labios, Claudio com ironica attenção, interrompendo-a a cada passo com exclamações de zombeteiro espanto. Quando ella acabou, não pude deixar de dizer, sorrindo: --São poetas os bandidos! Escolhem noites de luar, claras e transparentes, para fazerem as suas excursões! Estou que, antes de nos roubarem, não haviam deixar de nos dar uma serenata. --É possivel, respondeu ella amargamente, em todo o caso não seria eu quem a ouvisse. --Com muita pena sua, não é verdade, senhora D. Carolina? Não me respondeu. Entretanto travara-se um dialogo em voz baixa entre Claudio e D. Antonia. Só pude perceber as ultimas palavras: --Has de sempre ser um tolo, Claudio, dizia-lhe ella. --Favores, tia, favores seus. Mas olhe que estou sendo agora tolo... e teimoso! D. Antonia ergueu ao céu os olhos lacrymosos, e preparou-se para ter um ataque de nervos. Mas lembrou-se que estava o chão do jardim humido com o orvalho que principiava a cair, e houve por bem adial-o para outra occasião. Todas quatro se retiraram para casa, justificando um proverbio portuguez muito conhecido, que diz respeito aos tosquiadores de lã. Nós seguimol-as de longe, com passos vagarosos, indo eu encostada ao braço de meu marido. A lua brilhava serena e limpida no firmamento azul, e a aragem, meneando a copa do pecegueiro e as corollas das rosas, colhia perfumes, que pagava com murmurios. * * * * * Passado um mez, partiamos, eu e meu marido, para uma viagem na Europa. Era este o unico meio de nos esquivarmos ás iras de D. Antonia, e de fugirmos ás pungentes recordações que despertava no nosso espirito cada sitio onde tinhamos passado uma existencia attribulada. A imagem pensativa de Alberto não me deixou um instante só, durante os dois primeiros annos da nossa excursão. Visitou comigo Pompeia, a resurgida cidade; Napoles, a voluptuosa; Palermo, a afortunada; a historica Roma; a artistica Florença; a aristocratica Genova; a melancholica Veneza; Milão, berço da moderna poesia italiana; Turin, berço da liberdade. Saimos da Italia, e percorremos a Allemanha. Ahi a imagem de Alberto interpoz-se menos vezes a mim e ás paizagens grandiosas, aos castellos gothicos e ás floridas cathedraes do Rheno. Muitas vezes, meu marido, quando a conversação entre nós ambos se tornava mais expansiva, me perguntava o que era feito da flor secca. Mas eu descorava, apertava-lhe a mão e ficava silenciosa. Salteava-o então dolorosa melancholia, e estava longas horas sem proferir palavra. Comtudo haviamos percorrido juntos a Allemanha toda, e passavamos a França, quando em Colonia nos vimos forçados a parar por minha causa. Ahi dei uma filha a Claudio. Não posso pintar o seu jubilo! Eu sentia-me tão feliz por ser mãe, contemplava tão enlevada os olhos azues e as faces mimosas da minha filhinha, que, vendo Claudio debruçado sobre o berço com o mesmo enlevo, cheguei a pensar que o amor antigo desapparecera afinal, e que essa creança fôra o anjo, enviado por Deus para enlaçar os nossos dois corações, lacerados por tantos martyrios. Por isso uma noite, em que ambos miravamos a creança, deitada no berço, e que olhava para nós com os seus grandes olhos pasmados e vagos, e levantava para mim as suas mãosinhas brancas como brancos lyrios, pareceu-me ouvir a voz de Deus, que me ordenava que completasse o sacrificio, principiado havia tres annos. Tirei a flor secca do peito, e deixei-a cair no berço da nossa filha. Claudio soltou um grito de jubilo, caiu-me aos pés banhado em lagrimas. N’esse instante fui verdadeiramente feliz. Ai! devo confessal-o? passou rapido esse momento. Assomou-me de novo na phantasia o vulto de Alberto, chamado pelos remorsos que sentia, de ter trahido o juramento que lhe fizera. E depois, meu marido tinha um coração excellente... mas aquelle nobre typo de Alberto possuia um inexcedivel prestigio. Voltámos a Portugal. Tornámos a ver a nossa casa da Cruz das Almas, e a nossa quinta de Bellas. Em todos esses sitios me esperavam milhares de recordações, emboscadas nas ramarias das arvores, aninhadas no teclado do piano! Indaguei por intermedio de Theodoro Leite a quem meu marido, antes de se ausentar, assegurara uma posição independente, o que fôra feito de Alberto. Soube que partira para as possessões de Africa occidental, com um emprego na administração. Póde-se isto considerar um verdadeiro suicidio. Resistirá a sua organisação tão delicada áquelle mortifero clima? Redobrou com estas noticias a minha tristesa, tristesa que me vae matando, pela necessidade que tenho de a disfarçar. A minha consolação unica é minha filha. Vejo crescer aquella formosa flor confiada aos meus disvellos, e peço a Deus que a preserve dos ventos frios, e das geadas que me mataram o viço. Ás vezes quando vejo passar D. Antonia com os mesmos modos pretenciosos, o mesmo olhar onde transparece a mesma ironia parva, fuzila-me nos olhos um sentimento de odio. Não, mil vezes não: nunca teria pensado em Alberto, se não fosse a teima de D. Antonia em me attribuir maus pensamentos. Felizmente agora já me não póde fazer mal. A intimidade affectuosa que existe entre mim e meu marido é solido broquel, onde se partem todas as settas, que ella nos dirige. Mas que importa que se esmague a serpente com o pé, se ella já pôde morder, e entornar a peçonha na ferida? A victima vae definhando a pouco e pouco, até cair prostrada no regaço consolador do anjo da morte. FIM Collecção ANTONIO MARIA PEREIRA VULGARISAÇÃO DOS MELHORES LIVROS DAS LITTERATURAS PORTUGUEZA E ESTRANGEIRAS Romances, Contos, Viagens, Historia, etc., etc. Volumes in-8.º de 160 a 240 paginas, em corpo 8 ou 10, excellente edição, em optimo papel, elegantemente encadernado em percalina. Volumes publicados 1--Tristezas á beira-mar, por Pinheiro Chagas. 2--Contos ao luar, por Julio Cesar Machado. 3--Carmen, trad. de M. Level. 4--A Feira de Paris, por Iriel. 5--O direito dos filhos, por George Ohnet. 6--John Bull e a sua ilha, trad. de P. Chagas. 7--Esgotado. 8--A lenda da meia noite, por M. Pinheiro Chagas. 9--A joia do vice-rei, por P. Chagas. 10--Vinte annos de vida litteraria, por A. Pimentel. 11--Honra d’artista, trad. de P. Chagas. 12--Esgotado. 13 e 14--A aventura d’um polaco, trad. de Maria A. Vaz de Carvalho. 15--Os contos do Tio Joaquim, por R. Paganino. 16--Esgotado. 17--Noites de Cintra, por Alberto Pimentel. 18 e 19--Esgotado. 20 e 21--A irmã da caridade, por Emilio Castellar, trad. de L. Q. Chaves. 22--Migalhas de historia portugueza, por P. Chagas. 23--Esgotado. 24--Contos, por Affonso Botelho. 25--Esgotado. 26--O mysterio da estrada de Cintra, por Eça de Queiroz e R. Ortigão. 27--O naufragio de Vicente Sodré, por Pinheiro Chagas. 28--Vida airada, por Alfredo Mesquita. 29--O bacharel Ramires, por Candido de Figueiredo. 30 e 31--Amor á antiga, por Caïel. 32--As netas do Padre Eterno, por A. Pimentel. 33--Contos, por Pedro Ivo. 34--O correio de Lyão, por Pierre Zaccone. 35--Vida de Lisboa, por Alberto Pimentel. 36--Historias de frades, por Lino d’Assumpção. 37--Obras primas, por Chateaubriand. 38--O exilado, por Mauricia C. de Figueiredo. 39--Poema da Mocidade, por Pinheiro Chagas. 40 e 41--A vida em Lisboa, por Julio Cesar Machado. 42 e 43--Espelho de portuguêses, por Alberto Pimentel. 44--A fada d’Auteuil, trad. de Pinheiro Chagas. 45--A volta do Chiado, por E. de Barros Lobo. 46--Séca e Méca, por Lino d’Assumpção. 47--Ninho de guincho, por Alberto Pimentel. 48--Vasco, por A. Lobo d’Avila. 49--Leituras ao serão, por A. X. Rodrigues Cordeiro. 50--Luz coada por ferros, por D. Anna A. Placido. 51--A flôr sêcca, por P. Chagas. 52--Relampagos, por Armando Ribeiro. 53--Historias rusticas, por Virgilio Varzea. 54--Figuras humanas, por Alberto Pimentel. 55--Dolorosa, por Francisco Acebal, trad. de Caïel. 56--Memorias de um fura-vidas, por A. de Mesquita. 57--Dramas da côrte, por Alberto de Castro. 58--Os mosqueteiros d’Africa, por Mendes Leal. 59--A divorciada, por José Augusto Vieira. 60--Phototypias do Minho, por J. Augusto Vieira. 61--Insulares, por Moniz de Bettencourt. 62 e 63--Historia da civilisação na Europa, trad. do Marquez de Sousa Holstein. 64--Triplice alliança, de Raul de Azevedo. 65--Retalhos de verdade, por Caïel. 66--A pasta d’um jornalista, pelo Visconde de S. Boaventura. 67--Os argonautas, por Virgilio Varzea. 68--Fitas de animatographo, por Alberto Pimentel. 69 e 70--Poesias do Abbade de Jazente, annotadas por Julio de Castilho. 71--Aspectos e sensações, de Raul d’Azevedo. 72--Contos e narrativas, por P. W. de Brito Aranha. 73--Quadros e letras, historias e romancêtes, por Sanches de Frias. 74--Individualidades, por Henrique das Neves. 75--Alfacinhas, por Alfredo de Mesquita. 76--Patria amada, pelo Visconde de S. Boaventura. 77--Historias e romancêtes, por Sanches de Frias. 78--Esbocetos individuaes, por Henrique das Neves. 79--Recordações da mocidade, por Adolpho Loureiro. 80--Sorrisos, novellas e chronicas, por A. Campos. 81--Lucta de sentimentos, por Maria O’Neill. 82--Do Rocio ao Chiado, por P. de Vasconcellos. 83--A dança do destino, por Luthgarda de Caires. 84--Um drama de ciume, por Maria O’Neill. 85 e 86--Resumo da origem de todos os cultos, por C. F. Dupuis. 87--Vencido, romance por F. A. M. de Faria e Maia. 88--Elogio da loucura, critica de costumes, por Erasmo. OUTRAS OBRAS Azevedo (Domingos de) Diccionario (Grande) contemporaneo francez-portuguez e v. v. No prelo a 2.ª edição, muito correcta e extremamente augmentada, enc. 12$000 rs. Grammatica da lingua franceza, enc. 1$200 rs. Grammatica Nacional, para aprender portuguez sem mestre, enc. 2$000 rs. Lições praticas de conversação franceza, enc. 500 rs. Ollendorff aperfeiçoado para aprender francez sem mestre, (2 vol.), enc. 3$000 rs. Carvalho (D. Maria Amalia Vaz de) Ao correr do tempo, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Arte de viver na sociedade, br. 1$000 rs., enc. 1$800 rs. Aventura de um polaco, (2 vol.), br. 600 rs., enc. 1$000 rs. Cartas a uma noiva, br. 900 rs., enc. 1$300 rs. Cerebros e corações, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Chronicas de Valentina, br. 900 rs., enc. 1$300 rs. Coisas d’agora, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Contos e phantasias, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Em Portugal e no estrangeiro, br. 1$000 rs., enc. 1$400 rs. Figuras de hoje e de hontem, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Heroismo do clero, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Impressões de historia, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. No meu cantinho, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Nossas filhas, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Pelo mundo fóra, br. 650 rs., enc. 1$050 rs. Raphael, trad. de Lamartine, (ed. de luxo), enc. 3$600 rs. Pinto (Silva) (COLLECÇÃO D’ALGIBEIRA) A 650 rs. br. e 1$000 rs. enc. A queimar cartuchos. A torto e a direito. Ao correr do pello. Entre nós. Frente a frente. Moral de João Braz. Mundo (O) furta-côres. Na Procella. Na travessia. N’este valle de lagrimas. No colyseu. No mar morto. Para o fim. Philosophia de João Braz. Por este mundo. Riso amarello. Rompendo o fogo. Velha historia. Queiroz (Dr. Teixeira de) Amores... amores..., br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Arvoredos, br. 1$000 rs., enc. 1$300 rs. Cantadeira (A), br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Caridade (A) em Lisboa, (2 vol.), br. 1$200 rs., enc. 2$000 rs. Cartas d’amor, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. D. Agostinho, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Morte de D. Agostinho, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Noivos (Os), (2 vol.), br. 1$200 rs., enc. 2$000 rs. Nossa (A) gente, br. 650 rs., enc. 1$050 rs. Sallustio Nogueira, (2 vol.), br. 1$200 rs., enc. 2$000 rs. Amor Divino, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Famoso Galrão, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. Ao sol e á chuva, br. 750 rs., enc. 1$150 rs. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 69353 ***