POR
JOAQUIM NABUCO
DA ACADEMIA BRAZILEIRA
E DO INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAPHICO
H. GARNIER, LIVREIRO EDITOR
71-73, RUA MOREIRA CEZAR, 71-73
RIO DE JANEIRO
6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6
PARIS
MINHA FORMAÇÃO
Um Estadista do Imperio, Nabuco de Araujo, Sua Vida, Suas Opiniões, Sua Epocha.
3 vol. in-4º, enc., 45$000; — br., 30$000.
MINHA FORMAÇÃO
POR
JOAQUIM NABUCO
DA ACADEMIA BRASILEIRA
E DO INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAPHICO
H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
71-73, RUA MOREIRA CEZAR, 71-73
RIO DE JANEIRO
6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6
PARIS
1900
Foram tirados d’esta edição 50 exemplares numerados em papel de Hollanda, os quaes levam a rubrica do auctor.
A [Pg vii] MEUS FILHOS
A maior parte de Minha Formação appareceu primeiro no Commercio de S. Paulo, em 1895; depois foi recolhida pela Revista Brazileira, cujo agasalho nunca me faltou... Os capitulos que hoje accrescem são tomados a um manuscripto mais antigo. Só a conclusão é nova. Na revisão, entretanto, dos diversos artigos foram feitas emendas e variantes. A data do livro para a leitura deve assim ser 1893-99, havendo nelle idéas, modos de vêr, estados de espirito, de cada um d’esses annos. Tudo o que se diz sobre os Estados-Unidos e a Inglaterra foi escripto antes das guerras de Cuba e do Transvaal, que marcam uma nova éra para os dois paizes. Algumas das allusões a amigos, como a Taunay e a Rebouças, hoje fallecidos, foram feitas quando elles ainda viviam. Foi para mim uma simples distracção reunir agora estas paginas: seria, porém, mais[Pg viii] do que isso uniformal-as e querer eliminar o que não corresponde inteiramente ás modificações que soffri desde que ellas primeiro foram escriptas.
Agora que ellas estão deante de mim em fórma de livro, e que as releio, pergunto a mim mesmo qual será a impressão d’ellas... Está ahi muito da minha vida... Será uma impressão de volubilidade, de fluctuação, de dilettantismo, seguida de desalento, que ellas communicarão? Ou antes de consagração, por um voto perpetuo, a uma tarefa capaz de saciar a sêde de trabalho, de esforço e de dedicação da mocidade, e sómente realisada a tarefa da vida, saciada aquella sêde,—ainda mais, transformada por um terremoto a face da epocha, creado um novo meio social, em que se tornam necessarias outras qualidades de acção, outras faculdades de calculo para luctas de diverso caracter,—a renuncia á politica, depois de dez annos de retrahimento forçado, e deante de uma seducção intellectual mais forte, de uma perspectiva final do mundo mais bella e mais radiante?... Sed magis gratiarum actio...
No todo a impressão, eu receio, será misturada; as deficiencias da natureza apparecerão, cobertas pela clemencia da sorte: vêr-se-ha o ephemero e o fundamental... Em todo o caso não precisarei de pleitear minha propria causa, porque ella será[Pg ix] sempre julgada pela raça mais generosa entre todas... Si alguma cousa observei no estudo do nosso passado, é quanto são futeis as nossas tentativas para deprimir, e como sempre vinga a generosidade... Infeliz de quem entre nós não tem outro talento ou outro gosto sinão o de abater! A nossa natureza está votada á indulgencia, á doçura, ao enthusiasmo, á sympathia, e cada um póde contar com a benevolencia illimitada de todos... Em nossa historia não haverá nunca Inferno, nem siquer Purgatorio.
Não dou, entretanto, o bon à tirer a este livro, sinão porque estou convencido de que elle não enfraquecerá em ninguem o espirito de acção e de lucta, a coragem e a resolução de combater por idéas que repute essenciaes, mas sómente indicará algumas das condições para que o triumpho possa ser considerado uma victoria nacional, ou uma victoria humana, e para que a vida, sem ser uma obra d’arte, o que é dado a muito poucas, realise ao menos uma parcella de belleza, e quando não tenha o orgulho de ter reflectido brilhante sobre o paiz, tenha o consolo de lhe haver sido carinhosamente inoffensiva.
A politica, entretanto, não foi a minha impressão dominante ao traçar estas reminiscencias... Eu já me achava então fóra d’ella.
[Pg x]
«Esta manhã, casaes de borboletas brancas, douradas, azues, passam innumeras contra o fundo de bambús e samambaias da montanha. E um prazer para mim vêl-as voar, não o seria, porém, apanhal-as, pregal-as em um quadro... Eu não quizera guardar d’ellas sinão a impressão viva, o fremito de alegria da natureza, quando ellas cruzam o ar, agitando as flôres. Em uma collecção, é certo, eu as teria sempre deante da vista, mortas, porém, como uma poeira conservada junta pelas côres sem vida... O modo unico para mim de guardar essas borboletas eternamente as mesmas, seria fixar o seu vôo instantaneo pela minha nota intima equivalente... Como com as borboletas, assim com todos os outros deslumbramentos da vida... De nada nos serve recolher o despojo; o que importa, é só o raio interior que nos feriu, o nosso contacto com elles... e este como que elles tambem o levam embora comsigo.»
Este traço indecifravel, com que, em Petropolis, tentei ha annos marcar uma impressão de que me fugia o contorno animado, explicará as lacunas d’este livro e muitas de suas paginas...
J. N.
San-Sebastian (Guipúzcoa), 8 de Abril de 1900.
[Pg 1]
MINHA FORMAÇÃO
Não preciso remontar ao collegio, ainda que alli, provavelmente, tenha sido lançada no subsolo da minha razão a camada que lhe serviu de alicerce: o fundo hereditario do meu liberalismo. Meu pae nessa epocha (1864-1865) tinha terminado a sua passagem do campo conservador para o liberal, marcha inconscientemente começada desde a Conciliação (1853-57), consciente, pensada desde o discurso que ficou chamado do uti possidetis (1862). Houve diversas migrações em nossa historia politica do lado liberal para o conservador. Os homens da Regencia, que entraram na vida publica ou subiram ao poder representando a idéa de revolução, foram com a madureza dos annos restringindo as suas aspirações, aproveitando a experiencia,[Pg 2] estreitando-se no circulo de pequenas ambições e no desejo de simples aperfeiçoamento relativo, que constitue o espirito conservador. O senador Nabuco, porém, foi quem iniciou, guiou, arrastou um grande movimento em sentido contrario, do campo conservador para o liberal, da velha experiencia para a nova experimentação, das regras hieraticas de governo para as aspirações ainda informes da democracia. Elle é quem encarnará em nossa historia,—entre a antiga «oligarchia» e a Republica, que deve sahir della no dia em que a escravidão se esboroar,—o espirito de reforma. Elle é o nosso verdadeiro Luthero politico, o fundador do livre-exame no seio dos partidos, o reformador da velha egreja saquarema, que, com os Torres, os Paulinos, os Eusebios, dominava tudo no paiz. Zacharias, Saraiva, Sinimbú, com os seus grandes e pequenos satellites, Olinda mesmo, em sua orbita independente, não fazem sinão escapar-se pela tangente que elle traçou com a sua iniciativa intellectual, a qual parece um phenomeno da mesma ordem que o prophetismo e que, por isso mesmo, só lhe consentia ter em politica um papel quasi imparcial: o de oraculo.
No collegio eu ainda não comprehendia nada d’isto, mas sabia o liberalismo de meu pae, e nesse tempo o que elle dissesse ou pensasse era um dogma para mim: eu não tinha sido ainda invadido pelo espirito de rebeldia e independencia,[Pg 3] por essa petulancia da mocidade que me fará mais tarde, na Academia, contrapôr ás vezes o meu modo de pensar ao delle, em logar de apanhar religiosamente, como eu faria hoje, cada palavra sua.
Era natural que eu seguisse aos quinze e deze-seis annos a politica de meu pae, mesmo porque essa devoção era acompanhada de um certo prazer, de uma satisfação de orgulho. Entre as sensações da infancia que se me gravaram no espirito, lembra-me um dia em que, depois de lêr o seu Jornal, o inspector do nosso anno me chamou á mesa,—era um velho actor do theatro S. Pedro, que vivia da lembrança dos seus pequenos papeis e do culto de João Caetano,—para dizer-me com grande mysterio que meu pae tinha sido chamado a S. Christovão para organizar o gabinete. Filho de Presidente do Conselho foi para mim uma vibração de amor-proprio mais forte do que teria sido, imagino, a do primeiro premio que o nosso camarada Rodrigues Alves tirava todos os annos. Eu sentia cahir sobre mim um reflexo do nome paterno e elevava-me nesse raio: era um começo de ambição politica que se insinuava em mim. A atmosphera que eu respirava em casa, desenvolvia naturalmente as minhas primeiras fidelidades á causa liberal. Recordo-me de que nesse tempo tive uma fascinação por Pedro Luiz, cuja ode á Polonia, Os Voluntarios da Morte, eu sabia de cór. Depois,[Pg 4] a questão dos escravos, em 1871, nos separou; mais tarde a nossa camaradagem na Camara nos tornou a unir. Em casa eu via muito a Tavares Bastos, que me mostrava sympathia, todo o grupo politico da epocha; era para mim estudante um desvanecimento descer e subir a rua do Ouvidor de braço com Theophilo Ottoni; um prazer ir conversar no Diario do Rio com Saldanha Marinho e ouvir Quintino Bocayuva, que me parecia o joven Hercules da imprensa, e cujo ataque contra Montezuma, a proposito da capitulação de Uruguayana, me deu a primeira idéa de um polemista destemido.
Na situação em que fui para S. Paulo cursar o primeiro anno da Academia, eu não podia deixar de ser um estudante liberal. Desde o primeiro anno fundei um pequeno jornal para atacar o ministerio Zacharias. Meu pae, que apoiava esse ministerio escrevia-me que estudasse, me deixasse de jornaes e sobretudo de attitudes politicas em que se podia vêr, sinão uma inspiração, pelo menos uma tolerancia da parte delle. Eu, porém, prezava muito a minha independencia de jornalista, a minha emancipação de espirito: queria sentir-me livre, julgava-me compromettido perante a minha classe, a academica, e assim illudia, sem pensar desobedecer, o desejo de meu pae, que, provavelmente, não ligava grande importancia á minha opposição ao ministerio[Pg 5] amigo. Nesse tempo as Cartas de Erasmo, que produziam no paiz uma reviviscencia conservadora, me pareciam a obra prima da litteratura politica.
As minhas idéas eram, entretanto, uma mistura e uma confusão; havia de tudo em meu espirito. Avido de impressões novas, fazendo os meus primeiros conhecimentos com os grandes auctores, com os livros de prestigio, com as idéas livres, tudo o que era brilhante, original, harmonioso, me seduzia e arrebatava por egual. Era o deslumbramento das descobertas continuas, a efflorescencia do espirito: todos os seus galhos cobriam-se espontaneamente de rosas ephemeras.
As Palavras de um Crente de Lamennais, a Historia dos Girondinos de Lamartine, o Mundo caminha de Pelletan, os Martyres da Liberdade de Esquiros eram os quatro Evangelhos da nossa geração, e o Ashaverus de Quinet o seu Apocalypse. Victor Hugo e Henrique Heine creio que seriam os poetas favoritos. Eu, porém, não tinha, (nem tenho), systematisado, unificado siquer o meu lyrismo. Lia de tudo egualmente. O anno de 1866 foi para mim o anno da Revolução Franceza: Lamartine, Thiers, Mignet, Louis Blanc, Quinet, Mirabeau, Vergniaud e os Girondinos, tudo passa successivamente pelo meu espirito; a Convenção está n’elle em sessão permanente. Apezar disso, eu lia tambem Donoso Cortez e Joseph de Maistre,[Pg 6] e até escrevi um pequeno ensaio, com a infallibilidade dos dezesete annos, sobre a Infallibilidade do Papa.
Posso dizer que não tinha idéa alguma, porque tinha todas. Quando entrei para a Academia, levava a minha fé catholica virgem; sempre me recordarei do espanto, do desprezo, da commoção com que ouvi pela primeira vez tratar a Virgem Maria em tom libertino; em pouco tempo, porém, não me restava daquella imagem sinão o pó dourado da saudade... Ao catholicismo só vinte e tantos annos mais tarde me será dado voltar por largos circuitos de que ainda um dia, si Deus me dér vida, tentarei reconstruir o complicado roteiro. Basta-me dizer, por emquanto, que a grande influencia litteraria que experimentei na vida, a embriaguez de espirito mais perfeita que se podia dar, pelo narcotico de um estylo de timbre sem egual em nenhuma litteratura, o meu coup de foudre intellectual, foi a influencia de Renan.
Politicamente o fundo liberal ficou intacto, sem mistura siquer de tradicionalismo. Seria difficil colher-se em todo o meu pensamento um resquicio de tendencia conservadora. Liberal, eu o era de uma só peça; o meu peso, a minha densidade democratica era maxima. Nesse tempo dominava a Academia, com a seducção da sua palavra e de sua figura, o segundo José Bonifacio. Os leaders da Academia, Ferreira de Menezes,[Pg 7] que, apezar de formado, continuava academico e chefe litterario da mocidade, Castro Alves, o poeta republicano de Gonzaga, bebiam-lhe as palavras, absorviam-se nelle em extasis. Ruy Barbosa era dessa geração; mas Ruy Barbosa, hoje a mais poderosa machina cerebral do nosso paiz, que pelo numero das rotações e força de vibração faz lembrar os machinismos que impellem através das ondas os grandes «transatlanticos», levou vinte annos a tirar do minerio do seu talento, a endurecer e temperar, o aço admiravel que é agora o seu estylo.
As minhas idéas, porém, fluctuavam, no meio das attracções differentes desse periodo, entre a monarchia e a republica, sem preferencia republicana, talvez sómente por causa do fundo hereditario de que fallei e da facil carreira politica que tudo me augurava. Um livro seductor e interessante,—é a minha impressão da epocha,—o 19 de Janeiro, de Emilio Ollivier, tinha-me deixado nesse estado de hesitação e de indifferença entre as duas fórmas de governo, e a France Nouvelle, de Prévost-Paradol, que eu li com verdadeiro encanto, não conseguiu, apezar de todo o seu arrastamento, fixar a minha inclinação do lado da monarchia parlamentar. O que me decidiu foi a Constituição Ingleza de Bagehot. Devo a esse pequeno volume, que hoje não será talvez lido por ninguem em nosso paiz, a minha fixação monarchica inalteravel: tirei[Pg 8] delle, transformando-a a meu modo, a ferramenta toda com que trabalhei em politica, excluindo sómente a obra da abolição, cujo stock de idéas teve para mim outra procedencia.
[Pg 9]
Não sei a quem devo a fortuna de ter conhecido a obra de Bagehot, ou si a encontrei por acaso entre as novidades da livraria Lailhacar, no Recife. Si soubesse quem me poz em communicação com aquelle grande pensador inglez, eu lhe agradeceria as relações que fiz com elle em 1869. É desse anno a amizade litteraria intima que travei com Jules Sandeau; a este quem me apresentou foi, recordo-me bem, o actual conselheiro Lafayette, da antiga firma da Actualidade, Farnese, Lafayette e Pedro Luiz, que eram, com Tavares Bastos, os directores da mocidade liberal. A Actualidade fôra talvez o primeiro jornal nosso de inspiração puramente republicana. A semente que germinou depois, em meu tempo, foi toda espalhada por ella.
Antes de lêr Bagehot, eu tinha lido muito sobre a Constituição Ingleza. Tenho deante de mim um caderno de 1869, em que copiava as[Pg 10] paginas que em minhas leituras mais me feriam a imaginação, methodo de educar o espirito, de adquirir a fórma do estylo, que eu recommendaria, si tivesse auctoridade, aos que se destinam a escrever, porque, é preciso fazer esta observação, ninguem escreve nunca sinão com o seu periodo, a sua medida, Renan diria a sua eurythmia, dos vinte e um annos. O que se faz mais tarde na madureza é tomar sómente o melhor do que se produz, desprezar o restante, cortar as porções fracas, as repetições, tudo o que desafina ou que sobra: a cadencia do periodo, a forma da phrase ficará, porém, sempre a mesma. O periodo de Lafayette ou de Ferreira Vianna, de Quintino ou de Machado de Assis, é hoje, com as modificações da edade, que são inevitaveis em tudo, o mesmo com que elles começaram. Está visto que eu não incluo nos começos de um escriptor as tentativas que cada um faz para chegar á sua fórma propria; o que digo é que o compasso se fixa logo muito cedo, e de vez, como a physionomia. Nesse livro de minhas leituras de 1869, quarto anno da Academia, encontro no indice, com muita Escravidão e muito Christianismo, muita Eloquencia ingleza, muito Fox e Pitt.
Nesse tempo a Camara dos Communs já tinha para mim o prestigio de primeira Assembléa do mundo, mas a realeza ingleza era ainda a dos quatro Jorges, principalmente a de Jorge III, a[Pg 11] bête noire de Martinho de Campos, ao passo que a Camara dos Lords, essa, com todo o cortejo das antigualhas dos Tudors, era para meu liberalismo, americanisado por Laboulaye, sob o disfarce de carnaval historico, uma odiosa procissão aristocratica em pleno mundo moderno. Dos dois governos, o inglez e o norte-americano, o ultimo parecia-me mais livre, mais popular. Por motivos differentes a monarchia constitucional, democratisada por instituições radicaes, seria ainda para o Brasil um governo preferivel á republica, mesmo pelo facto de já existir; mas, em these, entre essa monarchia e a republica, a superioridade, si havia, estava do lado desta. A France Nouvelle,—a ultima parte della foi verdadeiramente prophetica,—com toda a sua preferencia raciocinada pela monarchia constitucional, deixou-me, como já disse, suspenso, porque todo o seu delicado apparelho tinha como peça principal, ou pelo menos como peça de aperfeiçoamento, a dissolução regia, direito proprio do monarcha, e exactamente essa especie de dissolução é que era para a nossa escola a manivella do governo pessoal.
A Constituição Ingleza de Bagehot é o livro de um pensador politico, não de um historiador, nem de um jurista. Quem lê a massa inextricavel de factos que se contêm, por exemplo, na Historia Constitucional do dr. Stubbs, ou um desses rapidos panoramas de uma epocha inteira, que de[Pg 12] repente Freeman nos desvenda em uma de suas paginas, não encontra em Bagehot nada, historicamente fallando, que não lhe pareça, por assim dizer, de segunda mão. O que, porém, nem Freeman, nem Stubbs, nem Gneist, nem Erskine May, nem Green, nem Macaulay conseguiu nos dar tão perfeitamente como Bagehot, aliás um leigo em historia e politica, um simples amador, foi o segredo, as molas occultas da Constituição.
Freeman mostrára no seu pequeno livro O Crescimento da Constituição Ingleza que essa Constituição nunca foi feita; que nunca nas grandes luctas politicas da Inglaterra a voz da nação reclamou novas leis, mas só o melhor cumprimento das leis existentes; que a vida, a alma da lei Ingleza foi sempre o precedente; que as medidas para fortalecer a corôa alargaram os direitos do povo e vice-versa. Todo elle é cheio de idéas suggestivas que illuminam, para o espirito, um grande campo de visão. De repente encontra-se um quasi paradoxo, desses que põem em confusão todas as idéas moraes em nome da experiencia historica. S. Luiz, dirá elle, com as suas virtudes e prestigio, preparou o caminho para o despotismo dos seus successores. Não será o mesmo o effeito do reinado de Pedro II? «Para conquistar a liberdade como uma herança perpetua ha epochas em que se precisa mais dos vicios dos reis do que das suas virtudes. A[Pg 13] tyrannia dos nossos senhores Angevinos accordou a liberdade ingleza do seu tumulo momentaneo. Si Ricardo, João e Henrique tivessem sido reis como Alfredo e S. Luiz, o baculo de Estevão Langton, a espada de Roberto Fitzwalter, nunca teriam reluzido á testa dos Barões e do povo de Inglaterra.»
Bagehot não tem dessas intuições retrospectivas, dessas vistas geraes locaes; o que tem, é a comprehensão, a adivinhação do machinismo que vê funccionar. Tomando a Constituição ingleza como si fosse um relogio de cathedral, outros saberão melhor a historia desse relogio, o modo da sua construcção, as alterações por que passou, as vezes que esteve parado, ou explicarão o symbolismo das figuras que elle põe em movimento, quando o seu poderoso martello bate as horas do dia; elle, porém, conhece melhor o mechanismo actual, que simplifica explicando-o.
Bagehot, póde-se vèr, era um espirito de affinidades e sympathias quasi republicanas, como Grote, Stuart Mill, John Morley, e todo o radicalismo positivista inglez. Banqueiro de nascença, elle é um exemplo mais dessa singular attracção para os estudos especulativos ou de politica pura, que por vezes se notou na alta finança ingleza, com o proprio Grote, Mr. Goschen, ou Gladstone. O seu genio era desses que renovam todos os assumptos que tratam. Não[Pg 14] não sei si me engano, mas acredito que a Constituição ingleza é uma esphinge, da qual foi elle quem decifrou o enigma.
As idéas que devo a Bagehot são poucas, mas são todas ellas, por assim dizer, chaves de systemas e concepções politicas, de verdadeiros estados do espirito moderno. Foi elle, por exemplo, quem me deu a idéa do que elle chamou governo de gabinete, como sendo a alma da moderna Constituição ingleza. «No governo de gabinete, diz elle, o poder legislativo escolhe o executivo, especie de commissão, que elle encarrega do que respeita á parte pratica dos negocios e assim os dois poderes se harmonisam, porque o poder legislativo póde mudar a sua commissão, si não está satisfeito com ella ou si lhe prefere outra. E, no emtanto,—tal é a delicadeza do mechanismo,—o poder executivo não fica absorvido a ponto de obedecer servilmente, porquanto tem o direito de fazer a legislatura comparecer perante os eleitores, para que estes lhe componham uma Camara mais favoravel ás suas idéas.»
Essa é a primeira idéa, ou grupo de idéas, que devi a Bagehot: o governo de gabinete, o gabinete commissão da Camara, o gabinete sahido da Camara tendo o direito de dissolver a Camara, dissolução ministerial (não a Corôa só, nem a Corôa com um gabinete contrario á Camara): tudo, em summa, que depois daquelle[Pg 15] pequeno livro se tornou outros tantos logares communs, mas que elle foi o primeiro a revelar, a fixar.
É elle quem destróe os dois modos classicos de explicar a Constituição ingleza: o primeiro, que o systema inglez consiste na separação dos tres poderes; o segundo, que consiste no equilibrio delles. Sua idéa é que os dois poderes, o executivo e o legislativo, se unem por um laço que é o Gabinete e que, de facto, assim só ha um poder, que é a Camara dos Communs, de que o gabinete é a principal commissão. «O systema inglez, diz elle, não consiste na absorpção do poder executivo pelo legislativo; consiste na fusão delles.» O rival desse systema é o que elle chamou systema presidencial. Essas designações são hoje usadas por todos, mas são todas delle. «A qualidade distinctiva do governo presidencial é a independencia mutua do legislativo e do executivo, ao passo que a fusão e a combinação desses poderes serve de principio ao governo de gabinete.»
Cada uma das suas palavras, comparando os dois systemas de governo, merece ser pesada. Resumindo essas paginas, eu contribuo de certo melhor para a educação dos jovens politicos, chamo a sua attenção para problemas mais delicados, do que se lhes désse idéas minhas. «Comparemos primeiro, diz elle, esses dois governos em tempos calmos. Em uma epocha civilisada,[Pg 16] as necessidades da administração exigem que se façam constantemente leis. Um dos principaes objectos da legislação é o lançamento dos impostos. As despesas de um governo civilisado variam sem cessar e devem variar, si o governo faz o seu dever... Si as pessôas encarregadas de prevêr todas essas necessidades da administração não são as que fazem as leis, haverá antagonismo entre ellas e as outras. Os que devem marcar a importancia dos impostos entrarão seguramente em conflicto com os que tiverem reclamado o seu lançamento. Haverá paralysia na acção do poder executivo, por falta de leis necessarias, e erro na da legislatura, por falta de responsabilidade: o executivo não é mais digno desse nome, desde que não póde executar o que elle decide; a legislatura, por seu lado, desmoralisa-se pela sua independencia mesma, que lhe permitte tomar certas decisões capazes de neutralisar as do poder rival.»
Da desordem financeira que resulte dessa falta de intelligencia entre executivo e legislativo e dessa fabricação de orçamentos sem o governo, quem é o principal interessado na perfeição da lei de meios, quem é o responsavel? A quem se póde responsabilisar ou afastar da gestão dos negocios publicos? «Não ha ninguem a censurar sinão uma legislatura, reunião numerosa de pessôas diversas, que é difficil punir e que estão armadas, ellas mesmas, do direito de punir.»[Pg 17] Na Inglaterra, o systema é differente. Em um momento grave, o gabinete póde recorrer á dissolução: na America, é preciso esperar com paciencia, para se resolver qualquer conflicto de opinião entre o executivo e o legislativo, que expire o prazo de um delles. Até lá elles guerreiam-se implacavelmente, como dois partidos rivaes.
Supponha-se que não ha motivo possivel de conflicto: «Os governos de gabinete são os educadores dos povos, os governos presidenciaes não o são; pelo contrario, pódem corrompel-os. Diz-se que a Inglaterra inventou esta formula: a opposição de Sua Magestade; que, primeiro, dentre todos os Estados, ella reconheceu que o direito de criticar a administração é um direito tão necessario na organização politica como a propria administração. Essa opposição que se encarrega da critica, acompanha necessariamente o governo de gabinete. Que magnifico theatro para os debates, que maravilhosa escola de instrucção popular e controversia politica offerece a todos uma Assembléa Legislativa! Um discurso que é ahi pronunciado por um estadista eminente, um movimento de partido produzido por uma grande combinação politica, eis os melhores modos conhecidos até hoje de despertar, animar e instruir um povo... Os viajantes que na America percorreram mesmo os Estados do Norte, isto é, o grande paiz onde se mostra por[Pg 18] excellencia o governo presidencial, observaram que a nação não tem gosto pronunciado pela politica e que não se encontra uma opinião trabalhada com todo o acabado e toda a perfeição que se nota na Inglaterra... Sob um governo presidencial, o povo não tem sinão no momento das eleições a sua parte de influencia... Nada excita tal povo a formar para si uma opinião ou uma educação, como o faria sob um governo de gabinete. Sem duvida a sua legislatura é um theatro para os debates, mas esses debates são como que prologos não seguidos de peças; não trazem nenhum desfecho, porque não se póde mudar a administração; não estando o poder á disposição da legislatura, ninguem presta attenção aos debates legislativos. O executivo, esse grande centro do poder e dos empregos, fica inabalavel. Não se póde mudal-o. O modo de ensino que, pela educação do nosso espirito publico, prepara as nossas resoluções e esclarece os nossos juizos, não existe sob este systema. Um paiz presidencial não tem necessidade de formar cada dia opiniões estudadas e não tem meio algum de as formar.» O mesmo se dá com a acção da imprensa, que tambem não póde deslocar a administração. Na Inglaterra, o Times tem feito muitos ministerios; nada de semelhante se podia dar na America... Ninguem se preoccupa dos debates do Congresso, elles não dão resultado algum, e ninguem lê os longos artigos de fundo, porque[Pg 19] não têm influencia sobre os acontecimentos.
Mas não é só o poder legislativo que é fraco por essa divisão, é tambem o executivo. «Na Inglaterra, um gabinete solido obtem o concurso da legislatura em todos os actos que têm por fim facilitar a acção administrativa: elle é, por assim dizer, elle proprio, a legislatura. Mas um Presidente póde ser embaraçado pelo poder legislativo e o é quasi inevitavelmente. A tendencia natural dos membros de toda a legislatura é impôr a sua personalidade. Elles querem satisfazer uma ambição louvavel ou censuravel: querem, sobretudo, deixar vestigios da sua actividade propria nos negocios publicos.»
Além do enfraquecimento causado por esse antagonismo do legislativo, o systema presidencial enfraquece o poder executivo, diminuindo-lhe o seu valor intrinseco. «Os homens de Estado entre quem a nação tem o direito de escolher sob o governo presidencial são de qualidade muito inferior aos que lhe offerece o governo de gabinete, e o corpo eleitoral encarregado de escolher a administração é tambem muito menos perspicaz.»
Todas essas vantagens, porém, são ainda mais preciosas em tempos difficeis, do que nos tempos calmos: «Uma opinião publica bem formada, uma legislatura que infunda respeito, habil e disciplinada, um executivo convenientemente escolhido, um parlamento e uma administração[Pg 20] que não se embaraçam reciprocamente, mas que cooperam juntos, são vantagens cuja importancia é maior quando se está a braços com grandes questões, do que quando se trata de negocios insignificantes; maior, quando se tem muito que fazer, do que um trabalho facil. Accrescentemos, porém, que o governo parlamentar, em que existe um gabinete, possúe, além disso, um merito particularmente util nos tempos tormentosos: o de ter sempre á sua disposição uma reserva de poder prompta para operar, quando circumstancias extremas o exijam...»
«Sob um governo presidencial, nada semelhante é possivel. O governo americano gaba-se de ser o governo do povo soberano; mas, quando apparece uma crise subita, circumstancia na qual o uso da soberania se torna sobretudo necessario, não se sabe onde encontrar o povo soberano. Ha um Congresso eleito por um periodo fixo, que póde ser dividido em fracções determinadas, de que se não póde apressar nem retardar a duração: ha um Presidente escolhido tambem por um lapso de tempo fixo e inamovivel durante todo elle; todos os arranjos estão previstos de modo determinado. Não ha em tudo isso nada de elastico; tudo, pelo contrario, é rigorosamente especificado e datado. Aconteça o que acontecer, não se póde precipitar, nem adiar. É um governo encommendado de antemão, e, convenha ou não, ande bem ou mal,[Pg 21] preencha ou não as condições desejadas, a lei obriga a conserval-o.»
Em tempo de guerra ou de relações diplomaticas complicadas, é que se vê o defeito desse systema em toda a luz. Esse systema, diz Bagehot, póde-se resumir em uma palavra:—«governar pelo desconhecido». «Ninguem na America tinha a menor idéa do que podia ser M. Lincoln nem do que elle poderia fazer. Sob o governo de gabinete, pelo contrario, os homens de Estado principaes são familiarmente conhecidos de todos, não sómente pelos seus nomes, mas pelas suas idéas. Nós nem mesmo imaginamos que se possa confiar o exercicio da soberania a um desconhecido.»
Devo outras idéas a Bagehot. Antes de o lêr, eu tinha o preconceito democratico contra a hereditariedade, o principio dynastico e a influencia aristocratica. Foi esse democrata que me fez comprehender como o que elle chamou as partes imponentes da Constituição ingleza, «as que produzem e conservam o respeito das populações», são tão importantes como as efficientes, «as que dão á obra o movimento e a direcção». Phrases como estas gravam-se no pensamento: «Uma segunda e rarissima condição de governo effectivo é a calma do espirito nacional, isto é, essa disposição de espirito que permitte atravessar, sem perder o equilibrio, todas as agitações necessarias que as peripecias dos acontecimentos encerram.[Pg 22] Nunca no estado de barbaria ou de meia civilização um povo possuiu essa qualidade. A massa da gente sem instrucção na Inglaterra não poderia ouvir hoje tranquillamente estas simples palavras: Ide escolher o vosso governo; semelhante idéa lhes perturbaria a razão e lhes faria receiar um perigo chimerico. A vantagem incalculavel (o italico é meu) das instituições imponentes em um paiz livre é que ellas impedem essa catastrophe. Si a nomeação dos governantes se faz sem abalo, é graças á existencia apparente de um governo não sujeito á eleição. As classes pobres e ignorantes imaginam ser governadas por uma rainha hereditaria e que governa pela graça de Deus, quando na realidade são governadas por um gabinete e um parlamento composto de homens escolhidos por ellas mesmas e que sáem das suas fileiras.»
A pompa, a magestade, o apparato todo da realeza entrava assim para mim nos artificios necessarios para governar e satisfazer a imaginação das massas, qualquer que seja a cultura da sociedade; a realeza passava naturalmente para a classe das instituições a que Herbert Spencer chamou cerimoniaes, como os trophéos, os presentes, as visitas, as prosternações, os titulos, etc. «Nada mais pueril na apparencia do que o enthusiasmo dos Inglezes pelo casamento do principe de Galles. Mas nenhum sentimento está mais em harmonia com a natureza humana.[Pg 23] As mulheres, que compõem ao menos metade da raça humana, preoccupam-se cem vezes mais de um casamento do que de um ministerio.» E além: «Emquanto a especie humana tiver muito coração e pouca razão, a realeza será um governo forte, porque se harmonisa com os sentimentos espalhados por toda parte, e a Republica um governo fraco, porque se dirige á razão.»
A idéa principal que recebi de Bagehot foi essa da superioridade pratica do governo de gabinete inglez sobre o systema presidencial americano: por outra, que uma monarchia secular, de origens feudaes, cercada de tradições e fórmas aristocraticas, como é a ingleza, podia ser um governo mais directa e immediatamente do povo do que a republica. «Uma vez que o povo americano escolheu o seu Presidente, elle não póde mais nada, e o mesmo se dá com o collegio eleitoral que lhe serviu de intermediario.» A Camara dos Communs, essa, porém, faz e desfaz o gabinete, de modo que o governo está sempre nas mãos da representação nacional. Si se dá um desaccordo entre elles, em que o ministerio supponha ter de seu lado a opinião, dissolve a camara, e, dentro de dias, a nação se pronuncia. Comparados os dois governos, o norte-americano ficou-me parecendo um relogio que marca as horas da opinião, o inglez, um relogio que marca até os segundos.
[Pg 24]
Sahi assim da Academia, tendo vencido o preconceito que torna reluctante para certos espiritos a fórma monarchica, isto é, o preconceito contra a não-electividade do chefe do Estado. Eu via claramente nessa não-electividade o segredo da superioridade do mechanismo monarchico sobre o republicano, condemnado a interrupções periodicas, que são para certos paizes revoluções certas. Para não sahir da relojoaria, a republica era, para mim, um relogio de que fosse preciso renovar a mola no fim de pouco tempo; a monarchia, um relogio por assim dizer perpetuo. Não foi pequena acquisição esta que devi a Bagehot; sem ella, sem ter da monarchia parlamentar uma concepção que me fizesse acceital-a como um apparelho mais sensivel á opinião, mais rapido e mais delicado em apanhar-lhe as nuanças fugitivas, guardando ao mesmo tempo inalteravel a tradição de governo e a aspiração[Pg 25] permanente do destino nacional, eu teria sido arrastado irresistivelmente para o movimento republicano que começava. Ainda assim, não foi logo, de uma vez, que cheguei a dominar as minhas fascinações.
Em 1871 estava no poder o ministerio Rio-Branco. Nesses tres annos de 71, 72 e 73 escrevi na Reforma, por vezes, artigos politicos. Outras coisas, entretanto, me occupavam então mais do que a politica. A vida, a sociedade, o mundo, as lettras, a arte, a philosophia mesmo, tinham para mim maior encanto do que ella. Desde muito moço havia uma preoccupação em meu espirito que ao mesmo tempo me attrahia para a politica e em certo sentido era uma especie de amuleto contra ella: a escravidão. Posso dizer que desde 1868 vi tudo em nosso paiz através desse prisma. Nas tres defesas de jury que fiz na Academia,—o meu amigo Alberto de Carvalho ha de rir,—alcancei tres galés perpetuas. Eram todos crimes de escravos, ou antes imputados a escravos,—devo ser coherente hoje com o que provavelmente disse no jury. No meu 5º anno no Recife levei a preparar um livro que ainda guardo, uma especie de Perdigão Malheiro inedito, sobre a escravidão entre nós. Eu traduzia documentos do Anti-Slavery Reporter para meu pae que, de 1868 a 1871, foi quem mais influiu para fazer amadurecer a idéa da emancipação, formulada em 1866 em projecto de lei por S. Vicente (Pimenta[Pg 26] Bueno). A iniciativa, o desejo de que se levasse a questão ao Parlamento, estou convencido, partiu do Imperador, que não descançou emquanto o não conseguiu, a primeira vez de Zacharias, a segunda de Rio-Branco. Eu já disse uma vez que possúo o autographo, por lettra delle, da carta em resposta aos abolicionistas francezes, carta que foi o ponto de partida de tudo. Eu tomava o maior interesse na attitude de meu pae nessa questão; desejava para elle a gloria de ser pelo menos o Sumner brasileiro. Recordo-me do prazer que tive quando, em 1869, elle me referiu que se tinha posto de accordo com Salles Torres-Homem para moverem a idéa no Senado, e que Salles estava escrevendo sobre a escravidão um dialogo na fórma de Platão.
Eu disse ha pouco que não me tinha sido facil desprender-me da minha attracção para tudo que era democracia ultra. O Imperador estava em 1871 a emprehender a sua primeira visita á Europa. Um artigo que então escrevi na Reforma, com o titulo Viagem do Imperador, dá bem idéa de quanto era pequeno nesse tempo o meu angulo de inclinação monarchica. É ainda um escripto de mocidade, não ha nelle sinão mocidade, mas o traço individual que tem cada escriptor já está fixo, não mudará mais;—não só não mudará mais, como, vinte annos depois, quando eu pensar em voltar, no escrever, á fórma[Pg 27] litteraria, é ás medidas da minha phrase dos vinte e um annos que hei de tornar. Esse artigo é quasi republicano. As minhas novas idéas inglezas não estavam ainda senhoras da casa, não tinham força para eclipsar as projecções, em parte phantasticas, que nesse tempo, com a sua lanterna magica, Laboulaye acabava de fazer do mundo americano. Por isso eu aconselhava ao Imperador que, em vez de ir á velha Europa, fosse á joven America:
«Sobretudo elle comprehenderia uma coisa. Ao vêr os Estados-Unidos á frente do progresso industrial e moral, comprehenderia que os reis pódem bem ser uma hypothese, um luxo, uma superfetação. Ao vêr uma sociedade amplamente liberal e livre, governando-se sem rei, elle comprehenderia que, em certas epochas, os povos pódem dispensar qualquer tutela. Ao vêr a familia honrada e respeitada»,—eu referia-me á pureza do lar e ao respeito dos Americanos pela mulher,—«tornada uma religião; ao vêr a religião feita o laço moral das almas e a trituração dos cultos chegando quasi ao numero dos individuos sem produzir outro effeito sinão o de uma maior tolerancia e maior fraternidade, ao vêr a civilisação crescendo»,—em terra virgem,—«como uma arvore de enormes raizes e de grande sombra; ao vêr a vanguarda do progresso occupada por uma republica»,—não merecia eu um primeiro premio-Laboulaye?—«o Imperador[Pg 28] perderia o culto monarchico em que commungam os reis. Ao vêr, por outro lado, esse poder que passa de um soldado para um lenhador, para um alfaiate, sempre o mesmo, integro e perfeito, elle, guardando o amor da familia, que cresceria, porque já não era a dynastia, perderia o culto da hereditariedade.»
Essa era a minha linguagem dos vinte e um annos; nella encontra-se um minimum de monarchismo e um maximum de republicanismo, o que produz esta preferencia por uma monarchia sem hereditariedade, sem cerimonial, sem veneração, toda ao nivel commum, como a magistratura popular da Casa Branca. É só gradualmente que a influencia do systema monarchico vae crescendo e prevalecendo sobre esse radicalismo espontaneo, esse egualitarismo inflexivel. Aos vinte e um annos de certo eu não teria comprehendido esta maxima politica de meu pae no Senado: «A utilidade relativa das leis prefere á utilidade absoluta»; o relativo não existia para mim.
Nesses annos o partido liberal leva o ministerio Rio-Branco para onde quer. Seguramente a opinião liberal teve muito mais poder sobre aquelle ministerio do que sobre o ministerio Sinimbú ou qualquer outro do seu proprio partido,—excepto o ministerio Dantas, porque neste o Presidente do Conselho era impressionavel á menor censura do liberalismo. A verdade é que o ministerio Rio-Branco foi um ministerio reformista[Pg 29] como desde o gabinete Paraná não se tinha visto outro e não se viu nenhum depois. O governo tinha o prurido das reformas, não talvez por inclinação propria, mas para desarmar a opposição liberal. Em dois pontos sómente elle mostrou-se conservador, á moda antiga: na sua prevenção contra a eleição directa, que provavelmente era tambem do Imperador, e em relação ao equilibrio do Prata. Em sua politica externa manteve firme a tradição conservadora, ou melhor, a politica tradicional de antes da Triplice Alliança, e a maior probabilidade é que a politica liberal da Alliança, continuando, depois da guerra, nos tratados de paz, teria creado uma situação no Prata muito diversa da situação estavel e pacifica que resultou dessa mudança de attitude dos conservadores. Em tudo mais foi um ministerio innovador como o partido liberal não teria dado egual. O panno das reformas era fornecido pelos liberaes; era todo de padrão liberal; mas o mestre conservador talhava nelle com uma largueza de tesoura que faria chorar no poder toda a alfaiataria contraria. Na questão religiosa, principalmente, á attitude de Rio-Branco só se poderia chamar conservadora por ser Pombalina, ultra regalista. O partido liberal, em vez de exultar, dizia-se roubado, pleiteava as suas patentes de invenção, sua marcas de fabrica.
Nesse tempo, e durante alguns annos, o radicalismo me arrasta; eu sou, por exemplo, dos que[Pg 30] tomam parte mais activa na campanha maçonica de 1873 contra os bispos e contra a Egreja. Entro até nas idéas de Feijó, de uma Egreja Nacional, independente da disciplina romana; faço conferencias, escrevo artigos, publico folhetos. Não quizera mesmo hoje retirar uma só palavra do que disse então, advogando a liberdade religiosa mais perfeita; entendo ainda, hoje mais do que nunca, depois da esplendida experiencia do pontificado de Leão XIII, que a Egreja tem tudo a ganhar com a liberdade e que o futuro do mundo póde pertencer á alliança, já sellada no actual pontificado, da Egreja Catholica com a democracia. Não é sob Leão XIII que o liberalismo ha de mais ser suspeito, e provavelmente este pontificado não será um accidente feliz, mas sim um ponto de partida definitivo, a data de uma nova éra na historia do Catholicismo. Do que preciso fazer renuncia, em favor das traças que os consumiram, é de tudo o que nesses opusculos escrevi em espirito de antagonismo á religião, com a mais soberba incomprehensão de seu papel e da necessidade, superior a qualquer outra, de augmentar a sua influencia, a sua acção formativa, reparadora, em todo o caso consoladora, em nossa vida publica e em nossos costumes nacionaes, no fundo transmissivel da sociedade. Naquelle tempo, porém, como teria eu acolhido uma manifestação como esta, cada vez mais verdadeira, mas de que só hoje sinto a[Pg 31] profundeza e o alcance,—do senador Nabuco, em 1860, no Senado: «Ha duas necessidades, a meu vêr, muito importantes na situação moral do nosso paiz:—a primeira é a diffusão do principio religioso no interesse da familia e da sociedade...»? Posso dizer, fallando a nova giria scientifica, que eu não tinha então nada de estatico, era todo dynamico.
Um ministerio conservador que se encarrega de realisar as reformas liberaes, produz, forçosamente, no campo liberal, uma grande confusão. Para quem começava, como eu, a vida politica automatica na imprensa e no club do partido, a politica do ministerio pouco importava, o alvo continuava o mesmo; não obstante, instinctivamente, pela voz do sangue, a discutir com o governo conservador que fazia as reformas liberaes, eu preferia discutir com a fracção que se separara do nosso partido para formar o partido republicano. Já nesse tempo a questão da fórma de governo começa a dominar em mim todas as outras; eu só exceptuaria a dos escravos, mas a lei de 28 de setembro estava votada e a ella se tinha seguido uma especie de tregua dada á escravidão. Travo, então, na Reforma, um combate com a Republica, do ponto de vista monarchico. Si, em 1871, eu podia pretender, como disse, o premio americano Laboulaye, em 1873, no meu anno de fixação monarchica, eu entraria em concurso para o premio inglez Bagehot, com esses artigos[Pg 32] tambem da Reforma. O seguinte trecho basta para mostrar, comparado ao da Viagem do Imperador, a mudança que eu tinha soffrido em dois annos:
«É preciso realmente ser illudido, ou pelas palavras ou pelos symbolos, para chamar ao rei do systema parlamentar um tyranno. Nem mesmo póde comparar-se um Lincoln com uma Victoria: o Presidente americano governa, administra, tem á sua disposição milhares de empregos publicos, é o chefe de seu partido, tem uma responsabilidade inteira no governo e uma iniciativa poderosa; póde ser um Washington ou, si quizer, um Johnson. O soberano inglez não tem poder algum; o parlamento indica-lhe o ministro que elle chama, não podendo chamar outro; esse ministro imposto torna-se o chefe do Estado, apresenta as leis a que o soberano não póde negar sancção, e dissolve a camara si ella lhe retira a confiança; e emquanto o ministro governa, o rei sómente reina. Não terá esse tyranno inglez muito menos poder do que o primeiro magistrado americano?»
Dessas idéas eu não devia sahir mais, como se verá; não são como as de 1871, arrastamento, enthusiasmo, paixão; são dessas fórmas do espirito que não deixam mais a intelligencia tomar outra fórma; têm para ella a transparencia, a clareza da evidencia, como si fossem, e realmente são, primeiros theoremas de geometria politica.
[Pg 33]
Nesses annos de mocidade a que me estou referindo, a politica era, de certo, para mim uma forte excitação; em qualquer scena do mundo o lance politico interessava-me, prendia-me, agitava-me; por isso mesmo, eu não era, nunca fui, o que se chama verdadeiramente um politico, um espirito capaz de viver na pequena politica e de dar ahi o que tem de melhor. Em minha vida vivi muito da Politica, com P grande, isto é, da politica que é historia, e ainda hoje vivo, é certo que muito menos. Mas para a politica propriamente dita, que é a local, a do paiz, a dos partidos, tenho esta dupla incapacidade: não só um mundo de coisas me parece superior a ella, como tambem minha curiosidade, o meu interesse, vae sempre para o ponto onde a acção do drama contemporaneo universal é mais complicada ou mais intensa.
Sou antes um espectador do meu seculo do que[Pg 34] do meu paiz: a peça é para mim a civilisação, e se está representando em todos os theatros da humanidade, ligados hoje pelo telegrapho. Uma affeição maior, um interesse mais proximo, uma ligação mais intima, faz com que a scena, quando se passa no Brasil, tenha para mim importancia especial, mas isto não se confunde com a pura emoção intellectual; é um prazer ou uma dôr, por assim dizer domestica, que interessa o coração; não é um grande espectaculo, que prende e domina a intelligencia. A abolição no Brasil me interessou mais do que todos os outros factos ou séries de factos de que fui contemporaneo; a expulsão do Imperador me abalou mais profundamente do que todas as quedas de thronos ou catastrophes nacionaes que acompanhei de longe; por ultimo, não experimentei nenhuma sensação tão cheia, tão prolongada, tão viva, durante mezes ininterrompidos, como durante a ultima revolta, quando se ouvia o canhão da guerra civil no mar e o silencio ainda peior do terror em terra. Em tudo isto, porém, ha muito pouca politica: nesses tres quadros, por exemplo, a politica suspende-se: o que ha é o drama humano universal de que fallei, transportado para nossa terra. Não se poderia dizer isto da lucta dos partidos, nem do que, exclusivamente, é considerado politica pelos profissionaes. Esta é uma absorpção como a de qualquer habito, circumscreve a curiosidade a um campo visual restricto: é uma[Pg 35] especie de occlusão das palpebras. Esse gozo especial do politico na lucta dos partidos não o conheci; procurei na politica o lado moral, imaginei-a uma especie de cavallaria moderna, a cavallaria andante dos principios e das reformas; tive nella emoções de tribuna, por vezes de popularidade, mas não passei d’ahi: do limiar; nunca o officialismo me tentou, nunca a sua deleitação me foi revelada; nunca renunciei a imaginação, a curiosidade, o dilettantismo, para prestar siquer os primeiros votos de obediencia; só vi de muito longe o véo jacintho e purpura do Sanctum Sanctorum,—(tão de longe, que me pareceu um velho reposteiro verde e amarello),—por traz do qual o Presidente do Conselho contemplava sósinho face a face a majestade do poder moderador.
Isto quer dizer que a minha ambição foi toda em politica de ordem puramente intellectual, como a do orador, do poeta, do escriptor, do reformador. Não ha, sem duvida, ambição mais alta do que a do estadista, e eu não pensaria em reduzir os homens eminentes que merecem aquelle nome em nossa politica ao papel de politicos de profissão; mas para ser um homem de governo é indispensavel fixar, limitar, encerrar a imaginação nas coisas do paiz e ser capaz de partilhar, si não das paixões, de certo dos preconceitos dos partidos, ter com elles a mais perfeita communhão de vida, individuæ vitæ consuetuoinem.[Pg 36] Assim, quando eu tivesse, que não tive, as qualidades precisas, estava impedido para a politica pela incompressibilidade do meu interesse humano. Politicamente, receio ter nascido cosmopolita. Não me seria possivel reduzir as minhas faculdades ao serviço de uma religião local, renunciar a qualidade que ellas têm de voltar-se espontaneamente para fóra.
Assim, por exemplo, desses annos de minha vida, a que me refiro: em 1870, o meu maior interesse não está na politica do Brasil, está em Sedan. No começo de 1871, não está na formação do gabinete Rio-Branco, está no incendio de Pariz. Em 1871, durante mezes, está na lucta pela emancipação,—mas não será tambem nesse anno o Brasil o ponto da terra para o qual está voltado o dedo de Deus? Em 1872, o que me occupa o espirito é o centenario dos Luziadas; estou então imprimindo um livro sobre Camões, e a quem trabalha em um livro, apezar do seu nenhum valor litterario, como o mostrou Theophilo Braga, não sobra muita attenção ou interesse para dar ao que acontece em redor de si. 1873 é o meu anno, como disse, de fixação monarchica, mas tambem,—o que mostra que a razão amadurece por partes,—o anno em que me atiro contra a Egreja com o furor iconoclasta da mocidade, suppondo estar dizendo coisas novas, nunca ouvidas por ella em 19 seculos de lucta, pensando que ella vae gemer sob os golpes[Pg 37] das terriveis hyperboles que lhe arrojo em pamphletos e artigos da Reforma: theocracia, invasão ultramontana, conquista jesuita!... Apezar disso, o anno de 1873 é no meu registro o anno da primeira viagem á Europa, facto de metamorphose pessoal, que é em minha vida a passagem da chrysalida para a borboleta.
Não posso mais,—si feliz, si infelizmente, é uma questão que me levaria muito longe deslindar,—não posso mais sentir o que sentia aos 24 annos, quando pela primeira vez me fiz de vapor, hoje eu preferiria fazer-me de vela, para a Europa. Como já vi Leão XIII carregado na sedia gestatoria e tive a fortuna de fallar longamente a sós com um Papa, creio que não faria mais uma viagem para conhecer nenhum grande personagem, excepto, talvez, o imperador da China. Já que não vi um rei mouro em Granada, passo bem sem ter visto Abdul-Hamid no Bosphoro. Mesmo o imperador da China talvez eu me contentasse em conhecel-o pela imagem que me dariam delle, si eu os avistasse, dois rising men da alta diplomacia européa, de quem sou amigo, que tiveram occasião de penetrar no recinto inviolavel e de estudar a infantil figura do Incognoscivel sob as afflições da guerra japoneza. O que me interessa nelle, bem se o póde imaginar, não é o seu throno de almofadas de seda, o seu porta-voz, os seus cachimbos, os seus perfumadores, os seus collares; é a originalidade que o[Pg 38] envolve, maravilhosa como o proprio sobrenatural, é a psychologia accumulada de seculos.
Em 1873, porém, a minha ambição de conhecer homens celebres de toda ordem era sem limites; eu tel-os-ia ido procurar ao fim do mundo. Do mesmo modo, com os logares. O que eu queria, era vêr todas as vistas do globo, tudo o que tem arrancado um grito de admiração a um viajante intelligente. Nessa qualidade de camara photographica só lastimava não ter o dom da ubiquidade. Esta febre itinerante passou-me tambem. Posso lêr, sem perigo, qualquer geographia nova, o Elisée Reclus inteiro; é só uma boa pagina de Pausanias ou de Strabão, com os seus nomes antigos, que me perturba ainda. Os mais preciosos livros da minha estante intima são os meus Baedekers; diversos logares ahi estão marcados com um signal, e si eu pudesse, tomaria ainda, para visital-os, o bilhete (hoje não se diz mais o bastão), do peregrino; mas são os logares sómente a que está associada,—ha annos eu teria dito uma impressão de minha vida,—uma das grandes impressões da humanidade, uma das suas revelações na arte, ou na religião.
O que em materia de viagem, de paizagens me tentaria hoje,—quem sabe si não é uma pura restituição de um atavismo longinquo? o meu avô materno, que se transplantou em 1530 para Pernambuco e fundou o Morgado do Cabo, João Paes[Pg 39] Baretto, era de Vianna,—seria, talvez, o Lima, si eu tivesse certeza de ter deante delle a mesma impressão dos soldados romanos que chamaram ás suas margens Campos-Elyseos e lhe deram o bello nome de Lethes. A verdade é que sinto cada dia mais forte o arrocho do berço: cada vez sou mais servo da gleba brasileira, por essa lei singular do coração que prende o homem á patria com tanto mais força quanto mais infeliz ella é e quanto maiores são os riscos e incertezas que elle mesmo corre.
N’esse tempo, porém, na minha éra antes de Christo, em pleno polytheismo da mocidade, o mundo inteiro me attrahia por egual; cada nova fascinação da arte, da natureza, da litteratura e, tambem, da politica, era a mais forte; eu quizera conhecer as celebridades de todos os partidos. Depois do Papa, a mais nobre figura da Europa era para mim o conde de Chambord, que acabava de rejeitar a corôa de França para não repudiar a bandeira branca; um Henrique V, bem pouco parecido com Henrique IV, e, no emtanto, eu contava como uma boa fortuna a noite que passei no salão de Monsieur Thiers[1].
[1] A respeito dessa visita, eis a nota que encontro no meu jornal de 1874: «10 de Janeiro. Á noite fui com o Itajubá (o nosso arbitro em Genebra) á casa de Monsieur Thiers, hotel Bagration, faubourg Saint-Honoré. Apresentado a Monsieur Thiers, a Madame Thiers, a Mlle Dosne. Apresentado a Jules Simon. Itinerario que este me deu: vêr Pierrefonds. Coucy, Reims, Tarascon, Arles e a Grande Chartreuse. Conversei com Monsieur Thiers sobre o Brasil. Opinião delle sobre a desegualdade da raça negra, de que provem o direito não de escravisal-a, mas de forçal-a ao trabalho, como a Hollanda, faz com os Javanezes.»
[Pg 40]
A viagem á Europa em taes condições não podia deixar de ser para mim, como foi, o eterno impulso dado ao pendulo imaginativo. Pelo sentimento, pela attitude, pelo emprego da vida, acredito ter sido, em meu plano inferior, uma das mais consistentes figuras de nossa politica; acredito mesmo que passarei nella como um homem de uma só idéa, persona unius dramatis, porquanto a minha fidelidade monarchica póde ser considerada, como a de André Rebouças, ainda um ultimo compromisso, uma gratidão, um episodio da libertação dos escravos. Quanto ás affinidades espontaneas, porém, ás sympathias naturaes, ao movimento interior do espirito, difficilmente se encontrará um pendulo que descreva um raio de oscillação mais largo do que a minha imaginação e a minha curiosidade. O que é um homem politico assim dilettante, viajante, a quem tudo attráe egualmente, que admira as grandes construcções sociaes, qualquer que seja o systema da architectura, convencido de que em todos ha o mesmo espirito, porque o espirito creador é um só?
Nós, brasileiros, o mesmo póde-se dizer dos outros povos americanos, pertencemos á America pelo sedimento novo, fluctuante, do nosso espirito,[Pg 41] e á Europa, por suas camadas estratificadas. Desde que temos a menor cultura, começa o predominio destas sobre aquelle. A nossa imaginação não póde deixar de ser européa, isto é, de ser humana; ella não pára na Primeira Missa no Brasil, para continuar d’ahi recompondo as tradições dos selvagens que guarneciam as nossas praias no momento da descoberta; segue pelas civilisações todas da humanidade, como a dos europeus, com quem temos o mesmo fundo commum de lingua, religião, arte, direito e poesia, os mesmos seculos de civilisação accumulada, e, portanto, desde que haja um raio de cultura, a mesma imaginação historica.
Estamos assim condemnados á mais terrivel das instabilidades, e é isto o que explica o facto de tantos sul-americanos preferirem viver na Europa... Não são os prazeres do rastaquerismo, como se chrismou em Pariz a vida elegante dos millionarios da Sul-America; a explicação é mais delicada e mais profunda: é a attracção de affinidades esquecidas, mas não apagadas, que estão em todos nós, da nossa commum origem européa. A instabilidade a que me refiro, provem de que na America falta á paizagem, á vida, ao horizonte, á architectura, a tudo o que nos cerca, o fundo historico, a perspectiva humana; e que na Europa nos falta a patria, isto é, a fôrma em que cada um de nós foi vasado ao nascer. De um lado do mar sente-se a ausencia do mundo; do outro, a[Pg 42] ausencia do paiz. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação européa. As paizagens todas do Novo-Mundo, a floresta amazonica ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de Salerno a Amalfi, um pedaço do Caes do Sena á sombra do velho Louvre. No meio do luxo dos theatros, da moda, da politica, somos sempre squatters, como si estivessemos ainda derribando a matta virgem.
Eu sei bem, para não sahir do Rio de Janeiro, que não ha nada mais encantador á vista do que, ao acaso, a escolha seria impossivel, os parques de S. Clemente, o caminho que margeia o aqueducto de Paineiras na direcção da Tijuca, a ponta de S. João, com o Pão de Assucar, vista do Flamengo ao cahir do sol. Mas tudo isto é ainda, por assim dizer, um trecho do planeta de que a humanidade não tomou posse; é como um Paraiso Terrestre antes das primeiras lagrimas do homem, uma especie de jardim infantil. Não quero dizer que haja duas humanidades, a alta e a baixa, e que nós sejamos desta ultima; talvez a humanidade se renove um dia pelos seus galhos americanos; mas, no seculo em que vivemos, o espirito humano, que é um só e terrivelmente centralista, está do outro lado do Atlantico; o Novo-Mundo para tudo o que é imaginação esthetica ou historica é uma verdadeira solidão, em que aquelle espirito se sente tão longe das suas reminiscencias,[Pg 43] das suas associações de idéas, como si o passado todo da raça humana se lhe tivesse apagado da lembrança e elle devesse bulbuciar de novo, soletrar outra vez, como creança, tudo o que apprendeu sob o céo da Attica...
Em um soberbo livro hespanhol, que faz honra á Sociedade de Jesus, Pequeñeces, romance de um padre jesuita, que é um grande auctor, L. Coloma, ha um personagem que diz a cada instante—Usted me entiende. Todos nós temos algum conhecido que pontua as suas phrases com esse fatigante entende? que os nervos do marquez de Paraná não podiam supportar. O entende? do individuo que quer forçar o ouvinte a nada perder do que elle diz, é muito diverso da formula habitual com que o imbecil marquez de Villamelon exprimia o que lhe faltava força para pensar. Ha tambem pontos, idéas, modos de sentir que o escriptor desejaria expressar por um outro Usted me entiende, levantando apenas a ponta do véo ao seu pensamento, alludindo a elle vagamente, sem nada precisar, de facto, sem nada dizer. Cada um de nós é só o raio esthetico que ha no interior do seu pensamento, e, emquanto não se conhece a natureza desse raio, não se tem idéa do que o homem realmente é. Nesta confissão da minha formação politica, devo, para não deixar vêr sómente a mascara, o personagem, dar uma especie de photographia dos symbolos que se imprimiram e reproduziram mais[Pg 44] profundamente no meu cerebro. Assim se reconhecerá que a politica não foi sinão uma refracção daquelle filete luminoso que todos temos no espirito.
A instabilidade a que me estou referindo, está grandemente modificada; a dualidade desappareceu em parte, não tão perfeitamente como em meu amigo Taunay... Este, apezar do seu sangue de Cruzado, apezar de ter escripto o seu livro classico em francez, e apezar da sua brilhante propaganda contra o nativismo, é o mais genuino nativista que eu conheço, porque não comprehende siquer a vida em outra terra, em outra natureza. Brasileiro de uma só peça é aquelle que não póde viver sinão no Brasil. Na mocidade fui um erratico, como o proprio Imperador acabou na velhice... Quando, porém, entre a patria, que é o sentimento, e o mundo, que é o pensamento, vi que a imaginação podia quebrar a estreita fôrma em que estavam a cozer ao sol tropical os meus pequenos debuxos d’almas, Ustedes me entienden, deixei ir a Europa, a historia, a arte, guardando do que é universal só a religião e as lettras.
[Pg 45]
De diversos modos a minha primeira ida á Europa influiu para enfraquecer as tendencias republicanas que eu porventura tivesse, e fortificar as monarchicas. Antes de tudo, o republicanismo francez, que era e é o nosso, tem um fermento de odio, uma predisposição egualitaria que logicamente leva á demagogia,—a sua maior figura é Danton, o homem da Setembrisada,—ao passo que o liberalismo, mesmo radical, não só é compativel com a monarchia, mas até parece alliar-se com o temperamento aristocratico. Si fosse preciso personificar o liberalismo, poder-se-ia chamar-lhe Lafayettismo, por ter sido Lafayette o principal representante dos gentilhommes libéraux de 1789. Esse estreito republicanismo, que confina nos dias de crise com a demagogia, e, exasperado pelo perigo ou excitado pela posse repentina, imprevista, do poder, chega á epidemia sanguinaria do Terror, é um facto, póde-se[Pg 46] dizer, de reclusão mental: dá-se sómente quando o espirito se encerra em algum systema philosophico ou fanatismo religioso, em uma doutrina ou em uma previsão social qualquer, e ahi se isola inteiramente do mundo externo. A intolerancia é, ou era, o caracteristico do republicanismo aggressivo francez, e a intolerancia é uma phobia da liberdade e do mundo; é um phenomeno de retracção intellectual, produzindo a hypertrophia ingenua da personalidade.
É provavel que em mim tambem existisse o embryão republicano; não duvido que, nascido em outra condição, si não tivesse meu pae na mais alta hierarchia da politica, si não descobrisse, como tantos outros que se revoltaram, modo de vencer o terrivel multi sunt vocati, pauci vero electi da antiga oligarchia, eu tambem tivesse acompanhado o movimento republicano de 1870, do qual faziam parte alguns dos espiritos que me fascinavam. Si assim fosse, porém, estou certo que o movimento abolicionista me teria, mais tarde, destacado delle, e que o 13 de maio me identificaria com a sorte da monarchia libertadora. Si, apezar de tudo, eu me tivesse conservado republicano até 15 de novembro,—nascesse eu em que condição nascesse, uma vez que fosse o mesmo que sou, isto é, que tivesse recebido no berço os mesmos rudimentos d’alma,—não tenho a menor duvida de que o abalo, o choque do desterro do Imperador teria posto fim á minha[Pg 47] phantasia republicana e restabelecido a sinceridade e a lucidez dos meus sentidos politicos. Como quer que fosse, a viagem de 1873 destruiu no germen toda e qualquer inclinação republicana, todo indicio de fanatismo que eu pudesse ter no segredo da minha natureza.
Não durou muito tempo essa viagem; foi apenas de um anno. A situação de espirito que ella creou já tinha antecedentes nas minhas relações com a pequena roda em que vivia então o corpo diplomatico em Petropolis e na Côrte, na convivencia com ministros e secretarios estrangeiros, alguns destes hoje ministros, e até embaixadores. A situação de espirito cosmopolita ou, antes, mundana, caracterisa-se pela comprehensão das soluções oppostas dos mesmos problemas sociaes, pela tolerancia de todas as opiniões, pela egual familiaridade com correligionarios e adversarios, pela idéa, para dizer tudo, de que acima de quaesquer partidos está a boa sociedade. Esse modo de ser, em politica, não é necessariamente eclectico, nem, ainda menos, sceptico: é sómente incompativel com o fanatismo, isto é, com a intolerancia, qualquer que ella seja. Foi a viagem á Europa a grande deslocação que consolidou a tendencia anti-systematica em que eu já estava, amortecendo em mim o predominio da força politica até 1879, quando pela primeira vez entro para o Parlamento; mesmo no Parlamento, porém, depois do anno de estréa, em que as emoções[Pg 48] da tribuna me fizeram tomar calor e interesse pela lucta dos partidos, desde 1880 até 1889, quando se fechou definitivamente para mim aquella carreira, posso dizer que continuou o effeito da minha deslocação, de 1873, da politica partidaria, porque todo o tempo que estive na Camara me acolhi sob uma bandeira mais larga e me colloquei em um terreno politicamente neutro, como era o da emancipação dos escravos.
Essa viagem que assim imprime á minha evolução politica o seu caracter definitivo, durou, como eu disse, pouco tempo. Partindo em agosto de 1873, volto ao Rio de Janeiro em setembro de 1874. É menos de um anno de Europa que tenho da primeira vez; desses onze mezes, mais ou menos, passo cinco em Pariz, tres na Itália, um mez no lago de Genebra, um mez em Londres, um mez em Fontainebleau. A razão desse mez de Ouchy e desse mez de Fontainebleau é que, em viagem, sempre que um logar me falla, eu me deixo prender por elle e me esqueço de viajar. É assim que, mais tarde, pretendendo dar ao Niagara a hora indispensavel para vêr as quedas, me deixo ficar vinte e tantos dias, sem poder arrancar-me daquelle espectaculo até o ter inteiramente absorvido.
O mez de Ouchy quer dizer, sem fallar de Lausanne, que os primeiros passeios a pé, á beira do lago, de um lado na direcção de Coppet, do outro, na direcção de Clarens, as visitas a Genebra[Pg 49] com a romaria obrigada a Ferney, me collocavam no theatro litterario, talvez o mais interessante da Europa moderna, depois de Weimar, porque Clarens é o scenario da Nova Heloisa, e está cheio da eloquencia de Rousseau; Ferney, o dos ultimos annos de Voltaire; Coppet, o da realeza de Corinna com a sua côrte vinda de Pariz, da Allemanha, da Italia, não esquecendo Lord Byron. Mais do que tudo, porém, nessa faixa de terra que liga intellectualmente o seculo XVIII ao seculo XIX, o que me teria prendido eternamente a Ouchy, si eu dispuzesse de algumas eternidades nesta vida, é o lago, o seu córte, a sua moldura.
O mez de Fontainebleau tem outra explicação: não é o castello e a floresta só por si o que me prende; é que volto da Inglaterra, tendo pela primeira vez fallado inglez com todo o mundo, fascinado por Londres, tocado de um começo de anglomania, que foi a doença da sociedade em França, e, portanto, até isso, accusa a construcção franceza do meu espirito, e Fontainebleau, com o repouso dos seus jardins symetricos, a frescura das suas aguas e das suas sombras, a tranquillidade do seu silencio, era o mais admiravel retiro que eu podia querer nesse mez da minha vida, que posso chamar o mez de Thackeray. Foi esse o claustro ideal em que, fechado com Vanity Fair, Pendennis, The Newcomes, não sei o que mais, sem diccionarios, adivinhando o que não podia[Pg 50] traduzir, comprehendendo tudo, exgottei em mim mesmo até ás lagrimas a impressão do grande romancista inglez,—o que fiz depois com George Eliot e Trollope, mas nunca fiz, sinto dizel-o, com Dickens, nem com Sir Walter Scott.
De certo, em minutos póde abrir-se e fechar-se deante dos nossos olhos um espectaculo que não esqueceremos nunca. Percorri em mezes a Italia, as grandes capitaes antigas sómente, sinto tambem dizel-o: não fiz siquer a romaria de arte pela Umbria; estive duas horas deante dos quatro monumentos da velha Pisa, que inspiraram a Taine a sua pagina mais eloquente: como esquecer, no emtanto, essa revelação immorredoura? Keats não disse tudo com o seu verso:
Não só o que é verdadeiramente bello é «essa alegria», de que elle falla, «para sempre», um raio interior que se incorpora á vida para nunca mais se apagar, quaesquer que sejam as tempestades, d’ella, como tambem uma só thing of beauty, um unico fragmento da verdadeira belleza, basta para illuminar a existencia humana inteira. Nenhum homem terá comprehendido bem duas grandes obras d’arte: a columna grega e a ogiva gothica, um Miguel Angelo e um Piero della Francesca, nem tão pouco duas vistas differentes de natureza: o oceano e os lagos de montanha; as paizagens da neve e os céos do Oriente. Em[Pg 51] caso algum, porém, póde-se sentir uma obra d’arte de passagem, isto é, sem que ella produza em nós uma vibração correspondente ao esforço, á sensação do creador quando a compoz.
Como é que em minutos nos poderia penetrar a impressão do artista que levou annos para realisar seu pensamento, e morreu ainda agitado por elle? Eu olhei, por exemplo, para a cathedral de Reims, com Rodolpho Dantas, em um dia que roubámos a Pariz, linguagem do boulevard; parei para vêr a cathedral de Amiens; roubei outro dia a Pariz para fazer a volta da cathedral de Rouen; fui a Strasburgo avistar o grande Münster de Erwin von Steinbach; com Arthur de Carvalho Moreira, um dos mais finos espiritos da nossa geração academica, fiz uma vez a tournée dos castellos historicos do Loire: Chenonceaux, Amboise, Blois, Chambord. Horas para tudo isso! Para Francisco I, Diana de Poitiers, a Renascença Franceza! Mais tarde, por não querer apressar-me assim, não fiz com o mesmo companheiro, o qual deu annos de sua vida intellectual exclusivamente aos goethekenners, a visita ás cidades de Goethe: Frankfort, Leipzig,—Strasburgo, vi, mas sem pensar em Frederica,—Wetzlar e Weimar. Por toda a parte, posso dizer, passei, como passei em 1892, por Coimbra, Alcobaça, Mafra, a Batalha, sem deixar siquer ás impressões o tempo de se gravarem no espirito. Uma hora para a cathedral de Reims! só não[Pg 52] foi um ultraje, uma offensa áquella divina fachada, porque lá estive em verdadeira humilhação, e não lancei olhares criticos ao seu sublime portal, a toda a sua incomparavel legenda, como o gamin lhe atira pedras. Uma hora em Amiens! n’esse «Parthenon da architectura gothica», como lhe chamou Viollet-le-Duc, e levando na mão a Biblia de Amiens de John Ruskin, o qual chega a invejar o humilde guarda, cuja funcção é espanar-lhe as esculpturas de madeira, como nunca outras foram talhadas!
De passagem, póde-se vêr muita coisa, mas não se tem a revelação de nada. A primeira condição para o espirito receber a impressão de uma grande creação qualquer, seja ella de Deus, seja das epochas,—nada é puramente individual,—é o repouso, a occasião, a passividade, o apagamento do pensamento proprio; dar á fórma divina o tempo que ella quizer para reflectir-se em nós, para deixar-nos comprehendel-a e admiral-a, para revelar-nos o pensamento originario donde nasceu.
De todos esses logares da Suissa ou da Italia, de Fontainebleau, de Pariz, de Londres, não trago sinão impressões de arte, impressões literarias, impressões de vida: o grande effeito em mim dessa viagem é assim apagar a politica; suspender durante um anno, inteiramente, a faculdade politica, que, uma vez suspensa, parada, está quebrada e não volta mais a ser a mola principal do espirito.[Pg 53] Eu não podia entretanto estar em França, em uma epocha de transformação, como foi essa de 1873-74, e ás vezes, em contacto com homens politicos, nem penetrar na sociedade ingleza, sem que a grande politica européa exercesse uma influencia positiva sobre o meu espirito, além da modificação operada negativamente, como eu disse, pelo meu afastamento do nosso scenario local e pela sensação d’arte. Apezar de tudo, eu tinha affinidades politicas inapagaveis, que poderiam, quando muito, ficar secundarias, subordinadas á attracção puramente intellectual. Dessa modificação positiva fallarei agora.
[Pg 54]
A epocha em que eu pela primeira vez tinha Pariz por menagem, era historicamente tão interessante que um espirito sujeito como o meu a fortes tentações politicas não poderia deixar de voltar-se para o espectaculo dos acontecimentos, apezar dos meus deslumbramentos artisticos e litterarios. Comprehende-se, porém, que a attracção contraria á politica era ainda mais poderosa, pela novidade, pelo esplendor das suas revelações continuas, do que o proprio drama contemporaneo. No Rio de Janeiro ou em S. Paulo, quem se alimente de politica, quando a sensação de um grande acontecimento se apossa delle, não encontra nada em redor de si que a corrija ou lhe sirva de contrapeso; felizmente, os acontecimentos raro são grandes. Para um joven brasileiro, porém, que pela primeira vez chega a Pariz, é quasi impossivel imaginar acontecimento que possa tornal-o indifferente ao maravilhoso que o[Pg 55] surprehende a cada passo, ou sensação politica que não fosse amortecida, dominada logo, pela sensação de arte.
Realmente, a lucta entre o duque de Broglie e monsieur Thiers, o theatro do palacio de Versalhes convertido em Assembléa Nacional, o Trianon dando as suas salas para o conselho de guerra de Bazaine, attrahiam-me, e fui um dos mais anciosos espectadores que assistiram nessa epocha aos debates daquella assembléa, ou que participaram da emoção daquelle grande processo militar, apezar de tudo pouco generoso.
Nunca hei de esquecer as frias manhãs de novembro em que o meu querido amigo José Caetano de Andrade Pinto, depois conselheiro de Estado, e eu atravessavamos de carro aberto as alamedas de Versalhes para tomar os nossos logares na propria tribuna do marechal Bazaine, por detraz delle, quasi os unicos que, talvez por lhe sermos estranhos e sermos estrangeiros, tinhamos a coragem de acompanhar daquelle logar os interrogatorios, a accusação e a defesa. No ultimo momento, quando se mandou fechar a tribuna particular do marechal, passámos para o prétoire. Que emoção a nossa quando o duque d’Aumale, de pé, como todo o Conselho, que formava semi-circulo em torno delle, a fita vermelha da Legião de Honra passada sobre o grande uniforme, o chapéo de plumas na cabeça como em um campo de batalha, na mão uma grande folha[Pg 56] de papel sobre a qual se projectava o reflector de uma lampada sustentada por traz delle por um imponente vulto de huissier, com a solemnidade de quem depois de um exilio de vinte e cinco annos representava outra vez perante a França, leu os tres Oui, à l’unanimité, que sibilaram pela sala toda como as balas de um pelotão!
Tambem me hei de lembrar sempre da sessão da Assembléa Nacional em que se votou o septennato de Mac-Mahon como medida provisoria, dilatoria, entre a restauração, temporariamente impossibilitada por causa da bandeira branca, e a republica, que não queriam proclamar. Si nesses sete annos morresse o conde de Chambord, regnante ainda o duque de Magenta, quem sabe si o conde de Pariz não reuniria os votos dos Chevaulégers e da alta finança do Centro Esquerdo! Afianço a quem me lê que, depois de um discurso pronunciado pelo duque de Broglie, com o seu accento nasal, a sua perfeição academica, sua maneira e suas maneiras ancien régime, vêr subir á tribuna o velho Dufaure e de improviso, sem phrases cadenciadas, sem periodos embutidos uns nos outros como um mosaico litterario, tomar entre as mãos o discurso do neto de Mme. de Staël, amassal-o, dar-lhe as fórmas que queria, até ninguem mais o poder reconhecer; assistir a um duello desses, da elegancia com a eloquencia, é um prazer que não se esquece mais. E não ouvi[Pg 57] Berryer! Alli, em Versalhes, eu encontrava ainda os restos da grande geração parlamentar que começou na Restauração e que trouxe as suas tradições, a sua escola de oratoria, para as Camaras de Luiz Felippe. Tudo isto, não é preciso dizel-o, me interessava no mais intimo de mim mesmo, intellectualmente fallando, mas um simples relance sobre quaesquer paginas do meu diario n’essa epocha basta para mostrar quanto o meu interesse se dividia e o meu espirito era solicitado em direcções contrarias por sensações quasi do mesmo valor...
Assim, por exemplo (o italico é para mostrar as opposições repentinas): «19 de novembro. A sessão do Septennato (em que foi votada a prorogação dos poderes do marechal).—21 de novembro.—Começo a ir ao processo Bazaine.—22 de novembro. Visita a Ernesto Renan.—2 de janeiro (1874) Chateauroux.—3 de janeiro. De manhã. Route de la Châtre. Bosques de álamos batidos pela ventania. Em Nohant ás 11 horas. Esperavam-me desde a vespera, tinham um aposento para mim. Maurice Sand, a mulher filha de Calamatta. Fazem-me almoçar. Ao meio-dia, vem George Sand. Conversámos até as 3 horas. Pediu-me para ficar algum tempo em Nohant. Fallámos de Renan, da Joconde, do theatro, de Bressant, do Imperador, que ella não viu.—4 de janeiro. Orleans. Cathedral. Casas de Jeanne d’Arc, Agnès Sorel,[Pg 58] Diane de Poitiers. Noticia da queda de Castelar...—3 de janeiro. Fomos ao château de Chambord. Escadaria de pedra à double rampe. Os FF e as Salamandras de Francisco I. O Bourgeois Gentilhomme, 1670. Souvent femme varie. Château de Blois. Quarto de Henrique II. Escada exterior espiral. Renascença Franceza.—10 de janeiro. Visita a monsieur Thiers».
Talvez o dia em que viram pela primeira vez a Venus de Milo ou a Joconde tenha passado indifferente para muitos que notaram as suas menores impressões politicas. Eu, porém, não poderia siquer lembrar-me de que fôra politico deante do marmore dos marmores ou do colorido que se esvae e de um traço que se apaga de Leonardo. Na propria politica eu achava-me dividido pela mais positiva dualidade que se pudesse dar. De sentimento, de temperamento, de razão, eu era um tão exaltado partidario de Thiers como qualquer republicano francez; pela imaginação historica e esthetica era porém legitimista; isto é, perante o artista imperfeito e incompleto que ha em mim, a figura do conde de Chambord reduzia a de Thiers a proporções moralmente insignificantes. Quando em um mesmo homem ha um lyrico e um politico, a lenda tem para elle uma projecção duas vezes maior que a da historia.
Nesse espaço de tempo a que me refiro, a Republica estava ainda em questão em França;[Pg 59] Thiers havia sido forçado a demittir-se, e a sua substituição, com surpresa delle, recahira no seu general em chefe, que dispunha, absolutamente, do exercito, o marechal de Mac-Mahon. A reconciliação do conde de Pariz com o chefe da casa de França tinha-se effectuado em Frohsdorf, em 5 de agosto; os cavallos para a entrada solemne do rei em Pariz estavam sendo negociados, quando o ministerio recuou, sentindo-se sem forças para impôr aos soldados a bandeira branca. A Restauração, póde-dizer, tinha abortado; mas, de um momento para outro, Henrique V podia inspirar-se no precedente de Henrique IV e acceitar a bandeira da Revolução. Ainda ha pouco, o general du Barail, que era o ministro da guerra do duque de Broglie, confessou que, si o conde de Chambord tivesse querido, não era o septennato, era sim, a monarchia que teria sido acclamada.
«O marechal, escreve elle, estava convencido de que o Principe cedêra a uma consideração patriotica: ao receio de attrahir sobre o seu paiz a animosidade e até as armas da Allemanha.» O testemunho recente do duque de Broglie e do embaixador em Berlim, o conde de Gontaut-Biron, indicam isso mesmo, que o conde de Chambord viu que a Restauração seria a guerra com a Allemanha e quiz poupar á França uma segunda e peior mutilação. Quem sabe, tambem, á vista dessas revelações diplomaticas, si não foi[Pg 60] esse mesmo o motivo secreto superior de Thiers para desertar a monarchia?
Quem viu o velho estadista empenhar-se na consolidação da Republica com todo o seu prestigio e o seu poder de persuasão, desde que levantára a França dos campos de batalha onde jazia ferida e retirára do poder da Communa Pariz ainda em chammas, póde pensar que não se dá toda essa dedicação a uma causa que não se tenha intimamente a peito. A verdade é que, si Thiers tivesse empregado em restaurar a monarchia a metade do esforço e do trabalho que empregou em consolidar a Republica, a realeza provavelmente teria sido proclamada, talvez ainda em Bordéos. Durante muito tempo elle manteve-se como o fiel da balança entre os partidos. Não se póde lêr sem emoção esses seus discursos de 1871, quando elle se vê entre os dois lados da Assembléa e inventa distincções para impedir que elles se tratem como inimigos deante do invasor estrangeiro, todas essas distincções subtis, como entre constituir e reorganizar, entre renunciar e reservar o poder constituinte.
Eu era como politico francamente thierista, isto é, em França, de facto republicano. Isto não quer dizer, porém, que me sentisse republicano de principio; pelo contrario. A terceira Republica em França foi fundada por monarchistas; foi uma transacção de estadistas monarchicos, como Thiers, Dufaure, Rémusat, Léon Say,[Pg 61] Casimir Périer, Waddington, e todo o Centro Esquerdo.
«Sôa como um paradoxo, escreveu, com admiravel lucidez, um dos habeis redactores da Quarterly Review em 1890, mas não é por isso menos exacto, que a principal barreira deante de uma restauração monarchica em França é o crescente conservatismo que foi sempre inherente ao caracter francez no meio de todas as ebullições do sentimento excitado. O povo sabe que uma mudança na fórma de governo só poderia ser realisada por meio de uma revolução ou como resultado de uma guerra, e recúa deante da perspectiva de uma e outra eventualidade, preferindo acceitar o presente estado de coisas, ainda que este não lhe desperte enthusiasmo.»
Esse espirito conservador da França, inimigo das mudanças bruscas, mesmo para melhorar, é bem caracterisado por esta anecdota, como a contou ha annos um correspondente do Times. Durante as barricadas de junho, quando se ouvia o canhão nas ruas de Pariz, mandaram uma companhia guardar o Ministerio de Estrangeiros. O official que commandava, de espada desembainhada, entrou na Secretaria, mas parou á porta de uma das salas, vendo que os empregados continuavam tranquillamente em suas mesas de trabalho, como si nada estivesse acontecendo. Vendo-o, o director levanta-se com[Pg 62] uma porção de papeis, promptos para a assignatura do ministro, approxima-se d’elle e, inclinando-se, pergunta-lhe com a maior deferencia e naturalidade: «É ao novo governo que tenho a honra de dirigir-me?»
Era esse conservatismo que pelo orgão, principalmente, de Thiers fundava então a terceira Republica; o mesmo que não deixou ainda divorciar-se della o espirito da burguezia liberal,—espirito a que se póde chamar Centre Gauche,—e nenhum analysta negará que a quinta-essencia desse conservatismo fosse monarchica, mais sinceramente monarchica do que o espirito de fronde das côteries restauradoras.
Essa primeira grande escola estrangeira em que apprendi, não me podia fazer republicano de sentimento, como não fez republicano de sentimento a nenhum dos seus fundadores, como não fez, nem faz, republicanos aos liberaes e conservadores inglezes, ou ás testas corôadas da Europa, que, sem má vontade á França, preferem a Republica á Realeza ou ao Imperio; como não faz republicano ao Papa, que protege poderosamente o actual systema francez. O grande effeito sobre mim daquella attitude de Thiers e dos parlamentares da Monarchia de Julho era dar-me uma grande prova experimental de que a fórma de governo não é uma questão theorica, porém pratica, relativa, de tempo e de situação, o que[Pg 63] em relação ao Brasil era um poderoso alento para a minha predilecção monarchica. O grande effeito era este: destruir o germen republicano latente, germen de intolerancia e de fanatismo. E esse foi o grande serviço de Thiers á França moderna: o de acabar com o antigo monopolio jacobino sobre a idéa republicana.
É o mesmo escriptor da Quarterly quem finamente observa: «Ainda que, por um lado, o genuino sentimento realista esteja quasi extincto, por outro, o sentimento republicano tambem por sua vez esfriou. A nova geração é republicana no sentido de não acreditar na possibilidade de uma restauração monarchica; o ardente republicanismo dos velhos doutrinarios, esse, porém, está quasi tão morto como a advocacia do direito divino dos reis.» Essa modificação, que está hoje terminada, começou em 1871, e foi o resultado da adhesão, não foi conversão, do Centro Esquerdo á situação republicana creada para a França na Europa pela derrota de Sedan. Esse duplo e egual esfriamento do realismo e do republicanismo, póde-se dizer que fórma a atmosphera natural do liberalismo contemporaneo e da cultura politica moderna, e, assim como elle aproveitava em França á republica, devia aproveitar no Brasil á monarchia. Foi esta a grande influencia politica que exerceu sobre mim a minha estada em França de 1873-74. Agora resta-me precisar a influencia rival que soffri, e a que chamarei[Pg 64] influencia litteraria, graças á qual voltei da Europa consideravelmente menos politico do que partira.
[Pg 65]
Desde a Academia a litteratura e a politica alternaram uma com outra, occupando a minha curiosidade e governando as minhas ambições. Nos primeiros annos a politica teve o predominio; com a viagem á Europa em 1873 passou este para a litteratura, e esse meu periodo litterario, começado então, dura até 1879, quando entro para a Camara...
Eu tinha sempre lido muito e de tudo na epocha em que me sentia mais politico do que homem de lettras. Em philosophia tinha assimilado um pouco de Spinosa, Plotino, Kant e Hegel; a nota mais sonora e mais sustentada de cada um delles vibra a mesma em meu espirito ainda hoje que sinto a grandeza da Philosophia Catholica e colloco Santo Thomaz de Aquino entre Aristoteles e Platão. Em religião, eu estava sob a influencia de Strauss, Renan, Havet, e formava, tambem eu, com os fragmentos de todos elles a minha[Pg 66] lenda pessoal de Jesus. Pelo espirito, posso dizer que habitei longos annos, da praia do Flamengo, as bordas solitarias e silenciosas do lago de Genezareth. Em critica litteraria, achava-me todo imbuido de Sainte-Beuve, Taine, Scherer, ainda que deste ultimo, de quem fallarei, não tanto como depois que o conheci. Em poesia, tinha passado de Lamartine para Victor Hugo, o de Hernani quasi exclusivamente, e de V. Hugo para Musset, como devia depois passar de Musset para Shelley, de Shelley para Goethe, escala em que parei, mas onde não espero morrer, porque tenho deante de mim o Dante,... o que não quer dizer que não tenha nos ouvidos a resonancia das grandes rimas novas de um Banville, e não admire o cinzelado dos fortes relevos de José-Maria Heredia. Em prosa, Chateaubriand e Renan dividiam o imperio com Cicero, cujas cartas são talvez o livro mundano que eu levaria commigo, si tivesse de ficar encerrado em uma ilha deserta. A phrase, a eloquencia, o retrato e a enscenação historica de Macaulay foi tambem uma influencia permanente que se imprimiu em meu espirito; hoje eu teria de accrescentar Mommsen, Curtius, Ranke, Taine, Burckhardt. Quanto ao romance, que é a imaginação abrangendo e modelando a vida, eu ficára sob a impressão de Jules Sandeau; vivia á sombra dos seus castellos antigos reconstruidos pela moderna burguezia, entre as duas sociedades, a[Pg 67] velha e a nova, que elle queria fundir pelo amor, e mais que a poesia d’alma de Sandeau, que foi muito grande e a que ainda um dia a França ha de voltar, era para mim indefinivel a impressão, aristocratica e feminina a um tempo, dos ultimos encantadores estudos de Cousin sobre a sociedade do seculo XVII.
Tudo isto formava o fundo do meu espirito, o humus da minha intelligencia, quando começou a phase litteraria, aquella em que senti uma impulsão interior irresistivel para entrar na litteratura. O periodo anterior era de receptividade, de plantio, de assimilações; a impressão, o prazer maior era o de lêr; agora, vinha a necessidade de produzir, de crear, e dava-se um facto singular, resultado desses annos de leituras francezas:—eu lia muito pouco o portuguez, ainda não começara a lêr o inglez e desapprendêra o allemão da Maria Stuart e de Wallenstein, com verdadeira magua do meu velho mestre Goldschmidt. O resultado foi que me senti solicitado, coagido pela espontaneidade propria do pensamento, a escrever em francez.
Um brilhante frequentador da Revista Brasileira, que possúe entre outras qualidades talvez a mais preciosa de todas, uma boa quantidade do fluido sympathico, admira-se dessa minha affinidade franceza; com effeito, não revelo nenhum segredo, dizendo que insensivelmente a minha phrase é uma traducção livre, e que nada seria[Pg 68] mais facil do que vertel-a outra vez para o francez do qual ella procede. O que me admira é que o mesmo não aconteça a todos os que têm lido tanto em francez como eu, mais do que eu, e cuja vida intellectual tem sido assim em sua parte principal, isto é, em toda a sua funcção acquisitiva, franceza. E talvez que elles têm uma força de assimilação maior do que a minha,—ou que eu tenho mais desenvolvida do que elles a faculdade imitativa? Não sei; mas essa susceptibilidade á influencia franceza parece natural em espiritos que recebem quasi tudo em francez e que têm horror á traducção; o purismo portuguez, esse, sim, é que, até tornar-se uma segunda natureza litteraria, exige uma constante vigilancia, a rectificação exacta de todo o trabalho de acquisição intellectual.
A verdade, para dizer tudo, é esta: admirando a força, o acabado, ás vezes a grandeza desse estylo vernaculo, em que ha uma peneira de furos imperceptiveis para impedir qualquer imperfeição estranha, e em que a nossa lingua modernisando-se parece conservar a tonalidade antiga, a minha phonographia cerebral adaptou-se comtudo ás leituras estrangeiras. Falta-me para reproduzir a sonoridade da grande prosa portugueza o mesmo echo interior que repete e prolonga dentro em mim, em gradações curiosamente mais intimas e profundas, á medida que se vão amortecendo, o sussurro indefinivel, por exemplo, de[Pg 69] uma pagina de Renan. Tem ahi o dr. Graça Aranha a confissão da minha deficiencia em relação á nossa lingua, cuja fibra forte, resistente, primitivamente aspera, lastimo não possuir. Limito-me, talvez por isso mesmo, a escrever, como elle vê, com aquelles dos seus fios e dos seus matizes que se ajustam ao meu tear francez.
O momento em que me appareceu essa febre do verso francez,—era em verso, ainda por cima, que eu me sentia forçado a compôr,—foi caprichosamente mal escolhido, porquanto coincidiu com a minha primeira viagem á Europa. Não ha duvida tambem que foi um resultado della. Da impressão d’arte, da impressão historica, da impressão litteraria do Velho Mundo, jorrava em mim a fonte desconhecida das Musas, que em outros têm jorrado do amor e da mocidade. Eu trazia versos de tudo o que vira, como outros viajantes trazem pedras ou folhas de hera do Coliseu, do Forum, de Posilippo, de Sorrento, de Pompeia, do lago de Genebra, de Versalhes. Esses versos, reuni-os em um volume—Amour et Dieu. Deus no titulo era tudo o que restava de um longo poema da Eternidade que eu tinha pensado em Ouchy, uma especie de réplica theista ao De Rerum Natura. Quando comecei a escrever esses versos, eu ignorava regras fundamentaes da prosodia franceza, como a da alternação das rimas; em pouco tempo tinha-me familiarisado com os segredos dos hiatos e hemistichios. Os[Pg 70] meus versos de Amour et Dieu pareceram-me,—a illusão do auctor é um dos mais finos estratagemas da Creação,—não direi eguaes, mas semelhantes aos melhores da decadencia em que a França já tinha entrado. Esses versos valiam muito pouco. Não que fossem todos elles maus, mas, porque o que teria realmente valor nelles, si fosse um novo caminho aberto por mim á imaginação, era de facto uma estrada já muito percorrida por ella, uma especie de via sacra das procissões antigas, na qual muito maiores espiritos tinham levantado por toda a parte columnas votivas. Isso por um lado, e por outro, porque o que nelles podia soar agradavelmente era declamação poetica, e não poesia: pertenceria á rhetorica, ou á eloquencia, e não á arte, que em tudo é creação.
Desde que toquei na illusão do auctor, vou abrir um parenthesis para uma reminiscencia, que talvez previna os jovens poetas contra uma das ciladas mais frequentes no caminho da mocidade, e até da velhice, a do elogio que de qualquer modo forçamos ou mesmo sómente desejamos.
Em 1872, quando Alexandre Dumas Filho escreveu a brochura L’Homme-Femme terminando pelo famoso Tue-la!, publiquei no Rio de Janeiro uma carta em francez a Ernesto Renan com o titulo Le droit au Meurtre. Um amigo entregou de minha parte um exemplar dessa brochura ao grande escriptor, a quem só me faltou tratar de divin maître. Hoje descubro,[Pg 71] mesmo litterariamente fallando, os lados fracos da maneira renaniana; naquelle tempo eu era o mais inteiramente suggestionado dos nossos renanistas. O meu emissario foi Arthur de Carvalho Moreira, de quem já fallei, e a carta que elle me escreveu dando conta da sua missão, podia ter a assignatura de Chamfort. L’Homme-Femme, segundo Renan, não era sinão un méchant paradoxe, que não valia a pena refutar; une plaisanterie, que não se devia tomar ao sério. Quando no anno seguinte fui a Pariz, uma das minhas primeiras visitas foi a Renan. Elle lembrava-se do meu nome e não se demorou em responder ao pedido que lhe fiz de alguns momentos para apresentar-lhe as minhas homenagens. Ainda conservo esses curtos pequenos autographos: «C’est moi qui serai enchanté de causer avec vous. Tous les jours vers 10 heures ¹⁄₂ ou onze heures, vous êtes sûr de me trouver. Votre très affectueux et dévoué—E. Renan. Rue Vanneau, 29.» Tres dias depois, eu subia os quatro andares do n. 29 da rua Vanneau e penetrava no mesmissimo modesto «apartamento» que Carvalho Moreira me havia photographado em sua carta. Dentro de minutos me apparecia Renan. Na minha vida tenho conversado com muito homem de espirito e muito homem illustre; ainda não se repetiu, entretanto, para mim, a impressão dessa primeira conversa de Renan. Foi uma impressão de encantamento; imagine-se um espectaculo[Pg 72] incomparavel de que eu fosse espectador unico, eis ahi a impressão. Eu me sentia na pequena bibliotheca, deante dos deslumbramentos daquelle espirito sem rival, prodigalisando-se deante de mim, litteralmente como Luiz II da Baviera na escuridão do camarote real, no theatro vazio, vendo representar os Nibelungen em uma scena illuminada para elle só.
Dessa entrevista não sahi só fascinado, sahi reconhecido. Renan deu-me cartas para os homens de lettras que eu desejava conhecer: para Taine, Scherer, Littré, Laboulaye, Charles Edmond, que devia apresentar-me a George Sand, Barthélemy Saint-Hilaire, por intermedio de quem eu conheceria Monsieur Thiers. As nossas relações tornaram-se desde o primeiro dia affectuosas, e, naturalmente, quando imprimi o meu Amour et Dieu, mandei-lhe um dos primeiros exemplares. Aqui está a carta que elle me escreveu:
«Sèvres, 15 août 1874. Cher Monsieur, J’ai tardé plus que je n’aurais dû à vous dire tout ce que je pense de vos excellents vers. Je voulais les relire et, puis, j’espérais quelque vendredi vous voir à Paris. Oui, vous êtes vraiment poète. Vous avez l’harmonie, le sentiment profond, la facilité pleine de grâce. Si vous voulez venir après demain, lundi, vers trois ou quatre heures, rue Vanneau, vous serez sûr de me trouver; nous causerons. Je suis prêt à faire tout ce que vous[Pg 73] voudrez pour la Revue et les Débats. Malheureusement ces recueils sont depuis longtemps brouillés avec la poésie. Ce sont des vers comme les vôtres qui pourraient les réconcilier. Croyez à mes sentiments les plus affectueux et les plus dévoués.—E. Renan.»
Não é verdade que, para um joven brasileiro que escrevia pela primeira vez o francez, uma carta assim devia ser uma sensação de fazer epocha na vida? Leiam agora esta traidora pagina dos Souvenirs d’Enfance et de Jeunesse, que seguramente não fui o unico a inspirar. Vou commetter o crime de traduzir Renan:
«Desde 1851 acredito não ter praticado uma só mentira, excepto, naturalmente, as mentiras alegres de pura eutrapelia, as mentiras officiosas e de polidez, que todos os casuistas permittem, e tambem os pequenos subterfugios litterarios exigidos, em vista de uma verdade superior, pelas necessidades de uma phrase bem equilibrada ou para evitar um mal maior, como o de apunhalar um auctor. Um poeta, por exemplo, nos apresenta os seus versos. É preciso dizer que são admiraveis, porque sem isso seria dizer que elles não têm valor e fazer uma injuria mortal a um homem que teve a intenção de nos fazer uma civilidade.»
A meu respeito, si uma vaga lembrança dos meus versos lhe occorreu tanto tempo depois ao[Pg 74] escrever essa graciosa ironia, o grande escriptor enganou-se em um ponto: elle não me teria apunhalado dizendo que os meus versos não valiam nada, em vez de dizer-me que eram admiraveis. George Sand escreveu-me tambem a respeito do meu livro: «Il est d’une rare distinction et les nobles pensées y parlent une noble langue», e, curiosamente, Madame Caro egualmente se referia a «l’œuvre qui exprime dans un noble style la plus noble sympathie pour notre malheureuse patrie.» Todos esses cumprimentos, toda essa nobreza, eu a recolhia e guardava preciosamente como provas da generosa amabilidade e cortezia do caracter francez. Quanto ao valor dos meus versos, porém, a impressão que me ficou e apagou todas as outras, foi o silencio frio, impenetravel, entretanto polido, attencioso, sympathico, de Edmond Scherer. Contei esse episodio para acautelar o talento que se estréa contra a perigosa seducção da eutrapelia litteraria. Conheço entre nós um mestre dessa arte do espirito, Machado de Assis, mas este, espero, não fará confissões. «Quem se não póde conformar á perda da propria honra, diz S. Felippe Neri, nunca avançará na vida espiritual.» O escriptor juvenil que não se resignar ao sacrificio da sua «honra» litteraria, não fará progressos em litteratura.
[Pg 75]
Agora, as razões pelas quaes eu naufragaria sempre no verso. Si o que estava nas paginas de Amour et Dieu fosse novo, eu poderia, de certo, orgulhar-me do meu pensamento; ainda assim, entretanto, não seria poeta. Não era novo, porém. Tomem-se essas quadras:
Si ninguem tivesse dito o mesmo antes, essa humanidade esperando a adopção de Deus, que é ainda, por emquanto, um suspiro do seu coração, seria o germen de uma seductora philosophia;[Pg 76] aquelle trecho, porém, é a traducção, em verso fraco e mal trabalhado, do que Renan mesmo tomára aos allemães e tinha expressado de modo perfeito na mais elegante das prosas. O que me enganava nos meus versos, parecendo-me sonoro e elevado, não pertencia á poesia, pertenceria á eloquencia. Aqui está uma ode á França; é a Alsacia-Lorena que falla á Allemanha:
Mme. Caro, no agradecimento que me manda, escreve: «Os dois braços mutilados levantados para os Céos, acabarão, tenho confiança, por vencer o destino.» Os dois braços mutilados podiam ser os dois joelhos dobrados em oração, os dois pés acorrentados, ou o figado do Prometheu dos Vosges devorado pela aguia negra da Prussia e renascendo sempre. Tudo isto é do dominio da rhetorica e do pamphleto politico: é um libello em hemistichios como a Nemésis de Barthélemy. Nada é mais contrario á poesia do que a emphase, o logar-commum e o pathetico da oratoria.[Pg 77] Onde começa o advogado ou o tribuno, acaba o poeta.
O facto é que não possúo a fórma do verso, na qual a idéa se modela por si mesma e donde sáe com o timbre proprio da verdadeira rima, que nenhum artificio nem esforço póde imitar. Isto, por um lado, quanto á pequena poesia, á poesia solta, ao que se póde chamar a musica da poesia. Quanto á grande poesia, á poesia de imaginação e creação, poema, romance, bailada que fosse, para essa eu seria incapaz, além da insufficiencia do talento, pela falta de coragem para habitar a região solitaria dos espiritos creadores, os quaes vivem naturalmente entre figuras tiradas de si mesmos, sem vida propria, automatos da sua intelligencia e da sua vontade, como em um sonho accordado. Nessa altura, onde tudo é ficticio, tudo irreal, tudo phantastico, a poesia tem para mim o terror do adytum da Pythia. Mesmo quando as figuras sejam meigas, suaves, humanas, a creação envolve sempre alguma coisa de mysterioso e terrivel; a completa abstracção, que ella suppõe, da realidade exterior, do mundo dos sentidos, me daria vertigem.
Ha, além da poesia de sentimento e da poesia de creação, outra poesia. O verso é a mais nobre fórma do pensamento, a mais pura crystallisação da idéa, e, como se tem dito, o que não se póde expressar em verso não vale quasi a pena ser conservado. Essa poesia, porém, que engasta as bellas[Pg 78] idéas na mais duravel e perfeita da cravações, pertence quasi á especie dos proverbios, em que se condensa e perpetúa a sabedoria humana. Em Homero ella confunde-se com a historia; em Dante com o catholicismo; em Gœthe com a arte e com a sciencia. Essa é do dominio dos mais altos genios.
A poesia ao meu alcance só podia ser a humilde nota individual; mas, como eu disse, não encontrei em mim a tecla do verso, cuja resonancia interior não se confunde com a de nenhum timbre artificial. Quando mesmo, porém, eu tivesse recebido o dom do verso, teria naufragado, porque não nasci artista. Acredito ter recebido como escriptor, tudo é relativo, um pouco de sentimento, um pouco de pensamento, um pouco de poesia, o que tudo junto póde dar, em quem não teve o verso, uma certa medida de prosa rhythmica; mas da arte não recebi sinão a aspiração por ella, a sensação do orgão incompleto e não formado, o pezar de que a natureza me esquecesse no seu côro, o vacuo da inspiração que me falta... Ustedes me entienden. «O artista, disse Novalis, deve querer e poder representar tudo.» Dessa faculdade de representar, de crear a menor representação das coisas,—quanto mais uma realidade mais alta do que a realidade, como queria Gœthe,—fui inteiramente privado. Nem todos os que têm o dom do verso são por natureza artistas, e nem todos os artistas têm o dom[Pg 79] do verso: a prosa os possúe como a poesia; a mim, porém, não coube em partilha nem o verso nem a arte.
É singular como entre nós se distribue o titulo de artista. Muitas vezes tenho lido e ouvido fallar de Ruy Barbosa como de um artista, pelo modo por que escreve a prosa. No mesmo sentido poder-se-ia chamar a Krupp artista: a fundição é de alguma fórma uma arte, uma arte cyclopica, e de Ruy Barbosa não é exaggerado dizer, pelos blocos de idéas que levanta uns sobre outros e pelos raios que funde, que é verdadeiramente um cyclope intellectual. Mas o artista? Existirá nelle a camada da arte? Si existe, e é bem natural, ainda jaz desconhecida delle mesmo por baixo das superposições da erudição e das leituras. Eu mesmo já insinuei uma vez: ninguem sabe o diamante que elle nos revelaria, si tivesse a coragem de cortar sem piedade a montanha de luz, cuja grandeza tem offuscado a Republica, e de reduzil-a a uma pequena pedra. Aqui está outro, José do Patrocinio, que não é tambem um artista, ainda que em sua prosa se encontre o veio de ouro da poesia, filão, é certo, fugitivo, e que se perde a cada instante na rocha politica. Della poder-se-ia extrahir verdadeira poesia; fazer com as palhetas da sua phrase pelo menos uma imagem, a da loura mãe dos captivos, assim como com o sopro da sua eloquencia de combate se faria um baixo-relevo para um arco de triumpho: o Chant du[Pg 80] Depart da abolição. Tambem elle não tem a faculdade do verso, no qual naufragaria como naufragou no romance, porque o seu reflexo intellectual tem a vibração e a rapidez do relampago, e o verso é por natureza diamantino. Por isso mesmo tambem sua prosa, em que por vezes ha o toque da poesia, e quasi o calor do sentimento creador, ainda não pertence á arte, como pertence a de Chateaubriand, a de Renan, por exemplo, porque não é um estylo. Não tem governo, tem apenas medida; reflecte a acção confusa, a agitação perpetua de uma epocha desequilibrada, sem um instante de calma, de eternidade, em sua obra, no todo, genial. Agora outro muito diverso. Haverá quem não sinta a musica innata de Constancio Alves? Este é bem da ordem dos passaros, tem o canto; a prosa delle gorgeia, sobe, trina; no emtanto, si quizesse reduzir a uma obra d’arte a ironia melodiosa que tem em si, que restaria della?
Eu disse que me faltava o dom do verso. O timbre do verso reconhece-se em qualquer quadra. Tome-se Olavo Bilac, por exemplo. Não posso fallar de Luiz Murat, que tem maior voadura de imaginação, porque tenho até hoje respeitado instinctivamente o cháos da sua arte; sinto que ha no seu talento os elementos da poesia, menos a ordem, o principal de todos, mas que, felizmente para elle, se adquire, ao passo que os outros são de herança. Suas fórmas confusas e intricadas[Pg 81] parecem-me de muda, e eu o aguardo na epocha em que a mocidade tiver gastado a sua violencia e elle entrar no bosque das Musas levando o silencio e a tranquillidade na alma. «Elle ensinou-me, disse Gœthe fallando de Oeser, que a belleza é simplicidade e repouso, do que se segue que nenhum joven póde tornar-se un mestre.» De Murat esperarei para fallar que primeiro elle encontre o seu Oeser. Tome-se Bilac, porém. Basta lêr a Profissão de Fe em Panoplias, para vêr que o verso nasceu com elle, que não é um esforço, um trabalho, mas a expressão livre, franca, natural do pensamento:
Não me cabe inquirir si o artifice se cingiu sempre em sua obra ás regras do officio, que tão perfeitamente esculpiu; o buril da rima, porém, está em sua mão e ninguem se póde enganar sobre a especie de metal que elle é digno de lavrar.
O facto que eu quería assignalar, é sómente que contrahi em França neste anno de 1873-74 a aspiração de auctor, a qual se desenvolveu ao contacto de grandes espiritos da epocha, que me acolheram como eu podia desejar, especialmente Renan, Scherer, George Sand.
[Pg 82]
Renan me déra o conselho, que transmitto á nova geração de litteratos, de entregar-me a estudos historicos. Não ha em regra nada mais ingrato, mais futil, do que a producção que o individuo tira toda de si, e é o que acontece quando o talento não tem uma profissão litteraria séria. Ha estudos, como as humanidades, que são apenas a habilitação do espirito para a carreira das lettras; quem os tem póde dizer que possúe a ferramenta do seu officio; além da ferramenta, ha, porém, que escolher o material. O material em que trabalham os nossos homens de lettras, são os costumes, a sociedade, quando são romancistas ou dramaturgos; as leituras, quando são criticos, a propria vida ou impressões, quando são poetas.
O material preferido é, como se vê, todo elle pouco consistente, ephemero, em parte grosseiro, em parte imprestavel ou insufficiente, e assim a producção é quasi toda facil, improvisada, sem trabalho anterior, sem investigações, sem esforço, sem tempo, sem nenhum elemento que revele continuidade, ambição. Faltando a disciplina e a emulação de uma especialidade, que acontece? A intelligencia contráe o habito da dissipação, da indolencia, do parasitismo; o talento relaxa-se, perde todo o peso especifico. Temos por isso uma litteratura desoccupada; o nosso campo litterario é composto de flâneurs. A verdade é que vae augmentando consideravelmente em nosso tempo o[Pg 83] que Matthew Arnold traduziu por inaccessibilidade ás idéas, e que esse novo Philistinismo reduzirá a arte dos nossos banquetes litterarios a um só genero de iguarias, o genero nature. O publico, o protector moderno das lettras, cuja generosidade tem sido tão decantada, não passa de um Mecenas de meia-cultura, mesmo em França e na Inglaterra. Aconselhar a jovens brasileiros que se dediquem a estudos historicos desinteressados, é aconselhar-lhes a miseria; mas as leis da intelligencia são inflexiveis e a producção do espirito que não se alimenta sinão de sua propria imaginação, tem que ser cada dia mais frivola e sem valor.
Não me aproveitei do conselho de Renan sinão tarde de mais na vida, quando comecei a preparar a biographia de meu pae, que é uma perspectiva da epocha toda de D. Pedro II. O aviso, porém, ahi fica para os que quizerem desenvolver e aperfeiçoar o talento litterario que possuem, em vez de dispersal-o e nada apurar delle. O conselho não deixou, entretanto, de influir no meu espirito, si não para me disciplinar a mim mesmo, ao menos para me fazer aquilatar o valor do trabalho e da indagação e sentir a inutilidade, a vacuidade do que é puramente pessoal e espontaneo, desde que não seja caracteristico.
Das minhas conversas com Scherer, o que me contagiou foi a sua admiração pelo romance inglez, que parecia ser a litteratura da casa.—Adam[Pg 84] Bede, Jane Eyre, etc. Em mim a conquista anglo-saxonia começou por Thackeray, que li então, como já disse, no retiro de Fontainebleau. A respeito dos meus versos, o grande critico manteve esse silencio desanimador dos medicos que não sabem enganar, quando os doentes ingenuos que se fizeram auscultar, querem surprehender e penetrar com perguntas insidiosas a realidade do seu estado.
A febre poetica que se tinha apossado de mim com esse primeiro ensaio de Amour et Dieu, não devia ceder facilmente; eu queria resgatar esse esboço, que me parecia inferior e imperfeito, substituil-o, e uma idéa, que estava em germen em uma de suas poesias, desprendeu-se delle e tomou em meu espirito as proporções extravagantes de um grande drama em verso. Deste fallarei mais tarde. Como se vê, bem pouco do politico militante restava depois dessa primeira viagem á Europa; eu trocára em Pariz e na Italia a ambição politica pela litteraria: voltava cheio de idéas de poesia, arte, historia, litteratura, critica, isto é, com uma espessa camada européa na imaginação, camada impermeavel á politica local, a idéas, preconceitos e paixões de partido, isoladora de tudo o que em politica não pertencesse á esthetica, portanto tambem do republicanismo,—porque a minha esthetica politica tinha começado a tornar-se exclusivamente monarchica.
[Pg 85]
Durante os cinco annos que seguem (1873-78), a politica é para mim secundaria, quasi indifferente, mas esse mesmo estado de espirito é, com relação á monarchia, um processo de consolidação, porquanto, graças a todas essas fascinações de arte e de poesia, a minha esthetica politica, segundo a expressão de que me servi, encerrava-se, isolava-se, ciystallisava-se na fórma monarchica. Quem me acompanha póde estar certo de que não existe no que vou dizendo nenhuma sombra dessa admiração pela propria imagem, a que Jules Lemaître deu o nome de narcisismo moral. A verdade é que, entre as molas do meu mechanismo, nenhuma teve a elasticidade e a força da que eu chamaria a mola esthetica. O meu juizo esthetico foi, em todas as epochas, ainda o é hoje, imperfeito, instinctivo, oscillante, como uma agulha que girasse por todo o mostrador: para seguir algumas das suas indicações, faltou-me a[Pg 86] resolução, a força de caracter, a coragem e o espirito de sacrificio precisos; mas, em compensação, posso dizer que, através da vida, aspirei ao Absoluto, naufragando sempre, porque na vida da intelligencia, ao contrario da vida espiritual, onde, no dizer de um de seus grandes guias, não ha nada que se pareça com ancoradouro, ha um ancoradouro, mas esse é a religião, e a religião me pareceu, até bem pouco atraz, o remanso das mulheres e das creanças. Durante toda a minha carreira movi-me sempre por algum magnete moral; meus erros foram desvios de idealisação; eu nunca teria podido confessar uma idéa, uma crença, um principio, que não fosse para mim um iman esthetico. Sendo assim, si a minha esthetica fosse republicana, isto é, atheniense, romana, florentina, nunca a monarchia me teria feito despregar a sua bandeira no campo da imaginação, como um cavalleiro andante. Para sentir, sempre que a hasteei, a minha dignidade, a minha altivez, o meu espirito expandir-se, era preciso que o signo monarchico actuasse em mim, como uma parcella da arte que está misturada com a historia e que de algum modo a divinisa.
Esse processo de idealisação, pelo qual a fórma monarchica se incorporou á minha consciencia esthetica, se associou á minha idéa de arte, é o principal trabalho politico que se opera em mim desde o anno de 1873 até o anno de 1879, em que tomei assento na Camara. Nesse intervallo,[Pg 87] eu tinha voltado á Europa e vivido um anno nos Estados-Unidos. Entram neste periodo as influencias da Inglaterra e da sociedade ingleza, da America do Norte e da carreira diplomatica, além do desenvolvimento da influencia litteraria, sob a qual voltei de Pariz em 1874.
Esta ultima foi tão forte que, nos dois annos que passei novamente no Rio de Janeiro, não me occupei de politica; fiz, a pedido do Imperador, algumas conferencias na Escola da Gloria sobre o que tinha visto de Miguel-Angelo, de Raphael e dos grandes pintores venezianos; fui collaborador litterario do Globo e travei com José de Alencar uma polemica, em que receio ter tratado com a presumpção e a injustiça da mocidade o grande escriptor,—(digo receio, porque não tornei a lêr aquelles folhetins e não me recordo até onde foi a minha critica, si ella offendeu o que ha profundo, nacional, em Alencar: o seu brasileirismo); escrevi numa revista que appareceu e logo morreu no genero da Vie Parisienne, a Epocha, e, desde os fins de 1875, entreguei-me á composição de um drama, em verso francez, cuja factura me absorveu durante mais de dois annos.
A idéa do meu drama era o problema da Alsacia-Lorena. Isso revelava bem o fundo politico da minha imaginação. A politica, felizmente para a intelligencia que nasceu com essa diathese, tem lados ainda indefinidos que confinam com a arte,[Pg 88] a religião e a philosophia, isto é, para fallar a linguagem hegeliana, com as tres espheras em que se manifesta o espirito do mundo. O meu drama com ser francez, de procedencia, de motivo sentimental, elevava-se, como composição litteraria, acima do espirito de nacionalidade, visava á unidade da justiça, do direito, do ideal entre as nações, e baseava-se no seu entrecho sobre as affinidades e sympathias que ligaram a França intellectual moderna á Allemanha de Klopstock, Wieland, Lessing, Schiller, Gœthe e Heine, de Herder, Winckelmann, Jean Paul Richter, Johannes Muller, de Novalis e dos Schlegel, de Kant, Fichte, Hegel, Schelling, de Bach, Gluck, Haydn, Mozart, Schubert, Schumann e Beethoven, em uma palavra, á alma parens do seculo XIX.
Por uma apparente anomalia, ao passo que eu era politicamente, como disse, thierista ou republicano em França, o meu drama sahia todo legitimista e catholico; os personagens eram tirados para mim, não por mim (a producção intellectual é involuntaria), da velha rocha em que se estratificaram as grandes tradições francezas. Isso quer dizer que o inconsciente, que é em qualquer de nós o nosso unico talento, o nosso unico poder creador, era em mim, qualquer que fosse a causa, fosse ella o instincto, fosse a cultura, distinctamente monarchico.
Uma composição litteraria assim caracterisada[Pg 89] não podia deixar de ser para o meu espirito uma forte modelação politica. Para não voltar a fallar desse drama, cuja unica qualidade é, talvez, ser inedito, contarei desde já que, depois de o fazer e refazer, copial-o e tornar a copial-o, acabei-o em 1877, em Nova-York. Tenho no meu Diario desse anno a data em que, depois de um jantar, com egoismo inflexivel de auctor, infligi a leitura desses cinco actos a um pequeno comité de amigos de que fazia parte o barão Blanc, então ministro da Italia em Washington, ultimamente ministro de Estrangeiros. Elle me terá perdoado esse sacrificio, ao qual elle mesmo se offereceu. O enigma europeu da Alsacia-Lorena, que é o fundo da triplice alliança, lhe terá imposto na Consulta serões mais penosos e fatigantes do que aquella assentada do Buckingham Hotel.
A indifferença politica em que me achava, a predisposição litteraria que acabo de descrever, fez-me entrar para a diplomacia em 1876. Eu tinha perdido cinco annos desde a formatura, mas nesses cinco annos não me teria occorrido acceitar qualquer posto das mãos de um ministro conservador, eu liberal. O preconceito, o extremo partidario, impediam essa apostasia. Nesse intervallo, porém, a intransigencia se tinha gastado toda e agora me parecia plausivel a idéa, que nunca antes me viera, de que os cargos publicos não são monopolio do partido que está no poder e devem ser confiados a quem melhor os póde desempenhar.[Pg 90] Nem era pretenção da minha parte pensar que um logar de addido de legação estava ao nivel da minha capacidade e situação social. Era, pelo contrario, uma sensivel reducção de pretenções anteriores, porque, ao sahir da Academia, creio que só o logar de ministro me teria contentado. A ambição em mim foi-se progressivamente restringindo á medida que fui vivendo. Não quero dizer que se tenha deslocado do pessoal para o real, do ephemero para o duradouro, isto é, que se tenha gradualmente elevado; graças a Deus, porém, na esphera das competições que formam a lucta pela vida ella nunca deu combate a ninguem.
Talvez eu tenha sentido um pouco a desdenhosa voluptuosidade do proverbio: «as glorias que vêm tarde já vem frias». Como a ambição foi em mim toda de imaginação e despontou pelos meus dezoito ou vinte annos, nada podia ter vindo para mim que não chegasse tarde. Do ponto de vista em que me colloco hoje, sinto bem que o pouco que me tocou, veiu a tempo, no momento em que eu estava apto para o receber, e que o que não veiu, deixou de vir porque não me convinha ainda, e eu teria naufragado. A impaciencia da mocidade, porém, não me deixava apreciar então a generosidade do veto da Fortuna, que me excluia do que eu não estava interiormente preparado para aproveitar. Nesse tempo, eu não tinha a menor idéa de que uma grande vida publica[Pg 91] precisa ser allumiada, como a architectura de Ruskin, entre outras pelas lampadas do sacrificio, da verdade, da imaginação, da belleza, e da obediencia. O talento, a fórma, a eloquencia, o que tinha brilho exterior, tinha para mim maior valor do que o espirito interior de fé, continuidade e submissão, que, unico, inspira e fórma os verdadeiros padrões humanos.
Como quer que seja, tenho daquelle cargo de addido de legação, unico que exerci, a mais reconhecida e affectuosa lembrança. Nunca mais teria eu podido acceitar outro; com effeito, pouco depois entrava para a Camara, e dava-se a minha incompatibilidade de abolicionista militante com o systema politico da escravidão, e, acabada esta, logo em seguida, surgia para mim outra abstenção forçada: a da defesa da monarchia contra os partidos. O signatario daquelle decreto foi o barão de Cotegipe. A nomeação não era de certo escandalosa; em qualquer ministerio de Estrangeiros onde não existisse patronato, eu tiraria o meu logar de addido em concurso: não tenho, porém, em mim essa medida da gratidão com que outros apuram por millimetros o favor ou o serviço que recebem; não conheço a arte de analysar, de decompôr, pelas intenções secretas e circumstancias fortuitas, o obsequio, a distincção, o beneficio que nos é feito, de modo a ser o acceitante ás vezes quem generosamente captiva e obriga o doador. Si o barão de Cotegipe me[Pg 92] tivesse nomeado de vez ministro plenipotenciario, o seu credito contra mim não teria sido maior do que foi com essa designação para o primeiro degráu da carreira diplomatica.
[Pg 93]
Talvez eu pudesse resumir o processo da minha solidificação politica, dizendo sómente que a monarchia faz parte da atmosphera moral da Inglaterra e que a influencia ingleza foi a mais forte e mais duradoura que recebi.
Quando pela primeira vez desembarquei em Folkestone, entrando na Inglaterra, eu tinha passado mezes em Pariz, tinha atravessado a Italia, de Genova a Napoles, tinha parado longamente á margem do lago de Genebra, e não me podia esquecer da suave perspectiva, á beira do Tejo, de Oeiras a Belém, cuja tonalidade doce e risonha nunca outro horizonte me repetiu. Por toda a parte eu tinha passado como viajante, demorando-me ás vezes o tempo preciso para receber a impressão dos logares e dos monumentos, o molde intimo da paizagem e das obras de arte, mas desprendido de tudo, na inconstancia continua da imaginação. Quando avistei,[Pg 94] porém, da janella do wagon, por uma tarde de verão, o tapete de relva que cobre o chão limpo e as collinas macias de Kent, e no dia seguinte, partindo do pequeno appartment que me tinham guardado perto de Grosvenor Gardens, fui descortinando uma a uma as fileiras de palacios do West End, atravessando os grandes parques, encontrando em St. James’s Street, Pall Mall, Piccadilly, a maré cheia da season, essa multidão aristocratica que a pé, a cavallo, em carruagem descoberta, se dirige duas vezes por dia para o rendez-vous de Hyde Park, e, dias seguidos, penetrei em outras regiões da cidade sem fim, conhecendo a população, a physionomia ingleza toda, raça, caracter, costumes, maneiras,—posso dizer que senti minha imaginação excedida e vencida. A curiosidade de peregrinar estava satisfeita, trocada em desejo de parar alli para sempre.
Ás vezes me distraio a pensar que povo eu salvaria, podendo, si a humanidade se devesse reduzir a um só. Minha hesitação seria entre a França e a Inglaterra,—aliás, sei bem que no começo do seculo quem eliminasse a Allemanha do movimento das idéas, da poesia, da arte, eliminaria o que elle teve de melhor. Entre a França e a Inglaterra, porém, fico sempre incerto. O meu dever seria, talvez, soccorrer a França. «Si Mme. Récamier e eu estivessemos a nos afogar, qual de nós duas o senhor salvaria?» perguntou uma vez Madame de Staël ao seu amigo Talleyrand.[Pg 95] «Oh! madame, vous savez nager.» A Inglaterra, tambem, sabe nadar.
O genio francez tem todos os raios do espirito humano, principalmente os raios estheticos; o genio inglez não os tem todos, tem até uma opacidade singular nos fócos do espirito, que merecem o nome de francezes, em quasi todos os que merecem o nome de athenienses. A Inglaterra—a associação de idéas tem sido muitas vezes feita,—é a China da Europa; isto é, tem uma individualidade inamolgavel, incapaz de tomar a physionomia commum. Latinos, Allemães, Slavos formarão uma só familia, por muitissimos traços communs, antes que o Inglez deixe de ser um typo sui generis, á parte do typo collectivo europeu. Por esse motivo, a França, só, representaria melhor a humanidade do que a Inglaterra; ha n’ella mais attributos universaes, maior numero de faculdades creadoras, de qualidades de tronco, maior somma de hereditariedade humana, de possibilidades evolutivas portanto, do que no particularismo e no exclusivismo inglez. Em compensação, a raça ingleza parece ser mais sã, mais elastica; ter maior vigor mesmo de genio e de creação; maior provisão de vida e de força,—ainda que a força sem a imaginação e a cultura, (que na Inglaterra tem sido, em grande parte pelo menos, estrangeira), possa degenerar em brutalidade e egoismo. Estão ahi as razões da minha hesitação, quando imagino um novo diluvio[Pg 96] universal e me pergunto que paiz, nos mais altos interesses da intelligencia humana, mereceria o privilegio de construir a arca.
Qualquer que seja a explicação, o facto é que nunca experimentei esse prazer de viver em Pariz, que foi e é a paixão cosmopolita dominante em redor de nós. A grande impressão que recebi não foi Pariz, foi Londres. Londres foi para mim o que teria sido Roma, si eu vivesse entre o seculo II e o seculo IV, e um dia, transportado da minha aldeia transalpina ou do fundo da Africa Romana para o alto do Palatino, visse desenrolar-se aos meus pés o mar de ouro e bronze dos telhados das basilicas, circos, theatros, thermas e palacios: isto é, para mim, provinciano do seculo XIX, foi, como Roma para os provincianos do tempo de Adriano ou de Severo: a Cidade. Essa impressão universal, da cidade que campeia acima de todas, senhora do mundo pelo milliarium aureum, o qual no seculo XIX tinha que ser maritimo; essa impressão soberana, tive-a tão distincta como si a humanidade estivesse ainda toda centralisada. O effeito dessa impressão de dominio foi uma sensação de finalidade, que sómente Londres me deu:—não de finalidade intellectual, como dá a Athenas de Pericles, a Florença dos Medicis, a Roma de Leão X, ao homem de arte, a Versalhes do seculo XVII ao homem de côrte, a Roma das Catacumbas ao homem de fé, a Roma antiga ao homem do passado, Niebuhr,[Pg 97] Chateaubriand, Ampère, a pequena Weimar do fim do seculo XVIII ao homem de letras, ou Pariz, ainda neste seculo, até Renan e Taine, ao homem de cultura; finalidade material, si me posso expressar assim, de grandeza esmagadora e imperio illimitado.
Donde procede essa impressão universal de Londres, seguida dessa sensação de finalidade, que talvez seja toda subjectiva? (Não me parece entretanto.)
O que dá á «Metropole» esse ascendente imperial, quero crer, é a sua massa gigantesca, as suas perspectivas infindas, a solidez eterna, egypciaca, das construcções, as immensas praças, e os parques que se abrem de repente na emboccadura das ruas, como planicies onde poderiam errar grandes rebanhos, á sombra de velhas arvores, á beira de lagos que merecem pertencer ao relevo natural da Terra. Este ultimo é, para mim, o traço dominante de Londres: o estrangeiro supporia ter entrado no campo, nos suburbios, quando está no coração da cidade; é a mesma impressão, porém, incalculavelmente mais vasta, que dava a Casa de Ouro: «O ouro e as pedras preciosas não causavam tanta maravilha, por serem já muito vulgares, e uma ostentação ordinaria do luxo, como os campos e os lagos, e por uma parte as artificiaes solidões e desertos, formados por bosques espessos, e por outra, as largas planicies e longas perspectivas,[Pg 98] que dentro do seu immenso circulo se viam[2].»
[2] Tacito, Trad. Freire de Carvalho.
Nem pára ahi o assombro. E a larga faixa do Tamisa, com as pontes colossaes que o atravessam e os monumentos assentados á sua margem desde Chelsea até á Ponte de Londres, principalmente o massiço dos edificios de Westminster, a extensa linha das Casas do Parlamento, a mais grandiosa sombra que construcção civil projecta sobre a terra. É, por outro lado, a City, em roda do Banco de Inglaterra, com o Royal Exchange ao lado, e Lombard Street defronte, o mercado monetario, o verdadeiro comptoir do mundo. Aqui, nas ruas calçadas a madeira, para ainda mais amortecer o ruido, causa uma impressão singular a multidão que não perde um minuto, indifferente a si mesma, á qual nada distrahiria o olhar nem arrancaria uma syllaba, e que transporta debaixo do braço, em suas carteiras, massas de capital que seriam precisos wagons para carregar em dinheiro, os cheques que vão para a Clearing-House, os billiões esterlinos, que por ella passam, transferidos de banco a banco, importados, reexportados, pelo telegrapho para os confins do mundo donde vieram. O transeunte pára no meio de todo esse fluxo e refluxo do ouro, sentindo não ouvir o tinido das libras; as oscillações continuas, subterraneas, dessas correntes contrarias de metal elle só as conhecerá [Pg 99] pelo seu effeito sensivel: a taxa do desconto.
O que dá tambem a Londres o seu tom de majestade e soberania é a dignidade, o silencio que a envolve; a calma, a tranquilidade, o repouso, a confiança que ella respira; é o ar concentrado, recolhido, severo por vezes, da sua physionomia, e, ao mesmo tempo, a urbanidade das suas maneiras; é o retiro em que se vive no seio della, no centro das suas ruas mais populosas; o isolamento em que se está nas suas cathedraes, como no British Museum, nos seus parques, como nos seus theatros ou nos seus clubs. Esse traço de seriedade e de reserva define, a meu vêr, uma raça imperial, energica e responsavel, conscia da sua força, viril e magnanima. Além disso, ha uma feição notavel, caracteristica, expressão suprema de força e de dominio; não é uma cidade cosmopolita essa metropole do mundo: é uma cidade ingleza.
Pariz ao lado de Londres é uma obra d’arte, immortalmente bella, ao lado de uma muralha pelasgica; é um Erechteion, em frente ao Memnonium de Thebas. De certo não ha no mundo uma perspectiva architectural egual á que se extende do Arco do Triumpho pelos Campos Elyseos até o Louvre e do Louvre pelo cáes do Sena até apanhar Notre-Dame. Em Londres não se tem essa impressão de arte que corre por cima da velha Pariz toda como um friso grego. Para o artista que precisa inspirar-se exteriormente[Pg 100] nas fórmas da edificação, viver no meio do bello realisado pelo genio humano, Londres está para Pariz como Khorsabad para Athenas. O genio francez alegre e festivo é em tudo differente da grande apathia ingleza, e em Pariz se está defronte da obra prima da arte franceza. Por ahi não ha que comparar. Para o intellectual que precise diariamente de um passeio artistico para vitalisar-se, assim como para o homem de espirito e de salão, Pariz é a primeira das residencias, porque é a que reune á arte o prazer de viver em suas fórmas mais delicadas e elegantes. Não ha nada em Londres que corresponda á aspiração franceza, hoje decadente e muito esvaecida, de fazer da vida toda uma arte, aspiração cuja obra prima foi a polidez do seculo XVII e o espirito do seculo XVIII. Deixando a grande arte que tem commettido infidelidades ao genio francez, como a de produzir fóra de França Goethe, Beethoven e Mozart, as pequenas artes,—e não chamo pequena arte á obra dos grandes ebanistas, incrustadores, cinzeladores do movel, de Riesener, Boulle, Beneman, Gouthière,—as pequenas artes são ainda exclusivamente francezas, como na Roma de Cicero eram gregas. O que ha em Londres como prazer da vida, não é a arte, é o conforto; não é a regra, a medida, o tom das maneiras, é a liberdade, a individualidade; não é a decoração, é o espaço, a solidez. Pariz é um theatro em que todos, de todas as[Pg 101] profissões, de todas as edades, de todos os paizes, vivem representando para a multidão de curiosos que os cercam; Londres é um convento, em fórma de Club, em que os que se encontram no silencio da grande bibliotheca ou das salas de jantar não dão fé uns dos outros, e cada um se sente indifferente a todos. Em Pariz a vida é uma limitação; em Londres uma expansão; em Pariz um captiveiro, captiveiro da arte, do espirito, da etiqueta, da sociedade, captiveiro agradavel como seja, mas sempre um captiveiro, exigindo uma vigilancia constante do actor sobre si mesmo deante do publico, que repara em tudo, que nota tudo; em Londres é a independencia, a naturalidade, a despreoccupação. Ceci tuera cela.
Foi, talvez, este lado da vida ingleza o que me seduziu. A impressão artistica é, por sua natureza, fatigante, exclusiva, e, além de certo diapasão, inconfortavel, como toda vibração demasiado forte. Eu não quizera ser condemnado a passar uma hora por dia deante da Joconde, nem mesmo deante da Venus de Milo. Para renovar a minha curta faculdade de admirar e de gozar da obra d’arte, preciso de longos intervallos de repouso, para dizer a verdade, de obtusão. Londres era essa penumbra que quadra admiravelmente á minha fraca pupilla esthetica; alli tinha á minha disposição, excusez du peu, os marmores de Phidias; não havia epocha artistica ou litteraria que, querendo viver nella meia hora,—de[Pg 102] mais não me sentiria capaz,—eu não achasse representada no British Museum, na National Gallery, em South Kensington, e nas outras grandes collecções nacionaes. Essa proximidade bastava-me; quanto a tudo mais que faz o prazer da vida, eu preferia, como disse, a naturalidade, a calma, o descanço, as grandes perspectivas, o isolamento, o esquecimento de Londres á constante vibração de Pariz, vibração cosmopolita de espirito, de prazer, de arte, através de uma atmosphera de luxo, de combate e de theatro.
Eu sei bem que ha alli outra vida; que ha indifferentes, solitarios, reclusos na grande capital, pequenos claustros de silencio e de meditação, onde não chegam até ao pensador e ao artista os ruidos de fóra. Sem isso, Pariz não produziria o grande pensamento; mas a viver isolado do movimento de Pariz, antes estar separado delle pela Mancha do que pelo Sena, como o meu amigo Rio Branco, que se fechava na Margem Esquerda, com a sua bibliotheca brasileira, as suas provas a corrigir, e os seus intimos do Instituto.
O facto é que amei Londres acima de todas as outras cidades e logares que percorri. Tudo em Londres me feria uma nota intima de longa resonancia: as suas extensas campinas e os seus bosques, como o tijolo ennegrecido das suas construcções; o movimento atordoador de Regent Circus ou Ludgate Hill, como os recessos de Kensington Park, á sombra do arvoredo secular;[Pg 103] os seus dias quentes de verão, quando o asphalto amollece debaixo dos pés, a folhagem se cobre de poeira, e o ar tem o calor secco das thermas, como os seus deliciosos dias de maio e junho, quando as mais altas janellas se transformam em jardins suspensos, e as grandes cestas dos parques se enchem de tulipas e jacinthos; as suas noites de luar, que faziam Park Lane parecer-me ás vezes na nevoa, com a sua rua de palacios, um trecho de Veneza, e que de Piccadilly, olhando por cima da bruma de Green-Park para a illuminação em roda de Buckingham Palace, me davam sempre a illusão do outro lado da bahia do Rio, visto da esplanada da Gloria, como os seus dias escuros e tristes de nevoeiro, que eu não teria então trocado pelo azul do Mediterraneo nem pela pureza do céo da Attica; os seus traços de maior cidade do mundo, a esplendida belleza da sua raça, e os menores detalhes de sua physionomia propria; os mostradores das lojas de luxo de Piccadilly e New-Bond-Street, como os hansoms que paravam em frente; o Times, a Pall Mall Gazette, o Spectator, como o papel avelludado, o typo, grande e claro, o couro liso, macio, dourado dos livros; a tranquillidade dos clubs, o recolhimento das egrejas, o silencio dos domingos, como a confusão, o movimento, o atropelo em Charing-Cross e Victoria Station, da onda immensa de todas as classes e de todas as edades, que se espalha de Londres, á tarde dos sabbados,[Pg 104] para as praias de mar, para as casas de campo, para as margens do Tamisa.
Tudo isso, eu vejo bem, não era sinão a minha propria mocidade... com a differença talvez de que os outros logares, era ella que os coloria, os animava, os assimilava a si, ao passo que em Londres ella transbordava naturalmente pelo jorrar de todas as suas fontes.
Esse sentimento paguei-o caro depois, porque foi em Londres que senti definhar mortalmente a planta humana que ha em cada um de nós e sobre a qual o nosso espirito apenas pousa, como o passaro no mais alto da ramagem: as suas raizes physicas e moraes precisavam do solo em que ella se tinha formado; as suas folhas, do nosso sol. Ainda assim, foi a Londres que vim a dever, annos mais tarde, uma restituição que bem compensou aquelle deperecimento. Foi em Londres, graças a uma concentração forçada, a qual não teria sido possivel para mim sinão em sua bruma, que a minha intelligencia primeiro se fixou sobre o enigma do destino humano e das soluções até hoje achadas para elle, e, insensivelmente, na escondida egreja dos Jesuitas, em Farm Street, onde os vibrantes açoites do padre Gallway me fizeram sentir que a minha anesthesia religiosa não era completa, depois no Oratorio de Brompton, respirando aquella pura e ciaphana atmosphera espiritual impregnada do halito de Faber e de Newman, pude reunir no[Pg 105] meu coração os fragmentos quebrados da cruz e com ella recompôr os sentimentos esquecidos da infancia.
[Pg 106]
Fallei de Londres como si fosse para mim a cidade unica, porque Londres reuniu em uma só impressão as sensações differentes que me causaram, ou vieram a causar, Pariz, Roma, Pisa, Veneza, Nova-York, Boston, Washington. É preciso, para cada um desses nomes, fazer um transporte, de raça, clima, arte, passado, para se ter a impressão ingleza equivalente; mas eu pretendo ter tido em Londres a sensação: de vida suprema que se tem em Pariz, de encantamento que se tem em Roma ou Florença, de morte radiante que se tem em Pisa, de poder maritimo e solidez aristocratica que se tem em Veneza, de opulencia, mocidade, e belleza humana que se tem em Nova-York, de silencio, distincção intellectual que se tem em Boston, de instituições civis indestructiveis e gigantescas que se tem em Washington deante do Capitolio. Tudo isso transportado, eu já disse, fazendo-se, por exemplo,[Pg 107] a reducção da impressão do Forum para a da Torre de Londres, ou do catholicismo para o protestantismo, como quem dissesse do Papa para o arcebispo de Cantuaria, ou do Vaticano para Lambeth Palace.
Não pertenço ao numero dos solitarios, dos fortes, que bastam a si mesmos e pódem viver comsigo só de arte, de historia, de paizagem, de pensamento. Londres com a sua grandeza, o seu imperio, os seus vastos horizontes interiores, as suas estatuas, o seu friso do Parthenon, os seus touros alados da Assyria, os seus Cartões de Raphael, teria sido para mim uma solidão asphyxiante, si eu não tivesse encontrado no meio della um circulo intimo onde descançar a imaginação da acuidade, da plenitude de todas aquellas impressões. Sem um mediador plastico, eu não teria ficado alli, apezar de todas as minhas affinidades. Si eu tivesse que definir a felicidade, diria que é a admiração, o sentimento do que é bello em conta de participação com os que nos são harmonicos. O élo de união foi para mim 32, Grosvenor Gardens.
Não tenho espaço nestas paginas para collocar os retratos do dono e da dona da casa. Só direi do primeiro, nas suas roupas de doutor de Oxford, que o seu molde diplomatico está para o Brasil tão irreparavelmente perdido como para Veneza o dos seus embaixadores dos seculos XVI e XVII. Da baroneza de Penedo basta-me dar[Pg 108] este traço: vivendo por mais de trinta annos com a côrte e a sociedade ingleza, ella não poz nunca no segundo plano as suas amizades ainda as mais humildes e exerceu sempre a hospitalidade da sua mansão de Londres á boa moda do nosso paiz, com a mais egual affabilidade para todos, o que bem mostra a altivez de raça de uma Andrada.
Entre os intimos de Grosvenor Gardens eu vinha encontrar Rancés, marquez de Casa la Iglesia, o mais bello homem do seu tempo, que não sei si não terá fundado, em expiação do seu perfil, alguma Trappa na Andaluzia; o marquez Fortunato, que representava a realeza extincta de Napoles tão fielmente como si Francisco II ainda habitasse Capodimonte; o velho John Samuel, que nos contava historias do velho Brasil, tendo vivido e dirigido a moda no Rio de Janeiro no tempo de Pedro I; outro velho, Saraiva, o diccionario portuguez de Londres, verão e inverno em um casacão que lhe descia até os pés, a longa barba inculta, a pelle entalhada como um retabulo hespanhol, com um montão de livros debaixo do braço e em cada bolso, primeiro e ultimo amigo de Dom Miguel na Inglaterra, e que desde 1834 se consolava do desterro, da pobreza, do frio de Londres com os seus alfarrabios e os seus ouvintes.
Encontrei alli ainda Mr. Clark, o famoso correspondente do Jornal do Commercio, a quem[Pg 109] depois succedi, a bête noire de Zacharias, um desses old gentlemen que a Inglaterra póde mandar ao estrangeiro, com certificado, como specimen nacional, porque nada do que é essencialmente inglez, perfil, caracter, tradição, maneira, preconceito, humour, orgulho insular, deixaria de estar representado nelles; Pellegrini, o caricaturista de Vanity Fair, um dos artistas napolitanos que invadiram com a sua loquacidade alegre, o seu riso communicativo, a sua mimica irresistivel, a fria e reservada sociedade ingleza e tomaram conta della.
Devo tambem citar Mr. Youle. Este ha cincoenta annos serve em Londres de correspondente aos seus amigos do Brasil e de Portugal; a todos hospeda, agasalha, enche de obsequios, dando-se o incommodo de ir até á Allemanha por um rapaz que o pae quer collocar em uma casa de Hamburgo; tomando o trem de Calais, mal acaba de chegar da Escossia ou de Manchester, para deixar no Sacré Cœur de Pariz uma menina que não quer continuar em Rohampton; indo a Lisboa, e, si preciso fôr, á Madeira para acompanhar um doente que foge do inverno inglez; prompto sempre, incançavel nas suas funcções de provedor de Brasileiros e Portuguezes na Inglaterra, ha meio seculo, e além d’isso o oraculo na City, nos grandes Bancos, quando se trata de interesses commerciaes dos dois paizes.
Esses eram alguns dos intimos de 1874-76,[Pg 110] periodo a que me refiro, sem contar os Brasileiros que alli se achavam no Brasil. Em periodos anteriores sei que o foram entre outros Musurus Pachá e o infante Don Juan, pae de D. Carlos de Hespanha; o Dr. Gueneau de Mussy, medico fiel da familia de Orléans desterrada, e o republicano Dupont, proscripto do Imperio, companheiro de Ledru-Rollin e de Louis Blanc, o velho barão Leonel de Rothschild, o marquez do Lavradio, modelo dessa distincção e urbanidade portugueza que parece requintar sobre todas as outras aristocracias.
A Legação do Brasil estava naquelle tempo no seu maior brilho: pertencia ao numero das casas que tinham o privilegio de receber a realeza, isto é, o principe e a princeza de Galles. Muitos argumentos me foram apresentados na mocidade em favor da monarchia; nenhum, porém, teve para mim a força persuasiva, a evidencia, destes dois, um que me foi formulado no Pincio, outro que me foi formulado em Hyde Park: a princeza Margarida de Saboia e a princeza de Galles. A republicanos de boa fé esthetica,—ponhamos tanto os barbaros como os anachoretas de parte,—eu não quizera apresentar outros. A monarchia moderna faria bem para sustentar-se em promulgar a lei salica em sentido contrario, isto é, em neutralisar ainda mais o poder neutro, estabelecendo a realeza exclusiva das mulheres. Seria isso fazer politica experimental, que não se[Pg 111] basearia sómente no esplendido e pacifico jubileu da rainha Victoria e na calma relativa em tempos crueis para a Hespanha da regencia de D. Maria Christina, mas no profundo interesse das massas pelos dramas de que a primeira figura é uma mulher. A entrada triumphal em Pariz dos restos de Napoleão nunca fará um quadro como o que Tacito nos deixou do Campo de Marte, no «dia maravilhoso» em que foram depositadas no tumulo de Augusto as cinzas de Germanico trazidas por Agrippina. Si ao prestigio da posição se allia na mulher a irradiação da mocidade e da belleza, póde-se dizer que ella tem no sceptro um condão de fada. A formosura das rainhas tem, quando é perfeita, um reflexo seu exclusivo, combinação de bondade e soberania, de encanto pessoal e grandeza nacional, de dependencia, tremor mesmo, do Destino, e protecção e amparo para os que se acolhem ao seu manto, que fórma a dupla projecção, ascendente e descendente, do povo para o throno e do throno para o povo, que na ordem espiritual fez a Rainha dos Anjos comparar-se a si mesma com o arco-iris. Além da familia real de Inglaterra e da alta sociedade de Belgravia e Mayfair que a cerca, vinham á Legação principes estrangeiros reinantes ou desthronados, como esse joven principe imperial, azagaiado na Cafraria, e cuja morte, tão ingloria que parece predestinada, me faz sempre lembrar a de Saldanha em Campo Osorio.
[Pg 112]
Era para tal sociedade que o famoso Cortais, inspirando-se nas glorias dos grandes cozinheiros, formava o cortejo dos seus pratos architectomicos, verdadeiras obras-primas com que depois pretendeu, segundo me disseram, arruinar a corôa de Italia. Ouvi tambem que elle, seguindo ainda nisso as tradições dos mestres da arte, mostrára uma vez o seu reconhecimento servindo em um dos banquetes do Quirinal uma composição sua inscripta no cartão real—à la Penedo. Naquelle dia o diplomata brasileiro ha de ter dito, como Chateaubriand, quando deram o seu nome a um beefsteak: «Agora, sim, não posso mais morrer.»
Uma dessas representações de Monsieur Cortais deante de testas coroadas com toda a enscenação que reclamava, inclusive o grupo de bellezas profissionaes da alta sociedade ingleza, não podia deixar de apagar de todo no espirito de um joven addido de Legação brasileiro o prestigio, si o conservavam, das decapitações reaes da Convenção ou de Whitehall.
Não me tomem por um sybarita, porque me inclinei deante de um de um grande chefe como deante de um artista. «Il en faudrait au moins un à l’Institut», dizia Talleyrand. Entre o festim de Trimalcião e um menu composto por um estylista francez, ha, como entre a dansa das alméas e o minuete, a longa distancia de civilisação que separa a sensualidade da elegancia.
[Pg 113]
De todos os sentidos é realmente o paladar o menos intellectualisavel, o que admitte menor gráu de ascetismo. Mesmo a taça de bouillon servida a Madame de Maintenon em Saint-Cyr ou a taça de chá preto que conforta a rainha Victoria no terraço de Osborne é sempre um gozo material; não póde soffrer a transformação por que passa até tornar-se uma pura saudade o aroma das rosas e das violetas. O idealismo de que é susceptivel a cozinha artistica revela-se em não ser principalmente ao sabor que ella visa: a sua ambição seria deixar ao paladar uma sensação vaga, leve, immaterial, quasi apenas de um perfume, como a do bouquet no vinho, á vista, porém, a impressão duravel de um quadro, de uma natureza morta pintada por um mestre. Que ingrato colorido, porém, o dos seus molhos, dos seus cremes nevados, das suas gelatinas e primeurs!
Ha, entretanto, poesia real, verdadeira, no alimento são, natural, patrio; ha sentimento, tradição, culto de familia, religião, no prato domestico, na fructa ou no vinho do paiz. A nós, do norte do Brasil, creados em engenhos de canna, o aroma que rescende das grandes caldeiras de mel nos embriaga toda a vida com a atmosphera da infancia. E assim como ha poesia na cozinha de cada paiz, ha um quid de arte na cozinha ornamental, cozinha de refinamento, que se procura elevar pelo desenho e pela fórma[Pg 114] até o motivo do banquete,—e fazer historia, fazer politica...
O leitor me perdoará a confissão, mas eu não devia calar em minha formação politica a influencia mundana estrangeira, a influencia aristocratica, artistica, sumptuaria que descrevi. Assim como a notei em um banquete real em Grosvenor Gardens, poderia notal-a em um baile dos Astors em Nova-York; é a mesma impressão de uma tarde de corso na Villa-Borghese, de uma manhã de drawing room em Londres, do grande dia de corridas em Ascot; a mesma do jubileu da rainha em Westminster e do jubileu de Leão XIII no Vaticano. Não posso negar que soffri o magnetismo da realeza, da aristocracia, da fortuna, da belleza, como senti o da intelligencia e o da gloria; felizmente, porém, nunca os senti sem a reacção correspondente; não os senti mesmo, perdendo de todo a consciencia de alguma coisa superior, o soffrimento humano, e foi graças a isso que não fiz mais do que passar pela sociedade que me fascinava e troquei a vida diplomatica pela advocacia dos escravos.
O facto, entretanto, é este: si eu fosse sómente capaz da impressão politica, social, a escravidão, a oligarchia dos partidos, e minha falsa comprehensão do papel do Imperador e da funcção monarchica, ter-me-iam talvez, depois da morte de meu pae, feito queimar o meu Bagehot e alistar-me[Pg 115] sob a bandeira norte-americana. Si, por outro lado, no momento de que dependia a minha carreira, eu tivesse tido exclusivamente a impressão de arte, teria, quem sabe, egualmente inclinado em politica para a republica. É como explico em Portugal o republicanismo de Ramalho Ortigão, Bordallo Pinheiro, Oliveira Martins, em suas estréas: como uma revolta contra o caracter inesthetico da instituição, do reinado em que desabrocharam; é assim que explico entre nós o republicanismo de Castro Alves, de Ferreira de Menezes, do meu Pedro de Meirelles, de Salvador de Mendonça, de Quintino Bocayuva, de Lafayette Rodrigues Pereira, de Pedro Luiz, e outros. O que me impediu de ser republicano na mocidade, foi muito provavelmente o ter sido sensivel á impressão aristocratica da vida.
[Pg 116]
A impressão mundana, aristocratica, era para mim uma influencia politica puramente negativa, como o tinha sido a impressão artistica da Italia ou a impressão litteraria de Pariz. O effeito da sociedade, como o das artes e das lettras, não era outro sinão o de impedir o desenvolvimento do germen revolucionario que as leituras francezas dos vinte annos tinham deixado em meu espirito. Sem aquellas influencias, entregue a meus proprios impulsos, do mesmo modo que o meu liberalismo innato degenerou em radicalismo,—o qual foi em mim um puro phenomeno de estagnação em um espaço politico fechado,—o radicalismo teria degenerado em republicanismo.
Um distincto escriptor, que costumo encontrar na Revista Brasileira, o dr. Pedro Tavares, dessa ordem de republicanos a que chamarei prematuros, mais de uma vez me tem estranhado o que chama o desvio de minha evolução politica.
[Pg 117]
Para elle o liberalismo desenvolve-se, completa-se, termina, naturalmente, pelo republicanismo. Terá elle, porém, certeza de que Mirabeau, si vivesse, havia de figurar na Convenção? A critica é egual á que se fizesse, por exemplo, a Lafayette, por não ter abraçado a Republica em França depois de ter ajudado a fundal-a na America. O facto é que no republicanismo, fallo do sincero, do verdadeiro, ha um ideal, mas ha também um resentimento das posições alheias, como no socialismo, no communismo, no anarchismo ha ideal, mas ha tambem inveja, e desta é que parte, quasi sempre, o impulso revolucionario.
Sem as influencias negativas da imaginação, eu teria sido talvez levado até á republica, como tantos que depois se arrependeram; aquellas influencias me contiveram sómente porque me desviaram, ou me distrahiram da politica. Eu era, porém, por natureza, um temperamento politico. Cedo ou tarde, a politica tornaria a seduzir-me, e só uma influencia positiva, que creasse em mim uma segunda natureza e modificasse o meu temperamento em suas tendencias absolutas, radicaes, podia tornar-me monarchico de razão e de sentimento, como fiquei. Essa influencia foi o contagio do espirito inglez, o que pude apropriar-me delle.
A minha passagem pela Inglaterra deixou-me a convicção, que depois se confirmou nos Estados-Unidos, de que só ha, inabalavel e permanente,[Pg 118] um grande paiz livre no mundo. A Suissa é um paiz livre, mas é um pequeno paiz; os Estados-Unidos são um grande paiz, mas ha nelle, sem fallar da sua justiça, da lei de Lynch, que lhe está no sangue, das abstenções em massa da melhor gente, do desconceito em que cahiu a politica, uma população de sete milhões, toda a raça de côr, para a qual a egualdade civil, a protecção da lei, os direitos constitucionaes, são continuas e perigosas ciladas. A França é um grande paiz e um paiz livre, mas sem espirito de liberdade arraigado, sujeito sempre ás crises das revoluções e da gloria.
O que deixa tão funda impressão na Inglaterra é, antes de tudo, o governo da Camara dos Communs: a susceptibilidade daquelle apparelho, ainda perante as mais ligeiras oscillações do sentimento publico, a rapidez dos seus movimentos e a força, em repouso, de reserva, que elle concentra. Mais ainda, porém, do que a Camara dos Communs, é a auctoridade dos Juizes. Sómente na Inglaterra, póde-se dizer, ha juizes. Nos Estados-Unidos a lei póde ser mais forte do que o poder; é isto que dá á Côrte Suprema de Washington o prestigio de primeiro tribunal do mundo, mas só ha um paiz no mundo em que o juiz é mais forte do que os poderosos: é a Inglaterra. O juiz sobreleva á familia real, á aristocracia, ao dinheiro, e, o que é mais do que tudo, aos partidos, á imprensa, á opinião; não tem o[Pg 119] primeiro logar no Estado, mas tem-no na sociedade. O cocheiro e o groom sabem que são criados de servir, mas não receiam abusos nem violencia da parte de quem os emprega. Apezar dos seus seculos de nobreza, das suas residencias historicas, da sua riqueza e posição social, o marquez de Salisbury e o duque de Westminster estão certos de que deante do juiz são eguaes ao mais humilde de sua criadagem. Esta é, a meu vêr, a maior impressão de liberdade que fica da Inglaterra. O sentimento de egualdade de direitos, ou de pessôa, na mais extrema desegualdade de fortuna e condição, é o fundo da dignidade anglo-saxonia.
Excepto essa idéa da justiça, que se foi formando e crescendo em mim, á medida que lia no Times a secção dos tribunaes, curso pratico de liberdade que a nenhum outro se compara, posso dizer que não fiz na Inglaterra sinão verificar por mim mesmo a precisão, a penetração, a agudeza de espirito de Bagehot. O seu pequeno livro, cotejado com o que eu via, ouvia e sabia, explicava-se, tornava-se claro, sensivel, palpitante no que antes era obscuro, indifferente; fazia-me comprehender o mechanismo de que elle formulára a theoria: passava a ser para mim, em direito constitucional, um verdadeiro evangelho. Uma coisa era ter assimilado aquellas idéas logo ao sahir da Academia e outra vêr funccionar o proprio systema, receber a impressão[Pg 120] viva do que apenas eu apprendêra ou decorára.
Essa dupla influencia do governo inglez e da liberdade ingleza era, por sua natureza, monarchica. Não podia deixar de inclinar-me interiormente á monarchia a idéa de que o governo mais livre do mundo era um governo monarchico. Ainda assim um estrangeiro intelligente não seria no seu paiz inabalavelmente monarchista sómente porque o governo chegou na Inglaterra a um gráu maior de perfeição do que nos Estados-Unidos, que tomaram a fórma republicana. Desde que não tinhamos no Brasil os elementos historicos que a liberdade ingleza suppõe, a não querer eu commetter o maior erro que se póde commetter em politica,—o de copiar de sociedades differentes instituições que cresceram,—eu não podia repellir a republica no Brasil sómente por admirar a monarchia ingleza de preferencia á Constituição Americana. Era preciso alguma coisa mais, no que respeita á fórma de governo, para eu não me deixar arrastar.
A transformação, ou, melhor, a modificação de ideal politico que soffri na Inglaterra era, todavia, a preliminar, o preparo para a impenetrabilidade que offereci depois á aspiração republicana. Até então, a fórma republicana me parecêra superior á monarchica pelo lado da dignidade humana. Foi na Inglaterra que senti que nunca a nossa raça attingiu ao mesmo ponto de altivez moral que em uma monarchia. Com o[Pg 121] privilegio dynastico, que tambem o meu radicalismo rejeitava, eu agora o via bem, não se fazia no seculo xix sinão aproveitar a tradição nacional mais antiga e mais gloriosa para neutralisar a primeira posição do Estado. A concepção monarchica ficava sendo esta: a do governo em que o posto mais elevado da hierarchia fica fóra de competição. Era uma concepção simples como a da balança, como a do eixo. Nenhum direito se transformou tanto no decurso deste seculo no Occidente como o direito real, que de divino passou a ser puramente historico, de activo passou a ser passivo. O rei da Inglaterra, si quizer influir na politica com as suas idéas proprias e a sua iniciativa, tem primeiro que abdicar e,—si a hypothese é admissivel,—fazer-se eleger á Camara dos Communs ou tomar a direcção da casa dos Lords. Entre o Czar e a rainha Victoria a differença de auctoridade é infinitamente maior do que entre a rainha Victoria e o Presidente dos Estados-Unidos. O governo pessoal é possivel na Casa Branca; é impossivel em Windsor Castle.
O chamado privilegio é assim um cargo honorifico, uma tradição nacional, uma conveniencia publica, quasi uma fórmula algebrica de equilibrio de forças, de conservação de energia, de moto continuo. É tão absurdo resentir-se alguem em sua dignidade da existencia desse ponto fixo no systema politico, como seria o resentir-se da existencia do eixo da terra ou da estrella polar.[Pg 122] A muitos é impossivel deixar de vêr no occupante do throno o homem ou a mulher, o accidente, a pessôa, para vêr a funcção, a existencia tradicional, a lei do movimento politico. Desses póde-se dizer que são deficientes em imaginação symbolica; mas, desapparecendo o symbolismo, podemos estar certos de que desapparecerá tambem o ideal na religião, na poesia, na arte, na sociedade, no Estado.
A monarchia constitucional ficava sendo para mim a mais elevada das fórmas de governo: a ausencia de unidade, de permanencia, de continuidade no governo, que é a superioridade para muitos da fórma republicana, convertia-se em signal de inferioridade. Esse ideal republicano, de um Estado em que todos pudessem competir desde o collegio para a primeira dignidade, passava a ser a meus olhos uma utopia sem attractivo, o paraiso dos ambiciosos, especie de hospicio em que só se conhecesse a loucura das grandezas. Não era este, de certo, o termo da evolução humana, pelo qual rezamos todos os dias, quando repetimos o adveniat regnum tuum. Desistir da idéa monarchica não é tão facil como parece. Mesmo o systema planetario é monarchico, diz Schopenhauer. O Universo é a monarchia por excellencia. Em vez de Cosmos, Humboldt podia ter dado ao seu livro o titulo De monarchia. A idéa central do Infinito, isto é, Deus, não podia deixar de ser em toda a esphera da intelligencia[Pg 123] e da actividade humana o verdadeiro ideal. Até hoje a força, transformada em direito e em tradição, terá sido a genese do ideal monarchico; um dia elle sahirá da sciencia, da intelligencia, da virtude, da santidade. O ideal humano, todo elle, toda a esthetica religiosa, social, artistica, podemos ficar certos, está inteiro na linha: «E creou Deus o homem á sua imagem.»
Eu encontrava republicanismo na Inglaterra em espiritos de primeira ordem; havia republicanismo, mais ou menos consciente, em Spencer, em Mill, em Bagehot, em Bright, em Morley, em George Eliot, em G. Henry Lewes, mas era republicanismo sine die, conservado no sentimento monarchico, para impedil-o de corromper-se. A Inglaterra não seria a nação livre que é si não houvesse no seu caracter uma fibra que impede a veneração dynastica de degenerar em superstição, a «loyalty» de tornar-se servilismo... No coração inglez a fidelidade á Camara dos Communs precede a fidelidade á Realeza, e dessa regra não faz excepção a propria dynastia, que sente como a nação. Esse fundo de republicanismo, latente, esquecido até, mas que a menor provocação faria resuscitar o mesmo que sob os Stuarts, longe de ser incompativel com o monarchismo, é que o tem conservado, restringindo, reduzindo o poder real á funcção que é hoje, puramente moderadora e, só raras vezes, provisoriamente arbitral. Esse republicanismo não[Pg 124] impedirá,—pelo contrario,—os que o têm em reserva, de inclinar-se deante da rainha e defender a integridade da sua prerogativa esvaecente.
Como eu disse, porém, não me bastaria mesmo essa profunda modificação de ideal politico para impedir-me de acompanhar o movimento republicano entre nós, dadas certas contingencias. Eu podia ser monarchista de ideal e julgar a republica, em um momento dado, o melhor governo praticavel, como se póde ser republicano de ideal,—e muitos o são na propria Inglaterra,—e fazer da monarchia o seu noli me tangere. Além disso, eu podia deixar arrastar-me por uma corrente de enthusiasmo, por uma solidariedade de partido, por amizades politicas, ou, mesmo, por algum interesse que soubesse disfarçar-se e insinuar-se-me no espirito,—sob a fórma de um sacrificio á causa publica. As idéas para espiritos que vêm os lados oppostos das coisas, o que tudo tem de bom e de mau, são pobres, frageis, antemuraes. É preciso, para sustentar a fé politica, mais do que a lucidez da intelligencia; a não haver um sentimento que interesse o coração, ou uma especie de ponto de honra que se imponha ao caracter, é indispensavel um espirito uniforme de conducta, uma regra certa de direcção. No meu caso particular, o que me poupou da illusão republicana foi um toque apenas do espirito inglez.
[Pg 125]
Sem elle a convicção da superioridade do typo politico da Inglaterra não teria bastado. Quanto á sensação aristocratica da vida, de que tambem fallei, essa, no combate dos partidos, não teria resistido ao primeiro choque. O que entendo por espirito inglez neste caso é a norma tacita de conducta a que a Inglaterra toda parece obedecer, o centro de inspiração moral que governa todos os seus movimentos. Vi quasi nada da Inglaterra, sinto dizel-o, mas vi pedaços que me impedem quasi de querer vêr o resto, excepto Oxford, cujo logar tenho vago em minha galeria interior, á espera do seu pequeno quadro. Vi, por exemplo, Cantuaria, e tenho no pensamento a calma, o silencio, a grandeza daquella imponente massa recolhida em si mesma. Vi, na semana de Cowes, Southampton e a ilha de Wight, pequena sombra da Inglaterra no mar, sombra colorida, movente e alegre. Fui em carruagem,—poderá[Pg 126] haver um dia mais completo de romance?—de Stratford-on-Avon, atravessando Warwick, a Kenilworth. Passei dias á margem do Tamisa, entre Windsor e Henley, e creio que tive reminiscencias do paraiso terrestre. É realmente a vinheta mais perfeita que se podia imprimir á margem do capitulo II, v. 10 do Genesis: «Deste logar de delicias sahia um rio que regava o paraiso.» Em toda parte a impressão que tive da Inglaterra foi a mesma: ruinas cobertas de hera, antigas gravuras expostas em Pall Mall, montes de trigo nos campos ceifados, castellos recortados no meio de parques florestaes, velhas estalagens á beira da estrada, botes encostados ao arvoredo de Cliveden, grandes transatlanticos nas docas de Southampton, sempre a mesma impressão, o cunho inglez estampado em tudo. A sensação foi a mesma para mim da Inglaterra, vista de dentro, na segurança de seus recursos, e vista de fóra, inatacavel nos seus altos cliffs brancos, a cujos pés o mar se abre como uma trincheira.
É, porém, na sua feição politica sómente que considero neste momento o espirito inglez, e, ainda mais restrictamente, o modo por que elle se manifesta nos movimentos reformistas, a influencia que tem sobre os espiritos innovadores. Politicamente, o espirito inglez póde decompôr-se em espirito de tradição, em espirito de realidade, em espirito de ganho, em espirito[Pg 127] de força e generosidade, em espirito de progresso e melhoramento, em espirito de ideal: supremacia anglo-saxonia e supremacia christã no mundo.
A veneração imprime na Inglaterra aos precedentes uma auctoridade quasi sagrada, e tira a tudo que tem caracter historico ou funcção nacional, a feição individual em que se fixa a vista de outros povos. A rainha Victoria é mais do que a augusta, cuja imagem cada familia venera no seu lararium interior; é a realeza Normanda, Plantagenet, Tudor. Como a Rainha, a Constituição. Esta não é mais do que uma procuração em causa propria, dada pela nação ingleza á Camara dos Communs, e mesmo, assim, um mandato de que nunca se viu o instrumento. Nenhum grande legista a redigiu, nenhum homem de Estado a ideou: formou-se espontaneamente, inconscientemente, como a lingua ingleza, a architectura perpendicular, os contos da nursery. A tradição, como base do temperamento nacional, produz no Inglez a faculdade de admirar a massa historica de uma instituição, como o architecto admira a grandeza e o detalhe de uma cathedral gothica. Para o Inglez, si a liberdade é o grande attributo do homem, si elle a sente como o desenvolvimento da personalidade, a ordem é a verdadeira architectura social. Elle comprehende e penetra a grandeza do systema que se perpetúa mais do[Pg 128] que a das revoluções, ao contrario do latino, que póde viver e ser feliz em um solo politico oscillante, sujeito a terremotos continuos. D’ahi, para elle o amor da lei e a sympathia, interesse, carinho mesmo, pela auctoridade encarregada de executal-a; d’ahi, tambem, o prestigio do juiz, a popularidade das sentenças que aterrorisam o criminoso, ao contrario das facilidades que este encontra nos paizes onde decáe o instincto de conservação.
Si n’uma organização assim formada existe, ao lado dessa quasi superstição do costume, o espirito de aperfeiçoamento e de progresso, o que resulta é que as reformas, as modificações serão governadas por algumas regras elementares. Uma destas será conservar do existente tudo o que não seja obstaculo invencivel ao melhoramento indispensavel; outra, que o melhoramento justifique,—e para justificar não basta só compensar,—o sacrificio da tradição, ou mesmo do preconceito que o embarga; outra regra é respeitar o inutil que tenha o cunho de uma epocha, só demolir o prejudicial; outra, substituir tanto quanto possivel provisoriamente, deixando ao tempo a incumbencia de experimentar o novo material ou a nova fórma, para consagral-o ou rejeital-o; uma ultima, esta rara e extrema, será reformar, no sentido originario da instituição, o mais antigo, procurando o traçado primitivo. Dessas regras resulta o dever de demolir com o mesmo amor e[Pg 129] cuidado com que outras epochas edificaram. Nenhum explosivo é legitimo, porque a acção não póde ser de antemão conhecida; é preciso demolir a nivel e compasso, retirando pedra por pedra, como foram collocadas.
O que, porém, dirige o espirito de progresso é o espirito de realidade, espirito pratico, positivo, que se manifesta pela rejeição de tudo que é theorico, a priori, tentativo, logico, ou que pretenda á perfeição, á finalidade, á uniformidade, á symetria. A esse espirito corresponde, na ordem politica, a idéa de crescimento: as instituições têm o seu habitat como as plantas, as suas latitudes e terreno proprios, condições especiaes de acclimação, obstaculos e perigos de transplantação. Não basta que a reforma seja indicada pela experiencia, baseada em uma forte verosimilhança; é preciso que tenha affinidade com as outras instituições. Esse espirito pratico, positivo, é a experiencia do utilitarismo, do espirito de crear e accumular riqueza, caracteristico da raça. O utilitarismo manifesta-se em que as reformas devem ter uma vantagem economica, pelo menos indirecta, e justificar-se por algarismos. Ao lado, porém, da corrente utilitaria, ha a corrente imaginatíva ou de ideal, moral, nacional, religiosa.
A varonilidade impõe ao reformador não fazer victimas emissarias, responsabilisando individuos ou instituições pelos erros communs da[Pg 130] sociedade, não lavar as mãos como Pilatos das injustiças da multidão, não preferir o fraco para sobre elle descarregar o golpe, em uma palavra, o fair-play. O patriotismo manda não consentir que o espirito de partido supplante o de responsabilidade para com o paiz. O que, entretanto, na Inglaterra alimenta, renova e purifica o patriotismo, é outra especie de responsabilidade: a do homem para com Deus. Só quando o orgulho britannico e a consciencia christã estremecem juntos e se unem em uma mesma causa, é que o sentimento inglez desenvolve a sua energia maxima. A inspiração da vida publica na Inglaterra vem em grande parte da Biblia. A politica e a religião sentem que terão sempre muito que fazer em commum, que uma e outra têm o mesmo objectivo pratico—elevar a condição moral do homem, e o effeito desse ultimo e, talvez principal elemento do espirito inglez, em relação ás reformas, é fazer o argumento moral prevalecer sobre o argumento utilitario.
Tomando-se o espirito inglez, como acabo de delinear, que é que elle inspirará na Inglaterra a republicanos de ideal, que se subordinem, entretanto, como individuos, á consciencia collectiva, ao instincto nacional? Ha uma pagina interessante em On Compromise, livro typico de casuistica intellectual ingleza, escripto por John Morley. Essa pagina é a melhor illustração do que eu disse antes sobre o republicanismo que[Pg 131] póde existir por baixo do sentimento monarchico, até para dar-lhe vida e calor. Elle figura um Inglez convencido de que a monarchia, mesmo meramente decorativa, tende a engendrar habitos sociaes degradantes. O dever desse republicano será deixar a monarchia de lado e abster-se de todos os actos, em publico e em particular, que possam, mesmo remotamente, alimentar o espirito de servilismo. «Tal politica não interfere, diz-nos Mr. Morley, com as vantagens que se diz ter a monarchia, e tem o effeito de tornar as suas suppostas desvantagens tão pouco prejudiciaes quanto possivel...»
Desse espirito inglez eu disse que tive apenas um toque. Na questão da abolição, entretanto, não me desviei delle. A abolição era uma reforma que o espirito inglez anteporia a todas as outras por toda ordem de sentimento. Si a abolição se fez entre nós sem indemnisação, a responsabilidade não cabe aos abolicionistas, mas ao partido da resistencia. O meu projecto primitivo, em 1880, era a abolição para 1890 com indemnisação. Si em qualquer tempo um ministro da corôa chegasse ás Camaras e dissesse: «A escravidão não póde mais ser tolerada no Brasil, o nosso gráu de civilisação repelle-a, e eu venho pedir que decreteis a liberdade immediata dos escravos existentes, votando os precisos recursos para a respectiva desapropriação», poderia haver abolicionista que quizesse prolongar[Pg 132] a escravidão? Nenhum da nós assumiria a odiosa responsabilidade. Esse homem, porém, não surgiu d’entre os estadistas do Imperio; todos pensavam, ou que a abolição arruinaria a lavoura e o credito do paiz, ou que o Brasil não era rico bastante para pagar a libertação moral do seu territorio. Podia haver abolicionistas contrarios á indemnisação; de facto, os houve; mas podiam elles, acaso, votar nunca contra uma lei de abolição immediata? A responsabilidade foi assim dos partidos, que se comprometteram perante a lavoura a resistir ao movimento, e que teriam, do seu ponto de vista, feito melhor sacando sobre o futuro e desapropriando os escravos, quando o principio da não-indemnisação ainda não tinha triumphado no projecto Dantas e na segunda lei de 28 de setembro. Essa intuição só a teve o meu querido amigo José Caetano de Andrade Pinto no Conselho de Estado; não lhe deram, porém, valor. Com relação á lei de 13 de maio devo dizer que em 1888 era tarde para se pleitear a equidade da desapropriação deante de um movimento triumphante, quando já a maior parte dos escravos tinham sido liberalmente alforriados pelos senhores e o resto da escravatura estava em fuga, depois, sobretudo, de estar por lei consagrado o principio de que a escravidão era uma propriedade anomala, a que o legislador marcava sem onus para o Estado o prazo de duração que queria.
[Pg 133]
Em relação á monarchia do Brazil aquelle toque do espirito inglez bastou para traçar-me uma linha de que eu não poderia afastar-me, mesmo querendo. Era um ponto de honra intellectual, um caso de consciencia patriotico definitivamente resolvido em meu espirito, aos vinte e tres annos. Supprimir a monarchia que tinhamos, ficou claro para mim desde então, era uma politica a que eu não poderia nunca associar-me; eu poderia tanto banir, deportar o Imperador, como atirar ao mar uma creança ou deitar fogo á Santa Casa. Quebrar o laço, talvez providencial, que ligava a historia do Brasil á monarchia, era-me moralmente tão impossivel, como me seria no caso de Calabar entregar Pernambuco por minhas proprias mãos ao estrangeiro. Faltar-me-iam forças para uma intervenção dessas no destino do meu paiz. Seria attrahir sobre mim um golpe de paralysia, ferir-me eu mesmo de morte moral. Minha coragem recuava deante da linha mysteriosa do Inconsciente Nacional. O Brasil tinha tomado a fórma monarchica, eu não a alteraria.
O que vi dos Estados-Unidos não fez sinão calcar mais profundamente a impressão monarchica que eu levava da Inglaterra. Foi uma segunda chave, de segurança, que fechou em meu pensamento a porta que nunca mais se devia abrir. O espirito politico americano, com certas modalidades que não quero amesquinhar, mas[Pg 134] que me parecem secundarias, é uma variedade do espirito inglez, o qual merece antes ser chamado espirito anglo-saxonio, porque é um espirito commum de raça, de grande familia humana, superior a fórmas e accidentes de instituições.
[Pg 135]
Talvez o melhor modo de mostrar o que devo aos Estados-Unidos seja reproduzir paginas do meu diario de 1876-77. Cheguei pouco tempo depois da visita do Imperador; pude assim recolher o echo da impressão deixada por elle. O anno que passei na grande Republica foi um dos seus momentos politicos mais interessantes, porque foi o da eleição de Tilden. Como se sabe, os democratas ganharam as eleições de 1876, mas as Juntas Apuradoras Republicanas de alguns Estados do Sul manipularam as actas de fórma a dar maioria aos eleitores do seu partido. Ambos os lados reclamavam a victoria, e, como a Camara dos Representantes era Democrata e o Senado Republicano, a perspectiva era que o Congresso não chegaria a accordo até março, e que os Estados-Unidos teriam dois Presidentes com todas as probabilidades de uma guerra civil. O espirito pratico, o espirito de transacção[Pg 136] da raça anglo-saxonia interveiu, e as duas Casas do Congresso concordaram em entregar o julgamento a uma Commissão especial, tirada de cada uma dellas e do Supremo Tribunal. A differença entre a Inglaterra e os Estados-Unidos não póde ser melhor apresentada do que nesse caso: a resolução americana foi como a ingleza, o accordo em vez da guerra civil dos paizes latinos, mas nos Estados-Unidos, ao contrario do que aconteceria na Inglaterra, a Commissão não se elevou acima do espirito de facção, as votações foram todas estrictamente partidarias, o que quer dizer, figurando nella cinco membros da Côrte Suprema, que o mais alto tribunal da União era composto de politicians. Com juizes inglezes a decisão teria, talvez, sido injusta, mas não seria nunca parcial, dada por motivo politico; não se contariam de antemão os votos dos juizes como os dos Congressistas. Em tão pouco tempo como tive, nenhum estudo comparativo da educação, da seriedade e dos costumes politicos dos dois paizes podia ser mais proveitoso para mim do que foi essa campanha eleitoral de 1876-1877 e o desenlace que ella teve. As qualidades e as deficiencias da politica americana estavam todas visiveis e patentes nessa lição de coisas. Eu tinha acompanhado a lucta dos partidos para a captura da cadeira presidencial com o maior interesse, cada boss me era conhecido, como o era cada figura de senador, a opinião de cada jornal influente,[Pg 137] cada nuança das duas Convenções.
É realmente o momento para o estrangeiro abranger n’um relance a vida politica dos Estados-Unidos, esse anno eleitoral. Eu tinha chegado a Nova-York a tempo de familiarisar-me com as questões, as allusões, a giria politica do formidavel canvass que se ia travar e do qual a politica da reconstrucção no Sul devia ser o eixo. Interessava-me o Tammany Ring, o Whiskey Ring, o schisma dos Independentes, o Civil-Service Reform, o Railroad Land-Grants, como me interessava o encontro de Gladstone com Disraeli na questão do Oriente, ou a lucta de Thiers com o duque de Broglie. Durante mais de um anno fui um verdadeiro americano nos Estados-Unidos, como o proverbio manda ser romano em Roma. Era o meio de penetrar, de comprehender, de sentir a vida politica do paiz, si eu o queria, e este fôra o meu motivo ao desejar ir para os Estados-Unidos.
O meu diario desse anno é antes um registro de pensamentos do que de impressões americanas. Ha muito pouca politica nelle, o que mostra que eu vivia em uma atmosphera diversa da que os homens de partido respiram, mesmo no estrangeiro. Reproduzo algumas dessas notas para mostrar isto mesmo, que o meio norte-americano teve sobre mim o effeito que muita vez tem sobre os proprios americanos, de desinteressal-os da politica, excepto como espectadores. Posso[Pg 138] dizer que vivi esses dois annos, de 1876 e 1867, na sociedade de Nova-York, onde se está tão longe da politica americana como em Londres ou em Pariz; mas o mundo exterior, que me cercava por toda parte, a rua, a praça publica com os seus cartazes e procissões eleitoraes, os jornaes com as scenas do Congresso e as torrentes de eloquencia dos meetings, não podia deixar de attrahir-me como todo espectaculo nacional curioso e unico, além, está visto, do interesse intellectual que eu tinha em saber como um tão grande paiz era governado e dirigido, as forças sociaes e influencias moraes que presidiam ao seu colossal desenvolvimento. Aqui estão ao acaso algumas das notas.
«22 de outubro. O discurso de Carl Schurz, pronunciado hontem no Union League Club, expõe o sentimento republicano na melhor luz. O principal elemento da presente campanha começa a ser a Questão do Sul. Com a approximação do dia 7 de novembro esse ponto de vista tornar-se-á mais importante do que todos os outros. A camisa ensanguentada (bloody-shirt) cahiu em completo descredito, mas é preciso contar com o receio de que o Sul, unido, composto dos antigos Estados rebeldes e onde os candidatos são todos soldados da Confederação, possa dominar o Norte tão cedo, depois da guerra, passando o governo americano a ser representado por antigos Separatistas. Esta idéa assusta os[Pg 139] que põem acida de tudo a União, mesmo quando seja preciso reduzir os Estados impenitentes a territorios sujeitos ao despotismo militar e entregues politicamente ao dominio conjunto dos carpet-baggers e dos negros. Este elemento decidirá, provavelmente, em favor de Hayes a lucta que de outra fórma seria facil de ganhar para Tilden, porque a situação do Sul nos ultimos annos deshonra a politica americana.»
«1 de janeiro. Cheguei a Washington, em Riggs House. Pela primeira vez ponho o uniforme. Á Casa Branca. Apresentação ao Presidente, depois á casa do Secretario de Estado, Mr. Fish. A chamada dynastia Grant, a filha de Mrs. Sartoris; a netinha recebendo os cumprimentos pelo avô. Vou com o capitão-tenente Saldanha de Gama visitar os membros da Côrte Suprema: através da terrapine e das baked oysters todo o dia, até que em casa do secretario da Marinha um solemne the reception is over! põe termo á nossa peregrinação de New-Year’s day.»
Eu tinha conhecido Saldanha na Exposição de Philadelphia, depois ligámo-nos muito em Nova-York, onde moravamos no mesmo hotel, o Buckingham. Elle ria-se sempre muito daquelle: the reception is over! Pobre Saldanha! nascido para o mundo, para o amor, para a gloria, quem imaginaria, ao vêl-o naquelle tempo em Nova-York, que o seu destino seria o que foi? A esphinge da vida que lhe déra, ainda adolescente, um dos[Pg 140] seus enigmas indecifraveis para resolver, destruindo nelle a aspiração de ser feliz, reappareceu de novo a embargar-lhe o passo no momento em que podia disputar a primeira posição do paiz.
«11 de janeiro. Á casa de Mr. John Hamilton, filho de Alexandre Hamilton. Un homem do passado, voltado todo para elle. Diz-me que o Brasil deve conservar o mais tempo possivel a sua fórma monarchica. Este Whig não acredita que paizes como os nossos possam durar unidos sob outra fórma de governo. Emoção ao mostrar-me o retrato de Luiz XVI, presente feito ao pae...
«22 de fevereiro. Almocei com Mr. Marshall no Knickerbocker Club, hoje anniversario de Washington; almoçavam Mr. Manton Marble, ex-redactor do World, Mr. Appleton, o grande editor, Mr. Stout, Mr. Robinson, Mr. Pell, e outros. Ao toast feito ao Imperador respondi, como todas as saúdes eram humoristicas, com um ensaio de humour. Disse que nós tinhamos tido receio de que os Americanos o guardassem, lembrando-se de que uma grande auctoridade para elles, o general Lafayette, dissera da monarchia constitucional: «Aqui está a melhor das republicas». Mas, desde que elles tinham deixado o Imperador partir, eu fazia votos para que os dois paizes conservassem suas instituições como uma aposta de liberdade perpetua entre a monarchia e a republica. Quanto a Washington,[Pg 141] fiz uma reserva á sua grande obra: a de ter fundado a capital em uma cidade, sem duvida, muito agradavel, mas para a qual sempre se vae a custo, quando se tem que deixar Nova-York.»
«Março, 2. Hoje fui ao Congresso vêr os destroços da vespera. (Hayes fôra proclamado Presidente por um voto.) Não ha alegria no lado republicano; no democrata a decepção é grande; mas, em pouco tempo, quando a ferida tiver cicatrizado e se pensar no futuro, esse partido ficará contente de se terem passado as coisas como vimos hontem. O general Banks, antigo Speaker da Camara, cedeu-me a sua cadeira no proprio recinto do Congresso (em sessão), depois veiu sentar-se nella o meu ministro, e fomos apresentados a diversos deputados, notaveis, entre elles Lamar e Garfield.»
«8 de março. O Presidente propõe uma emenda constitutional, tornando o prazo da presidencia de seis annos, sem reeleição. Essa emenda provem do medo que se tem de que as eleições presidenciaes sejam tão disputadas pelos dois partidos, que dividem em duas metades o paiz, como foram as do outono passado, e que os negocios de tres em tres annos tenham um quarto anno de interrupção e de paralysia, como si tudo perigasse e a anarchia ou a guerra civil, talvez a separação, pudesse seguir-se a uma eleição duvidosa. Os interesses do commercio e os da propriedade conseguirão um dia alongar o[Pg 142] prazo até seis annos, e como com a maior escassez de eleições ellas tendem a tornar-se mais renhidas, não ha razão para o paiz correr todos os seis annos um risco que não quer correr todos os quatro. Assim, a eleição critica do chefe do Estado irá sendo o mais possivel espaçada, e não é impossivel que a Republica americana se approxime tão de perto das monarchias electivas, que, vendo o perigo desta fórma, ella prefira a tranquillidade das longas dynastias...
«É curioso que o que ha de mais perfeito nesta democracia seja a mulher, que é aqui o ente mais aristocratico do mundo.»
«2 de abril. A idéa de governo hoje é inteiramente diversa da idéa de governo antigamente; tomemos, por exemplo, a liberdade de imprensa nos Estados-Unidos, que representam a nova educação politica, e a censura na Russia. Ha muito que dizer em favor de se deixar o pensamento inteiramente livre e sobre os inconvenientes da repressão; mas o certo é que se formam duas sociedades diversas pelo respeito forçado á auctoridade e pelo desprestigio della. A difficuldade que ha no caminho da tradição é que a dignidade, ou a altivez pessoal, não quer sacrificar-se aos grandes resultados moraes e que os homens se consideram todos eguaes por um sentimento que já é indestructivel. Eu sou seguramente egual a um rei, como individuo, mas, como do principio da monarchia vêm muitos bens para a sociedade,[Pg 143] colloco-me em plano inferior. Isso não é quebra da dignidade humana, ainda que a altivez pessoal tenha que se curvar.»
«13 de maio. Diz-se que Tilden não reconhece Hayes como presidente. É o caso de algum amigo lêr-lhe o Kriton. Quando Kriton quer convencer a Socrates de que deve fugir para evitar uma morte injusta, Socrates nega-se com o fundamento de que a sentença, injusta como é, é todavia inteiramente legal. Si os juizes fizeram mal em pronuncial-a, elle faria peior em não se sujeitar ás leis de Athenas, porque o cidadão que goza da protecção e dos direitos que uma cidade lhe offerece, tem com ella o pacto tacito de respeitar as suas leis. Socrates recusava a vida por ser illegal, ainda que soubesse que adviria da sua fuga mais bem do que mal á democracia atheniense. Não devia Tilden relêr esse dialogo? Injusta como foi a decisão contra elle, foi estrictamente legal, não no sentido de estar de accordo com o direito, mas por ser dada pelos interpretes competentes da lei. Elle só póde chamar para si e o seu partido as sympathias de todos, sujeitando-se á decisão proferida, salvo o seu direito de brandir contra o novo Presidente as fraudes pelas quaes chegou ao poder.»
«Junho, 13. Hontem realisou-se no Manhattan Club a recepção dos swallow-tails aos candidatos democraticos eleitos e counted out. Tilden fallou pela primeira vez depois da inauguração[Pg 144] de Hayes, á qual chamou «o mais portentoso acontecimento na historia da America». America quer dizer os Estados-Unidos, porque no Mexico e no Perú ha, cada dia, acontecimentos d’esses muito mais portentosos. «Os males no governo crescem com o exito e com a impunidade. Não se restringem a si mesmos voluntariamente. Não pódem ser nunca limitados sinão por forças externas. Uma grande e nobre nação não separa a sua vida politica da sua vida moral.» Tudo isto é muito exacto. O Brasil é a prova. Deve o povo, ou não, fazer politica? O adeantamento de um paiz prova-se pela extensão da idéa de que a politica é inseparavel dos mais vitaes interesses da sociedade, e por ahi, dos de cada um. No Brasil, essa idéa não se derramou, pelas condições especiaes em que nos achamos, de territorio, população, trabalho escravo, etc. Aqui ella está em cada cabeça. O que mais me surprehendeu nessa reunião de Manhattan, foi o Governador de Nova-York, este de jure e de facto, Mr. Robinson, chamar em publico ao Presidente dos Estados-Unidos um Presidente fraudulento. Depois de ter dito que não teriam que esperar até 1880 para pôl-o fóra da Casa Branca, terminou assim, referindo-se a Tilden e a Hendricks: «Fellow citizens, tivestes a primeira opportunidade de saudar o Presidente e o Vice-Presidente dos Estados-Unidos depois da sua eleição. Eu vos felicito e acredito que este é apenas um presagio[Pg 145] de factos que se hão de succeder.» A allocução do Governador do principal Estado da União proclamando a rebellião, legal ou illegal, é caracteristico do regimen politico americano, e do laissez-faire, laissez-passer de que goza neste paiz a palavra. As revoluções de lingua e penna não são nunca um delicto; são um desabafo. A bocca do politician é a valvula de segurança das instituições. É o paiz das valvulas automaticas.»
«19 de junho. Os jornaes têm hoje um facto interessante: a visita feita por Frederic Douglass ao seu velho senhor, que deixou na adolescencia, para começar a vida de aventuras que o levou até ser marshall em Washington e o grande orador da abolição que foi. «Vim antes de tudo, disse Douglass, vêr meu velho senhor, de quem estive separado 41 annos, apertar-lhe a mão, contemplar-lhe o velho rosto bondoso, brilhando com o reflexo da outra vida.»
«Esta scena dá uma idéa mais tocante da escravidão no Sul do que a Cabana do Pae Thomaz. O logar é St. Michael, Talbot County, Md. O nome do senhor Capt. Thomas Aould. Marshall Douglass ouviu a sua verdadeira edade da bocca do seu senhor, em cujos livros elle figura assim: «Frederic Balley, fevereiro 1818.» Provavelmente, o senhor não registrou mais a carreira agitada de Frederico desde a edade de 18 annos (1836). Esse facto é, do que tenho lido, uma[Pg 146] das mais profundas e penetrantes apresentações do facto moral complexo da escravidão, o laço entre escravo e senhor.»
[Pg 147]
Darei ainda alguns trechos do meu diario dos Estados-Unidos; não são tanto impressões americanas que pretendo reproduzir, já antes o disse, como o meu modo de sentir naquella epocha:
«20 de junho. Hoje foram enforcados 11 criminosos de uma associação da Pensylvania, os Molly Maguires. Onze pessôas enforcadas em um dia no Brasil! Quantos discursos isso não daria na Camara dos Deputados? Aqui só faz vender maior numero de extras dos jornaes.»
«Junho, 8. Ha duas especies de movimento em politica: um, de que fazemos parte suppondo estar parados, como é movimento da terra que não sentimos; outro, o movimento que parte de nós mesmos. Na politica são poucos os que têm consciencia do primeiro, no emtanto esse é, talvez, o unico que não é uma pura agitação.»
«Julho, 8. A temperatura moral do futuro, a julgar pela americana, deve ser muito baixa. O[Pg 148] sentimentalismo resfria aqui diariamente. A Inglaterra é um forno em comparação.»
«Junho, 26. A França parece-me a casa de Ulysses cheia de pretendentes a consumirem entre si a fortuna de Telemaco, á espera que Penelope se decida por um delles. Cada um está certo de ser o preferido e, emquanto ella pede a Minerva que acabe com os seus insupportaveis perseguidores, elles continuam a devorar os bois e os carneiros, repetindo: «Não ha duvida que ella se está preparando para o casamento.» Infelizmente não parece provavel que Ulysses volte para exterminal-os e tomar conta da casa.»
Essa nota é, quasi, puramente litteraria. Ulysses ahi era o conde de Chambord, e os pretendentes os partidos que arrastavam a França, depois da derrota nacional, talvez para a guerra civil. Eu pensava escrever um acto, intitulado Os Pretendentes, com a idéa do arco de Ulysses. Era, como o drama de que fallei, um caso da falta de coincidencia que se dava em mim, entre a imaginação litteraria e a sympathia politica.
Ha outras notas, com relação aos Pretendentes. Em 16 de julho:
«O conde de Chambord representa a theoria de que a politica é uma arte religiosa, e um reinado uma especie de monumento das crenças de uma epocha. A concepção de que governar é um acto religioso, como o confessar, e tem um fim religioso, destróe toda liberdade de pensamento.[Pg 149] Um homem póde fazer da sua vida uma fórma de arte, mas não da vida de todo o mundo, que quer viver a seu modo. A politica, si é uma arte, não é arte ascetica, religiosa,—nem mesmo no seu periodo hieratico. A politica, arte religiosa, converte em crime de sacrilegio o menor acto de liberdade individual.»
Em 30 de julho: «Estive a pensar nos Pretendentes. O appel au peuple é feito pelo candidato respectivo ás rans, e a prova real é tirada por outro, que appella tambem para ellas. A tudo ellas respondem: couac.»
«Julho, 5. A posição do Presidente Hayes é a mais singular que já se viu neste paiz. Elle chegou ao poder por fraudes eleitoraes sem exemplo, empurrado até a Casa Branca pelos carpet-baggers do sul e wire-pullers do Senado, depois de uma campanha de que os empregados publicos fizeram os gastos: deve, assim, a sua eleição, ou, melhor, o seu posto, a um sem numero de politicians de todos os matizes, desde os fabricadores de actas falsas até os juizes da Côrte Suprema, que as apuraram. Chegando ao poder, porém, tem vergonha de tudo isso e torna-se elle o representante da pureza administrativa e eleitoral. Os ultimos carpet-baggers do Sul, com a amputação da membrana que os ligava ao Presidente eleito com elles e por elles, desapparecem para sempre da scena politica. Os politiquistas são enxotados, os senadores snubbed; os empregados[Pg 150] publicos, senhores da machina eleitoral e que se cotisavam para a eleição solidaria, intimados a mudar de vida e a não subscrever mais um cent. De tudo isso se conclue que Hayes, assim como não quer outra vez ser eleito, entende que ninguem mais deve ser eleito Presidente como elle foi. Poucos homens teriam feito tão bom uso de um poder tão mal adquirido. Isto resgata, quasi, a falta de coragem civica que o levou a acceital-o.»
«Julho, 19 e Agosto 9. Não se póde dizer deste paiz que tenha ideal. É o paiz pratico por excellencia, e que tem a admiravel qualidade, de bem ou mal, governar-se a si mesmo. Não lhe falta manhood, mas tudo nelle preenche um fim material. O americano é, acima de tudo, um homem positivo, em cuja vida a metaphysica tem pequena parte; reconhece a cada instante que a vida é um business, que é preciso um lastro para não afundar nella; põe a arte, a sciencia, a cultura, a polity, depois do que é essencial, isto é, do dollar, indo sempre ahead como a locomotiva, tratando a mulher com o maior respeito, mas na vida pratica como uma obstruction, por isso entregando-a a ella mesma, ambicionando, acima de tudo, a riqueza de um grande operator de Wall Street, depois a influencia de um boss, insensivel á inveja, á má vontade, ao commentario, a tudo o que em outros paizes emmaranha, complica e, ás vezes, inutilisa grandes carreiras;[Pg 151] nunca procurando o prazer para si, dando-o aos hospedes em sua casa, como se dão brinquedos ás creanças, superior ás contrariedades, sobrio de dôr, calmo na morte dos seus, e tratando a propria apenas como uma questão de seguro... «A vida privada» aqui é apenas uma expressão conservada do inglez. Todo o homem é um homem publico, e elle todo.»
São impressões de simples transeunte. Eu hoje não escreveria dos Estados-Unidos que é uma nação sem ideal; diria que é uma nação cujo ideal se está formando. Assim como o Inglez trata de adquirir fortuna e independencia antes de entrar para a Camara dos Communs, dir-se-ia que a nação americana trata de crescer, de povoar o seu immenso territorio, de chegar ao seu completo desenvolvimento, her full size, para depois fazer fallar de si e pensar no nome que deve deixar. Até hoje os Estados-Unidos têm feito vida á parte e se têm occupado de si só; mas um paiz que caminha para ser, si já não é, o mais rico, o mais forte, o mais bem apparelhado do mundo, tem, pela força das coisas, que ligar a sua historia com a das outras nações, que se associar e luctar com ellas.
«Agosto, 18. Gladstone, por ter attendido ás reclamações da guerra civil, é ainda mais impopular no Sul do que na Inglaterra entre os conservadores. O tempo em que se assignou o tratado de Washington, era entretanto para o[Pg 152] estrangeiro, de perfeita unificação americana. Ha entre o Norte e o Sul mais que uma desintelligencia politica, ha reserva tacita de uma má vontade hereditaria, um estado de guerra latente.
«O que torna os dois grandes partidos nacionaes colligações accidentaes e impossibilita a unidade de vistas em cada um delles, é a divergencia dos interesses dos Estados. O partido Democrata, por exemplo, tem que conciliar em uma formula negativa a politica dos Estados de Leste, dos pagamentos em ouro e do resgate do papel, com a politica dos Estados do Oéste, dos green-backs; e o partido Republicano tem que harmonisar a politica de intervenção de Grant com a politica de Hayes de completo self-government para os Estados do Sul.»
«Julho, 25. As scenas destes ultimos dias (a parede das estradas de ferro) dão muito que pensar... Victor Hugo diz que o culpado de terem os communistas pegado fogo a Pariz é quem não lhes ensinou a lêr. Cada um dos incendiarios, porém, era provavelmente assignante do Rappel. Que povo calmo, o americano! A grande excitação de que se falla, não passa de uma conversa particular no bar-room de um hotel. Nova-York está, talvez, a ponto de se tornar o theatro de um riot amanhã, e as auctoridades concedem um parque aos communistas para o seu meeting. Tudo fraternisa: a tropa com os strikers, grevistas, os citizens com a mob, e ninguem perde[Pg 153] a calma. O pessimista francez não existe neste paiz de optimistas que dizem sempre: «Não haverá nada», e si ha: «Isto passa logo», e si dura: «Podia ser peior.» A barba do vizinho, de que falla o dictado, não se entende aqui de cidade a cidade, nem de bairro a bairro, mas quasi de casa a casa. Os proprios que perdem tudo não acham meio de queixar-se sinão de si mesmos.»
«1.º de setembro. Ha poucos homens em politica que prefiram cahir por seus principios a sophismal-os para ficar de pé. O ministro que sustenta a preeminencia da Camara dos Deputados, procurará, si a Camara lhe fôr contraria, provar que ella não representa o paiz e apoiar-se na Camara alta. Durante o Imperio, Gambetta não fallaria do suffragio universal com o enthusiasmo de hoje, e nenhum bonapartista se submetteria agora, como sob os Napoleões, a um appello ao povo. No fundo só ha duas politicas: a politica de governo e a politica de opposição.»
«Setembro, 8. Bradley, o juiz da Côrte Suprema, que de facto fez a Hayes Presidente, tendo sido atacado pelos jornaes democratas e accusado de ter mudado de opinião depois de ouvir os directores do caminho de ferro do Pacifico, entendeu dever justificar-se pela imprensa. Nessa justificação, admittindo a possibilidade de ter expressado a seus collegas durante o processo uma opinião diversa da que deu, elle conta que escrevia razões ora em um sentido, ora em outro,[Pg 154] sobre o voto da Florida, tendo chegado ao voto que deu, depois de muita duvida. Esta carta a um jornal de Nova-York é curiosa em muitos pontos de vista. Um juiz que vacilla, que chega a conclusões differentes durante muitos dias, deveria considerar definitiva a opinião que occasionalmente predomina em seu espirito no momento de ser tomado o voto? Não será provavel, pelo menos possivel, que elle mude ainda de juizo, depois de emittido o seu voto, isto é, de irreparavel? Por outro lado, essas duvidas não provarão a sinceridade do processo logico de investigação, e poder-se-á exigir do juiz que tenha, desde o começo de uma causa, opinião formada? A vacillação quadra menos com a distribuição da justiça, a qual deve sempre proceder de uma convicção inabalavel e inabalada, do que a obstinação, que muitas vezes é falta de percepção e exclusivismo de juizo. Quanto á força que a reflexão posterior tem dado em seu espirito ao voto que emittiu, é esse um phenomeno de assentimento da consciencia, muito commum na magistratura. Commettido o erro, a intelligencia o toma como verdade, porque é o interesse do bom nome do juiz.»
«Setembro 4. Thiers morreu hontem. Por toda a parte a noticia vae produzindo a mesma impressão. Pobre França! é o que se exclama. A perda é irreparavel. O leme fica sem homem. A confiança que a Europa toda tinha no velho conselheiro[Pg 155] da França não acha a quem se entregar... O ultimo em França dos grandes homens do passado não nomeou successor...»
«Setembro, 11. Muito se tem dito sobre as mudanças de Thiers. Quando se procura saber porque esse pequeno marselhez, nascido pobre, sem familia, exposto ao ridiculo e ao desdem dos seus competidores aristocratas, atravessou tantos governos diversos, sem nunca perder a sua importancia politica, até vir a ser, na extrema velhice, o «Libertador do Territorio», encontra-se a explicação dessas mudanças. Quando tantos homens de talento, caracter, fortuna e prestigio social representavam o seu papel em um regimem e desappareciam, Thiers era sempre contado como um poder politico. Foi seu destino fundar e destruir governos, mas não se póde accusal-o de se ter divorciado da França em nenhum desses momentos. Mudou sempre com o paiz. A sua grande mudança final de monarchista para republicano concidiu com o seu interesse pessoal como primeiro Presidente da Republica, mas coincidiu tambem com a conversão das classes médias, não ao principio republicano, mas á idéa de que só a Republica era possivel. Sempre a França, nos seus movimentos liberaes, o encontrou ao seu lado. Durante o Imperio, elle fez uma opposição patriotica, que teria, talvez, evitado Sedan e conservado a dynastia, si o não considerassem orleanista. Quando concorreu para[Pg 156] collocar Luiz Felippe no throno, o pensamento era que uma monarchia republicana dispensava a republica. A fraqueza da monarchia de 1830 foi que o principio da hereditariedade a minou desde o começo. Luiz Felippe destruiu o direito divino para subir e, depois, quiz servir-se delle para durar, transformando-o em bom senso, principio de auctoridade, etc. O que faz a unidade da carreira de Thiers, é que elle foi sempre pelo governo parlementar, pelo direito popular representado nas assembléas legislativas. Por esse principio renunciou a presidencia da Republica em mãos suspeitas. O segredo da sua fortuna politica consistiu em guardar fidelidade á França.
«Muitas vezes um paiz percorre um longo caminho para voltar, cançado e ferido, ao ponto donde partiu. É possivel que a França volte ainda á monarchia legitima, e si Thiers tivesse vivido mais tempo e a Republica trouxesse novas desgraças para a França, como a Communa, talvez fosse o mesmo Thiers quem entregasse a França ao herdeiro dos seus reis. Mesmo assim, quando a França comparar os dois typos de estadistas: Berryer, que não mudou nunca, fosse por uma convicção monarchica sempre renovada, fosse por um cavalheirismo digno do seu caracter, e ficou sempre no mesmo logar á espera de que a França voltasse ahi, e Thiers, que a acompanhou nas suas vicissitudes, eu acredito que ella se reconhecerá a si mesma no homem que encontrou[Pg 157] sempre como seu conselheiro, que por vezes mudou para ficar ao lado della e poder valer-lhe com a sua consummada experiencia nos dias em que viesse a precisar de uma palavra amiga.»
Ao relêr hoje esta pagina do meu diario de 1871, vejo que a minha explicação da unidade da carreira politica de Thiers se parece muito com a que, ha alguns annos, foi publicada de Talleyrand, justificando-se em suas Memorias de só ter mudado com a França e por causa da França.
Esses trechos mostram que em Nova-York eu não me achava sob a influencia americana, mas que continuava em mim a influencia européa e eu era o espectador, que tinha sido em Londres, quasi desinteressado da politica, desinteressado pelo menos de toda a politica que não pudesse converter em assumpto litterario, ou em nota critica e observação. Agora direi a minha impressão geral dos Estados-Unidos, o que é hoje a minha idéa da democracia na America.
[Pg 158]
Dos Estados-Unidos não vi sinão muito pouco, como da Inglaterra, por isso as impressões que reproduzo devem ser entendidas como impressões de Nova-York e Washington, quasi exclusivamente. Por uma circumstancia fortuita pude ficar em Nova-York quasi todo o tempo que passei na legação do Brasil. O meu ministro, o barão de Carvalho Borges, de quem conservo a mais grata recordação, estava de luto, por isso ausentára-se de Washington e vivia em Nova-York, incognito, ao contrario de outros collegas seus, contra cujo realce aos bailes e recepções da Quinta Avenida os jornaes de Washington em vão reclamavam. Além das duas grandes capitaes da União, a politica e a cosmopolita, conheci sómente Philadelphia, durante o centenario, Saratoga, durante uma Convenção Nacional, e Niagara e Boston, que me fizeram perder Newport. A idéa, porém, que tenho é que quem viu[Pg 159] Nova-York e Washington viu tudo que ha que vêr nos Estados-Unidos, exceptuando sómente as poucas cidades a que se pódem chamar cidades historicas, que têm o cunho das suas tradições proprias. Quem viu Buffalo, St. Louis, S. Francisco, Chicago, não viu porém Nova York, como quem viu Saratoga não viu Newport, ao passo que Boston, Nova-Orleans, não têm semelhantes.
Para o engenheiro, para o inventor, para o architecto, para todo economisador de tempo e trabalho, para quem admira acima de todos o genio industrial deste seculo, os melhoramentos que elle tem introduzido na ferramenta humana, os Estados-Unidos são de uma extremidade a outra um paiz para se visitar e conhecer. É elle, talvez, o paiz onde melhor se póde estudar a civilisação material, onde o poder dynamico ao serviço do homem parece maior e ao alcance de cada um. Em certo sentido, póde-se dizer delle que é uma torre de Babel bem succedida. Na ordem intellectual e moral, porém, comprehendendo a arte, os Estados-Unidos não têm o que mostrar, e certa ordem de cultura, toda cultura superior quasi, não precisa para ser perfeita e completa de adquirir nenhum contingente americano.
Da politica, a impressão geral que tive e conservo é a de uma lucta sem o desinteresse, a elevação de patriotismo, a delicadeza de maneiras[Pg 160] e a honestidade de processos que tornam na Inglaterra, por exemplo, a carreira politica acceitavel e mesmo sympathica aos espiritos mais distinctos. O que caracterisa essa lucta é a crueza da publicidade a que todos que entram nella estão expostos. Como antes eu disse, não ha vida particular nos Estados-Unidos. Para a reportagem não existe linha divisoria entre a vida publica e a privada. O adversario está sujeito a uma investigação sem limites e sem escrupulos, e não elle, sómente,—todos que lhe dizem respeito. Si um candidato á Presidencia tiver tido na mocidade a menor aventura, terá o desgosto de vêl-a photographada, apregoada nas ruas, colorida em cartazes, cantada nos music-halls, por todos os modos e invenções que o ridiculo suggerir e parecerem mais proprios para captar o eleitorado. A campanha contra Tilden foi feita com uma revelação de que elle tinha uma vez illudido o fisco, a respeito do seu rendimento profissional. O politico é entregue sem piedade aos reporters; a obrigação destes é rasgar-lhes, seja como fôr, a reputação, reduzil-a a um andrajo, rolar com elle na lama. Para isso não ha artificio que não pareça legitimo á imprensa partidaria; não ha espionagem, corrupção, furto de documentos, intercepção de correspondencia ou de confidencia, que não fosse justificada pelo successo.
O effeito de tal systema póde ser moralisar a[Pg 161] vida privada, pelo menos a dos que pretendem entrar para a politica, si ha moralidade no terror causado por um desses formidaveis exposures eleitoraes, os Francezes diriam chantage. A vida politica, porém, elle não tem moralisado. A consciencia publica americana é muito inferior á privada, a moral do Estado á moral de familia.
De certo, nos Estados-Unidos, os chamados rings, nós diriamos quadrilhas, os roubos publicos, os syndicatos administrativos, são denunciados e investigados como não o seriam talvez em nenhum paiz, o americano não tendo pena dos adversarios, julgando-se obrigado para com o seu partido a reduzil-os á condição mais humilhante, a expellil-os um por um, sendo possivel, da vida publica. Mas, desde que a corrupção reina nos dois partidos, que ambos têm as suas chagas conhecidas, as suas ligações compromettedoras, todas as campanhas a favor da pureza administrativa têm muito de insincero, de simulado, de convencional, o que não acontece com as investigações da vida privada. Estas, sim, encontram em toda a parte a unidade do sentimento e da educação religiosa do paiz para echoal-as. A consciencia em voga entre os politicians tem a sua casuistica especial.
Isto não quer dizer que na politica americana não haja um typo muito differente do do politician, ou, como os antigos lhe chamariam, do demagogo; que, ao lado da consciencia elastica,[Pg 162] insensibilisada para todas as especies de fraude, de corrupção, de chicana, como males inevitaveis da democracia, não exista a honra, o decoro, a immaculabilidade. Ha homens na politica respeitados em todo o paiz, e que ambos os partidos reputam incapazes da menor indelicadeza no que toca á honestidade pessoal. Não ha um só, na actividade e na lucta partidaria porém, a quem se attribúa o caracter preciso para repudiar e condemnar os seus correligionarios ainda nos peiores recursos que tiverem empregado. O homem da mais pura reputação no Senado americano votará solido, sempre que se tratar do interesse geral do partido.
Não havia nada que me désse na America do Norte idéa da superioridade de suas instituições sobre as inglezas. A atmosphera moral em roda da politica era seguramente muito mais viciada; a classe de homens a quem a politica attrahia, inferior, isto é, não era a melhor classe da sociedade, como na Inglaterra; pelo contrario, o que a sociedade tem de mais escrupuloso afasta-se naturalmente da politica. A lucta não se trava no terreno das idéas, mas no das reputações pessoaes; discutem-se os individuos; combate-se, póde-se dizer, com raios Rœntgen; escancaram-se as portas dos candidatos; expõe-se-lhes a casa toda como em um dia de leilão. Com semelhante regimen, sujeitos ás execuções summarias da calumnia e aos lynchamentos no alto das columnas[Pg 163] dos jornaes, é natural que evitem a politica todos os que se sentem improprios para o pugilato na praça publica, ou para figurar em um big show.
A grandeza do espectaculo que dão os Estados-Unidos é tanto maior, eu sei bem, quanto mais baixo o nivel do politico de profissão. A degradação dos costumes publicos do paiz, coincidindo com o seu desenvolvimento e cultura, com a sua accumulação de riqueza e de energia, com os seus recursos illimitados, não quer dizer outra coisa sinão que a nação americana não se importa que administrem mal os seus negocios, porque não tem tempo para tomar contas. É como uma fazenda de immensa safra, em que o proprietario ausente fechasse os olhos ás dilapidações do administrador, levando-as á conta de lucros e perdas, inevitavel em todo genero de negocios. Os Americanos deixam-se tratar pelos seus politicians do mesmo modo que os reis de França pelos seus fermiers-géneraux. Sejam causados pela ignorancia e incapacidade, ou pela corrupção e venalidade, prejuizos ha de sempre haver em toda administração; para impedil-os seria preciso montar um systema de fiscalisação ruinoso para o paiz, não só pelo seu custo, como porque seria preciso distrahir para elle dos negocios e de outras profissões o que o paiz tivesse de melhor.
Que póde acontecer de peior entregando-se o[Pg 164] paiz á direcção de partidos organizados como associações de seguro mutuo e que para isso recolhem uma porcentagem do rendimento nacional? Uma aggravação de impostos? Que importa ao Americano pagar mais alguns cents no dollar e não se incommodar com a politica? Envolverem os politicians a nação em uma guerra estrangeira? O perigo é muito problematico e a varonilidade do paiz não teme que o envolvam em uma guerra sem elle a querer e a achar legitima ou vantajosa. O Americano sabe que ha no seu paiz uma opinião publica, desde que cada Americano tem uma opinião sua. É uma força latente, esquecida, em repouso, que não se levanta sem causa sufficiente, e esta raro se produz; mas é uma força de uma energia incalculavel, que atiraria pelos ares tudo o que lhe resistisse, partidos, legislaturas, Congresso, Presidente.
É nesse sentido um grande espectaculo. O governo tem uma capacidade limitada de fazer mal; a parte de influencia e de lucros que a nação abandona á classe politica, está circumscripta a uma escala movel, isto é, proporcional ao rendimento publico, o que permitte á profissão vantagens crescentes e progressivas, mas, como quer que seja, está circumscripta; a nação deixa-se dividir em partidos, fórma e manobra em campos eleitoraes, e, apezar da massa das abstenções, acompanha os maus administradores dos seus interesses; mas todos sentem que de repente a[Pg 165] opinião póde mudar, tornar-se unanime, adquirir a força de um impulso irresistivel, destruir tudo. Nos Estados-Unidos o governo não tem assim a importancia que tem nos paizes onde elle governa; o governo na America é uma pura gestão de negocios, que se faz, mal ou bem, honesta ou deshonestamente, com a tolerancia e o conhecimento do grande capitalista que a delega. A corrupção politica é, por isso, na America do Norte, já uma vez citei esta imagem de Boutmy, uma simples erupção na pelle, emquanto em outros paizes ella é um mal profundo, visceral.
O facto é que nenhuma impressão guardei dos Estados-Unidos de ordem equivalente á impressão ingleza, nem mesmo a de liberdade individual. E certo que o Americano, comparado com o Inglez, tem o sentimento da altivez individual mais forte, porque não ha classe, nem hierarchia a que elle se curve. O Inglez tem reverencia pela posição, pela classe, pelo nascimento; o Americano não tem, e isto faz naturalmente que este se considere mais independente no seu modo de sentir do que o Inglez. É incontestavel que a democracia, introduzindo na educação a idéa da mais perfeita egualdade, levanta no homem o sentimento do orgulho proprio. A questão é saber, tomando o conjuncto dos resultados, si as sociedades antigas onde as influencias tradicionaes não se apagaram de todo, como a ingleza, antes são por assim dizer artificialmente[Pg 166] mantidas, não produzem com as limitações de classe uma dignidade pessoal moralmente superior a essa altivez da egualdade. E preciso não esquecer, tratando-se do Norte-Americano, que a egualdade humana para elle fica dentro dos limites da raça; já não fallando do Chim ou do negro,—que seria classificado, si vencesse o instincto americano, em uma ordem differente da do homem,—nunca ninguem convenceria o livre cidadão dos Estados-Unidos, como elle se chama, de que o seu vizinho do Mexico ou de Cuba, ou os emigrantes analphabetos e indigentes que elle repelle dos seus portos, são seus eguaes. Para com estes o seu sentimento de altivez converte-se no mais fundo desdem que ente humano possa sentir por outro.
Não quizera eu negara inspiração superior que ha no sentimento da egualdade na America, como no antigo Israel e na antiga Grecia, onde elle foi um sopro de liberdade, de heroismo, de independencia, de que procederam os mais perfeitos typos na arte e na religião. É evidente que nesse caminho é a Inglaterra que avança na direcção dos Estados-Unidos e não os Estados-Unidos que retrocedem a encontrar a Inglaterra. Ninguem que conheça o typo americano, desde o news-boy, que grita os jornaes na rua, até o king, o rei, de algum immenso monopolio ou especulação, estradas de ferro, minas de carvão ou de prata, mercado de algodão ou de farinha de trigo, desconhecerá[Pg 167] que a caracteristica, por excellencia, do Americano é a convicção de que melhor do que elle não existe ninguem no mundo. A materia prima dos discursos feitos ás multidões, ou dos artigos de propaganda eleitoral, posso dizer que se contem toda nesta phrase, que ouvi a um dos oradores de um monster-meeting: «Nos Estados-Unidos (elle disse, como sempre, in America) cada homem é um rei, e cada mulher uma rainha». Talvez fosse paradoxo dizer eu que o effeito de tal sentimento não póde ser sinão gerar um illimitado orgulho, e que do orgulho renascerá sinão a desegualdade, porquanto a egualdade póde ficar entranhada no sangue da raça, o servilismo. Não foi assim sempre com as mais livres de todas as raças e as mais soberbas de todas as democracias? O sentimento, entretanto, da egualdade perante a lei e perante a justiça, qualquer que possa ser o sentimento da egualdade de condição, é maior, é mais seguro na Inglaterra do que nos Estados-Unidos. É mais provavel que o groom do marquez de Salisbury obtenha justiça contra seu amo do que o caixeiro de um grande estabelecimento de Nova-York contra o patrão, si este tiver qualquer influencia na City-Hall.
Nos Estados-Unidos não seria necessario annunciar hoje: «Precisa-se de uma aristocracia». Essa aristocracia já existe, ou, pelo menos, se está formando rapidamente, como[Pg 168] tudo se fórma alli: aristocracia de nascimento, aristocracia de fortuna, aristocracia de intelligencia, aristocracia de belleza. O que distingue essa aristocracia sem titulos nem pergaminhos de nobreza, toda de convenção, mas, apezar disso, uma aristocracia, o que a distingue das outras aristocracias do mundo é não ser politica, ser mesmo o resultado da abstenção politica. É em segundo logar,—e este é o ponto mais delicado da «sociedade» americana,—a idéa que se insinuou entre as mulheres desse circulo estreitissimo, de que o gentleman inglez é um typo superior ao dos seus patricios de maior cultura e distincção. É certo que as Americanas que preferem casar com estrangeiro para pertencerem ás rodas mais exclusivas da aristocracia européa são poucas em relação ás que casam com compatriotas seus, mas a aristocracia é, em si mesma, uma minoria, e são as suas minorias que melhor lhes representam o espirito. Essa preferencia pelo estrangeiro, por parte da mulher americana, quer me parecer um desastre sensivel para o sentimento da egualdade dos Americanos. Si o resultado desse sentimento, e é claro que o effeito não é de outra causa, é crear uma aristocracia em que o homem é considerado abaixo do nivel da mulher, e menos proprio para inspirar-lhe amor e desposal-a do que o lord ou o honorable inglez, póde-se dizer que, na mais alta esphera da sociedade, aquelle sentimento falliu desastrosamente.
[Pg 169]
Nesse ponto, nenhuma alta sociedade soffre de um mal tão deprimente, como é a consciencia que o homem do mundo americano tem de que a sua joven patricia, bella e muitas vezes millionaria, reputa o duque inglez ou o conde francez um ente superior a elle. Não é o titulo necessariamente o que constitue a vantagem do estrangeiro que telegrapha para Londres ou Pariz o seu veni, vidi, vici, dias depois de ter desembarcado; é em parte o prestigio, a seducção do mundo europeu e a idéa de que só excepcionalmente o Americano chegaria a afinar-se com a sociedade ingleza, franceza ou romana, como ella, americana, se afina; mas é principalmente o typo aristocratico de homem que exerce sobre ella essa fascinação desoladora para os seus compatriotas. Ha familias, e as haverá cada dia mais nos Estados-Unidos, que são familias patricias, seja pela immensa riqueza, como os Astors e os Vanderbilts, pela magistratura consular que exerceram, como os Adams, os Hamiltons, os Jays, pelas gerações que representam de nomes conhecidos e de proeminencia social, e é evidente que nessa aristocracia, que tende a ter o seu espirito de classe, a idéa de casamento com estrangeiro, ou de superioridade do estrangeiro, não póde ser sinão a excepção. Mas em uma sociedade é preciso levar em conta o sentimento do grupo que attráe nella a maior somma de interesse publico, (não ha duvida que, no ultimo degráu da sociedade[Pg 170] americana, o prestigio do nobre inglez, dos bons titulos francezes, dos principes romanos, vence toda a competição nacional). Está ahi uma terrivel concurrencia, contra a qual é impotente o genio proteccionista do paiz. Apenas, como compensação, póder-se-ia imaginar um drawback em favor dos Americanos que casassem na alta sociedade ou finança européas. Uma aristocracia, onde as mulheres mais ambicionadas, as que têm a primazia da belleza, da fortuna, da seducção, julgam o estrangeiro, quando se trata de amor ou de união, mais ao seu nivel do que o seu compatriota, soffre de um desequilibrio de ideal entre os dois sexos. Não é sinão justo apreciar as sociedades pela sua flôr, pela sua élite, isto é, pelo que ellas mais profundamente admiram em si mesmas e o mundo mais admira nellas.
[Pg 171]
Eu não podia, entretanto, ter vivido quasi dois annos nos Estados-Unidos sem em algum ponto ser modificado pela influencia norte-americana. Uma coisa é a Europa, outra a America do Norte. Entre os Americanos, o metal do caracter, o fundo de experiencia humana, o tacto da vida é, fallando do paiz como uma só pessôa moral, anglo-saxonio. Os Estados-Unidos, como a Australia e o Canadá, não pódem esconder a sua procedencia. O fundo anglo-saxonio revela-se, augmentado ou diminuido, na coragem e tenacidade, na dureza e impenetrabilidade, no espirito de empreza e de independencia da raça, tambem na brutalidade e crueldade do instincto popular, nas rixas de sangue, na bebida, nos lynchamentos, na sêde insaciavel de dinheiro, e tambem, outros traços, na necessidade de limpeza physica e moral, no espirito de conservação, na emulação e amor-proprio nacionaes, na religião, no respeito[Pg 172] á mulher, na capacidade para o governo livre.
Que homem differente, porém, é o Americano do Inglez! Os moldes são tão diversos que, para explicar a differença, é preciso admittir uma influencia modificadora mais forte do que a de instituições sociaes, uma influencia de região,—cada grande região do globo produzindo como o tempo uma raça sua, differente das outras. As instituições modificam o caracter de um povo, mas não se provou ainda que lhe modificassem o typo e o temperamento physico. Qual seria a differença entre o Grego do tempo de Milciades e do tempo de Alexandre ou de Trajano? Qual a differença do Napolitano do tempo de Affonso o Grande para o do rei Umberto, ou do Portuguez manoelino para o de hoje?
A comparação do machinismo politico-social entre a America do Norte e a Inglaterra é, em quasi tudo, favoravel a esta. As instituições inglezas, tanto as politicas como as judiciarias, tanto as publicas como as privadas, têm mais dignidade, mais seriedade, mais respeitabilidade. Na Camara dos Communs não se imagina o processo do lobbying, não ha na administração ingleza o spoils system, ninguem pensaria em squaring um tribunal inglez, não ha na Inglaterra um trecho de territorio em que os cidadãos só tenham confiança na justiça que fazem por suas mãos, como nos lynchings americanos. A todos[Pg 173] os que têm que tratar com a administração, que estão na dependencia da justiça, a organização americana offerece muito menos garantias de equidade e menor protecção do que a ingleza.
Isto, por um lado; por outro, quem entra na vida publica tem que procurar nos Estados-Unidos as boas graças de individuos muito differentes dos que na Inglaterra abrem aos principiantes as portas da politica; além disso, tem que apprender por um catecismo muito mais relaxado. A intervenção do grande pensador, do grande escriptor, do homem competente, faz-se sentir na Inglaterra mais do que nos Estados-Unidos, onde as massas obedecem a influencias que não têm nada de intellectual e não têm apreço por nenhuma especie de elaboração mental. Tudo o que é superior tem, com effeito, o cunho da individualidade, envolve, portanto, desdem pela sabedoria das massas. O genio politico, qualquer que seja, está para ellas eivado de rebeldia. Singularmente, o cidadão vale menos nos Estados-Unidos do que na Inglaterra. Para ser uma unidade na politica americana, é preciso que o individuo se matricule em um partido, e, desde esse dia, renuncie á sua personalidade. Na Inglaterra não ha semelhante escravidão do partido. O paiz é governado, como os Estados-Unidos, por dois partidos que se alternam e se equilibram, mas os partidos inglezes são partidos de opinião, não são machines, como os americanos,[Pg 174] das quaes certo numero de bosses governam e dirigem os movimentos.
Tomando-se, porém, o individuo sem relação ao machinismo politico, o homem que não tem dependencias da administração nem da justiça e que renuncia o direito de desgovernar elle tambem os seus concidadãos, os Estados-Unidos são o paiz livre por excellencia. Os Americanos são uma nação que quizera viver sem governo e agradece aos seus governantes suspeitarem-lhe a intenção. D’ahi, a popularidade de seus Presidentes: elles não fazem sombra ao paiz, não pesam sobre a nação. A pressão de cima para baixo, do governo sobre a sociedade, a que a humanidade se habituou de tempos immemoriaes, de fórma a não poder viver sem ella, faz-se sentir nos Estados-Unidos menos do que em outra qualquer parte, menos do que na Inglaterra, onde a protecção governamental está sempre presente. A columna da autoridade é menor sobre os hombros do Americano do que sobre os de qualquer outro povo; a sua respiração é a mais franca, a mais larga, a mais profunda de todas. O governo póde ser melhor, mais perfeito na Inglaterra: que lhe importa isso, si o que elle quer é mesmo que a acção do governo se vá cada dia restringindo e elle a sinta menos e tenha menos que vêr com ella? A questão é saber si a columna de auctoridade, que é hoje tão leve nos Estados-Unidos, não virá um dia a ser a mais pesada de todas. O[Pg 175] systema americano póde bem corresponder, dada a differença de epocha e adeantamento, á liberdade pessoal de que gozaram sempre mais ou menos as raças que tinham espaço illimitado para se estenderem e escassa vizinhança em paiz novo. No fundo, essa extrema liberdade é uma fórma de individualismo, de isolamento, de vida á parte, de reponsabilidade ainda não formada, do homem na sociedade. Isoladamente, o Americano será, como eu disse, o mais livre de todos os homens; como cidadão, porém, não se póde dizer que o seu contracto de sociedade esteja revestido das mesmas garantias que o do Inglez, por exemplo. A auctoridade é menor sobre os seus hombros, mas a solidariedade humana é tambem mais frouxa em sua consciencia.
Uma coisa o governo americano não é: não é o governo do melhor homem, como pretendiam ser as democracias antigas. Governo pessoal, as presidencias pódem ser, pelo menos foram algumas accusadas de o ser; não se póde, porém, apontar neste seculo o homem de influencia nos Estados-Unidos, o Gladstone ou o Gambeta americano. A nação dispensa tutores, directores, conselheiros, rejeita tudo o que pareça patronizing, ares de protecção e condescendencia para com ella. Aos seus olhos, o que faz um estadista consideravel e importante é a somma de confiança que elle lhe merece, é o reflexo da satisfação que causa a Uncle Sam.
[Pg 176]
A idéa de que o seu governo é o mais forte do mundo e o que mais economisa e occulta a sua força, é o orgulho por excellencia do Americano. Entre o militarismo europeu e a democracia desarmada dos Estados-Unidos póde um dia rebentar um conflicto que hoje parece quasi um paradoxo figurar, mas, até se experimentar em uma grande guerra estrangeira, como se provou em uma grande rebellião, a solidez e a elasticidade da americana, não se a póde considerar superior á velha textura européa.
O que se póde dizer é que os Estados-Unidos não tiveram ainda os mesmos perigos de que se acautelar que a Europa. Esse governo que muda todos os quatro annos, póde ser o mais forte do mundo, mas não foi experimentado nas mesmas condições que os outros, e está para estes, que são governos armados e em constante vigia pelo risco das coalições estrangeiras, como os magnificos transatlanticos, de vastos salões illuminados, cobertas altas, camarotes espaçosos e arejados, verdadeiras cidades fluctuantes, estão como habitação para os navios de combate.
A União, comparada á Inglaterra, é como a prairie americana comparada ao pateo interior de um castello normando. Em uma, ha de todos os lados o espaço descortinado, a planicie sem fim; em outro, o espectador está fechado por altas paredes, que lhe contam sempre a historia de outras epochas. O passado pesa sobre o presente na[Pg 177] Inglaterra e o limita; na America, não ha vista retrospectiva. De tudo isto resulta para o Americano um sentimento de independencia, que o faria, como fazia o Grego, sentir-se metade escravo, si lhe dessem um rei, mesmo quando o effeito da realeza fosse augmentar a sua parte effectiva de direitos e de influencia na communhão. É nisto que consiste a maior «liberdade» americana: no sentimento da egualdade hierarchica entre governantes e governados.
Não havia perigo de que eu adquirisse essa idiosyncrasia americana: era evidente para mim que ella era o resultado das condições em que o paiz crescêra e que, si a independencia tivesse sido feita com um principe inglez, como a nossa foi feita com o herdeiro do throno, os Estados-Unidos, em um seculo de progresso e de adeantamento, teriam desenvolvido para com a sua casa reinante o mesmo sentimento de loyalty dos Inglezes. Si a realeza, na Inglaterra, passou, no nosso tempo, pela metamorphose que se observa do reinado de Jorge IV para o reinado de Victoria, teria passado na America do Norte por uma transformação ainda maior. Mr. King ou Mrs. Queen seria uma pessôa muito mais popular do que Mr. President, e diariamente receberia mais esmagadores shake-hands ou mais familiares cartões-postaes. No Brasil a monarchia foi o que vimos, uma pura magistratura popular; como não seria nos Estados-Unidos, onde o[Pg 178] principio activo, a força corrosiva da democracia é ainda mais energica? A monarchia na Nova-Inglaterra, teria, provavelmente, exercido maior influencia sobre as velhas monarchias européas do que exerceu a grande Republica, e outra especie de influencia sobre o resto da America.
Depois da recepção e do acolhimento que Dom Pedro II teve nos Estados-Unidos em 1876, não era mais licito duvidar de que para a intelligencia culta do paiz a monarchia constitucional, representada por uma dynastia como a brasileira, era um governo muito superior ás chamadas republicas da America Latina. Perante multidões americanas nem sempre conviria, talvez, ao orador dizer isso; elle poderia ás vezes declamar que a peior das republicas é um progresso sobre a melhor das monarchias, mas eu sentia que fallar assim era o privilegio do demagogo irresponsavel, e que esse não fôra o sentimento dos Washingtons, dos Hamiltons, dos Jeffersons, nem é o dos que procuram seguir-lhes as tradições. O effeito do republicanismo norte-americano só podia ser para mim o de corrigir o que houvesse de supersticioso no meu monarchismo, tirar-lhe tudo o que parecesse direito divino, consagração super-humana. Entre os dois espiritos, o inglez e o norte-americano, eu não via opposição, como não ha opposição entre as duas raças e as duas sociedades; não havia nada mais facil de comprehender e conciliar do que a admiração com[Pg 179] que Gladstone falla dos Estados-Unidos e a admiração dos escriptores mais respeitaveis da America pela Constituição ingleza.
Nenhuma das minhas idéas politicas se alterou nos Estados-Unidos, mas ninguem aspira o ar americano sem achal-o mais vivo, mais leve, mais elastico do que os outros saturados de tradição e auctoridade, de convencionanismo e cerimonial. Essa impressão não se apaga na vida. Aquelle ar, quem o aspirou uma vez, prolongadamente, não o confundirá com o de nenhuma outra parte; sua composição é differente da de todos.
Quanto a mim, fui tratado com tanta benevolencia, encontrei tão generoso acolhimento nos Estados-Unidos, que ainda hoje me reconforto nessas doces recordações. A impressão geral que me deixou o que vi na America do Norte, é uma impressão de nitidez; tudo é nitido, de contorno perfeito e incisivo, como uma medalha antiga. O Inglez fará tudo solido; o Francez, elegante; o Americano procura fazer nitido, clear cut. Isso reconhece-se logo em qualquer estampa americana. Ha uma perfeição á parte, que é a perfeição americana, distincta do ultimo toque que o Inglez ou o Francez dá ás coisas, perfeição real, incontestavel, como é a japoneza. Póde-se preferir o modo de vêr, ou, antes, o modo de olhar,—a arte não é no fundo sinão um modo de olhar, uma questão de angulo visual,—do[Pg 180] Europeu ao do Americano, é tambem isso em grande parte uma questão de raça, mas não ha duvida que o traço americano é um traço que alcançou, por sua vez, a perfeição. Tudo o que vi me pareceu feito, desenhado com esse traço, que eu não confundiria com outro. O que o distingue é que elle não exprime, como os outros, um estado de espirito ou aspiração de ordem puramente esthetica; que não exprime uma resolução, uma vontade, um caracter. Si não fosse a imaginação historica, de que eu não poderia, nem quizera, desfazer-me, nenhuma residencia, nenhuma vida, nenhum espectaculo me teria nunca parecido tão encantador como o de Nova-York. Não sei si o céo de Nova-York não me pareceu o mais bello do mundo; o que sei é que elle derrama em ondas de luz a alegria, a vida, a coragem, sobre a mais admiravel procissão de mocidade e de belleza humana que jámais passou deante dos meus olhos, a que flue e reflue todas as tardes e manhãs da Quinta Avenida para o Central Park.
Ao Americano, ao homem, não á mulher, e ao homem que não pertence á élite do paiz, faltará o que se tem convencionado chamar maneiras, os toques ou signaes, desconhecidos dos profanos, pelos quaes os iniciados nos segredos mundanos se reconhecem entre si; isto quer dizer sómente que a americana é uma raça que ainda está crescendo na mais perfeita egualdade e ganhando[Pg 181] a vida em desenfreada competição. Não ha, porém, no mundo uma escola egual a essa para se aprender o que, d’ora em deante pelo menos, é o mais importante dos preparatorios da vida,—a arte de contar comsigo só. O menino americano, e quando se diz o menino nos Estados-Unidos entende-se a menina tambem, é mettido desde quasi a primeira infancia em um banho chimico que lhe dá a cada fibra da vontade a rijeza e a elasticidade do aço. Qualquer que seja o valor da cultura, nenhum pae preferirá deixar ao filho mais um sentido intellectual a deixar-lhe o poderoso pick-me-up americano, o cordial que impede a enervação nos grandes transes moraes. E que o jogo da vida nos tempos modernos,—muito mais nos seculos que vão vir, em que a concurrencia será ainda mais numerosa e implacavel,—não se parece com figuras de minuete ou com divertimentos campestres do seculo passado, como os vemos em um Boucher ou em um Goya; parece-se com as chamadas montanhas russas: é um incessante despenhar a toda a velocidade, montanha abaixo, de trens que com o impulso da descida transpõem as escarpas fronteiras para se precipitarem de novo e de novo reapparecerem mais longe, e para essa continua sensação de vertigem é principalmente o coração que precisa ser robustecido. Segundo toda probabilidade, os Estados-Unidos hão de um dia parar, e então terão tempo para[Pg 182] produzir a sua sociedade culta, como os velhos paizes da Europa. Já ha nos Estados-Unidos porções da sociedade que pararam e querem permanecer em repouso; essas formam o primeiro indicio de uma aristocracia, que um dia será um grande poder na União, uma grande influencia ou conservadora ou artistica.
Em uma entrevista que concedeu ha annos a um reporter americano, Herbert Spencer concluiu com esta previsão sobre o futuro dos Estados-Unidos: «De verdades biologicas deve-se inferir que a mistura eventual das variedades alliadas da raça Aryana que formam a população hão de produzir um mais poderoso typo de homem do que tem existido até hoje, e um typo de homem mais plastico, mais adaptavel, mais capaz de supportar as modificações necessarias para a completa vida social. Por maiores que sejam as difficuldades que os Americanos tenham que vencer e as tribulações por que tenham que passar, elles podem razoavelmente contar com uma epocha em que hão de produzir uma civilisação mais grandiosa do que qualquer que o mundo tenha visto.»
É possivel que seja aquella a lei biologica da mistura aryana, mas até hoje ainda nenhum galho americano de tronco europeu mostrou poder dar a mesma flôr de civilisação que a da velha estirpe. É possivel que a civilisação americana venha um dia a ser mais grandiosa do que qualquer que o mundo conheceu, mas eu consideraria perigoso,[Pg 183] por emquanto, renunciar a Europa nos Estados-Unidos a tarefa de levar a cabo a obra da humanidade. Reduzida esta aos actuaes elementos americanos, muita nobre inspiração talvez nunca mais se pudesse renovar e o genio da raça humana não viesse nunca a reflorir. A educação americana parece a unica que não é convencional, que não é uma pura galvanisação de estados de espirito de outras epochas, de ideaes classicos e litterarios, que homens que vivem entre livros insinuam aos que não tem tempo para lêr. A idéa tem na America do Norte muito menor papel na vida do que nos outros paizes, onde tudo está escripto e convertido em regra, e dos quaes se póde dizer, invertendo a celebre phrase, que nada lhes cáe sob os sentidos que não tenha estado primeiro na intelligencia. Os Americanos, em grande escala, estão inventando a vida, como si nada existisse feito até hoje. Tudo isto suggere grandes innovações futuras, mas não existe ainda o menor signal de que a elaboração do destino humano ou a revelação superior feita ao homem tenha um dia que passar para os Estados-Unidos. A sua missão na historia é ainda a mais absoluta incognita. Si elle desapparecesse de repente, não se póde dizer o que é que a humanidade perderia de essencial, que raio se apagaria do espirito humano; não é ainda como si tivesse desapparecido a França, a Allemanha, a Inglaterra, a Italia, a Hespanha.
[Pg 184]
Por onde quer, entretanto, que eu andasse e quaesquer que fossem as influencias de paiz, sociedade, arte, auctores, exercidas sobre mim, eu fui sempre interiormente trabalhado por outra acção mais poderosa, que apezar, em certo sentido, de estranha, parecia operar sobre mim de dentro, do fundo hereditario, e por meio dos melhores impulsos do coração. Essa influencia, sempre presente por mais longe que eu me achasse d’ella, domina e modifica todas as outras, que invariavelmente lhe ficam subordinadas. É aqui o momento de fallar d’ella, porque não foi uma influencia propriamente da infancia nem do primeiro verdor da mocidade, mas do crescimento e amadurecimento do espirito, e destinada a augmentar cada vez mais com o tempo e a não attingir todo o seu desenvolvimento sinão quando posthuma. Essa influencia foi a que exerceu meu pae...
[Pg 185]
Quando eu o vi pela primeira vez, em 1857, elle tinha quarenta e quatro annos e acabava de deixar o ministerio da Justiça. O gabinete Paraná-Caxias (1853-57) fôra o mais longo que o Imperio até então tinha tido e ficou sendo a mais brilhante escola de estadistas do reinado. O grupo dos «moços» que o marquez de Paraná reuniu em torno de si, mostra de que maneira elle lia os homens e o futuro. Paranhos, Wanderley, Pedreira, Nabuco estavam todos destinados a representar primeiros papeis em politica. Esse gabinete foi conhecido como o ministerio da Conciliação. Elle correspondia ao pensamento, acceito pelo Imperador depois do choque da ultima guerra civil do Imperio, de abrir a politica aos elementos liberaes proscriptos, sem tirar a direcção d’ella ao espirito conservador. Antes de entrar para o ministerio, fôra Nabuco quem melhor definira o alcance e os limites d’essa nova politica, da qual devia ficar depois da morte de Paraná, e por muito tempo, quasi que o solitario continuador. Citarei um trecho d’esse seu discurso de 1853 como simples deputado, discurso-programma, póde-se dizer, pelo muito que será interpretado e invocado depois que por elle é feito ministro, porque basta esse trecho para dar idéa do seu modo de insinuar nos espiritos uma direcção nova, um rumo diverso do que se ia levando.
É dos seus discursos o chamado a ponte de[Pg 186] ouro. Os discursos de Nabuco tinham entre os contemporaneos cada um o seu nome, ou, como esse, tirado pelos adversarios do alcance, da intenção que lhe attribuiam, ou dado pela imagem ou phrase mais expressiva, ou comprehensiva, de que elle se servira para caracterisar a situação. «Eu entendo, dizia elle fallando da idéa de conciliação, a qual estava no ar, que é preciso fazer alguma concessão no sentido que o progresso e a experiencia reclamam, para que mesmo o orgulho e o amor proprio não se embaracem ante a idéa da apostasia; para que a transformação seja explicada pelo novo principio, pela modificação das idéas. A conciliação como coalisão e fusão dos partidos, para que se confundam os principios, para que se obliterem as tradições, é impraticavel, e mesmo perigosa, e por todos os principios inadmissivel; porque, destruidas as barreiras do antagonismo politico que as opiniões se oppõem reciprocamente, postas em commum as idéas conservadoras e as exaggeradas, estas hão de absorver aquellas; as idéas exaggeradas hão de triumphar sobre as idéas conservadoras; as idéas exaggeradas têm por si o enthusiasmo, as idéas conservadoras somente a reflexão; o enthusiasmo é do maior numero, a reflexão é de poucos; aquellas seduzem e coagem, estas sómente convencem... A historia nos diz que n’estas coalisões a opinião exaggerada ganha mais que a opinião conservadora...» E em seguimento:[Pg 187] «Ouvi com repugnancia uma idéa proferida n’esta casa, que os partidos por si é que se deviam conciliar. Entendo ao contrario que a conciliação deve ser a obra do governo e não dos partidos, porque no estado actual, si os partidos por si mesmos se conciliarem, será em odio e despeito ao governo, e a transacção, versando sobre o principio da auctoridade, não póde deixar de ser funestissima á ordem publica e ao futuro do paiz...»
Esses quatro annos de ministerio foram para elle extremamente trabalhosos, mas por egual fecundos. Meu pae vinha da magistratura e da Camara com uma reputação feita de jurisconsulto. No ministerio da Justiça elle a consolidou. Não tento agora um resumo de sua obra, que extensamente recompuz em Um Estadista do Imperio. Escolho alguns traços sómente para definir a sua individualidade e a sua influencia. Coube-lhe em primeiro logar acabar inteiramente com o trafico de Africanos que Eusebio de Queiroz, seu antecessor, ferira de morte, mas que não queria desapparecer sinão mui lentamente; a menor fraqueza da parte de uma futura administração fal-o-hia renascer com dobrada ancia de aproveitar a monção, porque seus quadros e material conservavam-se intactos no Brasil e em Africa. Nabuco propõe como recurso extremo tirar-se o julgamento do crime aos jurados. Esse golpe na «instituição popular»[Pg 188] parecia uma enormidade aos idolatras do preconceito liberal: elle, porém, sustentou-o com razões de uma coerção moral e social absoluta. «Em 1850, vós o sabeis, disse elle á Camara, o grande mercado dos escravos era nas costas; é ahi que havia grandes armazens de deposito onde todos iam comprar; mediante essa lei de 4 de Setembro de 1850»,—a lei de Eusebio de Queiroz,—«essas circumstancias se tornaram outras, os traficantes mudaram de plano. Apenas desembarcados os Africanos são para logo, por caminhos impervios e por atalhos desconhecidos, levados ao interior do paiz. Á face d’estas novas circumstancias que póde o governo fazer com a lei de 4 de Setembro de 1850, cuja acção é sómente restricta ao littoral? Si desejamos sinceramente a repressão, si não queremos sophismal-a, devemos seguir os africanistas em seus novos planos... Não é para abusar que o governo quer estas disposições, porque para abusar eram bastantes e poderosos os meios que estão hoje á sua disposição... Um governo, a menos que desconheça a sua missão, não póde por amor de um interesse comprometter os outros interesses da sociedade: é na combinação de todos elles que consiste o grande problema da administração publica... Eu vos disse que o governo tinha o desejo sincero de reprimir o trafico e não queria sophismar a repressão: não será sophismar a repressão o encarregar[Pg 189] ao jury o julgamento d’este crime?... Os africanistas não hão de deixar de procurar para o desembarque aquelles sitios em que a opinião fôr favoravel ao trafico; não hão de internar os africanos sinão para os logares em que acham protecção, e o jury d’esses logares, os cumplices, os interessados, os conniventes no crime, pódem julgal-o?...» O governo triumphou, a lei proposta foi votada pelas Camaras... Ter ousado propôr a derogação da competencia do jury quando o trafico estava expirante, era a coragem do verdadeiro homem de Estado, cuja divisa deve ser o nil actum reputans de Cesar. A gloria não seria mais da repressão depois do golpe de Eusebio; este a tinha tirado toda a antecessores e successores egualmente; o que restava a quem viesse depois d’elle era sómente o dever. Mais de uma vez meu pae teve que fazer frente aos defensores theoricos da intangibilidade do jury para fazer triumphar o principio superior da defesa social. Assustava-o a estatistica da impunidade, e entre as causas d’esse estado de coisas elle contava o poderio das influencias do interior que dominavam o jury e por esse meio augmentavam e mantinham em obediencia a sua vassallagem. Como remedio propunha a concentração do jury nos logares povoados bastante para terem uma opinião independente.
Essa era a sua qualidade principal de politico: adaptar os meios aos fins e não deixar periclitar[Pg 190] o interesse social maior por causa de uma doutrina ou de uma aspiração. Como se mostrou com o jury, mostrou-se, elle, magistrado, com a magistratura. A distribuição da justiça foi um de seus maiores empenhos na ordem administrativa; uma boa magistratura, efficiente, instruida, prestigiada, era para elle a solução de metade dos nossos problemas; levantar a vocação de juiz por todos os meios ao alcance do Estado seria o complemento do seu outro desideratum: levantar a vocação religiosa, formar um clero a cuja mãos se pudesse entregar a guarda dos dez mandamentos, o deposito da moral e dos costumes. No emtanto será elle o principal sustentador das aposentadorias forçadas de magistrados vitalicios; elle quem transformará em maxima do governo, em inspiração para os homens de Estado, as palavras de um antigo chanceller francez, quando disse: «Prefiro mil vezes ser julgado por um magistrado venal, porém, capaz, a sel-o por um magistrado honesto, porém, ignorante, porque o magistrado venal não faltará á justiça sinão nas causas em que tiver interesse em fazel-o, emquanto que o magistrado ignorante só por um mero acaso pronunciará uma boa sentença.»
Da mesma fórma com o clero. Como ministro da Justiça, elle dá um forte impulso á educação do clero, propõe a creação de faculdades theologicas; é d’elle o decreto que confere aos bispos o[Pg 191] poder ex-informata conscientia sobre os seus sacerdotes, sem o qual não seria praticavel a arregimentação passiva da milicia ecclesiastica; e no emtanto é elle quem interrompe no Brasil o noviciado monastico. Seu pensamento, longe de ser supprimir as ordens religiosas, era regeneral-as, restituil-as á desejada pureza, ou, como elle disse em uma phrase que se gravou na memoria de Pio IX, «levantar um muro de bronze entre o novo e o velho clero.» Assim tambem serviu a monarchia com lealdade e desinteresse; joven ainda, academico de Olinda, partiu d’elle o primeiro grito ouvido e repercutido no Norte contra as tendencias republicanas de 7 de Abril, mas a prerogativa monarchica não encontrou entre nós mais forte barreira do que fosse o seu espirito liberal fortemente imbuido do preconceito constitucional. É caracteristico do seu modo de comprehender a posição de Conselheiro de Estado a franqueza com que perante o proprio Imperador elle sustenta a maxima,—o rei reina e não governa.
De 1868 a 1871, em que a idéa foi abraçada pelo Visconde do Rio-Branco que a converteu em lei, meu pae foi o principal agitador da libertação das gerações futuras. Em 1866 elle votára por essa reforma em despacho de ministros e em 1867 fôra o seu mais estrenuo defensor no Conselho de Estado, como relator do projecto que depois se converteu na lei de 28 de Setembro.[Pg 192] Distribuindo no dia da victoria os louros do triumpho, Francisco Octaviano render-lhe-á este tributo: «Ao seu nobre collega o sr. Nabuco de Araujo tambem é indisputavel a gloria pelo zelo com que no Conselho de Estado, na correspondencia com os fazendeiros e na tribuna por meio de eloquentes discursos, fez amadurecer a idéa e tomar proporções de vontade nacional.»
Essa foi a reforma a que elle se dedicou com maior interesse e amor... Tambem desde 1866 o meu sonho, minha ambição para elle era que o seu nome ficasse associado ao primeiro Acto de emancipação do reinado... Quantas cartas minhas escriptas da Academia, e conservadas, como elle fazia com todos os papeis que recebia, encontrei depois exprimindo aquella esperança intima de que elle viesse a ser o Lincoln brasileiro! E de certo de sua carreira nenhum traço me é mais precioso do que esse que reconstrui com fidelidade em sua Vida e que faz d’elle, assim como Rio-Branco foi o Robert Peel, o Cobden d’aquelle primeiro movimento abolicionista. Assim, si ao entrar eu para a Camara em 1879 elle vivesse ainda, ao passo que sua presença no Senado, modificaria em muita coisa a minha liberdade de acção, em um ponto, tenho a mais completa certeza, o meu papel teria sido o mesmo, ainda mais accentuado: na questão dos escravos. N’essa elle não me corrigiria nem me conteria. A sua attitude seria, como havia de ser a de[Pg 193] Rio-Branco si assistisse a mais uma Sessão Legislativa, francamente favoravel á abolição. Si um e outro vivessem, o caracter revolucionario do movimento teria talvez sido evitado, porque em ambos os partidos haveria no momento decisivo,—depois foi tarde,—quem se identificasse com a propaganda, impedindo assim no futuro a aspiração liberal humana de tornar-se em fermento politico... Eu não tenho, graças a Deus, duvida que esta seria a sua attitude, e posso assim dizer que em 1879 não fiz como deputado sinão continuar do ponto em que elle ficára, substituir-me a elle, com a differença natural entre minha mocidade e sua velhice, desenvolvendo em favor dos escravos existentes o pensamento que elle assignalára como um dever nacional, tanto no preparo como na discussão da lei que libertou as gerações futuras.
Para o fim da vida seu liberalismo tinha tomado um tom muito accentuado, mas era sempre sob fórmas concretas que elle encarava a liberdade. Assim occupava-se sobretudo das garantias judiciaes da liberdade individual. Elle tinha um certo numero de formulas constitucionaes, de maximas politicas, que faziam parte de sua lealdade tanto á causa monarchica como á causa liberal. Conservador na mocidade e em toda a parte da carreira em que a vida se expandia e a emulação o inspirava, foi na edade do retrahimento que elle rompeu com o partido da tradição,[Pg 194] que a seu vêr se tornára uma oligarchia, tomando a fórma de um triumvirato; chefe liberal, porém, mostrou sempre preferir a maneira, o compasso, a compostura da velha escola á lufa-lufa, promiscuidade e indisciplina do seu novo campo.
Estes traços bastariam para desenhar o homem de Estado: era uma natureza liberal, com um impulso imaginativo muito pronunciado, vendo distinctamente o ideal politico, mas querendo realidades e não phantasmas, preferindo um pouco de liberdade que se pudesse deixar como a herança aos filhos, um bem-estar relativo, a grandes direitos illusorios, em cuja posse não se pudesse entrar, ou a grandes reformas do mechanismo politico que em nada melhorassem a condição do paiz. Tinha um fundo de idealismo, formado de principios inflexiveis, mas corrigido sempre pela intuição nitida dos effeitos praticos da lei. Era um chefe de partido alheio á pequena politica, o que quer dizer que exercia uma especie de auctoridade moral que os amigos e adversarios compararam por vezes ao poder espiritual dos antigos mikados.
Vivendo no meio de uma elite verdadeiramente notavel de homens de Estado, oradores, legisladores, a mais rica dos dois reinados em talento parlamentar, tradições politicas e conhecimentos administrativos, elle teve longo tempo entre elles por admissão geral o papel de oraculo.[Pg 195] Para o fim fallava raramente e uma tristeza invencivel misturava-se ás suas adivinhações patrioticas. Hoje dir-se-ia, lendo-o, que a uma distancia de doze ou quinze annos o fim das instituições liberaes projectava na frente a sua sombra e que elle a via avançar sobre a tribuna do Senado.
Foi muitos annos depois da sua morte, estudando-lhe a vida, meditando sobre o que elle deixou do seu pensamento, compulsando o vasto archivo por elle accumulado, a sua correspondencia politica, os testemunhos, as controversias, suscitadas pela sua acção individual e as consequencias a ella attribuidas por amigos e adversarios, que abrangi a personalidade politica de meu pae. Na mocidade ser-me-ia impossivel ter d’elle a comprehensão que depois formei; eu não teria as faculdades para isso, a calma necessaria para admirar o que só falla á razão, o espirito de systema, o genio constructor. Mas si o estadista só podia ser medido e avaliado por mim em outra phase do meu desenvolvimento, não soffri, toda a vida, influencia directa e positiva como a admiração que tive pelo homem. Sua grande sciencia eu sabia bem, eu via, estar n’elle e não nos livros, que litteralmente não eram sinão auctoridades de que elle se servia para o publico, juizes, collegas... Mais, porém, do que sua sciencia, o que me dominava n’elle era a harmonia visivel da sua estructura mental e moral, manifestada[Pg 196] por uma serenidade e uma doçura sem egual.
Em 1860 meu pae mudou-se do Cattete para a praia do Flamengo, onde residiu até á morte. A casa era uma d’essas construcções massiças ainda do bom tempo da edificação portugueza no Rio de Janeiro, com proporções no interior de um trecho de palacio ou de convento. Alli, n’aquelles salões, e quartos que eram salas, elle estava á vontade, tinha o espaço, e, com o mar em frente de suas janellas, a variedade e o movimento exterior, precisos a um recluso dos livros. A sociedade do Rio de Janeiro vinha ás suas partidas e recepções; vizinhos, nos domingos, á missa rezada em seu oratorio; durante a sessão das Camaras, deputados Pernambucanos, e sempre os intimos, como o Marquez de Abrantes, Quarahim, os antigos collegas. Isto, além das vezes que ia de carruagem ao Senado ou ao escriptorio, constituia toda a distracção que elle tinha fóra do seu gabinete. Sua vida, póde-se dizer, era exclusivamente cerebral, e nunca teve tempo, (nem um dia, talvez, em toda ella), de interromper, de suspender, esse labor continuo, que era todo elle um serviço forçado, nenhuma parte, nem a mais insignificante siquer, sendo de sua propria escolha ou inclinação... D’esse modo de viver, encerrado entre altas muralhas de livros, sahindo da sua cella sómente para se encontrar em presença da familia com os que a sympathia ou a fidelidade[Pg 197] reunia em torno d’elle, resultou aquella bondade captivante, que foi o seu principal traço.
É para mim hoje uma causa de arrependimento e compuncção o não ter tido como principal aspiração saciar-me, saturar-me d’elle, fazer do meu espirito uma copia, um borrão mesmo, do que havia impresso e cravado no d’elle, quando mais não fosse, das notações que um instante retive, mas deixei apagar... Ha lacunas que não me seria possivel reparar... Estou-me lembrando agora dos grandes volumes encadernados que faziam companhia no degredo do escriptorio á duplicata dos velhos praxistas... Era a collecção dos periodicos em que collaborára ou que redigira no Recife... Estavam alli vinte annos de sua vida... Toda essa serie dispersou-se, desappareceu... Porque não coincidiu o interesse profundo, incomparavel, que tudo isso depois me inspirou com o tempo em que vivi ao lado d’elle? Este desejo de recolher os menores vestigios do seu pensamento, os traços mais fugitivos da sua reflexão, que sempre era, na esphera em que elle produzia, pessoal, creadora, transformadora do assumpto que tratava, só me veiu quando já não podia recorrer a elle, pedir-lhe esclarecimentos, fazel-o animar para mim aquella poeira com a vida que estava só n’elle, dar-me a chave, o espirito da epocha, o caracter, o alcance, a verdade real do que alli se representava, e de que só elle possuia as limitações, a escala, o padrão[Pg 198] definitivo em que tudo devia ser tomado... E em relação aos personagens que conhecêra, com quem vivera. Porque não fiz passar deante d’elle, sem cançal-o nem forçal-o, a galeria dos seus contemporaneos para apanhar o vestigio que lhe ficára de cada um?... No emtanto, quanto não conversei com elle! Annos inteiros meu maior prazer eram as horas que elle nos dava cada dia e em que me embebia em ouvil-o e, ainda mais, em vêl-o... Hoje sinto não ter tido a ambição de não ser sinão o apparelho que recebesse para conservar o mais que fosse possivel d’elle, e cuja presença continua ao seu lado lhe fosse recolhendo as reminiscencias, os pontos de vista, as imagens representativas, que cincoenta annos de actividade cerebral traçaram em seu pensamento.
Feito este acto de contricção pelo que deixei de aproveitar d’elle para minha propria formação e pelo que deixei perder ao seu espolio intellectual, a verdade é que nenhuma sancção moral foi por muito tempo tão forte para mim como a consciencia da relação que me prendia a elle e que em todo o tempo estive sempre prompto a renunciar a uma palavra d’elle,—que a não disse,—a minha inspiração pela sua, o papel que eu ambicionasse pelo que elle me désse. Como eu disse, só muito mais tarde, vinte annos depois de o ter visto pela ultima vez, pude avaliar o que chamo hoje o seu genio politico[Pg 199] e sentir por elle toda a admiração consciente, objectiva, de que sou capaz. Mas ainda assim o sentimento da sua superioridade no seu tempo foi para mim instinctivo. Longe d’elle, na minha esphera intellectual independente, eu exprimiria muitas opiniões, diversas das suas, teria muito exaggero da linha que elle levava; não haveria hypothese, porém, de não ceder eu á menor pressão que elle julgasse preciso exercer sobre a mim, a uma persuasão que me quizesse incutir. A pretenção da mocidade, que se inspira em si mesma e decreta a sua infallibilidade, porque só vê o lado das coisas ao seu alcance, desapparecia sem hesitação a um appello da sua ternura, a um toque da sua razão superior. Prouvéra a Deus tivesse sido assim nos primeiros annos da curiosidade intellectual insaciavel, quando primeiro travei conhecimento com a terra incognita assignalada no mappa da fé como o limite da propria imaginação.
O espectaculo da sua devoção concorreu mais do que nenhuma outra influencia para conservar durante annos intacta a minha crença; depois esta passou por grandes abalos, mas aquella impressão predominante fez-me sempre tratar o que me parecia essencial na religião como a esphera superior ou a fonte mais elevada da inspiração humana... Alguma vez, entretanto, pensando n’elle e na sua grande auctoridade sobre mim, não deixei de sentir a vantagem que os[Pg 200] espiritos emancipados se attribuem em relação aos que nunca sahiram da fé. Era no tempo em que eu perguntava a mim mesmo si um homem, mesmo tendo o genio de um Santo Thomaz de Aquino, podia ser chamado superior, si não tinha, em nosso seculo, outro horizonte intellectual sinão o da revelação... Talvez pensasse eu então como consolo que meu pae tambem tivera duvidas que não deixava perceber, ou que tinha voltado á fé como a uma synthese já prompta da vida humana em todas as suas relações depois de ter debalde procurado construir outra por si mesmo. Só mais tarde alcancei comprehender que a intelligencia póde trabalhar até ao fim inteiramente alheia aos graves problemas religiosos que confundem o pensador que os quer resolver segundo a razão, si nenhum choque exterior veiu perturbar para ella a solução recebida na infancia. A duvida não é signal de que o espirito adquiriu maior perspicuidade, é ás vezes um simples mal-estar da vida. Uma existencia occupada por grandes trabalhos póde não ter um momento para dar á duvida religiosa. Si não é exacto dizer que a duvida nunca ajudou nenhum dos grandes genios da humanidade no traço ou no aperfeiçoamento de sua obra, o numero dos que ella assistiu é seguramente pequeno comparado ao dos que não precisaram de um sopro de negação para os inspirar e souberam crear, crendo. Uma coisa pelo menos é certa, a saber,[Pg 201] que as faculdades creadoras devem estar solidamente construidas para que a duvida não as faça produzir uma obra menos consideravel ou menos bella do que o faria a fé. A duvida póde ser o indicio de um novo destino humano, o esboço de uma intelligencia ainda por vir, mas ella levará muito tempo para chegar a formar um sentido superior á religião. As minhas idéas sobre o que constitue a superioridade intellectual mudaram felizmente muito desde esse tempo em que eu procurava pretextos para attribuil-a a espiritos destituidos da faculdade da duvida, mas que em tudo mais me impunham admiração, como meu pae. Eu tomaria por vezes então um litterato, um escriptor, como superior a um d’esses pensadores asperos, cuja idéa só se póde colher depois de quebrar o involucro resistente que a protege. É como si a flôr que dura uma manhã devesse ser a ultima expressão do mundo vegetal de preferencia ao cedro millenario, pae da floresta.
[Pg 202]
Até 1878 foi propriamente o periodo da minha formação politica; o que se segue, de 1879 a 1889, é o do papel que me tocou representar; o final,—já agora devo esperar todo elle assim,—será o do amortecimento do interesse politico e de sua substituição por outros, talvez ainda mais irreaes e chimericos, porém, que de algum modo quadram melhor com o crepusculo da vida, quando o espirito começa a ouvir ao longe o toque de recolher. Durante aquelles dez annos a que me tenho referido, não fui sinão um curioso, attrahido pelas viagens, pelo caracter dos differentes paizes, pelos livros novos, pelo theatro, pela sociedade. Uma vida invejavel para mim teria sido então o assistir dos bastidores aos grandes factos contemporaneos, conviver com os personagens, e, como distracção do presente, ter direito de entrada nas excavações de Athenas ou de Roma. No fim desta phase de lazzaronismo[Pg 203] intellectual, quando sou pela primeira vez eleito para o Parlamento, eu tinha necessidade de outra provisão de sol interior; era-me preciso, não mais o dilettantismo, mas a paixão humana, o interesse vivo, palpitante, absorvente, no destino e na condição alheia, na sorte dos infelizes; aproveitar a minha vida em qualquer obra de misericordia nacional; ajudar o meu paiz, prestar os hombros á minha epocha, para algum nobre emprehendimento. Nenhuma causa politica, dados os elementos que descrevi, poderia causar-me esse enthusiasmo, inspirar-me esses arroubos; a politica seria sempre a emoção partidaria, incerta, negativa, o temor de edificar desconfiado da solidez dos materiaes e do terreno. Era preciso que o interesse fosse humano, universal; que a obra tivesse o caracter de finalidade, a certeza, a inerrancia do absoluto, do divino, como têm as grandes redempções, as revoluções da caridade ou da justiça, as auroras da verdade e da consciencia sobre o mundo. No Brasil havia ainda no anno em que comecei minha vida publica um interesse d’aquella ordem, com todo esse poder de fascinação sobre o sentimento e o dever, egualmente impulsivo e illimitado, capaz do fiat, quer se tratasse da sorte de creaturas isoladas, quer do caracter da nação... Tal interesse só podia ser o da emancipação, e por felicidade da minha hora, eu trazia da infancia e da adolescencia o interesse, a compaixão, o[Pg 204] sentimento pelo escravo,—bolbo que devia dar a unica flôr da minha carreira...
O facto que me lançou na politica foi a morte de meu pae, em março de 1878, anno em que serei eleito pela primeira vez deputado... Elle morreu a tempo ainda de assegurar a minha eleição que tinha ficado resolvida entre elle e o barão de Villa-Bella, chefe politico de Pernambuco. Souza Carvalho, que muito impugnou, depois de morto meu pae, a minha candidatura, foi a Villa-Bella e referindo-se áquella morte, disse-lhe:—«sublata causa, tollitur effectus». Domingos de Souza Leão, porém, tinha a religião da amizade e da lealdade, e a morte de Nabuco, em vez de delir o seu compromisso, tornára-o de honra... Meu desejo intimo era então continuar na diplomacia... Minha mãe, porém, conservava a ambição de meu pae, de me vêr entrar na politica, para um dia substituil-o, sentar-me na sua cadeira de senador, como elle se sentára na de meu avô, que já não fôra o primeiro senador Nabuco, porque encontrára no Senado seu tio José Joaquim Nabuco de Araujo, o primeiro barão de Itapoan. Eu representaria assim no Parlamento a quarta geração da mesma familia, o que não aconteceu, supponho, a nenhum outro. Com Martim Francisco Junior, filho, neto, e bisneto de parlamentares, as gerações politicas foram tres, por serem irmãos o avô e o bisavô, Martim Francisco e José Bonifacio.
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Não me custou nada essa eleição... Custou sim a Villa-Bella na côrte e na provincia a Adolpho de Barros, que passou pela politica como um perfeito gentleman, seu presidente, incluirem-me na lista... Meu nome afastava os de outros que eram antigos luctadores, como o dr. Aprigio Guimarães, popular na Academia pelo seu liberalismo republicano e sua eloquencia tribunicia. Eu não tinha que ter remorso disso, fata viam invenient... Não era só meu nome que postergava o direito de antiguidade; a chapa estava cheia de nomes novos; eu representava uma tradição de serviços ao partido, os de meu pae, que valiam bem os de qualquer outro, e tinha confiança de que justificaria na Camara a minha promoção rapida. Si não me deu trabalho algum essa eleição, que foi feita pelo partido, dispondo de todos os elementos officiaes, não deixou de ter para mim o seu episodio... N’uma sessão academica de 11 de agosto, no theatro Santa Isabel, quando eu proferia, do camarote do Presidente, as primeiras palavras, fui acolhido pelos protestos e vozeria de um grupo numeroso, que se tornou dominante, e que depois transferia para uma praça da cidade o seu meeting de indignação contra mim... O thema do meu improviso, em resposta aos epigrammas e diatribes contra S. Christovão que tinham soado no palco, fôra este: a grande questão para a democracia brasileira, não é a monarchia, é a escravidão. Posso[Pg 206] dizer que experimentei por vezes a doçura da popularidade; nada, porém, eguala o prazer de uma dessas tempestades levantadas contra si pelo orador que se sente de posse da verdade e ao serviço da justiça, quando antevê que esses que o injuriam naquelle momento, estarão com elle no dia seguinte... Eu deixava passar aquella onda raivosa e espumante, que a intriga, explorando a susceptibilidade propria da democracia pernambucana, as reminiscencias praeiras, e com imperfeito conhecimento do individuo, do papel que elle ia representar, impelliam contra a minha candidatura... Eu sabia que a palinodia havia de ser completa, que se desfaria o mal-entendu creado entre mim e o povo do Recife, desde que elle visse o fim para o qual eu aspirava ao seu mandato... Na verdade, a opinião do partido popular, ciumento dos seus fóros e tradições, mudou a meu respeito logo na primeira sessão em que tomei a palavra na Camara... Desde esse dia estabeleceu-se entre mim e o Recife uma affinidade que nunca se interrompeu e que ainda hoje, em que estou quanto á politica retirado de tudo, estou certo, será a mesma, porque foi como que o encontro de duas opiniões que se miraram uma na outra até ás fontes do sentimento e reconheceram na transparencia do seu fundo a sinceridade de cada uma.
Foi um anno de actividade e de expansão unico em minha vida, esse de 1879, em que fiz a[Pg 207] minha estréa parlamentar. Posso dizer que occupei a tribuna todos os dias, tomando parte em todos os debates, em todas as questões... O favor com que era acolhido, os applausos da Camara e das galerias, a attenção que me prestavam, eram para embriagar facilmente um estreante... Como hoje seria diverso, e quanto tudo aquillo está desvalorisado para mim como prazer do espirito! Hoje é a gotta crystallina que mana da rocha do ideal,—fonte occulta que todos temos em nós,—e não os grandes chafarizes e aqueductos da praça publica, que unica me desaltera. Então tudo me servia para assumpto de discurso; eu fallava sobre marinha e immigração, como sobre a illuminação ou o imposto de renda, sobre o arrendamento do valle do Xingú ou a eleição directa... Tinha o calor, o movimento, o impulso do orador; não conhecia o valerá a pena? do observador que se restringe cada vez mais... O publico, os grandes auditorios eram para mim o que é hoje a minha cesta de papel, ou a labareda que dá conta da exuberancia superflua do pensamento. Só muito tarde comprehendi porque os que vieram antes de mim se retrahiam, quando eu me expandia: em muitos era a saciedade, o enojo que começava; em alguns a troca da aspiração por outra ordem de interesses mais utilitaria; em outros, porém, era a consciencia que chegava á madureza, o amor da perfeição... Desses discursos sem excepção que figuram em[Pg 208] meu nome nos Annaes de 1879 e 1880 eu não quizera salvar nada sinão a nota intima, pessoal, a parte de mim mesmo que se encontre em algum. Não assim com os que proferi na Camara na semana de maio de 1888, nem com os do Recife em 1884-1885, pronunciados no theatro Santa Isabel. Esses são o melhor da minha vida.
Quando disse que o periodo que vae até 1879 é o de minha formação politica, quiz sómente dizer que é o periodo em que adquiro a ferramenta com que hei de trabalhar em politica; ainda assim a limitação do tempo não é precisamente exacta, porque é na propria politica, na Camara, sob o influxo e determinismo do papel que escolho, que a verdadeira formação se opera, isto é, que as contradicções se conciliam, a subordinação dos impulsos e das tendencias se dá, as affinidades essenciaes se pronunciam, os attritos interiores, as vacillações, as attracções ou repulsões prejudiciaes se eliminam, e o destino uma vez conhecido crêa a vocação, a tarefa mesma perfaz o instrumento.
Com effeito, quando entro para a Camara, estou tão inteiramente sob a influencia do liberalismo inglez, como si militasse ás ordens de Gladstone; esse é em substancia o resultado de minha educação politica: sou um liberal inglez,—com affinidades radicaes, mas com adherencias whigs,—no Parlamento brasileiro; esse modo de definir-me será exacto até o fim, porque o liberalismo[Pg 209] inglez, Gladstoniano, Macaulayiano, perdurará sempre, será a vasallagem irresgatavel do meu temperamento ou sensibilidade politica; no emtanto, depois do primeiro ensaio, a feição politica tornar-se-á secundaria, subalterna, será substituida pela identificação humana com os escravos e esta é que ficará sendo a caracteristica pessoal, tudo se fundirá n’ella e por ella. N’esse sentido é a emancipação a verdadeira acção formadora para mim, a que toma os elementos isolados ou divergentes da imaginação, os extremos da curiosidade ou da sympathia intellectual, os contrastes, os antagonismos, as variações de faculdades sensiveis á verdade, á belleza, que os systemas mais oppostos reflectem uns contra os outros, e constróe o molde em que a aspiração politica é vasada, e não ella sómente, a intelligencia, a imaginação, os proprios sonhos e chimeras do homem.
Como eu disse, porém, ha pouco, eu trazia da infancia o interesse pelo escravo... Esse episodio não será talvez descabido n’estas recordações.
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[3] A razão que me fez não começar pelos annos da infancia foi que estas paginas tiveram, ao serem primeiro publicadas, feição politica que foram gradualmente perdendo, porque já ao escrevel-as diminuia para mim o interesse, a seducção politica. A primeira idéa fôra contar minha formação monarchica; depois, alargando o assumpto, minha formação politico-litteraria ou litterario-politica; por ultimo, desenvolvendo-o sempre, minha formação humana, de modo que o livro confinasse com outro, que eu havia escripto antes sobre minha reversão religiosa. É d’este livro, de caracter mais intimo, composto em francez ha sete annos, que traduzo este capitulo para explicar a referencia feita ás minhas primeiras relações com os escravos.
O traço todo da vida é para muitos um desenho da creança esquecido pelo homem, e ao qual este terá sempre que se cingir sem o saber... Pela minha parte acredito não ter nunca transposto o limite das minhas quatro ou cinco primeiras impressões... Os primeiros oito annos da vida foram assim, em certo sentido, os de minha [Pg 211] formação instinctiva, ou moral, definitiva... Passei esse periodo inicial, tão remoto e tão presente, em um engenho de Pernambuco, minha provincia natal. A terra era uma das mais vastas e pittorescas da zona do Cabo... Nunca se me retira da vista esse panno de fundo da minha primeira existencia... A população do pequeno dominio, inteiramente fechado a qualquer ingerencia de fóra, como todos os outros feudos da escravidão, compunha-se de escravos, distribuidos pelos compartimentos da senzala, o grande pombal negro ao lado da casa de morada, e de rendeiros, ligados ao proprietario pelo beneficio da casa de barro que os agasalhada ou da pequena cultura que elle lhes consentia em suas terras. No centro do pequeno cantão de escravos levantava-se a residencia do senhor, olhando para os edificios da moagem, e tendo por traz, em uma ondulação do terreno, a capella sob a invocação de S. Matheus. Pelo declive do pasto arvores isoladas abrigavam sob sua umbella impenetravel grupos de gado somnolento. Na planicie extendiam-se os cannaviaes cortados pela alameda tortuosa de antigos ingás carregados de musgos e cipós, que sombreavam de lado a lado o pequeno rio Ipojuca. Era por essa agua quasi dormente sobre os seus largos bancos de areia que se embarcava o assucar para o Recife; ella alimentava perto da casa um grande viveiro, rondado pelos jacarés, a que os negros davam caça, e nomeado pelas suas
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pescarias. Mais longe começavam os mangues que chegavam até á costa de Nazareth... Durante o dia, pelos grandes calores, dormia-se a sesta, respirando o aroma, espalhado por toda a parte, das grandes taixas em que cozia o mel. O declinar do sol era deslumbrante, pedaços inteiros da planicie transformavam-se em uma poeira d’ouro; a bocca da noite, hora das boninas e dos bacuraus, era agradavel e balsamica, depois o silencio dos céos estrellados majestoso e profundo. De todas essas impressões nenhuma morrerá em mim. Os filhos de pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o ruido da vaga. Eu por vezes acredito pisar a espessa camada de cannas que cercava o engenho e escuto o rangido longinquo dos grandes carros de bois...Emerson quizera que a educação da creança começasse cem annos antes d’ella nascer. A minha educação religiosa obedeceu certamente a essa regra. Eu sinto a idéa de Deus no mais afastado de mim mesmo, como o signal amante e querido de diversas gerações. N’essa parte a serie não foi interrompida. Ha espiritos que gostam de quebrar todas as suas cadeias, e de preferencia as que outros tivessem creado para elles; eu, porém, seria incapaz de quebrar inteiramente a menor das correntes que alguma vez me prendeu, o que faz que supporto captiveiros contrarios, e menos do que as outras uma que me tivesse sido deixado[Pg 213] como herança. Foi na pequena capella de Massangana que fiquei unido á minha.
As impressões que conservo d’essa edade mostram bem em que profundezas os nossos primeiros alicerces são lançados. Ruskin escreveu esta variante do pensamento de Christo sobre a infancia: «A creança sustenta muitas vezes entre os seus fracos dedos uma verdade que a edade madura com toda sua fortaleza não poderia suspender e que só a velhice tera novamente o privilegio de carregar.» Eu tive em minhas mãos como brinquedos de menino toda a symbolica do sonho religioso. A cada instante encontro entre minhas reminiscencias miniaturas que por sua frescura de provas avant la lettre devem datar d’essas primeiras tiragens da alma. Pela perfeição d’essas imagens inapagaveis póde-se estimar a impressão causada. Assim eu vi a Creação de Miguel-Angelo na Sixtina e a de Raphael nas Loggie, e, apezar de toda a minha reflexão, não posso dar a nenhuma o relevo interior do primeiro paraiso que fizeram passar deante dos meus olhos em um vestigio de antigo Mysterio popular. Ouvi notas perdidas do Angelus na Campanha Romana, mas o muezzin intimo, o timbre que sôa aos meus ouvidos á hora da oração, é o do pequeno sino que os escravos escutavam com a cabeça baixa, murmurando o Louvado seja Nosso Senhor Jesus-Christo. Este é o Millet inalteravel que se gravou em mim. Muitas vezes tenho atravessado o oceano,[Pg 214] mas si quero lembrar-me d’elle, tenho sempre deante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga que se levantou deante de mim, verde e transparente como um biombo de esmeralda, um dia em que, atravessando por um extenso coqueiral atraz das palhoças dos jangadeiros, me achei á beira da praia e tive a revelação subita, fulminante, da terra liquida e movente... Foi essa onda, fixada na placa mais sensivel do meu kodak infantil, que ficou sendo para mim o eterno cliché do mar. Sómente por baixo d’ella poderia eu escrever: Thalassa! Thalassa!
Meus moldes de idéas e de sentimentos datam quasi todos d’essa epocha. As grandes impressões da madureza não têm o condão de me fazer reviver que tem o pequeno caderno de cinco a seis folhas apenas em que as primeiras hastes da alma apparecem tão frescas como si tivessem sido calcadas n’esta mesma manhã... O encanto que se encontra n’esses eidoli grosseiros e ingenuos da infancia não é sinão o sentimento de que só elles conservam a nossa primeira sensibilidade apagada... Elles são, por assim dizer, as cordas soltas, mas ainda vibrantes, de um instrumento que não existe mais em nós...
Do mesmo modo que com a religião e a natureza, assim com os grandes factos moraes em redor de mim. Estive envolvido na campanha da abolição e durante dez annos procurei extrahir de tudo, da historia, da sciencia, da religião,[Pg 215] da vida, um filtro que seduzisse a dynastia; vi os escravos em todas as condições imaginaveis; mil vezes li a Cabana do Pae Thomaz, no original da dôr vivida e sangrando; no emtanto a escravidão para mim cabe toda em um quadro inesquecido da infancia, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida. Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito annos, o qual se abraça aos meus pés supplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Elle vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o d’elle, dizia-me, o castigava, e elle tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivêra até então familiarmente, sem suspeitar a dôr que ella occultava.
Nada mostra melhor do que a propria escravidão o poder das primeiras vibrações do sentimento... Elle é tal, que a vontade e a reflexão não poderiam mais tarde subtrahir-se á sua acção e não encontram verdadeiro prazer sinão em se conformar... Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repelli-a com toda a minha consciencia, como a deformação utilitaria da creatura, e na hora em que a vi acabar, pensei poder pedir tambem minha alforria, dizer o meu[Pg 216] nunc dimittis, por ter ouvido a mais bella nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo; e, no emtanto, hoje que ella está extincta, experimento uma singular nostalgia, que muito espantaria um Garrison ou um John Brown: a saudade do escravo.
É que tanto a parte do senhor era inscientemente egoista, tanto a do escravo era inscientemente generosa. A escravidão permanecerá por muito tempo como a caracteristica nacional do Brasil. Ella espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contacto foi a primeira fórma que recebeu a natureza virgem do paiz, e foi a que elle guardou; ella povoou-o, como si fosse uma religião natural e viva, com os seus mythos, suas legendas, seus encantamentos; insufflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pezar, suas lagrimas sem amargor, seu silencio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ella o suspiro indefinivel que exhalam ao luar as nossas noites do Norte. Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ella envolveu-me como uma caricia muda toda a minha infancia; aspirei-a na dedicação de velhos servidares que me reputavam o herdeiro presumptivo do pequeno dominio de que faziam parte... Entre mim e elles deve ter-se dado uma troca continua de sympathia, de que resultou a terna e reconhecida admiração que vim mais tarde[Pg 217] a sentir pelo seu papel. Este pareceu-me, por contraste com o instincto mercenario da nossa epocha, sobrenatural á força de naturalidade humana, e no dia em que a escravidão foi abolida, senti distinctamente que um dos mais absolutos desinteresses de que o coração humano se tenha mostrado capaz não encontraria mais as condições que o tornaram possivel.
Nessa escravidão da infancia não posso pensar sem um pezar involuntario... Tal qual o presenti em torno de mim, ella conserva-se em minha recordação como um jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas tambem orgulho intimo do escravo, alguma coisa parecida com a dedicação do animal que nunca se altera, porque o fermento da desegualdade não póde penetrar n’ella. Tambem eu receio que essa especie particular de escravidão tenha existido sómente em propriedades muito antigas, administradas durante gerações seguidas com o mesmo espirito de humanidade, e onde uma longa hereditariedade de relações fixas entre o senhor e os escravos tivessem feito de um e outros uma especie de tribu patriarchal isolada do mundo. Tal approximação entre situações tão deseguaes perante a lei seria impossivel nas novas e ricas fazendas do Sul, onde o escravo, desconhecido do proprietario, era sómente um instrumento de colheita. Os engenhos do Norte eram pela maior parte pobres explorações industriaes, existiam apenas[Pg 218] para a conservação do estado do senhor, cuja importancia e posição avaliava-se pelo numero de seus escravos. Assim tambem encontrava-se alli com uma aristocracia de maneiras que o tempo apagou, um pudor, um resguardo em questões de lucro, proprio das classes que não traficam.
Fiz ha pouco menção de minha madrinha... Das recordações da infancia a que eclipsa todas as outras e a mais cara de todas é o amor que tive por aquella que me criou até aos meus oito annos como seu filho... Sua imagem, ou sua sombra, desenhou-se por tal modo em minha memoria, que eu a poderia fixar si tivesse o menor talento de pintor... Ella era de grande corpulencia, invalida, caminhando com difficuldade, constantemente assentada,—em um largo banco de coiro que transportavam de peça em peça da casa,—ao lado da janella que deitava para a praça do engenho, e onde ficava a estribaria, o curral, e a pequena casa edificada para o meu mestre e que me servia de escola... Ella não largava nunca suas roupas de viuva. Meu padrinho, Joaquim Aurélio de Carvalho, fôra conhecido na provincia pelo seu luxo e liberalidade, de que ainda hoje se contam diversos rasgos. Estou vendo, através de tantos annos, a mobilia da entrada, onde ella costumava passar o dia. Nas paredes algumas gravuras coloridas representando o episodio de Ignez de Castro, entre as[Pg 219] gaiolas dos curiós afamados, pelos quaes seu marido costumava dar o preço que lhe pedissem... ao lado em um armario envidraçado as pequenas edições portuguezas dos livros de devoção e das novellas do tempo. Minha madrinha occupava sempre a cabeceira de uma grande mesa de trabalho, onde jogava cartas, dava a tarefa para a costura e para as rendas a um numeroso pessoal, provava o ponto dos doces, examinava as tisanas para a enfermaria defronte, distribuia as peças de prata a seus afilhados e protegidos, recebia os amigos que vinham todas as semanas attrahidos pelos regalos de sua mesa e de sua hospitalidade, sempre rodeiada, adorada por toda sua gente, fingindo um ar severo que não enganava a ninguem quando era preciso reprehender alguma mucama que deixava a miudo os bilros e a almofada para chalrear no gyneceu, ou algum morador perdulario que recorria demasiado á sua bolsa. Parece que seu maior prazer era trocar uma parte das suas sobras em moedas de ouro que ella guardava sem que ninguem o soubesse sinão o seu liberto confidente para me entregar quando eu tivesse edade. Era a isso que ella chamava o seu invisivel. Por occasião da morte do servo de sua maior confiança, ella escrevia á minha mãe pela mão de outros: «Dou parte a V. Ex. e ao meu compadre que morreu o meu Elias, fazendo-me uma falta excessiva aos meus negocios. De tudo tomou conta, e sempre com aquella bondade e humildade[Pg 220] sem parelha, e ficou a minha casa com elle no mesmo pé em que era no tempo do meu marido. Nem só fez falta a mim como a nosso filhinho que tinha um cuidado n’elle nunca visto. Apezar d’eu ter parentes a elle era a quem eu o entregava, porque si eu morresse para tomar conta do que eu lhe deixava para entregar a VV. EEx... Mas que hei de fazer, si Deus quiz?» Em outra carta, mais tarde, a ultima que possúo, ella volta á morte de Elias:—«... o meu Elias, o qual fez-me uma falta sensivel, tanto a mim como ao meu filhinho, porque tinha um cuidado n’elle maior possivel, como pelas festas que elle gosta de passear ia sempre entregue a elle... Deus me dê vida e saúde até o vêr mais crescido para lhe dar alguma coisa invisivel, como dizia o defunto seu compadre, pois só fiava isso do Elias, apezar de ter ficado o Victor, mano d’elle, que faço tambem toda a fiança n’elle...» Ah! querida e abençoada memoria, o thesouro accumulado parcella por parcella não veiu a minhas mãos, nem teria podido vir por uma transmissão destituida das fórmas legaes, como talvez tenhas pensado... mas imaginar-te, durante annos, n’essa tarefa agradavel aos teus velhos dias de ajuntar para teu afilhado que chamavas teu filho um peculio que lhe entregarias quando homem, ou outrem por ti a meu pae, si morresses deixando-me menor; acompanhar-te em tuas conversas com o teu servo fiel, n’essa preoccupação de amor de teus[Pg 221] derradeiros annos, será sempre uma sensação tão inexprimivelmente doce que só ella bastaria para destruir para mim qualquer amargor da vida...
A noite da morte de minha madrinha é a cortina preta que separa do resto de minha vida a scena de minha infancia. Eu não imaginava nada, dormia no meu quarto com a minha velha ama, quando ladainhas entrecortadas de soluços me accordaram e me communicaram o terror de toda a casa. No corredor, moradores, libertos, os escravos, ajoelhados, rezavam, choravam, lastimavam-se em gritos; era a consternação mais sincera que se pudesse vêr, uma scena de naufragio; todo esse pequeno mundo, tal qual se havia formado durante duas ou tres gerações em torno d’aquelle centro, não existia mais depois d’ella: seu ultimo suspiro o tinha feito quebrar-se em pedaços. A mudança de senhor era o que havia mais terrivel na escravidão, sobretudo si se devia passar do poder nominal de uma velha santa, que não era mais sinão a enfermeira dos seus escravos, para as mãos de uma familia até então estranha. E como para os escravos, para os rendeiros, os empregados, os pobres, toda a gens que ella sustentava, a que fazia a distribuição diaria de rações, de soccorros, de remedios... Eu tambem tinha que partir de Massangana, deixado por minha madrinha a outro herdeiro, seu sobrinho e vizinho; a mim ella deixava um outro dos[Pg 222] seus engenhos, que estava de fogo morto, isto é, sem escravos para o trabalhar... Ainda hoje vejo chegar, quasi no dia seguinte á morte, os carros de bois do novo proprietario... Era a minha deposição... Eu tinha oito annos. Meu pae pouco tempo depois me mandava buscar por um velho amigo, vindo do Rio de Janeiro. Distribui entre a gente da casatudo que possuia, meu cavallo, os animaes que me tinham sido dados, os objectos do meu uso. «O menino está mais satisfeito, escrevia a meu pae o amigo que devia levar-me, depois que eu lhe disse que a sua ama o acompanharia.» O que mais me pesava era ter que me separar dos que tinham protegido minha infancia, dos que me serviram com a dedicação que tinham por minha madrinha, e sobretudo entre elles os escravos que litteralmente sonhavam pertencer-me depois d’ella. Eu bem senti o contragolpe da sua esperança desenganada, no dia em que elles choravam, vendo-me partir espoliado, talvez o pensassem, da sua propriedade... Pela primeira vez sentiram elles, quem sabe, todo o amargo da sua condição e beberam-lhe a lia.
Mez e meio depois da morte de minha madrinha, eu deixava assim o meu paraiso perdido, mas pertencendo-lhe para sempre... Foi alli que eu cavei com as minhas pequenas mãos ignorantes esse poço da infancia, insondavel na sua pequenez, que refresca o deserto da vida e faz[Pg 223] d’elle para sempre em certas horas um oasis seductor. As partes adquiridas do meu ser, o que devi a este ou áquelle, hão de dispersar-se em direcções differentes; o que, porém, recebi directamente de Deus, o verdadeiro eu sahido das suas mãos, este ficará preso ao canto de terra onde repousa aquella que me iniciou na vida. Foi graças a ella que o mundo me recebeu com um sorriso de tal doçura que todas as lagrimas imaginaveis não m’o fariam esquecer. Massangana ficou sendo a séde do meu oraculo intimo: para impellir-me, para deter-me e, sendo preciso, para resgatar-me, a voz, o fremito sagrado, viria sempre de lá. Mors omnia solvit... tudo, excepto o amor, que ella liga definitivamente.
Tornei a visitar doze annos depois a capellinha de S. Matheus onde minha madrinha, Dona Anna Rosa Falcão de Carvalho, jaz na parede ao lado do altar, e pela pequena sacristia abandonada penetrei no cercado onde eram enterrados os escravos... Cruzes, que talvez não existam mais, sobre montes de pedras escondidas pelas ortigas, era tudo quasi que restava da opulenta fabrica, como se chamava o quadro da escravatura... Em baixo, na planicie, brilhavam como outr’ora as manchas verdes dos grandes cannaviaes, mas a usina agora fumegava e assobiava com um vapor agudo, annunciando uma vida nova. A almanjarra desapparecera no passado. O trabalho livre tinha tomado o logar em[Pg 224] grande parte do trabalho escravo. O engenho apresentava do lado do «porto» o aspecto de uma colonia; da casa velha não ficára vestigio... O sacrificio dos pobres negros que haviam incorporado as suas vidas ao futuro d’aquella propriedade, não existia mais talvez sinão na minha lembrança... Debaixo dos meus pés estava tudo o que restava d’elles, defronte dos columbaria onde dormiam na estreita capella aquelles que elles haviam amado e livremente servido. Sosinho alli, invoquei todas as minhas reminiscencias, chamei-os a muitos pelos nomes, aspirei no ar carregado de aromas agrestes, que entretem a vegetação sobre suas covas, o sopro que lhes dilatava o coração e lhes inspirava a sua alegria perpetua. Foi assim que o problema moral da escravidão se desenhou pela primeira vez aos meus olhos em sua nitidez perfeita e com sua solução obrigatoria. Não só esses escravos não se tinham queixado de sua senhora, como a tinham até o fim abençoado... A gratidão estava do lado de quem dava. Elles morreram acreditando-se os devedores... seu carinho não teria deixado germinar a mais leve suspeita de que o senhor pudesse ter uma obrigação para com elles, que lhe pertenciam... Deus conservára alli o coração do escravo, como o do animal fiel, longe do contacto com tudo que o pudesse revoltar contra a sua dedicação. Esse perdão espontaneo da divida do senhor pelos escravos figurou-se-me[Pg 225] a amnistia para os paizes que cresceram pela escravidão, o meio de escaparem a um dos peiores taliões da historia... Oh! os Santos pretos! seriam elles os intercessores pela nossa infeliz terra, que regaram com seu sangue, mas abençoaram com seu amor! Eram essas as idéas que me vinham entre aquelles tumulos, para mim, todos elles, sagrados, e então alli mesmo, aos vinte annos, formei a resolução de votar a minha vida, si assim me fosse dado, ao serviço da raça generosa entre todas que a desegualdade da sua condição enternecia em vez de azedar e que por sua doçura no soffrimento emprestava até mesmo á oppressão de que era victima um reflexo de bondade...
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Quando a campanha da abolição foi iniciada, restavam ainda quasi dois milhões de escravos, emquanto que os seus filhos de menos de oito annos e todos os que viessem a nascer, apezar de ingenuos, estavam sujeitos até aos vinte e um annos a um regimen praticamente egual ao captiveiro. Foi esse immenso bloco que atacámos em 1879, acreditando gastar a nossa vida sem chegar a entalhal-o. No fim de dez annos não restava delle sinão o pó. Tal resultado foi devido a muitas causas... Em primeiro logar, á epocha em que foi lançada a idéa. A humanidade estava por demais adeantada para que se pudesse ainda defender em principio a escravidão, como o haviam feito nos Estados-Unidos. A raça latina não tem dessas coragens. O sentimento de ser a ultima nação de escravos humilhava a nossa altivez e emulação de paiz novo. Depois, á fraqueza e á doçura do caracter nacional, ao qual o[Pg 227] escravo tinha communicado sua bondade e a escravidão o seu relaxamento. Compare-se nesse ponto o que ella foi no Brasil com o que foi na America do Norte. No Brasil, a escravidão é uma fusão de raças; nos Estados-Unidos, é a guerra entre ellas. Nossos proprietarios emancipavam aos centos os seus escravos, em vez de se unirem para lynchar os abolicionistas, como fariam os criadores do Kentucky ou os plantadores da Luisiana. A causa abolicionista exercia sua seducção sobre a mocidade, a imprensa, a democracia; era um imperativo categorico para os magistrados e os padres; tinha affinidades profundas com o mundo operario e com o exercito, recrutado de preferencia entre os homens de côr; operava como um dissolvente sobre a massa dos partidos politicos, cujas rivalidades incitava com a honra que podia conferir aos estadistas que a emprehendessem, e á propria dynastia inspirava de modo espontaneo o sacrificio indispensavel para o successo.
Cinco acções ou concursos differentes cooperaram para o resultado final: 1.º a acção motora dos espiritos que creavam a opinião pela idéa, pela palavra, pelo sentimento, e que a faziam valer por meio do Parlamento, dos meetings, da imprensa, do ensino superior, do pulpito, dos tribunaes; 2.º a acção coerciva dos que se propunham a destruir materialmente o formidavel apparelho da escravidão, [Pg 228]arrebatando os escravos ao poder dos senhores; 3.º a acção complementar dos proprios proprietarios, que, á medida que o movimento se precipitava, diminuiam diante delle as resistencias, libertando em massa as suas «fabricas»; 4.º a acção politica dos estadistas, representando as concessões do governo; 5.º a acção dynastica.
As duas primeiras categorias formavam circulos concentricos, compostos como eram em grande parte dos mesmos elementos. É a ellas que pertence o grosso do partido abolicionista, os leaders do movimento. Para collocar cada figura no plano que lhe convem com seu tamanho relativo seria preciso outro juiz. Tendo visto na lucta e no esforço cada um dos veteranos dessa campanha, eu não me perdoaria a mim mesmo a menor injustiça involuntaria que fizesse a qualquer delles. Dissentimentos profundos me separaram de muitos depois da victoria, mas o espirito de imparcialidade que me anima a respeito de cada um faz ainda parte da lealdade que acredito ter mantido perfeita durante a abolição para com todos os auxiliares d’ella, os da primeira como os da undecima hora. Não farei tão pouco o livro d’ouro da grande propriedade brasileira nessa quadra. Na categoria dos chefes politicos posso destacar, porém, tres estadistas que prestaram ao movimento em epochas differentes um concurso decisivo: Dantas, que primeiro collocou ao serviço della um dos partidos constitucionaes do[Pg 229] paiz, o liberal, serviço da ordem do que Gladstone prestou á causa irlandeza; Antonio Prado, que retirou o veto de S. Paulo á abolição, quebrando assim a resistencia até então compacta do Sul, a porção mais rica do paiz, e João Alfredo, que levou o partido conservador a apresentar a lei da extincção immediata, acto que mesmo nessa epocha foi uma grande audacia, e que pelo estado e disposição geral da politica só podia ter sido obra delle mesmo. José Bonifacio, cuja adhesão á idéa foi um contingente egual á libertação do Ceará, Christiano Ottoni, Silveira da Motta, e outros, eu os contaria na primeira classe, a dos propagandistas.
É-me quasi impossivel fallar hoje da abolição sinão por incidentes e figuras destacadas... Tudo o que digo é sob a resalva de que teria muito mais que dizer; quando pronuncio um nome está subentendido que é apenas um de um extenso calendario, e que os diptycos de um e outro lado estão cheios... Quem fará d’entre os contemporaneos essa historia com imparcialidade, justeza e penetração, sem deixar entrar nella a paixão politica, o preconceito sectario, a fascinação ou sujeição pessoal? Ninguem, de certo, o que quer dizer que haverá no futuro diversas historias. A minha contribuição para o assumpto ha de um dia ser o meu archivo, e alguns fragmentos a respeito de diversos factos em que estive envolvido ou de que tive conhecimento directo...[Pg 230] Esse trabalho, essa desobriga, ao mesmo tempo que depoimento pessoal, espero que Deus me dará tempo e modo de o fazer como planejo. Seria uma especie de chave para o periodo que encerra a éra monarchica.
Dentre aquelles com quem mais intimamente lidei em 1879 e 1880 e que formavam commigo um grupo homogeneo, a nossa pequena egreja, as principaes figuras eram André Rebouças, Gusmão Lobo e Joaquim Serra... A egreja fronteira era a de José do Patrocinio, Ferreira de Menezes, Vicente de Souza, Nicolau Moreira, depois João Clapp com a Confederação Abolicionista. Si eu estivesse escrevendo neste momento um escorço do movimento abolicionista de 1879-1888, já teria citado Jeronymo Sodré, que foi quem pronunciou o fiat, e passaria a citar os meus companheiros de Camara Manoel Pedro, Corrêa Rabello, S. de Barros Pimentel, e outros, porque o movimento começou na Camara em 1879, e não, como se tem dito, na Gazeta da Tarde de Ferreira de Menezes, que é de 1880, nem na Gazeta de Noticias, onde então José do Patrocinio, escrevendo a «Semana Politica», não fazia sinão nos apoiar e ainda não adivinhava a sua missão. De certo pelos escravos já vinham trabalhando Luiz Gama e outros, mesmo antes da lei de 1871, como trabalharam todos os collaboradores dessa lei; mas o movimento abolicionista de 1879 a 1888 é um movimento que tem o seu eixo proprio, sua formação distincta,[Pg 231] e cujo principio, marcha, velocidade, são faceis de verificar; é um systema fluvial do qual se conhecem as nascentes, o volume d’agua e valor de cada tributario, as quedas, os rapidos, o estuario, e esse movimento começa, fóra de toda duvida, com o pronunciamento de Jeronymo Sodré em 1879 na Camara... Esse pronunciamento vem resolvido da Bahia e rebenta na Camara como uma manga d’agua, repentinamente. Nada absolutamente o fazia suspeitar... Ao acto de Jeronymo Sodré filia-se chronologicamente a minha attitude dias depois... Mais tarde é que entram Rebouças, Patrocinio, Gusmão Lobo, Menezes, Joaquim Serra... Isto não é apurar a data dos primeiros escriptos abolicionistas de cada um; os meus, por exemplo, datavam da Academia... É reivindicar para a Camara, para o Parlamento, a iniciativa que se lhe tem querido tirar nesta questão, dando-se-a ao elemento popular, republicano... É uma pura questão de datas; desde que se dér a data certa a cada facto allegado, verificar-se-á o autem genuit acima... Reconheço que a minha inscripção vem na ordem do tempo depois da de Jeronymo Sodré... As outras, porém, vieram depois da minha... Foi o movimento popular talvez que mais tarde incubou o germen parlamentar, não o deixando morrer nas Sessões seguintes, mas que o germen foi parlamentar, que o liber generationis começou em 1879 com Jeronymo Sodré, é o que se póde demonstrar[Pg 232] com os proprios documentos, mesmo com aquelles em que se pretenda o contrario, uma vez que sejam authenticos... A questão de iniciativa aliás tem um interesse todo secundario, sobretudo quando a idéa está no ar e o espirito do tempo a agita por toda a parte. Não ha nada mais difficil do que avaliar a importancia relativa dos diversos factores de um movimento que se torna nacional. O ultimo dos apostolos póde vir a ser o primeiro de todos, como S. Paulo, em serviços e em proselytismo. Tudo na abolição prende-se, não se póde escrever-lhe a historia supprimindo qualquer dos seus élos... É um facto a reter: a compensação vae sempre além, muito além, dos prejuizos que ella soffre, e, d’esse modo, até elles a favorecem... Assim morre Ferreira de Menezes, mas Patrocinio toma a Gazeta da Tarde; a minoria abolicionista de 1879 não é reeleita, surge a Confederação Abolicionista; quando o Ceará conclue a sua obra, o Amazonas começa a d’elle; demittido um presidente de provincia (Theodureto Souto), é nomeado um Presidente do Conselho (Dantas); organizada a acção da policia, apparece a agitação no exercito; ás sevicias da Parahyba do Sul e de Cantagallo succede o combate do Cubatão; morto José Bonifacio, toma o seu logar em S. Paulo Antonio Prado; repellido pela Camara José Marianno, o Recife derrota o ministro do Imperio; vacillando o partido liberal, move-se o partido conservador;[Pg 233] parte o Imperador, fica a Princeza... Ninguem afinal sabe quem fez mais pela abolição: si a propaganda, si a resistencia; si os que queriam tudo, si os que não queriam nada... Nada ha mais illusorio que as distribuições de gloria... As lendas hão de sempre viver, como raios de luz na treva amontoada do passado, mas a belleza d’ellas não está em sua verdade, que é sempre pequena; está no esforço que a humanidade faz para assim reter alguns episodios de uma vida tão extensa que para abrangel-a não ha memoria possivel...
Não posso sinão dar ao acaso algumas impressões por isso deixo, não sem constrangimento, de referir-me a nomes que entrariam em qualquer resumo, por mais curto que fosse, note-se bem, do começo da propaganda... Os dois grupos de que fallei, encontravam-se, trabalhavam juntos, misturavam-se, mas a linha divisoria era sensivel: um representava a acção politica, o outro a revolucionaria, ainda que cada um reflectisse por vezes a influencia do outro. Isso no tempo em que a idéa está sendo lançada, pois dentro de pouco o movimento torna-se geral, e então ha o influxo das provincias, ha o Ceará, o Amazonas, o Rio Grande do Sul, Pernambuco, a Bahia, S. Paulo, que surgem como grandes fócos de propaganda... O movimento abolicionista teve com effeito duas phases bem accentuadamente divididas: a primeira, de 1879[Pg 234] a 1884, em que os abolicionistas combateram sós, entregues aos seus proprios recursos, e a segunda, de 1884 a 1888, em que elles viram sua causa adoptada successivamente pelos dois grandes partidos do paiz. Em 1884 deu-se a conversão do partido liberal e em 1888 a do partido conservador. A phase puramente abolicionista da campanha,—por opposição á phase politica, que poderia entrar na historia dos dois partidos rivaes,—foi a primeira.
De todos, aquelle com quem mais intimamente vivi, com quem estabeleci uma verdadeira communhão de sentimento, foi André Rebouças... Nossa amizade foi por muito tempo a fusão de duas vidas em um só pensamento: a emancipação. Rebouças encarnou, como nenhum outro de nós, o espirito anti-esclavagista: o espirito inteiro, systematico, absoluto, sacrificando tudo, sem excepção, que lhe fosse contrario ou suspeito, não se contentando de tomar a questão por um só lado, olhando-a por todos, triangulando-a, por assim dizer,—era uma de suas expressões favoritas,—socialmente, moralmente, economicamente. Elle não tinha, para o publico, nem a palavra, nem o estylo, nem a acção; dir-se-ia assim que em um movimento dirigido por oradores, jornalistas, agitadores populares, não lhe podia caber papel algum saliente, no emtanto elle teve o mais bello de todos, e calculado por medidas estrictamente interiores, psychologicas,[Pg 235] o maior, o papel primario, ainda que occulto, do motor, da inspiração que se repartia por todos,... não se o via quasi, de fóra, mas cada um dos que eram vistos estava olhando para elle, sentia-o comsigo, em si, regulava-se pelo seu gesto invisivel á multidão,... sabia que a consciencia capaz de resolver todos os problemas da causa só elle a tinha, que só elle entrava na sarça ardente e via o Eterno face a face... É-me tão impossivel resumil-o a elle em um traço como me seria impossivel figurar uma trajectoria infinita... Depois da abolição elle sempre teve o presentimento de que a escravidão causaria uma grande desgraça á dynastia, como assassinára a Lincoln. Seu maior amor talvez tenha sido pelos seus alumnos da Polytechnica, mas como todas as suas recordações d’ «a Escola» transformaram-se em outros tantos tormentos, quando os viu glorificando o 15 de Novembro, que para elle era a desforra de 13 de Maio!...
Do seu quarto no Hotel Bragança, em Petropolis, onde durante annos notára no seu diario a nossa pulsação commum, até o despenhadeiro do Funchal, que linha a que descreveu André Rebouças! Elle foi o cortezão do Alagôas... Um republicano, a quem veiu a tocar na hora da amargura o papel de discipulo amado do velho Imperador banido... Foi um industrial, um engenheiro ousado e triumphante, que acabou praticando o tolstoismo... Foi um genio[Pg 236] mathematico, um sabio, que reduziu sua sciencia a uma serpentina em que de tudo distillava a abolição... Seu centro de gravidade foi verdadeiramente o sublime... Não posso ainda fallar d’elle em relação a mim, porque não o quizera fazer de modo incompleto... Prefiro mostral-o em relação ao Imperador. Aqui está uma dessas provas rapidas, photogenicas, que elle sabia tirar de si, e nas quaes os que viveram com elle reconhecem-lhe a physionomia, apanhada com toda a mobilidade da sua expressão e com a inalterabilidade do seu affecto humano. É por acaso que encontro esta carta d’elle:
«Cannes, 13 de maio de 1892.
«Meu Mestre e meu Imperador,—Não passará o 3º anniversario da Libertação da Raça Africana no Brazil sem que André Rebouças dê novo testemunho de filial gratidão ao Martyr sublime da Abolição.
«Sinto-me feliz por ter sido escolhido pelo Bom Deus para representar a devotação da Raça Africana a V. M. Imperial e á Princeza Redemptora, e alegro-me repetindo-o incessantemente.
«É hoje grato relembrar a synthese da nossa vida, como meu Bom Mestre disse no Alagôas quando commemorámos seu 64º anniversario.
«Principiou em Petropolis, em 1850, ha quarenta e um annos, examinando-me em arithmetica, ainda menino de collegio, e continuou, quasi quotidianamente, nas lições e nos exames das Escolas Militar, Central e de Applicação na fortaleza da Praia Vermelha até dezembro de 1860.
«Os annos de 1861 e 1862 foram de estudos praticos de caminho de ferro e de portos de mar na Europa. A primeira Memoria, escripta com o Antonio, datada de Marselha,[Pg 237] em 9 de junho de 1861, foi dedicada, como de justiça, ao nosso Bom Mestre e Imperador... Quando Vossa Magestade encontrava meu Pai, suas palavras primeiras eram:—Como vão os meninos?—Onde estão agora?—Recommende-lhes sempre que estudem e que trabalhem.
«Voltámos ao Brazil em fins de 1862, e encetámos a vida pratica nos trabalhos militares de Santa Catharina, motivados pelo conflicto Christie.
«A 28 de dezembro de 1863 separei-me, pela primeira vez, do meu irmão Antonio... Começa d’ahi em diante o periodo industrial da minha vida...
«Vossa Magestade e meu Pai não queriam que eu tivesse uma orientação além da vida tranquilla da Sciencia e do Professorado; mas o Visconde de Itaborahy, que tambem me devotava affeição paternal, dizia:—André!... Quero que você succeda ao Mauá!...
«Sabe Vossa Magestade quanto soffri da oligarchia politicante e da plutocracia escravocrata nesses afanosos tempos... Só tenho hoje delles uma consolação:—Projectei e construi as Docas de Pedro II; concebi e dirigi o caminho de ferro Conde d’Eu e sua bella estação maritima do Cabedello.
«Vossa Magestade gosta de recordar que, em Uruguayana, salvámos juntos, pelo nosso horror ao sangue, 7000 Paraguayos e centenas de Brazileiros... Na actual antipathia ao Militarismo, apenas lembro-me dos trabalhos de Itapirú e Tuyuty.
«Em 1880 começa a Propaganda Abolicionista. Nós, tribunos ardentes, só tinhamos uma certeza e uma esperança:—o Imperador. Em 1871 havia Vossa Magestade concedido á Filha Predilecta libertar o berço dos captivos com Paranhos, Visconde do Rio Branco.
«Em 1888 a iniciativa partiu d’Aquella que não póde ver lagrimas nem ouvir soluços de pobres, de infelizes e de escravos, no amor santo de Martyr do Christianismo Inicial, aspirando menos á gloria na Terra do que anhelando a benemerencia no Ceu, junto a Jesus, o Redemptor dos Redemptores.
«Emfim... Creio que podemos esperar tranquillos o[Pg 238] juizo de Deus; porque havemos cumprido sua grande Lei trabalhando pelo Progresso da Humanidade.
«Agora, só tenho a dizer-lhe que desde 15 de novembro de 1889 perdi a linha divisoria entre meu Pai e meu Mestre e Imperador, e que é na maior effusão de amor que me assigno,—Com todo o Coração—André Rebouças.
Ou este itinerario, que elle traçára para a fuga de escravos de S. Paulo para o Norte, pura phantasia, mas tão cheio para todos nós de vestigios de sua originalidade, de toques da sua generosa sensibilidade, quasi impessoal:
CAMINHO DE FERRO SUBTERRANEO
do
ALTO S. FRANCISCO AO CEARÁ LIVRE
Estação inicial... S. Paulo; junto ao tumulo de Luiz Gama.
Segunda Estação... Pirassinunga.
Terceira Estação... Cachoeira de Mogy-Guassú.
Quarta Estação... Era pleno sertão, com rumo de Nordéste; o Sol deve amanhecer á direita e cair, á tarde, á esquerda.
Quinta Estação... Piumhy, nascente do Rio S. Francisco, acompanhando sempre o bello rio, abundante de peixes e de fructos deliciosos.
Sexta Estação... De um lado Goyaz livre; do outro o sertão da Bahia, onde não ha capitães do mato.
Setima Estação... Na Villa da Barra, onde começam as grandes cachoeiras do S. Francisco.
Oitava Estação... No varadouro das aguas do S. Francisco para as do Parnahyba.
Nona Estação... No Paraiso,—no Ceará Livre.»
[Pg 239]
Mathematico e astronomo, botanico e geologo, industrial e moralista, hygienista e philanthropo, poeta e philosopho, Rebouças foi talvez dos homens nascidos no Brasil o unico universal pelo espirito e pelo coração... Pelo espirito teremos tido alguns, pelo coração outros; mas sómente elle foi capaz de reflectir em si ao mesmo tempo a universalidade dos conhecimentos e a dos sentimentos humanos. Quem sabe si não foi a imagem que partiu o espelho! «Delirante ovação dos meus alumnos, escrevia elle em 15 de maio de 1888 no seu diario. Annuncio-lhes o projecto de Triangulação Moral e Cadastral do Brasil. Voto de louvor pela Congregação. Nova ovação. Carregado pelos alumnos por todo o peristylo.» Da abolição elle foi o maior, não pela acção exterior, ou influencia directa sobre o movimento, mas pela força e altura da projecção cerebral, pela rotação vertiginosa de idéas e sensações em torno do eixo consumidor e candente, que era para elle o soffrimento do escravo. Era uma fornalha cosmica a que ardia nelle. Si Rebouças inda é visto no seu tempo como uma estrella de segunda grandeza, é porque estava mais longe do que todas... Dos Evangelistas da nossa boa nova elle é que teria por attributo a aguia... Ha no seu estylo e nos seus moldes muita coisa que lembra S. João... Idealista todo elle, é quasi só por symbolos que escreve... A ilha da Madeira foi a Pathmos de um apocalypse[Pg 240] infelizmente perdido, porque suas ultimas paginas, voltado para o Sul, elle as escrevia, tomando por lettras as estrellas e as constellações. Sua lenda, porém, está feita, não ha perigo para elle de esquecimento: a lenda do seu desterro e de sua amizade a D. Pedro II.
Outro com quem vivi até sua morte em grande approximação de idéas, foi Joaquim Serra. Desde 1880 até a abolição elle não deixou passar um dia sem a sua linha... Minado por uma doença que não perdôa, salvava cada manhã o que bastasse de alegria para sorrir á esperança dos escravos, a qual viu crescer dia por dia durante esses dez annos como uma planta delicada que elle mesmo tivesse feito nascer... Feita a abolição, desabrochada a flôr, morria elle... E que morte! que saudade da mulher e dos filhos, da filhinha adorada, que não se queria afastar um instante d’elle! Serra cumpriu a sua tarefa com uma constancia e assiduidade a toda prova, sem dar uma falta, e com o mais perfeito espirito de abnegação e de lealdade... Renunciando os primeiros logares, elle mostrava, entretanto, de mais em mais uma agudeza de vista e uma clareza de expressão dignas de um verdadeiro leader. Eu mesmo, que acreditava conhecel-o, fui surprehendido pela ousadia da sua manobra, quando uma vez elle prometteu ao barão de Cotegipe todo o nosso apoio,—nós respondiamos uns pelos outros,—si fizesse concessões[Pg 241] ao movimento. Ao contrario de Rebouças, Serra era um espirito politico, mas acima do seu partido, do qual fôra durante a opposição o mais serviçal dos auxiliares, collocava a nossa causa commum com uma sinceridade intima que nunca foi suspeitada... «Passamento do grande Joaquim Serra, escreve Rebouças no seu Diario em 29 de outubro de 1888, companheiro de Academia em 1854 e de lucta abolicionista de 1880-1888, o publicista que mais escreveu contra os escravocratas.» «Ninguem fez mais do que elle, escrevia Gusmão Lobo por sua morte... e quem fez tanto...?»
Gusmão Lobo... É outro nome do nosso circulo interior... Alguns dos que combateram juntos sem descanço, durante os primeiros cinco annos da propaganda, os quaes foram os annos do ostracismo politico e social da idéa, acreditaram sua tarefa, si não acabada, pelo menos grandemente alliviada no dia em que um grande partido no governo, com os seus quadros, sua influencia, seu eleitorado, sua imprensa, adoptou a causa de que elles eram até então os unicos arrimos... Entre esses está Gusmão Lobo, que não teria deixado a penna de combate, si não tivesse visto a bandeira que ella protegia, passar triumphante das mãos dos agitadores para as mãos de Presidentes do Conselho. Na epocha decisiva do movimento, aquella em que se teve de crear o[Pg 242] impulso e de tornal-o mais forte do que a resistencia, isto é, em que se venceu virtualmente a campanha, os seus serviços foram inapreciaveis... Elle sósinho enchia com a emancipação o Jornal do Commercio desde a columna editorial, onde por toda a especie de habilidades, artificios e subtilezas, graças á boa vontade do dr. Luiz de Castro, conseguia ter a questão sempre em evidencia... Seu talento, seu estylo de escriptor, airoso, perfeito, prismatico, um dos mais bellos e mais espontaneos do nosso tempo, era verdadeiramente inexhaurivel... Elle achava solução para tudo, tinha os expedientes e as finuras, como tinha a plastica da expressão... Todo o seu trabalho foi anonymo e poderia assim passar despercebido de outra geração, si não restasse o testemunho unanime dos que trabalharam com elle... Era um assombro a variedade dos papeis que elle desempenhava na imprensa, incalculavel o valor da sua presença e conselho em nossas reuniões, e depois no intimo do gabinete Dantas. Seu nome está escripto, por toda a parte, nas paredes das Catacumbas em que o abolicionismo nascente viveu os primeiros cinco annos como uma pequena egreja perseguida, mas apparece cada vez mais raro á medida que a nova fé se vae tornando religião official. É um dos enigmas do nosso tempo,—enigma nacional, porque se prende á questão do emmurchecimento rapido de toda a flôr do paiz,—como semelhante[Pg 243] talento renunciou mais tarde de repente a toda a ambição...
Não quero fazer a galeria da abolição, mas, como dei, vencido pela saudade, dois ou tres perfis, tão imperfeitos, de amigos, pagarei tambem o meu tributo a José do Patrocinio... Este é o representante do espirito revolucionario que com o espirito liberal e o espirito de governo fez a abolição, mas que foi mais forte do que elles, e acabou por os absorver e dominar... Sem o espirito governamental de homens como Dantas, Antonio Prado e João Alfredo, não se teria chegado pacificamente ao fim, nem tão cedo; sem o espirito humanitario, extreme de odios e tendencias politicas, a abolição teria degenerado em uma guerra de raças ou em um encontro de facções; sem o trabalho vario, inapreciavel, de cada um dos grandes factores provinciaes, que conservarão sua autonomia na historia, como o do Ceará, com João Cordeiro, o de S. Paulo com Antonio Bento, o de Pernambuco com João Ramos, tomando esses nomes como collectivos, o resultado teria sido differente e talvez funesto. O que Patrocinio, porém, representa é o fatum, é o irresistivel do movimento... Elle é uma mistura de Spartaco e de Camille Desmoulins... Os que luctavam sómente contra a escravidão, eram como os liberaes de 1789, da raça dos cegos de boa vontade, sinão voluntarios, que as revoluções empregam para[Pg 244] lhes abrirem a primeira brecha... Patrocinio é a propria revolução. Si o abolicionismo no dia seguinte ao seu triumpho dispersou-se e logo depois uma parte delle alliou-se á grande propriedade contra a dynastia que elle tinha induzido ao sacrificio, é que o espirito que mais profundamente o agitou e revolveu, foi o espirito revolucionario que a sociedade abalada tinha deixado escapar pela primeira fenda dos seus alicerces... Patrocinio foi a expressão da sua epocha; em certo sentido, a figura representativa della...
[Pg 245]
A abolição teria sido uma obra de outro alcance moral, si tivesse sido feita do altar, pregada do pulpito, proseguida de geração em geração pelo clero e pelos educadores da consciencia. Infelizmente, o espirito revolucionario teve que executar em poucos annos uma tarefa que havia sido desprezada durante um seculo. Uma grande reforma social, para ser agradavel a Deus, exige que a alma do proprio operario seja purificada em primeiro logar. São essas as primicias que elle disputa e que lhe pertencem. A differença é grande, mesmo para as emprezas mais justas e mais bellas, si as levamos por deante com espirito de verdadeira caridade christã, ou si não empregamos nellas sinão essa especie de estimulo pessoal a que em moral leiga se chama amor da humanidade. O reformador não vencerá completamente pela copia de justiça que a sua idéa contenha; o resultado da victoria depende do gráu[Pg 246] de caridade que inspirar a germinação. A politica é a arte de escolher as sementes; a religião, a de lhes preparar o terreno.
O movimento contra a escravidão no Brasil foi um movimento de caracter humanitario e social antes que religioso; não teve por isso a profundeza moral da corrente que se formou, por exemplo, entre os abolicionistas da Nova-Inglaterra. Era um partido composto de elementos heterogeneos, capazes de destruir um estado social levantado sobre o privilegio e a injustiça, mas não de projectar sobre outras bases o futuro edificio. A realisação da sua obra parava assim naturalmente na suppressão do captiveiro; seu triumpho podia ser seguido, e o foi, de accidentes politicos, até de revoluções, mas não de medidas sociaes complementares em beneficio dos libertados, nem de um grande impulso interior, de renovação da consciencia publica, da expansão dos nobres instinctos sopitados. A liberdade por si só é fecunda, e sobre os destroços da escravidão refar-se-ha com o tempo uma sociedade mais unida, de idéas mais largas, e é possivel que esta proclame seus creadores aquelles que não fizeram mais do que interromper a oppressão que presidia aos antigos nascimentos, os gemidos que assignalavam no Brasil o apparecer de mais uma camada social. A verdade porém, é que a corrente abolicionista parou no dia mesmo da abolição e no dia seguinte refluia.
[Pg 247]
Durante a campanha abolicionista, em uma das eleições em que fui candidato, um escravo, que parecia feliz, suicidou-se em uma fazenda de Cantagallo. Contou-me uma senhora da familia, annos depois, que perguntado no momento da morte por que attentára contra si, si tinha alguma queixa, elle respondera ao senhor que não, que pensou em matar-se sómente porque eu não tinha sido eleito deputado... Tenho convicção de que a raça negra por um plebiscito sincero e verdadeiro teria desistido de sua liberdade para poupar o menor desgosto aos que se interessavam por ella, e que no fundo, quando ella pensa na madrugada de 15 de novembro, lamenta ainda um pouco o seu 13 de maio. Não se poderia estar em contacto com tanta generosidade e dedicação sem lhe ter um pouco adquirido a marca. Desde a dynastia, que tinha um throno a offerecer, ninguem que tenha tomado parte em sua libertação, o lastimará nunca. Não se lastima a emancipação de uma raça, a transformação immediata do destino de um milhão e meio de vidas humanas com todas as perspectivas que a liberdade abre deante das futuras gerações. Não ha raças ingratas. «Senhor Rebouças, dizia a Princeza Imperial a bordo do Alagoas, que os levava juntos para o exilio, si houvesse ainda escravos no Brasil, nós voltariamos para libertal-os.»
Ah! de certo o throno cahiu e muita coisa seguiu-se que me podia fazer pensar hoje com algum[Pg 248] travo nesses annos de perfeita illusão... mas não, devia ser assim mesmo... As consequencias, os desvios, as aberrações, estranhas e alheias, não pódem alterar a perfeita belleza de uma obra completa, não destróem mais o rhythmo de um cyclo encerrado... No dia em que a Princeza Imperial se decidiu ao seu grande golpe de humanidade, sabia tudo o que arriscava. A raça que ia libertar não tinha para lhe dar sinão o seu sangue, e ella não o quereria nunca para cimentar o throno de seu filho... A classe proprietaria ameaçava passar-se toda para a Republica, seu pae parecia estar moribundo em Milão, era provavel a mudança de reinado durante a crise, e ella não hesitou; uma voz interior disse-lhe que desempenhasse sua missão, a voz divina que se faz ouvir sempre que um grande dever tem que ser cumprido ou um grande sacrificio que ser acceito. Si a monarchia pudesse sobreviver á abolição, esta seria o seu apanagio; si succumbisse, seria o seu testamento. Quando se tem, sobretudo uma mulher, a faculdade de fazer um grande bem universal, como era a emancipação, não se deve parar deante de presagios; o dever é entregar-se inteiramente nas mãos de Deus. E quem sabe... A impressão quando se olha da altura da posteridade, da historia, é que o papel nacional da dynastia tinha sido bello demais para durar ininterruptamente... Não ha tão extensos espaços de felicidade nas coisas humanas; o surto prolongando-se[Pg 249] traria a queda desastrosa. Essa dynastia teve só tres nomes. O fundador fez a independencia do joven paiz americano, desintegrando a velha monarchia européa de que era herdeiro; seu filho encontra aos quinze annos o Imperio enfraquecido pela anarchia, rasgando-se pela ponta do Rio Grande, e funda a unidade nacional sobre tão fortes bases que a guerra do Paraguay, experimentando-a, deixou-a á prova de qualquer pressão interna ou externa, e faz tudo isso sem tocar nas liberdades politicas do paiz que durante cincoenta annos são para elle um noli me tangere... Por ultimo, sua filha renuncia virtualmente o throno para apressar a libertação dos ultimos escravos... Cada reinado, contando a ultima regencia da Princeza como um embryão de reinado, é uma nova coroação nacional: o primeiro, a do Estado; o segundo, a da nação; o terceiro, a do povo... A columna assim está perfeita e egual: a base, o fuste, o capitel. A tendencia do meu espirito é collocar-se no ponto de vista definitivo... Deste o 15 de novembro não é uma queda, é uma assumpção... É a ordem do destino para que a dynastia brasileira fosse arrebatada, antes de começar o seu declinio, antes de correr o risco de esquecer a sua tradição.
De certo o exilio de Imperador foi triste, mas tambem foi o que deu á sua figura a majestade que hoje a reveste... Não, não ha assim nada que me faça olhar para a phase em que militei na politica[Pg 250] com outro sentimento que não seja o de uma perfeita gratidão... Não devo á dynastia nenhuma reparação; não lhe armei uma cilada; na humilde parte que me coube, o que fiz foi acenar-lhe com a gloria, com a immortalidade, com a perfeição do seu traço na historia... Ninguem póde affirmar que desprezando a abolição ella se teria mantido, ou que não teria degenerado... A abolição em todo o caso era o seu dever, e ella recolheu a gloria do acto; deu-nos quitação...
Que seria feito na historia da lenda monarchica brasileira si no mesmo dia se tivesse proclamado a Republica e a Abolição? Gratidão infinita pelo 13 de maio, isso, sim, lhe devo e deverei sempre; nunca, porém reparação de um damno que não causei...
[Pg 251]
Ah! o que não recebi nesses annos de lucta pelos escravos! Como os sacrificios que por vezes inspirei, eram maiores que os meus! Eu tinha a fama, a palavra, a carreira politica... É certo que não tive outras recompensas, mas essas eram as mais bellas para um moço, nesse tempo avido de nomeada e das sensações do triumpho. Era o meu nome que sahia victorioso das urnas numa dessas eleições que electrisavam os espiritos liberaes de todo o paiz, que me traziam de longe as bençãos dos velhos quakers da Anti-Slavery Society, e até uma vez os votos de Gladstone... Aquelles, porém, que concorriam para a victoria desappareciam na lista anonyma dos esquecidos... Seus nomes, mesmo os principaes, não echoavam fóra da provincia... Só, dentre elles, José Mariano era conhecido de todo o paiz e reputado o arbitro eleitoral do Recife. Quem conhecia, porém, a Antonio Carlos Ferreira da Silva, então[Pg 252] simples guarda-livros em uma casa do Recife, que no emtanto fez todas as minhas eleições abolicionistas? A verdade é que era elle o espirito que movia tudo em meu favor; sem elle tudo teria corrido em outra direcção... Essa é a melhor prova do caracter espontaneo, natural, popular, das minhas eleições do Recife, o ter bastado para fazel-as um homem como elle, sincero, dedicado, intelligente, leal, habil, todo coração e enthusiasmo sob uma mascara de frieza e misanthropia, mas sem posição, sem fortuna, sem status politico, sem ligação de partido, simples abolicionista, nunca apparecendo em publico, e, além do mais, republicano confesso... Essa circumstancia só por si mostra bem a sinceridade, a humildade, a ingenuidade de todo esse movimento de 1884-1888. Esse foi o meu paranympho... Os muitos que trouxeram o seu valioso concurso para o successo da causa commum, ou para meu triumpho pessoal, como aconteceu com tantos, comprehenderão o meu sentimento quando ainda uma vez revelo o segredo da minha relação com o Recife, dizendo que Antonio Carlos, que nada era e nada quiz ser, foi o verdadeiro auctor della... Não esqueço ninguem, a começar por Dantas, que me fez quasi forçadamente seguir para o Norte a pleitear um dos districtos da provincia; não esqueço de certo o dr. Ermirio Coutinho e o dr. Joaquim Francisco Cavalcanti, de cuja dupla renuncia resultou a minha inesperada eleição[Pg 253] pelo Quinto districto, uma semana depois de annullarem o meu diploma pelo Primeiro, passe eleitoral que surprehendeu a todos na Camara e em que Antonio Carlos foi grandemente ajudado pelo seu amigo dr. Coimbra. Tambem não esqueço José Mariano, cuja lealdade para commigo foi perfeita em circumstancias que poriam á prova a emulação e a susceptibilidade de outro espirito, capaz de inveja ou de ciumes; nem a suave physionomia, um puro Carlo Dolce, da sua meiga e amorosa D. Olegarinha, tão cedo esvaecida, a qual nas vesperas da minha eleição, que José Mariano fizera delle, contra o Ministro do Imperio, fez empenhar joias suas para o custeio da lucta, o que só vim a saber no dia seguinte, quando o partido as resgatou e lh’as foi levar... Não esqueço ninguem, nenhum dos chefes e centuriões liberaes, Costa Ribeiro, João Teixeira, Barros Rego, o Silva da Magdalena, Faustino de Brito, os Rochas do Peres: seria preciso citar cem, duzentos... Nenhum tambem desse grupo de abolicionistas, que me recebeu com Antonio Carlos: Barros Sobrinho, João Ramos, Gomes de Mattos, João Barbalho, Numa Pompilio, João de Oliveira, Martins Junior, todos elles; não esqueço os brilhantes artigos de tantos jornalistas distinctos, sobre todos Maciel Pinheiro, o amigo de Castro Alves, austero, rutilante, genial, figura que lembra o traço velazquiano, ao mesmo tempo sombrio e luminoso.[Pg 254] E são esses sómente os primeiros nomes que me vieram á penna. Outros, muitos outros, estão egualmente presentes ao meu espirito como Annibal Falcão e Souza Pinto, então os chefes intellectuaes da mocidade.
Duvido ter eu tido maior revelação, ou impressão exterior que ficasse actuando sobre mim de modo mais permanente, do que essas eleições de 1884 a 1887,—a de 1889, posso dizer, feita a abolição, não me interessava quasi. Ellas puzeram-me em contacto directo com a parte mais necessitada da população e em mais de uma morada de pobre tive uma lição de coisas tão pungente e tão suggestiva sobre o desinteresse dos que nada possuem, que a só lembrança do que vi terá sempre sobre mim o poder o effeito de um exame de consciencia... Eu visitava os eleitores, de casa em casa, batendo em algumas ruas a todas as portas... A pobreza de alguns desses interiores e a intensidade da religião politica alimentada nelles fez-me por vezes desistir de ir mais longe... Doia vêr o quanto custava a essa gente credula a sua devoção politica. Diversos desses episodios gravaram-se-me no coração. Uma vez, por exemplo, entrei na casa de um operario, empregado em um dos Arsenaes, para pedir-lhe o voto. Chamava-se Jararaca, mas só tinha de terrivel o nome. Estava prompto a votar por mim, tinha sympathia pela causa, disse-me elle; mas votando,[Pg 255] era demittido, perdia o pão da familia; tinha recebido a chapa de caixão (uma cedula marcada com um segundo nome, que servia de signal), e si ella não apparecesse na urna, sua sorte estava liquidada no mesmo instante. «Olhe, sr. doutor», disse-me elle, mostrando-me quatro pequenos, que me olhavam com indifferença, na mais perfeita inconsciencia de que se tratava delles mesmos, de quem no dia seguinte lhes daria de comer... E depois, voltando-se para uma creancinha, deitada sobre os buracos de um antigo canapé desmantelado: «Ainda em cima, minha mulher ha dois mezes achou essa creança deante da nossa porta, quasi morrendo de fome, roida pelas formigas, e hoje é mais um filho que temos!» «No emtanto, estou prompto a votar pelo senhor, recomeçava elle, cedendo á sua tentação liberal, si o senhor me trouxer um pedido do brigadeiro Floriano Peixoto.» Esse foi talvez o primeiro florianista do paiz... «Póde vir por telegramma... Elle está no engenho, nas Alagôas... E o que elle me pedir, custe o que custar, eu não deixo de fazer... Telegraphe a elle...» «Não, não é preciso, respondi-lhe, vote como quer o Governo, não deixe de levar a sua chapa de caixão... não arrisque á fome toda essa gentinha que está me olhando... Ha de vir tempo em que o senhor poderá votar por mim livremente; até lá, é como si o tivesse feito... Não devo dar-lhe um pretexto para fazer o que quer,[Pg 256] invocando a intervenção do seu protector...» E sahi, instando com a mulher, supplicando, com medo que elle se arrependesse e fosse votar em mim.
Em outras casas o chefe da familia estava sem emprego havia annos por causa de um voto dado ao partido da opposição; a pobreza era completa, quasi a miseria, mas todos alli tinham o orgulho de soffrer por sua lealdade ao partido... E como entre os liberaes, entre os conservadores. Eram coherentes na miseria, na privação de tudo... Esse espectaculo seria de certo animador no mais alto gráu para o optimista desinteressado; este julgaria ter descoberto o refugio da verdadeira natureza humana escondida; para o candidato, porém, de cuja causa se tratava, era terrivelmente pungente surprehender assim a agonia da dignidade... Posso dizer, quanto a mim, eu não teria ousado ser mais um dia pretendente a um posto que custava tanto soffrimento, si não fosse para servir a causa de outros ainda mais infelizes do que essas victimas da altivez do pobre, da paixão e illusão politica do povo. Hoje, quem sabe, eu não teria talvez em nenhum caso a força, a coragem de insinuar aos bons, aos credulos, aos ingenuos, sacrificios pessoaes dessa ordem em favor de uma causa que não fosse directamente delles. Faria com todos o que fiz com o bom Jararaca: aconselharia que não sacrificassem os seus... Mas a lucta pela justiça é isso mesmo, é o sacrificio de gerações inteiras[Pg 257] pelo direito ás vezes de um só, para resgatar a injustiça feita a um opprimido, talvez um estranho. De certo, não tenho remorsos nem me arrependo... Pessoalmente nenhum lucro tirei de todas as abnegações que vieram a mim; não capitalisei o soffrimento de tantos desinteressados... Consola-me nada ter tirado da abolição sinão o gozo de algumas impressões de tribuna e de nomeada, que foram apenas uma expansão como qualquer outra da mocidade... Graças a Deus, favor este inestimavel, nenhum lucro material, directo ou indirecto, me resultou nunca das idéas que me seduziram e com as quaes seduzi a outros...
Mas, ainda uma vez, o que recebi foi incalculavel. Só Deus mesmo, que vê os soffrimentos que se escondem e cujo orgulho é passarem invisiveis no meio da multidão, póde fazer tal conta. Sou um captivo do Recife. Ninguem que não tenha acompanhado um dos candidatos, de casa em casa, das areias do Brum aos canaes dos Afogados, durante a campanha da abolição, póde avaliar o que custou áquelles bairros de população densa, vivendo na mais completa destituição de tudo, o acolhimento que me deram. Para chegar á Camara tive os hombros dos que não tinham de seu sinão o trabalho de suas mãos e que se arriscavam, carregados de familia, a vêr fechar-se-lhes no dia seguinte a officina, a ser despedidos, despejados, depois de me terem dado[Pg 258] o voto... O que me fica de todo esse episodio, o unico de minha carreira politica, é um sentimento acabrunhador de fallencia... Meu unico activo é a gratidão. O passivo é illimitado... Foram milhares os que me offereceram tudo o que tinham, isto é, como nada tinham, o que eram, o que podiam ser, e posso dizer que o acceitei em nome dos escravos. Muitos ter-se-ão levantado outra vez e seguido seu caminho pelas estradas abertas desde então, mas que todas parecem conduzir á mesma miragem que abrasa o horizonte. Terão ido, ou irão indo, coitados, de illusão em illusão, de desprendimento em desprendimento, de lealdade em lealdade... Não importa. O facto para mim dominante é que em um momento da minha vida pedi e acceitei o sacrificio absoluto de muitos pela causa que eu defendia... De certo, foi a mais nobre, a mais augusta das causas; mas o facto é que eu era alli o representante della, que em grande parte a dedicação, o sacrificio era por mim, como era meu o triumpho, minha a carreira, meu o futuro politico...
A impressão que me ficou da politica, excepto esse quadro doloroso do sacrificio ingenuo dos simples, dos bons, dos que soffrem, pelos que se elevam, posso dizer que me lembra um jardim encantado do Oriente, onde tudo eram fórmas enganadoras de existencias petrificadas, immobilisadas, á espera da palavra que as libertasse;[Pg 259] onde a rosa que nunca desbotava exprimia a presença occulta de uma paixão que não queria perjurar-se; onde o marmore alabastrino das fontes significava o corpo immaculado de que vertia continuo o sangue puro dos martyrios do amor e da verdade; onde os rouxinóes que cantavam, eram pares de amantes a quem era defeso procurarem-se sob a fórma humana... Tudo alli estava suspenso, transportado a outra escala do ser, a outra ordem de sensibilidade e de affectos... Era o mesmo facto, mas com differente aspiração, differente consciencia, differente vontade, e para o qual por isso mesmo o tempo não corria, como no sonho... A scena politica foi tambem para mim um puro encantamento... Sob a apparencia de partidos, ministerios, Camaras, de todo o systema a que presidia com as suas longas barbas niveas o velho de S. Christovão, o genio brasileiro tinha encarnado e disfarçado o drama de lagrimas e esperanças que se estava representando no inconsciente nacional, e á geração do meu tempo coube penetrar no vasto simulacro no momento em que o signal, o toque redemptor, ia ser dado, e todo elle desabar para apparecer em seu logar a realidade humana, de repente chamada á vida, restituida á liberdade e ao movimento... Por isso não trouxe da politica nenhuma decepção, nenhum amargor, nenhum resentimento... Atravessei por ella durante a metamorphose.
[Pg 260]
Um episodio da abolição, a minha ida a Roma em começo de 1888, contarei aqui, porque será um élo em minha vida, um toque insensivel de despertar para partes longamente adormecidas de minha consciencia.
Eu tinha sempre lastimado a neutralidade do clero perante a escravidão, o indifferentismo do seu contacto com ella... Para o fim, porém, a voz dos bispos se fez ouvir em um momento de inspiração. Por occasião do jubileu sacerdotal de Leão XIII, elles publicaram, quasi todos, pastoraes convidando os seus diocesanos a offerecer como dadiva ao Santo Padre cartas de liberdade. Esse appello dos prelados offerecia uma opportunidade ao partido abolicionista de pedir ao Soberano Pontifice a sua intervenção em favor dos escravos, e eu resolvi aproveital-a.
Eu acabára de ser eleito deputado pelo Recife,[Pg 261] batendo o ministro do Imperio, e essa eleição soou como o dobre da resistencia escravista. Nos poucos dias que restavam da sessão parlamentar de 1887, vim ao Rio de Janeiro tomar assento na Camara, mas o objecto principal da minha vinda ao Rio era conseguir, e consegui, o pronunciamento moral do exercito contra a escravidão, a dissociação absoluta entre a força publica e as funcções dos antigos capitães de matto. Para occupar as férias parlamentares hesitei entre essa ida a Roma e uma viagem aos Estados-Unidos, onde o acolhimento que eu teria por intermedio dos antigos abolicionistas podia dar grande repercussão á nossa causa em todo o continente americano. Preferindo ir a Roma, fui levado sobretudo pela idéa de que uma manifestação do Santo Padre tocaria o sentimento religioso da Regente.
Era-me, de certo, permittido recorrer ao Papa, como a qualquer outro oraculo moral que pudesse inspirar a Princeza, fallar-lhe ao ideal e ao dever. Durante dez annos não visei a outra coisa sinão a captar o interesse da dynastia, e a accordar o sentimento do paiz. A opinião publica do mundo parecia-me uma arma legitima de usar em uma questão que era da humanidade toda e não sómente nossa. Para adquirir aquella arma fui a Lisbôa, a Madrid, a Pariz, a Londres, a Milão, ia agora a Roma, e si a escravidão tivesse tardado ainda a desapparecer, teria[Pg 262] ido a Washington, a Nova-York, a Buenos-Aires, a Santiago, a toda parte onde uma sympathia nova por nossa causa pudesse apparecer, trazendo-lhe o prestigio da civilisação. Si havia falta de patriotismo em procurar crear no exterior,—tomado não como poder material, mas como o reflector moral universal, que é para nós,—uma opinião que nos chegasse depois espontaneamente com a grande voz da humanidade, não posso negar que fui um grande culpado... Teria sido o mesmo crime que o de W.L. Garrison desembarcando na Inglaterra para commovel-a contra a escravidão nos Estados-Unidos; o mesmo erro que o dos delegados dos diversos congressos internacionaes anti-esclavagistas. A consciencia, a sympathia humana é, porém, uma força que nunca é prohibido procurar chamar a si e pôr ao serviço do seu paiz ou da causa que se defende.
Chegando a Londres em Dezembro, em Janeiro parti para Roma com cartas do cardeal Manning, que a Anti-Slavery Society e Mr. Lilly, da União Catholica ingleza, me tinham obtido. Em Roma encontrei um apoio egualmente util, o do nosso ministro, o sr. Souza Corrêa, antigo collega e amigo meu. Elle poz-me logo em contacto com o Cardeal Secretario do Estado, que me acolheu de modo supremamente benevolo. Roma estava repleta de peregrinos por causa do jubileu, no Vaticano o trabalho era enorme; apezar[Pg 263] d’isso, consegui abrir caminho até o Santo Padre. Em 16 de Janeiro eu apresentava o meu memorial ao Cardeal Rampolla. Hoje eu o teria redigido de outro modo, mas hoje não tenho mais o ardor do propagandista... Aqui estão alguns trechos d’essa supplica; por elles se verá que o meu appello não era sómente pelos escravos do Brasil, mas por toda a raça negra, pela Africa, d’onde pouco tempo depois devia surgir arrebatadamente a grande figura do cardeal Lavigerie:
«Sem excepção quasi, os bispos brasileiros declararam em pastoraes, que o modo mais digno e mais nobre de celebrar o anniversario sacerdotal de Leão XIII era para os possuidores darem liberdade aos seus escravos e para os outros membros da communhão empregarem em cartas de alforria os donativos que quizessem offerecer ao Santo Padre.
«O appello moralmente unanime dos nossos prelados não podia deixar de exercer a maior influencia sobre o movimento abolicionista, que já arrastava comsigo a opinião, e d’ahi seguiu-se uma manifestação religiosa e nacional, que pela sua propria grandeza mostra que a abolição no Brasil não é mais uma divergencia entre partidos politicos... Pela manumissão de multidões de escravos em nome do Santo Padre, o seu jubileu ficará sendo a elevação á liberdade de centenas de novas familias brasileiras.
«De todos os dons postos aos pés de Leão XIII o tributo do Brasil sob a fórma d’esses libertos christãos, que tomam de longe parte em sua glorificação universal, é talvez a unica offerta que terá feito derramar ao Santo Padre lagrimas de reconhecimento.
[Pg 264]
«Eis ahi, Eminencia Reverendissima, a esplendida occasião que se offerece ao Soberano Pontifice de interceder, de intervir, de ordenar em favor dos escravos brasileiros. D’essas cartas de alforria depositadas deante de seu augusto throno, Leão XIII póde fazer a semente da emancipação universal. Uma palavra de Sua Santidade aos senhores catholicos no interesse dos seus escravos, christãos como elles, não ficaria encerrada nos vastos limites do Brasil, teria a circumferencia mesma da religião, penetraria como uma mensagem divina por toda a parte onde a escravidão ainda existe no mundo.
«O Papa acaba de canonisar a Pedro Claver, o Apostolo dos Negros. Na epocha adeantada da civilisação em que vivemos, ha infelizmente ainda escravidão bastante no mundo para que Leão XIII possa accrescentar aos seus outros titulos o de Libertador dos Escravos.
«Alguns dos seus illustres predecessores procederam por vezes contra a escravidão; tendo esta por unica origem o trafico, está de facto comprehendida nas bullas que o condemnaram, mas os tempos em que esses immortaes Pontifices fallaram não são os nossos, a humanidade então não havia feito esforços para apagar o seu crime de tantos seculos contra a Africa, cuja raça infeliz parece destinada a soffrer, sob fórmas diversas do mesmo preconceito, a fatalidade da sua côr. Um acto de Leão XIII, generoso, ardente, inspirado na espontaneidade de sua alma, contra a maldição que pesa sobre aquella raça, seria um beneficio incalculavel.
«Nenhum pensamento politico intervem na supplica que dirijo ao Chefe do mundo catholico em favor dos mais infelizes dos seus filhos. Não quero sinão pôr o seu coração de pae em communicação directa com o d’elles. D’esse contacto da caridade com o martyrio não póde jorrar sinão a onda de misericordia que eu espero. Por ella o jubileu de Leão XIII será assignalado como uma[Pg 265] data da redempção humana em toda a parte onde a raça negra se possa julgar a orphã de Deus».
Em 10 de Fevereiro seguinte, Sua Santidade concedia-me uma audiencia particular. Dei conta d’ella no mesmo dia, escrevendo para o Paiz... D’entre os papeis velhos que formam as parcellas de minha vida, a expressão é de uma carta do Imperador,—outro papel velho que é para mim uma reliquia,—este ha de ser sempre um dos mais preciosos: a emoção que elle guarda não poderia ser repetida, e é d’essas que augmentam á medida que os annos se afastam... Por isso o reproduzo agora:
«O Papa e a Escravidão.
«Tive hoje a honra de ser recebido em audiencia particular pelo Papa, e como essa audiencia me foi concedida com relação ao assumpto politico que me fez vir a Roma, não devo demorar a reconstrução da conversa que tive com Sua Santidade e que eu trouxe do Vaticano tachygraphada, photographada na memoria. Foi uma insigne benevolencia de Sua Santidade conceder-me tal audiencia em um tempo em que cada um dos seus momentos está de antemão empenhado aos bispos, arcebispos, e catholicos proeminentes, que lhe vêm trazer algum dom por occasião de seu jubileu.
«O Papa está constantemente a receber numerosas[Pg 266] deputações influentes de todas as partes do mundo e dirige-se sempre a ellas com uma allocução animada. Esse accrescimo de trabalho ás suas constantes occupações de cada dia não deixa muito tempo de descanço ao Santo Padre, sobre quem os seus 78 annos, juntos á majestade da tiara, começam a pesar; no emtanto é nessas horas de repouso que Sua Santidade recebe individualmente os homens notaveis do mundo catholico e conversa com elles largamente sobre o assumpto pelo qual cada um se interessa.
«Eu, porém, era um desconhecido e não vinha trazer nada ao Papa, vinha só pedir-lhe; nenhum serviço tinha prestado nunca á Egreja, e a questão que me occupava, exigia que Sua Santidade lesse antes uma série de documentos e fizesse alguma meditação sobre a grave resposta que me ia dar. Isto era um esforço, e, nas circumstancias especiaes do jubileu, a attenção a mim prestada pela mais alta de todas as individualidades humanas é um acto a que ligo ainda maior apreço e reconhecimento por saber que na minha humilde pessôa foi aos escravos do Brasil que Leão XIII quiz acolher paternalmente e fazel-os chegar até ao seu augusto throno, como, symbolicamente, o mais elevado de todos os logares de refugio.
«O Papa recebe em audiencia particular, sem testemunha alguma. Ninguém está na sala sinão elle e a pessôa a quem a audiencia é concedida.[Pg 267] Em uma sala contigua está um secretario e um official da guarda, mas uma vez introduzido no pequeno salão, o visitante acha-se a portas fechadas em presença sómente de Leão XIII. O Papa, que lia um livro de versos latinos quando fui annunciado, mandou que me assentasse numa cadeira ao lado da sua e perguntou-me em que lingua devia fallar-me. Eu preferi o francez.
«A impressão que senti todo o tempo da audiencia, que não durou menos de tres quartos de hora, não se parece com a sensação causada pela presença de um dos grandes soberanos do mundo. O throno brasileiro é uma excepção. Nunca no Brasil houve homem tão accessivel como o Imperador, nem casa tão aberta como S. Christovão. Mas os monarchas em geral são educados e crescem, porque a sua condição é superior á do resto dos homens, na crença de que são melhores do que a humanidade. A todas as vantagens do Papado como instituição monarchica, notavelmente a electividade, é preciso accrescentar essa superioridade do Papa sobre os outros soberanos, que estes nascem, vivem e morrem no throno, e que os Papas só chegam á realeza nos ultimos annos da vida, isto é, que vivem toda a vida como homens e no throno não fazem quasi sinão coroar a sua carreira. Esse caracter humano da realeza pontificia é a condição principal de seu prestigio, assim como a electividade é a condição da sua duração illimitada[Pg 268] e o espirito religioso a da sua selecção moral. Eu diria mesmo que a sós com o Papa a impressão é antes a do confessionario que a dos degráus do throno, si ao mesmo tempo não houvesse na franqueza e na reserva de Sua Santidade alguma coisa que exclue desde o principio a idéa de que alli esteja o confessor interessado em descobrir o fundo da alma do seu interlocutor. A impressão dominante é, entretanto, de confiança absoluta, como si, entre aquellas quatro paredes, tudo o que se pudesse dizer ao Summo Pontifice tomasse caracter de uma conversa intima com Deus, de quem estivesse alli o interprete e o medianeiro.
«As palavras que cahiram dos labios do Santo Padre, gravaram-se-me na memoria, e não creio que se apaguem mais, nem creio que eu deixe de ouvir a voz e o tom firme com que foram ditas. O Papa começou notando que elle me havia demorado muito tempo em Roma, mas que eram numerosos os seus deveres nesse momento, ao que respondi que o meu tempo não podia ser melhor empregado do que em esperar a palavra de Sua Santidade.—«Eu ia aos Estados-Unidos, disse eu a Leão XIII, onde está a maior parte da raça negra da America; mas quando os nossos bispos começaram a fallar com deliberação e de commum accordo a proposito do jubileu de Vossa Santidade e a pedir a emancipação dos escravos como o melhor e mais alto modo[Pg 269] de o solemnisar no Brasil, pensei que devia antes de tudo vir a Roma pedir a Vossa Santidade que completasse a obra daquelles prelados, condemnando, em nome da Egreja, a escravidão. Conseguindo isto de Vossa Santidade, nós, abolicionistas, teriamos conseguido um ponto de apoio na consciencia catholica do paiz, que seria da maior vantagem para a realisação completa da nossa esperança.»
«Sua Santidade respondeu-me:—Ce que vous avez à cœur, l’Eglise aussi l’a à cœur. A escravidão está condemnada pela Egreja e já devia ha muito tempo ter acabado. O homem não póde ser escravo do homem. Todos são egualmente filhos de Deus, des enfants de Dieu. Senti-me vivamente tocado pela acção dos bispos, que approvo completamente, por terem de accordo com os catholicos do Brasil escolhido o meu jubileu sacerdotal para essa grande iniciativa... É preciso agora aproveitar a iniciativa dos bispos para apressar a emancipação. Vou fallar nesse sentido. Si a encyclica apparecerá no mez que vem ou depois de Paschoa, não posso ainda dizer...
«—O que nós quizeramos, observei, era que Vossa Santidade fallasse de modo que a sua voz chegasse ao Brasil antes da abertura do Parlamento, que tem logar em Maio. A palavra de Vossa Santidade exerceria a maior influencia no animo do governo e da pequena parte do paiz[Pg 270] que não quer ainda acompanhar o movimento nacional. Nós esperamos que Vossa Santidade diga uma palavra que prenda a consciencia de todos os verdadeiros catholicos.
«—Ce mot je le dirai, vous pouvez en être sûr, respondeu-me o Papa, e quando o Papa tiver fallado, todos os catholicos terão que obedecer.»
«Estas ultimas palavras o Papa m’as repetiu duas ou tres vezes, sempre na forma impessoal; não:—quando eu tiver fallado, mas sempre:—quando o Papa tiver fallado.
«Acredito ter sido absolutamente leal para com os meus adversarios na exposição que fiz em seguida á Sua Santidade da marcha da questão abolicionista no Brasil. O Papa fez-me diversas perguntas, a cada uma das quaes respondi com a completa lealdade que devia primeiro ao Papa, e depois aos meus compatriotas. Descrevi o movimento abolicionista no Brasil, como tendo-se tornado proeminentemente um movimento da propria classe dos proprietarios, e dei, como devia, e é justo, aos operarios desinteressados da ultima hora a maior parte na solução definitiva do problema, que sem a sua generosidade seria insoluvel.
«Referi-me á brilhante acção do Sr. Prado e ao effeito moral do nobre pronunciamento do Sr. Moreira de Barros como factos do maior alcance. Expuz como não havia na historia do[Pg 271] mundo exemplo de humanidade de uma grande classe egual á desistencia feita pelos senhores brasileiros dos seus titulos de propriedade escrava. Disse que essa era a prova real de que a escravidão no Brasil tinha sido sempre uma instituição estrangeira, alheia ao espirito nacional, o que é ainda confirmado, (isto não disse ao Papa), pelo facto de que os estrangeiros no Brasil foram, e são ainda hoje, de toda a communhão, os que menos sympathia mostraram ao movimento libertador. Quanto á Familia Imperial, repeti ao Summo Pontifice que o que ha feito em nossa lei a favor dos escravos, é devido á iniciativa e imposição do Imperador, ainda que seja pouco. «—Uma dynastia, accrescentei, tem interesses materiaes que dependem do apoio de todas as classes e não póde affrontar a má vontade de nenhuma, muito menos da mais poderosa de todas. O Papado, porém, não depende de nenhuma classe, por isso colloca-se no ponto de vista da moral absoluta, que nenhuma dynastia póde tomar sem destruir-se». Fallando do actual Presidente do Conselho, disse a Sua Santidade que elle era um homem a quem a Egreja no Brasil devia muito por ter sido elle o principal auctor da amnistia, que poz termo ao conflicto de 1873, mas que, nessa questão, não tinhamos motivo para suppôr que elle quizesse ir além da lei actual, o que era positivamente contrario ao desejo unanime da nação.—«Eu, porém,[Pg 272] accrescentei, não peço a Vossa Santidade um acto politico, ainda que as consequencias politicas que a nação ha de sem duvida tirar do acto que imploro, sejam incontestaveis. Felizmente, Vossa Santidade está em uma posição donde não vê os partidos, mas só os principios. O que nós queremos é um mandamento moral, é a lição da Egreja sobre a liberdade do homem. Não ha governo no mundo que possa ter a pretenção de que o Papa, ao estabelecer um principio de moral universal, pare para considerar si esse principio está de accordo ou em conflicto com os interesses politicos d’esse governo. Agora mesmo um sacerdote brasileiro foi preso por acoitar escravos. Nós, abolicionistas, por toda parte acoitamos escravos. Fazemos o que faziam os bispos da média edade com os servos. O sentimento da nação, isto posso affirmar a Vossa Santidade, é unanime, e a palavra do chefe da Egreja não encontraria ninguem para disputal-a.»
«O Papa então repetiu-me que a sua encyclica abundaria nos sentimentos do Evangelho, que a causa era tão sua como nossa, e que o governo mesmo veria que era de boa politica reconhecer a liberdade a que todo o filho de Deus tem direito pelo seu proprio nascimento, e que o Papa fallaria ao mesmo tempo que da liberdade, da necessidade de educar religiosamente essa massa de infelizes, privados até hoje de instrucção moral.
[Pg 273]
«O cardeal Czacki me tinha fallado egualmente no dever de dar educação moral aos libertos, e n’esse sentido parece que na America do Norte e nas Antilhas o catholicismo vae tentar um grande esforço. Sympathisando com o principio da nossa propaganda abolicionista e pondo em relevo a responsabilidade que nós, abolicionistas, haviamos contrahido, o cardeal Czacki poz o dedo no que é a ferida da raça negra, ainda mais degradada talvez do que opprimida, e, do ponto de vista catholico, me disse que não havia outro meio para fazer d’esses escravos de hontem homens moralisados, sinão espalhar largamente entre elles a educação religiosa que não tiveram nunca. Como respondi ao cardeal, assim respondi ao Papa. «—Antes de começar o movimento abolicionista em 1879, disse eu ao Summo Pontifice, o partido liberal a que pertenço, em consequencia da lucta com os bispos em 1873, lucta sobre a qual os conservadores haviam pronunciado a amnistia, achava-se principalmente voltado para medidas de secularisação dos actos da vida civil, quasi todos ainda confiados entre nós á Egreja. Com essas medidas desenvolveu-se mesmo um estado de guerra entre o liberalismo e a Egreja. Desde que começou o movimento abolicionista, entretanto, morreram todas as outras questões, e litteralmente ha nove annos não se tem tratado de outra coisa no paiz. Estabeleceu-se então uma verdadeira[Pg 274] tregua de Deus entre homens de todos os modos de sentir e pensar a respeito das outras questões. O primeiro que na Camara elevou a voz para pedir a abolição immediata, o deputado Jeronymo Sodré, é um catholico proeminente. O co-proprietario do jornal abolicionista de Pernambuco, que sustenta a minha politica, é o presidente de uma sociedade catholica, o Sr. Gomes de Mattos. Os bispos e os abolicionistas trabalham agora de commum accordo. Essa tregua tem durado até hoje sem perturbação, e espero que dure por muito tempo ainda. Abolida a escravidão, resta proteger o escravo livre. Nesse campo nada em nossas leis impede que a Egreja entre em concurrencia para obter a clientela da raça que tiver ajudado a resgastar. Não seremos nós, abolicionistas, que havemos de impedir a approximação entre os novos cidadãos e a unica religião capaz de os conquistar para a civilisação. As vistas do paiz voltar-se-ão para as outras questões do melhoramento da condição do povo, da creação da vida local, em que póde e deve continuar a tregua, ou melhor, a alliança. Si a Egreja conseguir recommendar-se ao reconhecimento da raça escrava, concorrendo para o seu resgate, os abolicionistas por certo não lhes hão de aconselhar a ingratidão.»
«O Papa ouviu-me todo o tempo com a maior sympathia e justificou-me de ter pedido mais do que o cardeal Manning julgára razoavel que eu[Pg 275] pedisse. Sua Eminencia, cora effeito, aconselhou-me a pedir ao Papa a repromulgação das Bullas de alguns dos seus antecessores e eu pedi um acto pessoal de Leão XIII.—«As circumstancias mudam, disse-me o Papa, os tempos não são os mesmos; quando essas Bullas foram publicadas, a escravidão era forte no mundo, hoje ella está felizmente acabada.»
«—O acto de Vossa Santidade, disse-lhe eu, terminando, será uma pagina da historia da civilisação christã que illustrará o seu pontificado... Sua encyclica levantar-se-á tão alto aos olhos do mundo, dominando o movimento da abolição como a cupula de S. Pedro sobre a Campanha Romana.»
«Ahi está mais ou menos reproduzida a longa audiencia particular que Leão XIII me fez a excelsa honra de conceder-me, e que Sua Santidade terminou com uma benção especial para a causa dos escravos. Eu antes havia enviado ao sub-secretario de Estado, monsenhor Mocenni, a recente pastoral do bispo do Rio, sentindo não ter podido encontrar os numeros do Paiz em que appareceram as dos outros prelados. Assim mesmo tive a fortuna de achar em retalho as pastoraes dos bispos de Marianna, do Rio Grande do Sul e do arcebispo da Bahia, que todas foram enviadas ao cardeal Rampolla. A admiravel carta do bispo de Diamantina, á qual especialmente me referi, quando fallei ao Papa, não[Pg 276] a pude encontrar. Com a encyclica promettida e já annunciada por toda a Europa, essas pastoraes formariam um bello livro de fraternidade humana.
«A demora que tive em Roma impede-me de voltar pelos Estados-Unidos, porque não teria mais tempo de preencher qualquer dos fins com que ia á grande Republica. Mas estou satisfeito, contente. A palavra do Papa terá para todos os catholicos maior influencia do que poderia ter qualquer outra manifestação em favor dos escravos. Nenhuma consciencia recusará ao chefe da religião o direito de pronunciar-se sobre um facto como a escravidão, que estabelece um vinculo entre o senhor e o escravo, equivalente a entrelaçar-lhes para sempre as almas e as responsabilidades. Na maneira de se exprimir de Leão XIII não vi a minima vacillação, a mais leve preoccupação de torcer o ensinamento moral para adaptal-o ás circumstancias politicas. Vi tão sómente a consciencia moral brilhando, como um pharol, com uma luz indifferente aos naufragios dos que não se guiarem por ella.
«Roma, 10 de Fevereiro de 1888.»
Como o cardeal Czaki tinha tido razão de dizer que eu ia levar ao Papa um verdadeiro bon-bon!... Infelizmente, a diplomacia envolveu-se na questão, o ministerio conservador alarmou-se com a intenção manifestada pelo Papa, e conseguiu[Pg 277] demorar a Encyclica... A curta demora foi bastante para ella só apparecer depois de abolida a escravidão no Brasil... Entre a queda de Cotegipe e a abolição o espaço foi tão pequeno que a bella obra de Leão XIII só veiu a ser publicada quando não havia mais escravos no Brasil. A benção, porém, do Santo Padre á nossa causa, a palavra que elle ia proferir, essas desde os fins de Fevereiro, ainda sob o gabinete Cotegipe, o paiz as conheceu pelas minhas revelações... A surpreza da emancipação total foi tão agradavel a Leão XIII que, como post-scriptum á sua carta lapidaria sobre a escravidão, elle mandou á Princeza Imperial a Rosa de Ouro.
Meu papel foi, como se viu, muito humilde. Simples portador para o cardeal Rampolla e monsenhor Mocenni das cartas de apresentação do cardeal Manning, eu não fiz, apresentando a Leão XIII as pastoraes dos nossos bispos sobre o seu jubileu, sinão offerecer-lhe um assumpto a todos os respeitos digno d’elle... A imaginação do Papa abrangeu logo toda a grandeza do serviço que elle podia prestar á humanidade, o thema incomparavel proporcionado ás suas lettras... Si de alguma coisa me posso lisonjear é de ter ligado como uma aspiração commum á causa dos escravos no Brasil a causa da Africa... Poucos mezes depois do pronunciamento que suppliquei ao Santo Padre, chegará a Roma o cardeal Lavigerie e o Papa o investirá na[Pg 278] cruzada africana que foi a nobre coroação da sua vida... Em uma carta da Anti-Slavery Society Mr. Charles Allen fez-me a honra de dizer que fui eu que preparei junto ao Papa o caminho para Mgr. Lavigerie... Nos discursos do grande apostolo d’Africa, no que elle disse tantas vezes ex abundantia cordis, o que se vê é que, quando elle chegou a Roma, Leão XIII estava possuido, dominado, inflammado do fervor anti-esclavagista... A parte que me coube em tudo isso foi apenas a de ser quem,—na occasião do seu jubileu sacerdotal e da canonisação de São Pedro Claver, occasião tão favoravel para o desabrochar d’essa e de outras generosas iniciativas e aspirações de reinado,—teve a fortuna de attrahir o grande espirito de Leão XIII, disputado por tantas solicitações, para o problema que mais o podia fascinar.
Foi bem forte a impressão que eu trouxe de Roma... Nos fins de Abril, não se sabendo ainda até onde iria a reforma annunciada pelo novo gabinete João Alfredo, assisto á festa da libertação em massa de uma fazenda do Parahyba e a lembrança que me occorre é a das maravilhas do Vaticano... Que emoções essas da abolição! Como tudo se fundia em uma mesma nota, mysteriosa e intima, como si tivessemos em nós nesses momentos o coração dos escravos em vez do nosso proprio! É este o trecho em[Pg 279] que descrevi aquella emoção da Bella Alliança...
«Ha tres mezes tive a fortuna de assistir á missa do Papa na Capella Sixtina. Nesse tempo eu não esperava que a hora da abolição estivesse tão prestes a soar, e tinha ido pedir a Leão XIII, na desconfiança de que a Regencia era um vice-reinado e o vice-reinado da escravidão, uma palavra que movesse o sentimento religioso da Princeza... Como eu estava enganado e quem não estava a começar pelo proprio Presidente do Conselho! Durante aquella missa, em que tudo para mim era novo, e quando o vulto do Papa entre os cardeaes prendia todas as attenções, por entre a musica da Sixtina, ouvindo a qual sente-se que a voz humana é o unico de todos os instrumentos que sóbe além da terra, eu pelo menos não podia tirar os olhos d’esse tecto, que é a maior pagina do bello escripta pelo homem... Que opportunidade unica a de tal cerimonia e de tal acompanhamento para relêr a biblia de Miguel-Angelo e decorar o seu poema da creação!... Pois bem, a missa da Bella Alliança renovou-me a emoção infinita da Sixtina... Havia n’ella outros tantos elementos de grandeza combinados... Não havia o Summo Pontifice, nem o côro angelico, nem os frescos de Miguel-Angelo... Estava alli, porém, o representante do Papa abençoando em nome d’elle a reconciliação das duas raças; havia lagrimas em todos os olhos, a anciedade,[Pg 280] egualmente apprehensiva para todos, os que iam dar e os que iam receber a liberdade, e para nós a mais suave de todas as sensações possiveis: a de vêr recuar as trevas da escravidão do rosto de uma raça, esse grande fiat lux, vêr o barro hontem informe, o escravo, accordar homem, como o Adão de Miguel-Angelo, na claridade matinal da creação... O pensamento voltava quasi quatro seculos atraz, á primeira missa dita no Brazil, quando elle tomou o nome de Terra de Santa-Cruz... Quatro seculos para a cruz recuperar o seu verdadeiro sentido de symbolo da redempção e para a missa significar o sacrificio de Deus pelo homem!... Vendo deante d’elles aquella a quem iam dever a liberdade, e olhando para a Senhora da Piedade no nicho do altar, os escravos na confusão dos seus dois grandes reconhecimentos deviam ter sentido os rubis, como lagrimas de sangue, do resplendor da mãe de Deus, baixar um momento sobre a cabeça da sua redemptora ajoelhada[4]...»
[4] A senhora a quem me referia era uma compatriota nossa, que casára em Pariz com um joven e elegante russo. Ha della um admiravel retrato em tamanho natural, obra de Richter. A suavidade e doçura de Madame Haritoff, a tão popular Dona Nicota, emprestavam-lhe uma belleza toda de expressão, que com seus longos cabellos pretos, seus grandes olhos luminosos, sua tez de um moreno mate, e a graça de seu corpo, tinha para os estrangeiros um caracter especial, distinctamente brasileiro.
[Pg 281]
Ah! os tempos em que se escrevia assim! em que o coração, e só o coração, era que fazia o dictado, e tão rapido que a penna não o podia acompanhar. Para mim teria sido uma diminuição sensivel da emoção humana que a campanha abolicionista me causou, si eu não tivesse essa pagina da minha ida a Roma para relêr, esse encontro comnosco da sympathia e do fervor de Leão XIII. Porque tão tarde tive eu a idéa d’esse appello, que devêra talvez ter sido o primeiro? Quero crer que na abolição, tão subita foi ella, tudo veiu a tempo... A lembrança d’essa visita a Roma seguida tão de perto do fim da escravidão e da queda da monarchia, que era o termo forçado da minha carreira politica, não podia deixar de crescer no vazio da minha tarefa acabada e da impossibilidade de assumir outra equivalente... Uma nova vida vae datar d’aquellas impressões religiosas assim assimiladas no ardor de um combate que devia encerrar e resumir a minha vida militante... Uma nova camada de minha formação desenha-se insensivelmente desde esse meu momentaneo contacto com Leão XIII,—ou por outra a camada primitiva começa a descobrir-se depois de perdido por tão longos annos o veio de ouro da infancia... Qualquer que seja a verdade theologica, acredito que Deus nos levará de algum modo em conta a utilidade pratica de nossa existencia, e emquanto o captiveiro existisse, estou[Pg 282] convencido de que não eu poderia dar melhor emprego á minha do que combatendo-o. Essa vida exterior, eu sei bem, não póde substituir a vida interior, mesmo quando o espirito de caridade, o amor humano, nos animasse sempre em nosso trabalho. A satisfação de realisar, por mais humilde que seja a esphera de cada um, uma parcella de bem para outrem, de ajudar a illuminar com um raio, quando não fosse sinão de esperança, vidas escuras e subterraneas como eram as dos escravos, é uma alegria intensa que apaga por si só a lembrança das privações pessoaes e preserva da inveja e da decepção. Essa alegria todos que tomaram parte no movimento abolicionista devem tel-a sentido por egual. Emquanto a lucta contra a escravidão durasse, penso que a religião não sahiria para mim do estado latente de acção humanitaria... Muitas vezes mesmo, a religião não consegue desprender-se da tarefa ordinaria da vida, e é sómente quando essa tarefa acaba ou se interrompe que as perquisições interiores começam, que se quer penetrar o mysterio, que se sente a necessidade de uma crença que explique a vida. Até lá basta o proprio papel que desempenhamos; o critico não apparece sob o actor; a duvida não distráe da acção exterior continua. Emquanto se é um simples instrumento, por pequeno que seja o circulo traçado em torno de nós, a imaginação se encerra nelle, e a vida interior não se insinua siquer á consciencia... A acção é uma[Pg 283] distracção. E só acabada ella que em certa ordem de espiritos as affinidades superiores se pronunciam... Quero crer, para os que succumbem nessa phase, que o beneficio que elles possam fazer elimine parte da impureza que carregam em sua inconsciencia moral, ou religiosa,—o que é o mesmo, e aida peior... Não posso hoje pensar na minha ida a Roma em 1888 sem sentir que então germens esquecidos nos primeiros sulcos da meninice reviveram, para germinar mais tarde ao calor de outras influencias... Não fui em vão a Roma, do ponto de vista do meu sentimento religioso...
[Pg 284]
Nenhuma influencia singular actuou sobre mim mais do que a de meu mestre, o velho barão de Tautphœus. Com sua imaginação toda tomada pela historia, elle costumava nos annos de meu ardente liberalismo chamar-me Alcibiades. Certamente elle realisava para mim o typo de Socrates. Si não trazia a mascara de Sileno emprestada ao grande atheniense, mesmo physicamente, sobretudo para a velhice, elle tinha muitos dos traços socraticos: a coragem fria, a calma imperturbavel, a resistencia á fadiga, o gosto da palestra, da conversação intellectual, da companhia dos moços, a completa abstracção de si, a modestia, a alegria de viver como espectador do Universo, cedendo sempre todavia aos outros o melhor logar, o forte espiritualismo, a indifferença pelo ridiculo, o respeito da ordem social, quem quer que a encarnasse. Sua mocidade é um tanto legendaria[Pg 285] ainda, e nada seria mais interessante do que apurar os factos a respeito d’ella. O que ouvi por vezes a meu irmão Sizenando,—esse tinha por Tautphœus uma admiração enthusiastica e conviveu com elle muito mais intimamente do que eu, a quem em compensação elle deu o melhor de seus ultimos dias, suas derradeiras tardes,—foi que, joven, Tautphœus, antes forçado a expatriar-se da Baviera por motivo revolucionario, acompanhára o rei Othon á Grecia, depois viera viver em Pariz, nas vizinhanças do anno 30, e frequentava a pleiade liberal do Journal des Débats até que emigrou para o Brazil.
Muito myope, usava de um vidro quadrado, que pelo habito continuo da leitura como que se collocava automaticamente; e ainda menos do que o monoculo, deixava elle o charuto... Sempre com um grosso volume allemão debaixo do braço, caminhava horas inteiras no mesmo andar, alheio ao mundo exterior... Era um homem que sabia tudo. Sua conversação era inexgottavel, e raro elle mesmo a dirigia. O assumpto lhe era indifferente, e até o fim, annos seguidos, dia após dia, nunca elle se encontrou sinão com interlocutores curiosos de ouvil-o sobre os pontos que mais lhes interessavam. Era litteralmente como um diccionario que a cada instante alguem manuseasse, ou uma encyclopedia que um abrisse no artigo Babylonia, logo outros nos artigos Invasão dos Barbaros, Adam Smith, Luthero, Hieroglyphos,[Pg 286] Logarithmos, Amazonas, Architectura Gothica, Liberdade de Testar, Raizes Gregas, Papel-Moeda, Culturas Tropicaes, Alberto Dürer, Divina Comedia, ao acaso. Era sómente ferir a tecla, pôr a pergunta no apparelho, e esperar o desenrolar da resposta, como a que daria o Lexicon de Meyer, ou a Historia Universal de Cesar Cantu. Elle fallava de um modo uniforme, sem emphase, sem colorido, sem expressão mesmo, mas era um jorrar sem fim de sciencia, de erudição, como si n’aquelle mesmo dia tivesse estado a estudar o assumpto. Nada mais differente da ostentação frivola de sciencia com que tanta gente se apraz em deslumbrar o ouvinte que lhe offerece inadvertidamente um assumpto ao seu alcance, do que essas dissertações scientificas, up to date, a que Tautphœus se entregava perante os seus discipulos, que todos o ficavam sendo, para sempre, jornalistas, professores, ministros de Estado que fossem...
A abundancia de idéas geraes, de pontos de vista suggestivos, de materia para reflexão em sua conversa, era notavel. Póde-se dizer que esse homem que não escreveu nunca, pelo menos no Brasil, publicou maior numero de ensaios, de theses historicas e outras, do que todos os nossos escriptores juntos: unicamente suas continuas edições tiradas a pequeno numero de exemplares dissipavam-se como a palavra, quando não eram[Pg 287] convertidas em trabalho alheio. Que lhe importava isto? Elle era destituido de ambição. Esse respeitador por systema da ordem hierarchica e da pragmatica social, que nunca levou a mal que os poderes de um dia se considerassem seus superiores, que os afidalgados da vespera olhassem com desdem para o seu titulo hereditario, vendo-o mestre de meninos, era um sabio da Grecia, praticando com o espirito e a inteireza pagã a philosophia do Ecclesiaste: Vanitas vanitatum... Desde muito cedo elle adquiriu a esse respeito a perfeita immunidade. Tendo que ganhar a vida em paiz estrangeiro por meio de lições, enterrou tudo que pudesse restar-lhe dos velhos preconceitos aristocraticos de seu paiz, das aspirações á elegancia, á vida de prazer, ostentação, e successos mundanos da sua mocidade em Pariz, entrou no papel que lhe fôra distribuido com a mesma simplicidade como si o recebesse por herança... em uma palavra, sem resentimento, sem queixa, sem murmurio. Bebeu a agua da Carioca com o mesmo espirito de conformação com que teria bebido a agua do Lethes... Esqueceu-se de si mesmo para entrar em seu novo destino... Mas tambem desde logo como elle penetrou os mais intimos refolhos e singularidades do paiz que devia ser sua segunda patria, e que elle amou como tal! Sua posição era involuntariamente considerada subalterna ainda pelos mais capazes de comprehender,—o que não[Pg 288] é o mesmo que sentir,—a profissão do creador intellectual como essencialmente nobre. Elle, porém, movia-se indifferente no meio da arlequinada social, sabendo bem que no mundo, ninguem o disse melhor do que Calderon, todos sonham o que são.
Mas que profundeza no sentir! Si todo o mundo estava fóra do seu logar,—elle não pretendia isso, pelo contrario, pensava que a distribuição era justa, que as posições e responsabilidades eram dadas aos melhores, sómente estes não faziam o melhor, não procuravam dar o mais que podiam,—quando todo o mundo estivesse, elle ao menos queria estar no seu... Conservador e catholico, conheci-o muito abalado com o Kulturkampf, por sua idéa allemã de que o maior politico do mundo,—para elle Bismark certamente o era,—não podia ser atraiçoado n’aquella questão ao mesmo tempo pelo seu faro nacional e pelo seu instincto conservador. O seu conservatismo entranhado era tambem parte da sua philosophia, por isso elle tinha pelas nossas instituições um sentimento de que nós mesmos eramos incapazes: o de veneração idealista. D’esse simples funccionario do Estado, que não tinha de seu sinão seu modesto ordenado de cada dia, e além d’isso, estrangeiro de origem, partiu talvez o unico grito de: Viva a Constituição do Imperio! que se ouviu, si alguem o ouviu,—tão fraca era já a voz,—em 15 de Novembro[Pg 289] ao desfilar das tropas do general Deodoro pela rua do Ouvidor. Talvez alguem olhando para o velho que fazia sem medo tal protesto, pensasse que era um protegido do Imperador allucinado pela catastrophe que o tragaria tambem. Não o era porém; favores, elle os não devia, nem gratidão; tudo o que tivera, fôra em concurso, do qual os competidores desistiam, louvando-se em sua fama... Não era um despeitado, era um philosopho, era o homem que melhor estudára a psychologia do nosso paiz e que mais se conformára a ella até áquelle acto, que lhe pareceu nacionalmente fatidico, como para os Judeus o partir-se ao meio do véo do templo...
Um traço d’essa sua penetração já assignalei uma vez, lembrando que foi elle quem me fez notar que o nosso interesse pelas coisas publicas é tanto menor quanto o assumpto mais de perto nos concerne. É assim, dizia-me elle, que os negocios do municipio nos interessarão sempre a todos menos que os da provincia, os da provincia menos que a politica geral. Para mostrar quanto era precario o nosso self-governement, não bastava essa indifferença que cresce na razão directa do interesse que deviamos sentir? Outra observação d’elle que revela a promptidão do seu espirito, foi a nossa conversa sobre a impermeabilidade ingleza a idéas e concepções alheias. Eu dava a lentidão dos inglezes em apanhar e comprehender o ponto de vista, a novidade estrangeira, como[Pg 290] um signal talvez de menor vivacidade intellectual do que a dos povos continentaes: «Pelo contrario, observou-me elle, as palavras serão minhas, a idéa é d’elle, essa repugnancia ao que vem de fóra do paiz, essa suspeita contra o que não é conforme ao instincto da raça, prova antes a originalidade della, a força de sua propria productividade, o orgulho das suas creações nacionaes... Essa resistencia foi que permittiu á Inglaterra dar ao mundo um Shakespeare.» Foi essa reflexão talvez que me levou a pensar que o cosmopolitismo, na esphera da concepção intellectual, não é um elemento creador, nem uma superioridade invejavel: pelo contrario, a difficuldade de assimilar, de sentir o que não tem affinidades com a nossa propria producção, é antes uma virtude do que um defeito; a permeabilidade prejudica a solidez e conservação das qualidades proprias, isto é, da propria natureza.
Si eu tivesse que precisar o que devo a Tautphœus, assignalaria, entre tantos outros trabalhos de lapidação que acredito serem d’elle, duas acquisições, a que em certo sentido, se poderiam chamar transformações intimas. A primeira, sem que aliás a suggestão partisse d’elle, nem mesmo que elle tivesse consciencia d’este ponto de vista meu,—quem sabe si elle o não combateria?—é que deante delle, pensando nelle, me habituei a considerar o juizo do historiador como o juizo definitivo, o que importa,[Pg 291] final, e por isso aquelle a que se deve desde logo visar. Não póde haver maior revolução para o espirito do que essa, de collocar-nos espontaneamente em frente do solitario juiz de bibliotheca do futuro e não dos juizes sem numero de praça publica do momento actual. Perante aquelle juiz o nosso nome póde não ser citado, os testemunhos incompletos pódem ser-nos injustamente favoraveis ou desfavoraveis, mas a sua opinião é a que conta, é a que vale... O juizo da multidão que hoje nos eleva ou nos deprime, esse representa apenas a poeira da estrada. Não é preciso que sejamos actores para que essa concepção da verdadeira instancia que decide das reputações nos affecte, por assim dizer, em cada um dos nossos moveis de acção, estimulos e affinidades moraes: o effeito é o mesmo sobre o espectador, o curioso, o transeunte, o indifferente. É, em menor escala, está visto,—porque esta é a maior de todas as possiveis differenças nos motivos de inspiração e de conducta,—como a mudança da concepção pagã, que o importante é a vida, para a concepção christã, que é a eternidade. Feita a reducção das aspirações da propria alma para as da intelligencia ou do espirito, a metamorphose é tambem profunda entre viver, ou vêr viver, tendo-se em vista os contemporaneos e tendo-se em vista a posteridade. Tratando-se da posteridade, está claro que é sempre preciso imaginar o espaço de algumas gerações, dar toda a margem[Pg 292] ao esquecimento... No momento actual são milhares, milhões que julgam; pouco a pouco o tribunal se vae reduzindo, até que os grandes personagens vêm a depender da sentença de um juiz singular, um Mommsen, um Ranke, um Curtius, um Macaulay, encerrado em sua livraria, procurando animar-se para com elles de uma paixão retrospectiva, toda ella puro enthusiasmo, illusão de auctor, na qual não figura nenhum dos sentimentos, um unico siquer, nem das paixões verdadeiras que elles inspiraram...
Outra transição que lhe devi... Como hei de explical-o que se entenda sómente a nuança, e não mais? porque quero crer que os germens se desenvolveriam por si mesmos, mas sinto que o seu influxo benefico penetrou até o terreno onde elles se estavam talvez formando sem eu o sentir...
Nós tinhamos nos ultimos tempos da vida de Tautphœus uma pequena solidão em Paquetá, para as vizinhanças do chamado Castello, em um remanso daquellas encantadoras paragens. Era uma antiga casa terrea a que um dos proprietarios, um inglez, juntára uma varanda em roda e a meio um pequeno sobrado com venezianas verdes e balcão por onde subia uma trepadeira, dando-lhe um aspecto ao mesmo tempo singelo e pittoresco de residencia estrangeira. A frente deitava para o mar, e a parte baixa da costa do outro lado formava um suave fundo de quadro.[Pg 293] A casa estava sobre uma pequena elevação, e o declive para a praia era tomado por um grande taboleiro de gramma, cuidadosamente tratado, como em um parque. A ilha de Paquetá é uma joia tropical, sem valor para os naturaes do paiz, mas de uma variedade quasi infinita para o pintor, o photographo, o naturalista estrangeiro. Para mim ella tinha a seducção especial de ser uma paizagem do Norte do Brazil desenhada na bahia do Rio. Emquanto por toda parte á entrada do Rio de Janeiro o que se vê são granitos escuros cobertos de florestas continuas guardando a costa, em Paquetá o quadro é outro: são praias de coqueiros, campos de cajueiros, e á beira-mar as hastes flexiveis das cannas selvagens alternando com as velhas mangueiras e os tamarindos solitarios. Ao lado, entretanto, d’essas miniaturas do Norte encontram-se na ilha a cada canto do mar rochas revestidas com a mesma caracteristica vegetação fluminense.
Tautphœus fôra sempre um apaixonado da nossa natureza. Desde que chegára ao Brasil tinha sido um explorador de suas bellezas. A madrugada, a alta noite, a distancia não eram impedimento para elle, tratando-se de um nascer de sol, um effeito de luar, um fio de agua descendo pela pedra, um jequitibá escondido na matta virgem. Toda a vida elle vivera n’esse colloquio intimo de namorado com a luz e a terra do Brasil; um raio de sol illuminando o Corcovado ou o[Pg 294] Pão de Assucar, era uma saudação mysteriosa do poder creador a que elle sempre respondia... Ao vêl-o sentado, a escutar os passaros na matta ao lado, eu associava insensivelmente o mestre com as minhas primeiras lições de inglez e lembrava-me do vizir do sultão Mahmud. Os arredores do Rio de Janeiro especialmente o seduziam. Elle era de todos os passeios a que o convidassem para qualquer dos pontos pittorescos, que ahi são sem numero. Passar a tarde sob o arvoredo secular que se encontra em tantas das ilhas, observando o glorioso colorido das montanhas ao pôr do sol, era uma verdadeira volupia para elle. A nossa vivenda de Paquetá agradava-lhe por lhe dar, com o silencio e isolamento que cercava a bibliotheca, a escolha, á vontade, do mar, do campo e da montanha: as praias extensas, a floresta accessivel, a planicie atapetada, si lhe agradava passear; a agua serena, o mar fechado á vista, como um lago suisso, si queria tomar o nosso barco e mandar o Mudo, o nosso saudoso remador, abrir a vela para os pequenos ilhotes de onde se avistam em um extremo os Orgãos de Theresopolis, e no outro a serrania da cidade ... Elle vinha sempre aos sabbados e ficava o domingo, e ás vezes, nas curtas férias que tinha, dias seguidos... Era visivelmente a despedida. Suas faculdades estavam intactas, elle era desses em quem se sente que o espirito não soffrerá deperecimento, que se[Pg 295] apagará de repente no meio de uma contemplação ou meditação mais intensa e prolongada; mas as forças physicas estavam em declinio, via-se o cançaço de ter pensado tanto e o involuntario tributo á duvida: si teria bem aproveitado o tempo, ou si teria vivido em vão. Elle tomára muito ao serio o gosto da obscuridade, a modestia, o retrahimento; cortejára de mais o esquecimento, e via talvez que este estava a ponto de envolvel-o, excepto em alguns raros espiritos, onde sua lembrança duraria mais algum tempo, até elles mesmos serem por sua vez envolvidos...
Como foram suaves esses dias finaes que elle nos deu, tão penetrantes, tão profundamente melancolicos, da melancolia, porém, dos momentos que quizeramos tornar eternos, ou que outros viessem gozar delles ao nosso lado para não se esvaecerem de todo, como um meteóro deslumbrante!... O seu prazer, muitas vezes, era sentar-se em um banco á beira do mar, do lago, eu devia dizer pela impressão que dava, e d’alli assistir á tarde, cujas cambiantes no ar, no céo, na agua, nas côres do horizonte, no murmurio e no silencio da solidão, eram uma gamma de que elle não perdia a mais insignificante transição... Quantas outras vezes, de dia, ao passearmos na matta ao lado da casa, quando se ia abrindo caminho para passarmos, não me pedia elle que não tocasse na natureza, que respeitasse o intricado, o selvatico, o inesperado, de tudo[Pg 296] aquillo, porque aquella desordem era infinitamente superior ao que a arte pudesse tentar... Elle achava a mais pobre e arida natureza mais bella do que os jardins de Sallustio ou de Luiz XIV. Ah! si tem sido elle o descobridor e possuidor da America, o machado nunca teria entrado nella... E o tição? Uma queimada era para elle egual a um auto de fé. O incendio ao lamber essas resinas preciosas, essa seiva, esses suecos de vida, esse sem numero de desenhos caprichosos de artistas inexcediveis cada um no seu genero, modelos de côr e de sensibilidade, todos elles unicos, parecia consumir com uma dôr cruel, vibrante, todas as suas ligações sensiveis com a natureza e a vida universal, os nervos todos de sua peripheria intellectual.
O seu amor pela nossa natureza foi muito grande. Quantas vezes introduzi em nossas conversas a idéa de uma viagem á Europa para vêr si despertava n’elle affinidades esquecidas, recordações latentes. Toda essa parte européa, porém, estava morta, atrophiada; em vez della o que havia, esta, vivaz e peregrina, era uma sensibilidade nova, a americana, a brasileira... Era um eterno encantado da nossa terra. Ella lhe dizia o que a nós não diz, e que talvez seja preciso ter tido e renunciado por ella uma primeira encarnação, um outro mundo, para se poder sentir. Si nós brasileiros pudessemos ter aquelle amor! Esse perenne embevecimento de Tautphœus foi[Pg 297] uma das influencias que desenvolveram em mim o gosto, o encanto, ainda que de minha parte puramente sentimental e ingenuo, que o contacto de nosso paiz tem hoje para mim... Em Tautphœus aquelle amor era differente: era fino, espiritual, intellectual, esthetico:... em mim será uma simples affinidade do coração, uma ternura, uma saudade da vida, mas esta affinidade deverá muito ao espectaculo do carinhoso devaneio d’aquelle sabio, d’aquelle grego antigo, d’aquelle philosopho nascido e formado em outros climas, perante a amenidade, a doçura dos tropicos, o pittoresco da nossa moldura agreste, os toques de mutação de nossa scenographia natural, a modulação, o colorido, a solidão intima de nossa paizagem.
No tempo da minha vangloria litteraria duas cousas me feriam nelle: que com toda sua sciencia elle não escrevesse nada e que pudesse ser tão submissamente catholico. Agora em nossos passeios pela floresta, em nossas «soirées» á beira da minha pequena enseada, dourada pelo luar, era sobre a religião que versavam nossas conversas... Oh! que admiraveis monologos os delle! A ultima vez que atravessou o nosso mare clausum voltou para casa para morrer. O vestigio do seu pensamento ficou por muito tempo commigo, e ainda por vezes lhe sinto a ondulação fugidia. Foi por minhas palestras com elle que comprehendi por fim que um grande espirito[Pg 298] podia ficar á vontade, livre, em um religião revelada, do mesmo modo que foi graças a elle que comprehendi que os escriptores não formam por si sós a élite dos pensadores, que ha ao lado delles, talvez acima, uma especie de Trappa intellectual votada ao silencio, e onde se refugiam os que experimentam o desdem da publicidade, de sua ostentação vulgar, de seu mercenarismo mal disfarçado, de seu modo frivolo, de sua apropriação do bem alheio, de sua falta de sinceridade interior. O horror da scena, hoje do mercado, não póde ser um signal de inferioridade intellectual.
O resumo da impressão que eu guardo delle está feito por Goethe conversando com Eckermann sobre Alexandre de Humboldt: «Que homem elle é! Ha tanto tempo, tanto, que o conheço, e elle é sempre novo para mim. Póde-se dizer que não tem egual, nem em sciencia, nem em experiência. Além d’isso, ha uma variedade de aspectos nelle como não encontrei em ninguem. Qualquer que seja o assumpto de conversa que se procure, está sempre no seu proprio terreno e despeja sobre nós thesouros de informações. É como uma fonte de varias bicas, sob as quaes basta collocar um cantaro para logo o encher, e donde estão sempre a correr jorros de agua fresca inexgottavel. Elle passará aqui alguns dias, e já me parece que ha de ser para mim como si tivesse vivido muitos annos.»[Pg 299] Ouvil-o, vêl-o, viver com elle, era litteralmente esquecer o presente e reunir-se á comitiva de Sócrates... Elle era uma d’essas copias, que nem por serem copias, nem por se reproduzirem seguidamente de epocha em epocha entre differentes nações, deixam de conservar a superioridade, a primazia do original, o mais nobre dos modelos humanos.
[Pg 300]
A queda do Imperio puzera fim á minha carreira... A causa monarchica devia ser o meu ultimo contacto com a politica... De 1889 a 1890 estou todo sob a impressão do 15 de Novembro seguindo-se ao 13 de Maio; escrevo então os meus soliloquios em uma Thebaida onde podia andar centenas de milhas sem deparar com o refugio de outro praticante... Em 1891 minha maior impressão é a morte do Imperador. De 1892 a 1893 ha um intervallo: a religião afasta tudo mais, é o periodo da volta mysteriosa, indefinivel da fé, para mim verdadeira pomba do diluvio universal, trazendo o ramo da vida renascente... De 1893 a 1895 soffro o abalo da Revolta, da morte de Saldanha, de que sáem meus dois livros Balmaceda e a Intervenção... Desde 1893, porém, o assumpto que devia ser a grande devoção litteraria da minha vida, a Vida de meu pae, tinha-se já[Pg 301] apossado de mim e devia seguidamente durante seis annos occupar-me até absorver-me...
Como escrevi algumas paginas atraz, o meu espirito adquirira em tudo a aspiração da fórma e do repouso definitivo. A nossa dynastia tivera em 15 de Novembro o que chamei uma assumpção: vivêra e acabára como uma encarnação nacional. O condão deixado pela fada no berço da nossa nacionalidade foi quebrado e lançado fóra; quem nos diz que o desfecho não estava previsto por ella? A Independencia, a Unidade nacional, a Abolição: nenhuma dynastia jamais insculpiu na sua pyramide um tão perfeito cartouche... Quando eu pensava no papel representado pela casa reinante brasileira, Dom Pedro I, Dom Pedro II, Dona Isabel, e nas condições de unanimidade, espontaneidade, e finalidade nacional necessarias para ella o poder de novo desempenhar de accordo com a sua lenda, o problema excedia a minha imaginação, e parecia-me um attentado contra a historia querer-se accrescentar, a não ser por mão de mestre, de uma segurança, de uma delicadeza, de uma felicidade a toda prova, um novo painel áquelle triptyco...
Por outro lado, durante os annos que trabalhei na Vida de meu pae a minha attitude foi insensivelmente sendo affectada pelo espirito das antigas gerações que crearam e fundaram o regimen liberal que a nossa deixou destruir... O que eu respirava n’aquella vasta documentação, não era[Pg 302] um espirito monarchico inconciliavel, bastando como uma religião, como uma bemaventurança, aos que por ella se destacavam do mundo... A monarchia para aquellas epochas de architectos, pedreiros e esculptores politicos incomparaveis, era uma bella e pura fórma, mas que não podia existir por si só; o interesse, o amor, o zelo, o fervor patriotico delles dirigia-se á substancia nacional, o paiz; sua vassallagem ao principio monarchico era apenas um preito rendido á primeira das conveniencias sociaes... Para taes homens, verdadeiramente fundadores, um terremoto poderia subverter as instituções, mas o Brasil existiria sempre, e á sua voz seria forçoso acudir, qualquer que fosse o vendaval em torno, e quanto mais ferido, mais mutilado, mais exhausto, maior o dever de o não abandonar... Elles não estabeleceriam nunca o dilemma entre a monarchia e a patria, porque a patria não podia ter rival.
A impressão d’esses sentimentos varonis, d’essa antiga lealdade, foi grande em mim e á medida que eu a ia respirando, o desejo augmentava de não deixar pelo menos o meu tumulo murado do lado do futuro... Comprehendo a carta de Berryer moribundo a Henrique V, como comprehendo a carta do conde de Chambord sobre a bandeira branca; a monarchia franceza gerára uma cavallaria, um ponto de honra aristocratico, um espirito de classe á parte, e[Pg 303] mesmo assim era como o proprio Berryer, como Chateaubriand, como o duque de Aumale,—«La France était toujours là!»—que os nossos antigos homens de Estado desde os tempos coloniaes, e o Imperador lhes reflectia o sentimento patriotico absoluto, collocavam a patria fóra de competição com qualquer outra idéa ou sentimento... Eu, porém, não tinha uma parcella de legitimismo, de direito divino; minha caracterisação, o accento tonico, era outra: liberal, não no sentido passageiro, politico, da expressão, mas no seu sentido humano, eterno, e como liberal a aspiração synthetica de minha vida tinha que ser a de não me dissociar, qualquer que fosse sua fórma de governo, dos destinos do meu paiz.
Assim, mesmo como monarchista, me fui pouco a pouco distanciando da politica. Meu espirito crystallisára sob faces que o fariam sempre rejeitar como anti-politico... Que podia eu mais tentar sósinho, por mim mesmo? Em 1879 eu me alistára para uma campanha que suppunha havia de durar além de minha vida; fiz assim, posso dizer, voto perpetuo de servir uma grande causa nacional: o que devia durar mais de trinta annos, durou sómente nove, mas nem por isso economisei forças, iniciativa, imaginação para outros emprehendimentos... A abolição, além d’isso, pelo seu sopro universal, isolára-me dos partidos, afastára-me da sua esphera contencisa;[Pg 304] por habito eu agora aspirava a viver em regiões de ar mais dilatado, onde se respirasse a unanimidade moral, a fé, o optimismo humano, o oxygeneo das grandes correntes de ideal...
De mais, eu me convenci de que os partidos, os homens, as instituções rivaes em uma mesma sociedade hão de ter o mesmo nivel, como liquidos em vasos que se communicam; de que o pessoal politico é um só, os idealistas, os ultra, de cada lado sendo imperceptiveis minorias; por ultimo, de minha inaptidão para lidar com o elemento pessoal, de que dependem em politica quasi todos os resultados... Era-me de todo imposivel encontrar de novo em mim o impulso, o movimento, o impeto das nossas antigas cargas da abolição... Luctas de partidos, meetings populares, sessões agitadas da Camara, tiradas de oratoria, tudo isso me parecia pertencer á edade da cavallaria... Agora o menor problema politico causava-me uma timidez invencivel, tornava-se nacional, internacional, e todos convertiam-se em casos de consciencia. Uma serie de reflexões, que tomavam a fórma de maximas politicas, eram outros tantos avisos de perigo sobre qualquer superficie desconhecida que eu quizesse pisar... Eu desistia assim de lidar d’ora em deante com partidos e com acontecimentos; minha esphera tornára-se toda subjectiva... «Ha epochas em que o associar-se, ainda mesmo com outros melhores do que nós, é trahir o ideal proprio que[Pg 305] cada um tem em si e que lhe cumpre a seu modo lapidar e polir ao infinito.» Esta minha phrase sobre o isolamento de André Rebouças, quando não imaginava o fim melancolico que elle havia de ter, exprime muito do meu proprio sentimento... É preciso roubar ao mundo uma parte da vida, e é melhor que seja a final, para dal-a aos pensamentos e ás aspirações que não queremos que morram comnosco.
Os ultimos dez annos são assim o periodo em que o interesse politico cederá gradualmente o logar ao interesse religioso e ao interesse litterario até ficar reduzido quasi sómente ao que tem de commum com elles... Quando digo interesse politico, quero dizer o espirito politico, porquanto a emoção, a parte que tomo na sorte do paiz augmenta com as peripecias, as contingencias, os vortices dos novos dramas. O auctor e o actor desapparecem; o espectador, esse, porém, sente a sua anciedade crescer e tornar-se angustiosa... Posso portanto terminar aqui a historia de minha formação politica, e mesmo de toda a minha formação, porque das novas influencias que me vão dominar no resto da vida, a religiosa já se a encontrou na infancia e a das lettras na mocidade. As lettras luctaram em mim annos seguidos, como se viu, contra a politica, sempre com superioridade, até vir a abolição, que durante os dez annos as relegou, como tudo mais, a immensa distancia. Extincto este grande fóco[Pg 306] de atracção, nenhum outro teria o mesmo poder contra ellas... Ainda assim talvez tenha apenas havido entre ellas e a politica uma verdadeira fusão... A historia é com effeito o unico campo em que me seria dado ainda cultivar a politica, porque nelle não terei perigo de faltar á indulgencia, que é a caridade do espirito, nem á tolerancia, que é a forma de justiça a que eu posso attingir... São essas duas das faces, a que ha pouco alludi, sob que meu espirito crystallisou.
Dizendo as lettras, quero apenas dizer o que ellas pódem ser para mim: o lado bello, sensivel, humano das coisas que está ao meu alcance, a resonancia, a admiração, o estado d’alma que ellas me deixam... Foi a necessidade de cultivar interiormente a benevolencia o que, talvez, me dispoz a trocar definitivamente a politica pelas lettras, a dar a minha vida activa por encerrada, reservando, como vocação intellectual,—a politica não fôra outra coisa para mim,—o saldo de dias que me restasse para polir imagens, sentimentos, lembranças que eu quizera levar na alma... Olhei a vida nas diversas epochas através de vidros differentes: primeiro, no ardor da mocidade, o prazer, a embriaguez de viver, a curiosidade do mundo; depois, a ambição, a popularidade, a emoção da scena, o esforço e a recompensa da lucta para fazer homens livres, (todos esses eram vidros de augmento)...; mais tarde, como contrastes, a nostalgia do nosso passado[Pg 307] e a seducção crescente de nossa natureza, o retrahimento do mundo e a doçura do lar, os tumulos dos amigos e os berços dos filhos, (todos esses são ainda prismas); mas em despedida ao Creador, espero ainda olhal-a através dos vidros de Epicteto, do puro crystal sem refracção: a admiração e o reconhecimento...
FIM
[Pg 309]
Prefacio | VII |
I | |
Collegio e Academia | 1 |
II | |
Bagehot | 9 |
III | |
1871-1873. Na Reforma | 24 |
IV | |
Attracção do Mundo | 33 |
V | |
Primeira viagem á Europa | 45 |
VI | |
A França de 1873-74 | 54 |
VII | |
Ernest Renan | 65 |
VIII | |
A crise poetica | 75 |
[Pg 310] IX | |
Addido de Legação | 85 |
X | |
Londres | 92 |
XI | |
32, Grosvenor Gardens | 106 |
XII | |
Influencia ingleza | 110 |
XIII | |
O espirito inglez | 125 |
XIV | |
Nova-York (1876-77) | 135 |
XV | |
O meu diario de 1877 | 147 |
XVI | |
Traços Americanos | 159 |
XVII | |
Influencia dos Estados-Unidos | 170 |
XVIII | |
Meu Pae | 184 |
XIX | |
Eleição de deputado | 202 |
XX | |
Massangana | 211 |
[Pg 311] XXI | |
A abolição | 226 |
XXII | |
Caracter do movimento.—A parte da dynastia | 245 |
XXIII | |
Passagem pela politica | 251 |
XXIV | |
No Vaticano | 261 |
XXV | |
O barão de Tautphœus | 284 |
XXVI | |
Os ultimos dez annos | 300 |
Paris.—Garnier irmãos, 6, rue des Saints-Pères. 429.5 1900.
Contos Fluminenses, contendo Miss Dollar, Luiz Soares, A mulher de preto. O segredo de Augusta, Confissão de uma moça, Frei Simão, Linha recta e Linha curva. 1 vol. in-8º, enc. 5$000, br. | 4$000 |
Helena, romance. 1 vol. in-8º, enc. 3$000, br. | 2$000 |
Historias da Meia Noite. 1 vol. in-8º, enc. 3$000, br. | 2$000 |
Historias sem data. 1 vol. in-8º, enc. 3$000, br. | 2$000 |
Memorias posthumas de Braz Cubas. 1 vol. in-8º, enc. 4$000 br. | 3$000 |
Papeis Avulsos, 1 vol. in-8º, enc. 4$000, br. | 3$000 |
Resurreição. 1 vol. in-8º, enc. 3$000, br. | 2$000 |
Americanas, poesias, 1 vol. in-8º, enc. 3$000, br. | 2$000 |
Chrysalidas, poesias, Com um prefacio do Dr Caetano Filgueiras. 1 vol. in-8º, enc. 3$000, br. | 2$000 |
Phalenas, Varia, Lyra chineza. Uma ode de Anachreonte, Pallida Elvira. 1 vol. in-8º, enc. 3$000 br. | 2$000 |
Quincas Borba. 1 vol. in-8º, enc. 4$000, br. | 3$000 |
Yáya Garcia. 1 vol. in-8º, enc. 5$000, br. | 4$000 |
Paginas Recolhidas. 1 vol. in-8º, enc. 5$000, br. | 4$000 |
Dom Casmurro. 1 vol. in-8º, enc. 5$000, br. | 4$000 |
Paris.—Imp. P. Mouillot, 13, quai Voltaire.—95742.